CRIME DE DESOBEDIÊNCIA
Sumário


I - A lei não exige forma especial para a cominação a que se refere a al. b) do n.º 1 do art. 348.º do Código Penal, mas é indispensável que o seu conteúdo seja claro e inequívoco, sob pena de se colidir com princípio da legalidade penal, consagrado, nomeadamente, no art. 1.º do CP e no art. 29.º da CRP.

Texto Integral


ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

I. Relatório

No processo comum nº 1008/15.7PBSTR, que correu termos, na fase de instrução, no Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo de Instrução Criminal de Santarém, pelo Exº Juiz desse Juízo foi proferida, em 9/3/17, a seguinte decisão instrutória:

«Decisão Instrutória
I – Síntese da tramitação processual:

O Ministério Público deduziu acusação para julgamento em processo comum e perante Tribunal Singular de AG, imputando-lhe a prática de um crime de desobediência, nos termos p. e p. pelo artigo 348º, n.º 1, al. b) do Código Penal.

Aí se afirma em síntese que no dia 3 de Junho de 2015 foi apreendido ao arguido o veículo automóvel de matrícula --MX, pelo Destacamento de Trânsito da GNR de Santarém, por circular na via pública sem o exigido seguro de responsabilidade civil.

Mais se afirma que o arguido foi investido na qualidade de fiel depositário desse veículo e foi advertido de que caso circulasse com este durante a apreensão incorreria na prática do crime de desobediência.

Finalmente afirma-se que o arguido, apesar de saber que devia obediência à ordem legítima que lhe foi comunicada, circulou com o dito veículo no dia 23 de Dezembro de 2015, pelas 14h06m, na Rua Dr. António Francisco Marques em Santarém, sabendo e querendo desobedecer a esse comando, de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Inconformado, o arguido requereu a abertura da instrução afirmando em síntese que:

- à data em que o arguido exerceu a condução do veículo já era titular de seguro de responsabilidade civil automóvel válido (conforme documento que junta);

- e o arguido comunicou tal facto ao IMTT e solicitou o levantamento da apreensão em 08.03.2016 (conforme documento que junta);

Pelo que se deve entender que a apreensão em causa já não estava em vigor à data dos factos concluindo-se pela não pronúncia do arguido.
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Foi requerida prova documental que se indeferiu nos termos e com os fundamentos que constam de fls. 128.
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Produzida a prova foi realizado debate instrutório, com observância das formalidades legais.
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Não há nulidades ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da instrução.
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II – Da fase processual da instrução; critérios de decisão:
A presente fase processual visa, nos termos do artigo 286º, n.º 1 Código de Processo Penal “a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter a causa ou não a julgamento.”
O critério determinante de tal decisão extrai-se do artigo 283º, n.º 1, do mesmo código, norma que estabelece que a decisão de deduzir acusação é tomada se dos autos resultarem indícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente.

O n.º 2 do citado artigo determina então que os indícios se consideram suficientes “sempre que deles resultar uma probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, uma pena ou uma medida de segurança.”

Deve então a decisão instrutória ser determinada pelos mesmos critérios que, nos termos da lei, determinam a decisão de acusar ou arquivar os autos, fazendo o julgador um juízo de prognose face à prova constante dos autos de inquérito e aos seus efeitos em audiência de julgamento, ponderando juntamente com esta, a prova que foi produzida no âmbito da instrução, para determinar quais as probabilidades de um eventual julgamento resultar na aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança.
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III – Os factos:
Compulsados os autos afiguram-se-nos suficientemente indiciados seguintes factos, relevantes para a decisão:

1. Em 23 de Dezembro de 2015, pelas 14h06m, o arguido conduzia o veículo, ligeiro de passageiros, matrícula --MX, marca "Volkswagen", modelo "Passat", de cor preta, pela rua Dr. António Francisco Marques, em Santarém.

2. Tal veículo havia sido apreendido no dia 3 de Junho de 2015, cerca das 03h10m, pelo Destacamento de Trânsito de Santarém da Guarda Nacional Republicana, por circular na estrada nacional n.º 114, quilómetro 77, em Santarém, sem que estivesse efectuado seguro de responsabilidade civil emergente da sua circulação.

3. Na altura, o arguido foi investido na qualidade de fiel depositário do referido veículo.

4. Ao conduzir o veículo, matrícula ---MX, estando impedido de o fazer, o arguido actuou com o propósito de não acatar a determinação que lhe foi dada de não utilizar tal veículo, não obstante saber que se tratava de ordem emanada por autoridade competente para tal.

5. O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, ciente que o seu comportamento era proibido por lei.

Mais se indicia que:
6. O arguido diligenciou pela obtenção de seguro de responsabilidade civil automóvel para o veículo dos autos tendo celebrado com a Companhia de Seguros AXA contrato de seguro válido entre 11-09-2015 e 27-02-2016;

7. Por requerimento datado de 08-03-2016 comunicou tal facto ao IMTT, solicitando o levantamento da referida apreensão.

Não se indiciaram quaisquer outros factos relevantes para a decisão, nomeadamente que:

a) O arguido tenha sido advertido de que a condução/utilização do veículo enquanto estivesse apreendido fosse punível a título de desobediência e que portanto tivesse consciência da punibilidade da sua conduta.
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Motivação de facto:
O Tribunal respondeu à matéria de facto nos termos supra indiciados tendo em conta a globalidade da prova produzida, analisada à luz das regras da experiência comum.

Em concreto o Tribunal teve em conta o teor dos documentos de fls. 61 (auto de apreensão), de fls. 7 (auto de notícia) e 16 (aditamento) quanto aos factos da acusação e os documentos de fls. 98 a 100 juntos com o RAI quanto aos factos referidos em 6. e 7..

Quanto aos factos não indiciados, notamos que nos autos não existe qualquer prova de que ao arguido tenha sido feita qualquer advertência de que a condução do veículo apreendido fosse criminalmente punível como crime de desobediência, nem no documento de fls. 61 (cópia do autos de apreensão) nem em qualquer outro elemento de prova.

Este facto, vertido na acusação, não encontra assim sustentação probatória de espécie alguma no inquérito.

Quanto aos factos subjectivos, notamos que à data em que foi interceptado no exercício da condução (23 de Dezembro de 2015), já após a apreensão, o arguido ainda não tinha requerido o seu levantamento e portanto sabia que tal apreensão se mantinha em vigor, até porque nessa data não tinha em seu poder o documento de circulação do veículo nem qualquer outro que o substituísse, o que só veio a obter em 8 de Março de 2016 como ele mesmo afirma.

Não podia o arguido ignorar que o exercício da condução nessas condições lhe era ilícito e que se deveria abster de o fazer. Não se demonstrou no entanto que o arguido tivesse consciência da punibilidade (nomeadamente criminal) deste facto.
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IV – O Direito:
Ao arguido é imputada a prática, do crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348º, n.º 1, al. b) do Código Penal.

O artigo 348º, n.º 1, do Código Penal estatui que:
“1 - Quem faltar à obediência a ordem ou mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até um ano ou multa até 120 dias se:

a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou

b) Na ausência de disposição legal a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.”.

Em sede de instrução colocou-se a questão de saber se a apreensão ainda era válida quando o arguido voltou a conduzir o veículo, posto que o mesmo já havia celebrado contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel válido.

A este respeito, aderimos à doutrina do Ac. da Rel. de Coimbra de 08-10-2014 e concluímos que “À luz do disposto no artigo 162.º, n.ºs 1 e 6, do Código da Estrada, a apreensão nele referida, fundada em falta de seguro, apenas cessa quando for efectuada, perante a administração, prova da efectivação da transferência da responsabilidade civil decorrente da utilização do veículo”.

O artigo 162º do Código da Estrada, sob a epígrafe “Apreensão de veículos” estatui nos segmentos relevantes que:

1 - O veículo deve ser apreendido pelas autoridades de investigação criminal ou de fiscalização ou seus agentes quando:
(…)
f) Não tenha sido efectuado seguro de responsabilidade civil nos termos da lei;
(…)

6 - No caso de acidente, a apreensão referida na alínea f) do n.º 1 mantém-se até que se mostrem satisfeitas as indemnizações dele derivadas ou, se o respectivo montante não tiver sido determinado, até que seja prestada caução por quantia equivalente ao valor mínimo do seguro obrigatório, sem prejuízo da prova da efectivação de seguro. “

Como se afirma no aresto citado “As citadas normas do Código da Estrada não referem expressamente quando cessa a apreensão. Mas propositadamente assinalou-se a negrito a parte (artigo 162º, nº 6) em que se prevê que a apreensão no caso de acidente, se mantém até que se mostrem satisfeitas as indemnizações dele derivadas ou, se o respectivo montante não tiver sido determinado, até que seja prestada caução por quantia equivalente ao valor mínimo do seguro obrigatório, sem prejuízo da prova da efectivação de seguro.

Desde normativo resulta inequivocamente que a apreensão fundada em falta de seguro apenas cessa quando for efectuada perante a administração prova da efectivação do seguro, o que significará que até esse momento a ordem de não circulação continua válida e legitima porque com cobertura legal. Mal se compreenderia aliás que a apreensão se pudesse considerar cessada à revelia da administração, sem o que o infractor da falta de seguro tivesse que comprovar oficialmente a sua realização. Do mesmo modo só através dessa comprovação poderá reaver os documentos do veículo igualmente apreendidos.”.

No caso dos autos o arguido só efectuou prova perante a administração da realização do seguro após os factos em referência, pelo que a apreensão ainda era válida quando o arguido exerceu a condução em Dezembro de 2015.

No entanto, também é claro que não estão indiciados todos os factos de que depende a responsabilização criminal do arguido, nomeadamente não está indiciado que o mesmo tenha sido expressamente advertido de que a utilização ou condução do veículo apreendido fosse criminalmente punível a título de desobediência.

Este facto é elemento essencial do tipo legal de crime, previsto na alínea b) do artigo 348º, n.º 1, do CPenal e a sua não indiciação leva necessariamente à não pronúncia do arguido.
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VI – Decisão:
Nestes termos e com os fundamentos expostos, não pronuncio o arguido, AG, pela prática do crime de desobediência que lhes vem imputado na acusação pública.

Sem custas.
Notifique e, oportunamente, arquive».

Da transcrita decisão instrutória o MP veio interpor recurso devidamente motivado, formulando as seguintes conclusões:

1.ª O arguido foi acusado, a fls. 72 a 73 dos autos, por prática do crime de desobediência p. e p. nos artigos 26.º e 348.º n.º 1 alínea b), ambos do Código penal, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos.

2.ª Tendo requerido a abertura da fase de Instrução a fls. 94 e seguintes dos autos, foi declarada aberta tal fase processual e produzida a prova considerada pertinente.

3.ª A final, foi proferida decisão instrutória de não pronúncia como resulta de fls. 160 a 164 dos autos, cujo teor também aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos.

4.ª De tal decisão emerge, em 7. alínea a) de fls. 162 dos autos, que o Tribunal “a quo”, em sede de fixação de matéria de facto considerou a não indiciação do seguinte facto:

“O arguido tenha sido advertido de que a condução/utilização do veículo enquanto estivesse apreendido fosse punível a título de desobediência e que portanto tivesse consciência da punibilidade da sua conduta.”

5.ª Depois, em sede de fundamentação de facto, a mesma decisão instrutória diz, a fls. 162 e 163 dos autos, respectivamente, o seguinte:

“ Quanto aos factos não indiciados, notamos que nos autos não existe qualquer prova de que ao arguido tenha sido feita qualquer advertência de que a condução do veículo fosse criminalmente punível como crime de desobediência, nem no documento de fls. 61 (cópia do autos de apreensão) nem em qualquer outro elemento de prova.

Este facto, vertido na acusação, não encontra assim sustentação probatória de espécie alguma no inquérito.”
(…)
“ Não podia o arguido ignorar que o exercício da condução nessas condições lhe era ilícito e que se devia abster de o fazer. Não se demonstrou no entanto que o arguido tivesse consciência da punibilidade (nomeadamente criminal) deste facto.”

6ª De fls. 82 e 83 dos autos, no entanto, resulta cópia certificada do auto de apreensão de veículo donde se retira, do último parágrafo de fls. 82 que, para além do mais, nesse acto, o arguido é nomeado fiel depositário do veículo e, entre outras realidades, está impedido de o remover, utilizar ou por qualquer outra forma subtraí-lo ao poder público a que está sujeita a viatura ---MX, sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência, neste caso, previsto e punido no artigo 348.º do Código Penal, auto que o arguido se recusou a assinar como dele resulta, o que não afecta a validade do documento.

7.ª Daqui se conclui que o Tribunal “a quo”, ao não valorar o auto de apreensão de veículo em causa, já presente nos autos antes do requerimento para abertura de instrução, facto que já era do conhecimento do arguido em 3/6/2015, considerando, por lapso relevante para a decisão, que a cominação da prática do crime por parte do O.P.C. naquele acto não se encontra indiciada, fez errada interpretação quanto ao acervo probatório existente nos autos ao não considerar aquele documento existente como elemento de prova.

8.ª Deste modo, o Tribunal “a quo” concluiu contraditória e insanavelmente que o arguido não tinha consciência da punibilidade criminal do facto que praticou ao conduzir aquele veículo naquela data, quando exarou na decisão instrutória que não se provou indiciariamente a supra mencionada cominação da prática do crime pelo qual o arguido vem acusado.

9.ª Por outro lado, ao fixar a matéria de facto não provada indiciariamente como o fez, o Exm.º Juiz “a quo” fê-lo também erradamente, pois caso tivesse detectado a existência do referido auto de apreensão e todo o seu conteúdo a fls. 82 e 83 dos autos, impunha-se que o valorasse em conformidade porque o documento é válido e determinante para tal efeito, proferindo o necessário despacho de pronúncia pela prática crime de que o arguido é acusado.

10.ª Pelo exposto, deve a decisão ora impugnada ser revogada e substituída por outra que pronuncie o arguido pela prática, em autoria material, de um crime de desobediência p. e p. no artigo 348.º n.º 1 alínea b) do Código Penal.

Mas V. Excelências, Senhores Juízes Desembargadores farão, Como sempre: JUSTIÇA!

O recurso interposto foi admitido com subida imediata, nos próprios autos, e efeito não suspensivo.

A motivação do Digno Recorrente foi notificada ao arguido AG, para o efeito previsto no nº 1 do art. 413º do CPP, não tendo ele exercido o seu direito de resposta.

A Digna Procuradora-Geral Adjunta junto desta Relação emitiu parecer sobre o recurso admitido, no sentido de ser merecedor de provimento.

Tal parecer foi notificado ao arguido, a fim de se pronunciarem, nada tendo respondido.

Foram colhidos os vistos legais e procedeu-se à conferência.

II. Fundamentação
Nos recursos penais, o «thema decidendum» é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, as quais deixámos enunciadas supra.

O presente recurso foi interposto pelo MP de uma decisão instrutória, concretizada num despacho de não pronúncia do arguido AG pela prática do crime de desobediência p. e p. pelo art. 348º nº 1 al. b) do CP por que vinha acusado.

Pretende, assim, o Digno Recorrente a reversão da decisão de não pronúncia e sua substituição por um despacho que pronuncie aquele arguido autor do mencionado ilícito criminal.

As finalidades da fase processual de instrução são definidas pelo nº 1 do art. 286º do CPP, nos termos seguintes:

A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

O nº 1 do art. 308º do CPP faz depender a prolação de uma decisão de pronúncia da existência de indícios suficientes da verificação dos pressupostos da aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança.

O conceito legal de «indícios suficientes» é fornecido pelo nº 2 do art. 283º do CPP, aplicável à decisão instrutória por remissão do nº 2 do art. 308º:

Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.

Conforme resulta da disposição do CPP acabada de transcrever, a decisão de pronunciar o arguido não pressupõe a prova definitiva da prática do crime, mas somente um juízo de existência de indícios suficientes dos pressupostos da aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, entendendo-se como tal os indícios por força dos quais subsista uma possibilidade razoável de o arguido vir a ser condenado, em sede de julgamento, o que implica, na orientação interpretativa que vimos seguindo, a formulação pelo Juiz de Instrução de um juízo de prognose no sentido de uma ulterior condenação do arguido se antever, em face da prova produzida, como o desfecho mais provável do julgamento.

Conforme pode constatar-se da análise da decisão instrutória recorrida, o juízo de não pronúncia nela emitido assentou exclusivamente na convicção formada pelo Exº Juiz de Instrução no sentido da inexistência de prova indiciária de o arguido, aquando da apreensão do veículo automóvel de matrícula ---MX, do qual ele foi então constituído fiel depositário, foi advertido de que a utilização ou condução do veículo apreendido o faria incorrer na prática de um crime de desobediência, sendo essa advertência indispensável ao preenchimento do crime, na modalidade típica do art. 348º nº 1 al. b) do CP, pela qual o arguido vinha acusado.

Tal juízo probatório negativo baseou-se, sobretudo, na consideração da cópia do auto de apreensão do veículo a fls. 61.

Por sua vez, o Digno Recorrente propugna a reversão do juízo negativo de indiciação emitido pelo Tribunal «a quo», fazendo apelo à cópia certificada do mesmo auto de apreensão, junta a fls. 82 e 83.

A fls. 61 dos autos consta uma reprodução fotográfica parcial do auto de apreensão do veículo ---MX, enquanto a fls. 82 e 83 figura uma cópia certificada do teor integral do mesmo documento, a qual foi extraída e remetida ao processo pelo Destacamento de Trânsito de Santarém da GNR.

É certo que o documento, que agora faz fls. 82 e 83, ainda não constava do processo ao tempo em que foi deduzida a acusação, razão pela qual não figura entre os meios de prova indicados no termo dessa peça processual (fls. 72 e 73), mas já havia sido junto ao tempo da prolação da decisão instrutória (fls. 160 a 164), pelo que poderia e deveria ter sido considerado pelo Tribunal «a quo», não constituindo «prova nova» em relação à decisão sob recurso.

O último parágrafo da primeira página do auto de apreensão em referência, que é perceptível na cópia certificada, mas não na reprodução de fls. 61, é do seguinte teor:

«O veículo actualmente com 0000000000 Kms vai ficar depositado em Praceta …., Santarém, na posse do Proprietário, acima identificado, que o recebe como fiel depositário, com a obrigação de o entregar quando lhe for exigido, não o podendo remover, alterar o estado, utilizar, alienar, destruir, danificar ou inutilizar, total ou parcialmente, ou, por qualquer outra forma, subtrair ao poder público a que está sujeito, sob pena de incorrer na prática de um crime de Desobediência e/ou de Descaminho ou Destruição de Objectos colocados sob o Poder Público, previstos e puníveis nos termos dos artigos 348° e 355º do Código Penal».

Para melhor compreensão, reproduzimos a seguir o texto do nº 1 do art. 348º e do art. 355º, ambos do CP:

- Nº 1 do art. 348º:
Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se:

a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou

b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.

- Art. 355º:
Quem destruir, danificar ou inutilizar, total ou parcialmente, ou, por qualquer forma, subtrair ao poder público a que está sujeito, documento ou outro objeto móvel, bem como coisa ou animal que tiverem sido arrestados, apreendidos ou objeto de providência cautelar, é punido com pena de prisão até 5 anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

Como pode verificar-se, o preenchimento do tipo criminal p. e p. pelo art. 355º do CP não exige que o agente seja previamente advertido de que poderá incorrer na sua prática, pelo que a referência a esse ilícito criminal no trecho acima reproduzido do auto de apreensão a que nos referimos era, tanto quanto vislumbramos, desnecessária.

Diferentemente, conforme é possível inferir-se do teor do auto que a formalizou, a apreensão do veículo de matrícula ---MX foi motivada pela falta do seguro de responsabilidade civil, cuja efectivação é obrigatória para os veículos a motor poderem circular na via pública, por força do disposto no nº 1 do art. 150º do CE.

Na falta de disposição legal específica que comine a prática de um crime de desobediência a quem conduzir veículo apreendido em tais condições, o preenchimento de tal tipo de crime tem como pressuposto que o agente tenha sido previamente advertido nesse sentido.

De todo o modo, a simples condução de veículo automóvel apreendido afigura-se-nos inapta a preencher qualquer das modalidades de acção típica previstas no art. 355º do CP.

Contudo, tal como se encontra redigido, o último parágrafo da primeira página do auto de apreensão certificado a fls. 82 e 83 não permite dar a conhecer, de entre as actividades nele enumeradas, quais aquelas que podem integrar o tipo criminal da desobediência do art. 348º do CP e quais aquelas que podem preencher a tipicidade do crime previsto no art. 355º do CP.

A lei não exige forma especial para a cominação a que se refere a al. b) do nº 1 do art. 348º do CP, mas é indispensável que o seu conteúdo seja claro e inequívoco, sob pena de se colidir com princípio da legalidade penal, consagrado, nomeadamente, no art. 1º do CP e no art. 29º da CRP.

Nesta conformidade, o trecho do auto de apreensão do veículo ---MX, que acima deixámos transcrito, não consubstancia uma advertência ao então constituído fiel depositário e ora arguido, no sentido de que a condução do veículo apreendido o faria incorrer na prática de um crime de desobediência.

Assim sendo, o documento em análise não justifica a reversão do juízo probatório negativo, impugnado pelo Digno Recorrente, e a decisão de não pronúncia a que deu origem.

Consequentemente, impõe-se a confirmação da decisão recorrida, ainda que por razões distintas daquelas em que se apoiou o Tribunal «a quo».

III. Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.
Sem custas.

Notifique.

Évora 23/1/18 (processado e revisto pelo relator)

(Sérgio Bruno Povoas Corvacho)

(João Manuel Monteiro Amaro)