ENCERRAMENTO DO PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
CASO JULGADO FORMAL
Sumário


I - Por força do disposto no artigo 613.º, n.ºs 1 e 3 do CPC, proferido aquando da admissão liminar do incidente de exoneração do passivo restante, despacho a declarar o encerramento da insolvência, ficou esgotado o poder do juiz relativamente à referida matéria, pelo que, não poderia a julgadora afirmar posteriormente que o encerramento ainda não tinha ocorrido, por não ter findado a liquidação.
II - Constituindo o despacho proferido em 19-10-2012 decisão coberta pelo caso julgado formal e consequentemente tendo força obrigatória dentro do processo, prevalece evidentemente sobre todos os actos que foram posteriormente praticados no processo que o contrariam ou que foram praticados à revelia do que nele foi decidido, prevalecendo, nomeadamente, sobre o despacho lavrado em 15-11-2017 que considerou não estar encerrado o processo de insolvência para os efeitos do artigo 230.º n.º 1 alínea e) do CIRE.
III - De facto, mostrando-se já então decorrido o período de exoneração do passivo restante que se iniciara após a prolação do despacho de encerramento da insolvência para este fim, implicando o cumprimento pelos insolventes durante o período da cessão das obrigações fixadas no despacho de admissão liminar, decorrido tal período, impõe-se ao juiz que avalie se exonera ou não os devedores do passivo restante àquela data, proferindo decisão final sobre a concessão ou não da exoneração, em cumprimento do preceituado no artigo 244.º, n.º 1, do CIRE.

Texto Integral


Processo n.º 118/12.7TBETZ.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre[1]

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Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[2]:

I – RELATÓRIO
1. BB, Insolvente no processo acima identificado, notificada do despacho de 15/11/2017, com a referência electrónica n.º 28331624, que indeferiu a pretensão que formulara para ser proferida a decisão final de exoneração, interpôs o presente recurso de apelação, terminando com as seguintes conclusões:
1. «Tendo sido proferido no despacho inicial da exoneração de passivo restante, decisão que declara encerrada a insolvência, com trânsito em julgado, não pode o Tribunal declarar que ainda não foi encerrada a insolvência.

2. Um despacho que declare ainda não encerrada a insolvência, proferido depois de um despacho, com trânsito em julgado, que declara encerrada a insolvência, implica uma violação do caso julgado, sendo nulo.

3. O caso julgado ocorrido com a decisão de encerrar a insolvência é material, porquanto os seus efeitos se estendem para além dos próprios autos insolvenciais, afetando todos os credores – reclamantes ou não – e todos os processos em curso ou que pudessem ser intentados relativamente à massa e aos insolventes, modificando o conteúdo do regime insolvencial aplicável à insolvente, com efeitos erga omnes.

4. Por cautela diz-se que, sempre ocorreria caso julgado, pelo menos formal, cujos efeitos jurídicos no presente caso seriam os mesmos, determinando a nulidade do despacho ora em causa.

5. Ao decidir deste modo, o douto despacho ora em crise violou os arts. 619º, 620º, 621º e 625ºdo CPC aplicáveis ex vi art. 17º do CIRE.

6. O incidente de exoneração do passivo restante inicia-se com o requerimento efetuado pelo insolvente.

7. Após ouvidas as partes, o tribunal deve proferir despacho inicial, de deferimento ou indeferimento.

8. Sendo proferido despacho inicial de deferimento, o tribunal deve declarar encerrada a insolvência - art. 230º, nº 1, al. e) do CIRE.

9. Iniciando-se, então, o período de cessão de cinco anos – 239º do CIRE.

10. Existem dois regimes de período de cessão, conforme existem, ou não, bens e direitos a direitos a liquidar e a ratear à data do despacho inicial de exoneração do passivo restante, com declaração de encerramento da insolvência - art. 233º, 7 do CIRE.

11. Dispositivo legal este que decorre do art. 3º do Decreto-Lei nº 79/2017, de 30 de junho, que segundo o art. 8º do mesmo diploma entrou de imediato em vigor.

12. Caso não existem bens e direitos a liquidar e ratear, aplica-se apenas as obrigações do insolvente determinadas na sentença, de acordo com o art. 239º do CIRE.

13. Caso existam bens e direitos a liquidar e ratear, a estas obrigações acresce a manutenção da fase de liquidação e pagamento - art. 233º, 7 do CIRE.

14. Em ambos os regimes, estes efeitos correm apenas durante cinco anos.

15. Assim, no segundo caso, a liquidação e rateio devem necessariamente estar terminadas dentro do prazo do período de cessão.

16. O prazo de cinco anos do período de cessão é um prazo de caducidade - art. 298º, nº 2 do Código Civil.

17. Verificado o termo final do prazo, extingue-se - por caducidade - o período de cessão as funções do fiduciário, a liquidação, e todos os demais efeitos inerentes.

18. Terminado o período de cessão o Tribunal tem 10 dias para proferir a decisão final de exoneração do passivo restante - art. 244º, nº 1 do CIRE.

19. Caso decida favoravelmente, o insolvente deixa de o estar, extinguindo-se os autos e os seus efeitos - art. 245º do CIRE - salvo os efeitos que se prolongam no tempo (por exemplo, a revogabilidade da exoneração do passivo restante, que vigora por um ano - art. 246º do CIRE).

20. Caso decida não conceder a exoneração do passivo restante, mantém-se a insolvência e os seus efeitos.

21. O período de cessão inicia-se com o encerramento da insolvência, que deve ser declarada no despacho inicial que decida favoravelmente o encerramento da exoneração do passivo restante.

22. Tendo sido proferido despacho inicial de exoneração do passivo restante, com o inerente despacho de encerramento da insolvente, começou a correr o prazo de cinco anos inerente ao período de cessão.

23. Tendo o despacho inicial do passivo restante sido proferido em 18 de outubro de 2012, o período de cessão terminou em 18 de outubro de 2017, tendo o prazo do Tribunal para proferir despacho final terminado em 28 de outubro de 2017.

24. O douto despacho ora em crise, ao decidir como decidiu, aplicou erradamente o regime dos arts. 239º, nº 2, 230º, nº 1, al. e), 233, nº 1, 233º, nº 7, 244º, nº 1 do CIRE, o art. 3º e 8º do Decreto-Lei nº 79/2017, de 30 de junho, e art. 298º, nº 2 do Código Civil.

25. As normas que o Tribunal devia ter retirado da interpretação das referidas disposições leais, e que devia ter aplicado, são no sentido de (art. 639º, nº1, al. b) do CPC; aplicável ex vi art. 17º do CIRE): (…)

26. Interpretando-se os arts. 230º, 233º e 239º do CIRE no sentido de deles retirar uma norma jurídica segundo a qual o período de cessão apenas começa a decorrer após o ratio final, verifica-se uma inconstitucionalidade material, por violação dos arts. 1º e 20º (em especial os nºs 1, 3 e 5) da Constituição da República Portuguesa.

27. Interpretando-se os arts. 230º, 233º e 239º do CIRE no sentido de deles retirar uma norma jurídica segundo a qual o período de cessão apenas começa a decorrer após o ratio final, verifica-se uma violação da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, em especial do direito a uma decisão em prazo razoável, que decorre do art. 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

Nestes termos, e nos mais de Direito doutamente supridos por V. Exas., deve ser revogado o douto despacho de 15 de novembro de 2017, na parte que indefere o requerimento da ora recorrente a pedir que seja proferida decisão final de exoneração do passivo restante, nos termos do art. 244º do CIRE, proferindo-se douto Acórdão que declara terminado o período de cessão no final do último dia do prazo de cinco anos a contar do douto despacho de 18 de outubro de 2012 (18 de outubro de 2017), declarando extintas por caducidade as funções do fiduciário na referida data, declarando ineficazes todos os atos de liquidação efetuados pelo fiduciário a partir dessa data, mandando-se ouvir a insolvente, o fiduciário e os credores da insolvência, e mandando-se proferido decisão final sobre exoneração do passivo restante e seguindo-se os demais trâmites até final».


2. O Ministério Público contra-alegou, finalizando a sua minuta com as seguintes conclusões:
«1. Compulsados os autos, constatamos que no dia 19/10/2012, foi proferido despacho inicial de exoneração do passivo restante e que no âmbito do mesmo, foi proferido despacho de encerramento da insolvência, conforme fls. 286 a 291 dos autos;
2. Nessa medida, e tendo em conta que tal despacho já transitou em julgado, teremos que concluir que o mesmo faz caso julgado material nos autos, o que obsta a que aquela decisão possa posteriormente, ser substituída ou modificada por qualquer Tribunal, onde tem de se incluir o Tribunal a quo.
3. Nesta medida, entendemos dever ser o despacho recorrido revogado e substituído por um despacho de exoneração.
4. Nos restantes pontos não podemos concordar com a recorrente, pois, tem sido entendimento da Jurisprudência nacional que as alterações introduzidas pela Lei 16/2012, de 20 de Abril nada inovaram no que à matéria da fixação do momento relevante para determinar o termo inicial do período de cessão de rendimentos diz respeito;
5. Entendendo-se que tal prazo não se inicia com a prolação do despacho inicial de exoneração do passivo restante, mas apenas com o despacho de encerramento da insolvência, conforme acórdão do Tribunal da Relação de Évora, proferido no âmbito do processo número 1124/10.1TBSSB-R.E1, proferido a 11 de Maio de 2017;
6. Não se entende que os artigos 230.º, 233.º e 239.º do CIRE se interpretados no sentido de que o “período de cessão apenas começa a decorrer após o rateio final” violem o artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, na vertente de que os cidadãos têm direito a decisão em prazo razoável;
7. Esta questão da inconstitucionalidade das normas não foi abordada nas decisões ou nos requerimentos do processo, pelo que duvidas se nos suscitam que possa agora em sede de recurso ser conhecida!».

3. Observados os vistos, cumpre decidir.

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II. O objecto do recurso.
Com base nas disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil[3], é pacífico que o objecto do recurso se limita pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo evidentemente das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
No caso em apreço, a única questão a decidir é a de saber se deve ser revogado o despacho recorrido, substituindo-o por outro que declare terminado o período de cessão no final do último dia do prazo de cinco anos a contar do despacho de 19 de outubro de 2012, com as demais consequências.
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III – Fundamentos
III.1. – De facto
É a seguinte a materialidade que resulta dos autos com interesse para a decisão do presente recurso[4]:
1. A ora recorrente e o seu falecido marido[5] apresentaram-se à Insolvência, tendo esta sido decretada por sentença de 4 de Abril de 2012, transitada em julgado.
2. Com o requerimento de apresentação à Insolvência os requerentes solicitaram, também, a exoneração do passivo restante.
3. Tal pedido veio a ser liminarmente admitido por despacho proferido em 19 de Outubro de 2012, transitado em julgado, no qual foi nomeado para exercer as funções de fiduciário o Senhor Administrador da Insolvência, e se determinou, para o que ora releva, que:
«a) durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência, o rendimento disponível dos insolventes – auferido ou que venha a ser auferido após o presente despacho – seja cedido ao fiduciário que infra se nomeará; (…)
c ) durante o período da cessão, os devedores fiquem sujeitos aos demais deveres previstos nas alíneas a) a c) do n.º 4 do artigo 239.º do CIRE. (…).
Nos termos do estatuído no artigo 230.º n.º 1 alínea e) do CIRE, declara-se o encerramento da insolvência».
4. Por requerimento apresentado em 14.11.2017, a Insolvente solicitou que fosse proferido despacho final de exoneração do passivo restante.
5. Em 15-11-2017 foi proferido o despacho recorrido com o seguinte teor: «No despacho referido no requerimento, proferido a 19.10.2012 apenas foi admitido liminarmente o requerimento de exoneração do passivo restante, sendo que o período de cessão apenas se inicia, segundo o disposto no artigo 239.º, n.º 2, do CIRE, com o encerramento da insolvência, sendo que o mesmo ainda não ocorreu nos presentes autos».
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III.2. – O mérito do recurso
Pretende a Recorrente que seja revogado o despacho ora recorrido, substituindo-se o mesmo pela prolação da decisão final de exoneração do passivo restante, nos termos do artigo 244.º do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas[6], que declare terminado o período de cessão no último dia do prazo de cinco anos a contar do douto despacho de 18 de outubro de 2012 (18 de outubro de 2017)[7], com as demais consequências que preconiza.
Conforme já afirmámos no Acórdão deste Tribunal da Relação de 13.07.2017[8], «resulta dos termos da própria formulação legal constante do artigo 1.º do CIRE, que “[o] processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência, que nomeadamente se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente”[9].
Com as alterações introduzidas no diploma pela Lei n.º 16/2012, de 20-04, teve-se em vista, conforme se realça na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 39/XII, “reorientar o Código da Insolvência e Recuperação de Empresas para a promoção da recuperação, privilegiando-se sempre que possível a manutenção do devedor no giro comercial, relegando-se para segundo plano a liquidação do seu património sempre que se mostre viável a sua recuperação”, em suma, deu-se um maior enfoque à avaliação da possibilidade de recuperação e revitalização do devedor.
No que concerne aos insolventes pessoas singulares, esta abertura do legislador à recuperação ou reabilitação económica, já vinha originalmente inserta na filosofia do CIRE, porquanto logo no respectivo Preâmbulo se anunciava que este “conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da «exoneração do passivo restante». O princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste. A efectiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de cinco anos - designado período da cessão - ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (entidade designada pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência), que afectará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento.
A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta recta que ele teve necessariamente de adoptar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica.”
Ora, o referido regime da exoneração do passivo restante, desta forma enquadrado no preâmbulo do CIRE, mostra-se regulado nos artigos 235.º a 248.º deste diploma.
Concretamente quanto ao período da cessão do rendimento disponível rege o artigo 239.º, de cujos n.ºs 2 e 5 decorre que o despacho inicial proferido quanto à exoneração do passivo restante determina que durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido ao fiduciário, prevalecendo esta cessão do rendimento sobre quaisquer acordos que excluam, condicionem ou por qualquer forma limitem a cessão de bens ou rendimentos do devedor.
Trata-se de um prazo fixo de cinco anos, não dependente do prudente arbítrio do julgador, estabelecido em benefício dos credores e, portanto, entendido pelo legislador como o período adequado «para lhes assegurar uma razoável satisfação dos seus créditos»[10], tendo um termo inicial certo e também definido pelo legislador: os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência.
Conforme é sabido, até à alteração introduzida no CIRE pelo DL n.º 79/2017, de 30 de Junho, relativamente à data de referência do dies a quo para contagem do período de cessão «vinha sendo entendido que o encerramento do processo a coberto da al. e) do n.º 1 do art. 230.º do CIRE, no âmbito do despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante, só podia ter lugar quando se verificasse a insuficiência da massa insolvente para satisfazer as respetivas dívidas, compaginando o referido preceito legal com o regime inserto no art. 232.º do CIRE. Nesta senda, entendia-se que existindo bens a partilhar e não estando concluída a respetiva liquidação, não se podia declarar o encerramento do processo de insolvência antes de concluída a liquidação; só se devia declarar o encerramento do processo de insolvência no despacho liminar de deferimento do pedido de exoneração do passivo restante se inexistissem bens a liquidar»[11].
Exemplo dessa distinção entre as situações consoante existissem ou não bens a liquidar, podemos encontrar no Acórdão de 20 de Junho de 2013[12], assim sumariado:
«1 - A lei não prevê qualquer sanção ou fixa qualquer retroatividade de efeitos para o caso do despacho inicial, referente ao incidente de exoneração do passivo restante, não ter sido proferido dentro do prazo a que alude o artº 239º n.º 1 do CIRE.
2 - A contagem do prazo fixo, de cinco anos, previsto para a duração da cessão de rendimento disponível, não tem como referência a data em que é proferido o aludido despacho inicial, mas sim, a data de encerramento do processo de insolvência, que pode não coincidir, e geralmente não coincide, com a data em que é proferido o aludido despacho inicial, mesmo cumprindo os prazos previstos no n.º 1 do artº 239º do CIRE.
3 - A data do início do período de cessão poderá começar a contar-se da data do despacho inicial, mas apenas, quando se determine a insuficiência da massa, nos termos do artº 232º e de acordo com o artº 230º n.º 1 al. e), ambos do CIRE.
4 - Tendo sido ordenado que se procedesse a liquidação dos bens existentes o período de cessão só começa a contar da data do rateio final (cfr. artº 230º n.º 1 al. a) do CIRE), momento em que a Lei prevê o encerramento do processo».
Este entendimento - no sentido de que o período da cessão só se inicia quando o processo de insolvência esteja encerrado, seja por liquidação integral da massa, seja por insuficiência desta ou por outra causa -, vinha a ser adoptado de modo praticamente uniforme na jurisprudência dos Tribunais superiores[13], tendo sido sufragado por este colectivo, afirmando designadamente que «tendo sido ordenado que se procedesse à liquidação dos bens existentes, a lei é expressa ao afirmar que o período de cessão só começa a contar da data do rateio final, conforme o artigo 230.º, n.º 1, alínea a), primeira parte do CIRE, expressamente estatui.
Ora, estando estabelecido de forma peremptória o momento em que a lei que rege sobre o processo de insolvência prevê o respectivo encerramento quando haja liquidação dos bens existentes, o dever de obediência à lei a que os juízes estão sujeitos não pode ser afastado sob pretexto de ser injusto o conteúdo do preceito legislativo, no caso concreto em apreço por há muito dever ter sido proferido o despacho de encerramento. Tal é o que decorre directamente do preceituado no artigo 8.º, n.º 2, do Código Civil.
Deste modo, não pode o Tribunal «ficcionar» como dies a quo para a contagem do prazo de cessão dos rendimentos dos insolventes, nos cinco anos subsequentes ao encerramento do processo, a data em que deveria ter sido proferido, e não foi, esse despacho de encerramento, sendo certo que o mesmo dependia até no caso concreto da realização de prévio rateio».
Pensamos ter sido precisamente por esta razão que a Senhora Juíza proferiu o despacho ora Recorrido, porquanto se alcança do segundo parágrafo do mesmo que a liquidação ainda não estava terminada. Porém, este último despacho, ressalvado o devido respeito, nunca podia ter sido proferido neste caso concreto.
Efectivamente, conforme decorre da tramitação processual relevante acima descrita, no mesmo despacho proferido em 19 de Outubro de 2012, em que admitiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, a Senhora Juíza declarou o encerramento da insolvência, nos termos do estatuído no artigo 230.º n.º 1 alínea e) do CIRE.
Ora, por força do disposto no artigo 613.º, n.ºs 1 e 3 do CPC, proferido este despacho a declarar o encerramento da insolvência, ficou esgotado o poder do juiz relativamente à referida matéria, pelo que, não poderia a julgadora afirmar que o encerramento ainda não tinha ocorrido, por não ter findado a liquidação.
Na verdade, considerando que estamos perante despacho judicial que não é de mero expediente e muito menos proferido no âmbito de um poder discricionário o mesmo admitia impugnação por via de recurso designadamente quanto ao concreto segmento em que declarou o encerramento da insolvência. Todavia, tal impugnação não foi deduzida, razão por que aquele primeiro despacho se mostrava já transitado em julgado quando o segundo despacho foi proferido - cfr. artigos 627.º, n.º 1, 628.º e 630.º a contrario, todos do CPC.
Efectivamente, sobre o “caso julgado formal” – que é aquele que consideramos importar na situação em apreço - preceitua o artigo 620.º do CPC que «[a]s sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo (…)».
O despacho que recai unicamente sobre a relação processual é todo aquele que, em qualquer momento do processo, decide uma questão que não é de mérito[14], constituindo-se consequentemente relativamente ao mesmo caso julgado formal que imprime à decisão proferida carácter definitivo.
Na verdade, esta é a regra e só assim não acontece quando nos termos dos artigos 613.º, n.º 2 a 616.º do CPC, estamos perante situação passível de rectificação ou reforma, que a lei expressamente restringe à rectificação de erros materiais, ao suprimento de nulidades e à reforma da sentença, nos termos consagrados nos artigos 614.º a 616.º do CPC, onde manifestamente a situação vertente não se inclui.
De facto, é entendimento doutrinal e jurisprudencial pacífico aquele que foi vertido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03-02-2011[15], onde se expendeu que se é «possível que em qualquer processo, as decisões ulteriormente proferidas sobre a matéria litigiosa procedam a uma interpretação – ou definição do exacto sentido – de decisões definitivas, por transitadas em julgado, anteriormente proferidas pelo tribunal, não pode obviamente, a coberto de tal operação qualificada como de mera interpretação, de apuramento do exacto sentido normativo ínsito na decisão transitada, acabar por se lhe atribuir ou imputar sentido decisório incompatível com o sentido objectivo da sentença interpretada».
E acrescenta tal acórdão: «Os despachos judiciais, como as sentenças, constituem actos jurídicos a que se aplicam, por analogia, as normas que regem os negócios jurídicos – art 295º C. Civil.
O afirmado vale então por dizer que a decisão judicial há-de valer com o sentido que um declaratário normal, colocado na situação do real declaratário, possa deduzir do conteúdo nela expresso, ainda que menos perfeitamente – arts. 236º-1 e 238º-1 C. Civil.
Como tem vindo a ser salientado, não se tratando de um verdadeiro negócio jurídico, a decisão judicial não traduz uma declaração pessoal de vontade do julgador, antes exprimindo “uma injunção aplicativa do direito, a vontade da lei”, no caso concreto, correspondendo ao “resultado de uma operação intelectual que consiste no apuramento de uma situação de facto e na aplicação do direito a essa situação (ac. STJ, de 5/11/98, proc. 98B712, ITIJ, citando Rosenberg e Schwab)”».
No caso dos autos, é manifesto que a decisão posterior não é interpretativa da anterior, antes a dando - mesmo que involuntariamente - sem efeito, situação que obviamente não se enquadra numa rectificação de erros materiais ou em qualquer uma das situação que possibilitam a reforma da sentença ou do despacho.
Na verdade, conforme já ensinava Alberto dos Reis[16], «[h]á que distinguir, cuidadosamente, o erro material do erro de julgamento. O primeiro verifica-se quando o juiz escreveu coisa diversa do que queria escrever, quando o teor da decisão não coincide com o que o juiz tinha em mente exarar, quando, em suma, a vontade declarada diverge da vontade real. No segundo caso, o juiz disse o que queria dizer, mas decidiu mal, decidiu contra a lei expressa ou contra os factos apurados. Está errado o julgamento. Ainda que o juiz logo se convença de que errou, não pode socorrer-se do art. 667.° para emendar o erro.
Por outras palavras: é necessário que do próprio conteúdo da decisão ou dos termos que a precederam se depreenda claramente que se escreveu manifestamente coisa diferente do que se queria escrever: se assim não for, a aplicação do art. 667.º é ilegal, pois importa evitar que, à sombra da mencionada disposição, o juiz se permita emendar erro de julgamento, espécie diversa do erro material».
Adaptando estes ensinamentos ao caso dos autos, o que verificamos é a existência de dois despachos contraditórios proferidos sobre a mesma questão concreta da declaração de encerramento do processo de insolvência, nos termos do estatuído no artigo 230.º n.º 1 alínea e) do CIRE.
Portanto, em face do que dispõe o artigo 625.º do CPC, aplicável aos despachos proferidos sobre a mesma questão concreta da relação processual por via do disposto no respectivo n.º 2, “havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumprir-se-á a que passou em julgado em primeiro lugar”, neste caso, a única já transitada nos termos da qual foi declarado o encerramento da insolvência, para os efeitos do artigo 230.º n.º 1 alínea e) do CIRE.
Assim, constituindo o despacho proferido em 19-10-2012 decisão coberta pelo caso julgado formal e consequentemente tendo força obrigatória dentro do processo, prevalece evidentemente sobre todos os actos que foram posteriormente praticados no processo que o contrariam ou que foram praticados à revelia do que nele foi decidido, prevalecendo, nomeadamente, sobre o despacho lavrado em 15-11-2017 que considerou não estar encerrado o processo de insolvência para os efeitos deste indicado preceito legal.
Desta sorte, e apenas com este fundamento, sempre teria que ser revogado o despacho recorrido.
Ex abundantia, sempre se dirá que a solução seria actualmente idêntica se considerássemos como lei interpretativa a este respeito a recente intervenção legislativa em sede do CIRE, a qual veio demonstrar que o legislador pretendeu intervir nesta concreta matéria, conforme se assinalou no citado Acórdão deste Tribunal da Relação de 25.01.2018[17], já que, “por via do DL n.º 79/2017, de 30/06/2017 (em vigor desde o dia 1 de Julho de 2017), foi aditado o n.º 7 ao art. 233.º do CIRE, que regula os efeitos do encerramento do processo, estatuindo o seguinte: «O encerramento do processo de insolvência nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 230.º, quando existam bens ou direitos a liquidar, determina unicamente o início do período de cessão do rendimento disponível.» O que sinaliza que se pretende atribuir autonomia à al. e) do n.º 1 do art. 230.º do CPC, devendo ser declarado o encerramento do processo de insolvência no despacho inicial de exoneração do passivo restante, quando tal não tenha ainda ocorrido. No entanto, existindo bens ou direitos a liquidar, os efeitos do encerramento se repercutem unicamente no início do período de cessão do rendimento disponível. Coloca-se, assim, o devedor insolvente a salvo da demora desgastante em que frequentemente se traduz a atividade de liquidação e a própria tramitação do processo de insolvência, conferindo-se eficácia renovada ao incidente da exoneração do passivo restante: o princípio do “fresh start”, visando a reintegração plena do devedor na vida económica, não se compagina com a manutenção do devedor paralisado por longo período durante o qual ocorrem as vicissitudes do processo de insolvência, sendo antes imperioso que possa cumprir, desde logo e durante o prazo fixo de cinco anos, as obrigações legais que lhe permitirão alcançar a sua reabilitação económica.
Decorre do exposto que, sendo pertinente a declaração de encerramento do processo de insolvência aquando a prolação do despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante (art. 230.º, n.º 1, al. e), do CIRE), desde que existam bens ou direito a liquidar, o encerramento nestes termos determina unicamente o início do período de cessão do rendimento disponível, conforme determina o art. 233.º, n.º 7, do CIRE”.
Aplicando o que vem de dizer-se ao caso concreto em apreço, urge concluir que, tendo com o despacho inicial de exoneração do passivo restante sido declarado o encerramento do processo de insolvência, exclusivamente para os ali indicados efeitos do artigo 230.º, n.º 1, alínea e) do CPC - tanto assim que os autos prosseguiram para liquidação dos bens dos insolventes -, tendo já decorrido mais de 5 anos sobre aquele despacho proferido em 19.10.2012, quando a ora Recorrente veio em 14.11.2017, solicitar que fosse proferido despacho final de exoneração do passivo restante, impunha-se à Senhora Juíza, diversamente do que decidiu, proferir esse despacho final.
De facto, mostrando-se já então decorrido o período de exoneração do passivo restante que se iniciara após a prolação do despacho de encerramento da insolvência para este fim, implicando o cumprimento pelos insolventes durante o período da cessão das obrigações fixadas no despacho de admissão liminar, decorrido tal período, impõe-se ao juiz que avalie se exonera ou não os devedores do passivo restante àquela data, proferindo decisão final sobre a concessão ou não da exoneração, em cumprimento do preceituado no artigo 244.º, n.º 1, do CIRE.
Nestes termos, procede a pretensão da Recorrente quanto à revogação do despacho recorrido, não podendo, porém, este tribunal substituir-se à primeira instância nos moldes preconizados pela mesma, posto que não só a decisão final da exoneração é precedida do cumprimento do previsto no indicado normativo quanto à necessidade de audição prévia do devedor, do fiduciário e dos credores da insolvência, como este tribunal não dispõe dos elementos de avaliação dos requisitos para a concessão ou recusa final da exoneração, mormente dos indicados no artigo 243.º do CIRE.
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III.2.3. - Síntese conclusiva:
I - Por força do disposto no artigo 613.º, n.ºs 1 e 3 do CPC, proferido aquando da admissão liminar do incidente de exoneração do passivo restante, despacho a declarar o encerramento da insolvência, ficou esgotado o poder do juiz relativamente à referida matéria, pelo que, não poderia a julgadora afirmar posteriormente que o encerramento ainda não tinha ocorrido, por não ter findado a liquidação.
II - Constituindo o despacho proferido em 19-10-2012 decisão coberta pelo caso julgado formal e consequentemente tendo força obrigatória dentro do processo, prevalece evidentemente sobre todos os actos que foram posteriormente praticados no processo que o contrariam ou que foram praticados à revelia do que nele foi decidido, prevalecendo, nomeadamente, sobre o despacho lavrado em 15-11-2017 que considerou não estar encerrado o processo de insolvência para os efeitos do artigo 230.º n.º 1 alínea e) do CIRE.
III - De facto, mostrando-se já então decorrido o período de exoneração do passivo restante que se iniciara após a prolação do despacho de encerramento da insolvência para este fim, implicando o cumprimento pelos insolventes durante o período da cessão das obrigações fixadas no despacho de admissão liminar, decorrido tal período, impõe-se ao juiz que avalie se exonera ou não os devedores do passivo restante àquela data, proferindo decisão final sobre a concessão ou não da exoneração, em cumprimento do preceituado no artigo 244.º, n.º 1, do CIRE.
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IV - Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal em julgar procedente o presente recurso de apelação, revogando o despacho recorrido e determinando a sua substituição pela decisão final da exoneração.
Sem tributação – artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC a contrario.
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Évora, 8 de Março de 2018
Albertina Pedroso [18]
Tomé Ramião
Francisco Xavier


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[1] Juízo de Competência Genérica de Fronteira.
[2] Relatora: Albertina Pedroso;
1.º Adjunto: Tomé Ramião;
2.º Adjunto: Francisco Xavier.
[3] Doravante abreviadamente designado CPC, sendo aplicável aos termos do presente recurso o texto decorrente do Novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, por estar em causa decisão recorrida posterior a 1 de Setembro de 2013 – cfr. artigos 5.º, 7.º, n.º 1 e 8.º.
[4] Com base na certidão constante destes autos de recurso em separado.
[5] A ora Recorrente informou oportunamente nos autos que o Insolvente CC, seu marido, faleceu no dia 09.08.2015.
[6] Doravante abreviadamente designado CIRE.
[7] Conforme assinalado supra o despacho foi proferido no dia 19 e não no dia 18, cuja referência se deve certamente a mero lapso da Recorrente.
[8] Inédito mas, nessa parte com conteúdo já antes vertido no Acórdão 19.05.2016, proferido no processo n.º 5422/10.6TBSTB-J.E1, disponível em www.dgsi.pt.
[9] Na redacção vigente à data em que a insolvência foi declarada, a qual foi alterada pela Lei n.º 16/2012, que lhe deu a seguinte redacção: 1 - O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores.
[10] Cfr. Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, reimpressão, pág. 787.
[11] Cfr. Acórdão deste TRE de 25-01-2018, proferido no processo n.º 774/16.7T8OLH.E1, disponível em www.dgsi.pt.
[12] Proferido no apenso H do já referido processo de 13.07.2017, e também disponível em www.dgsi.pt.
[13] Cfr. exemplificativamente os Acórdãos deste TRE de 10.03.2016, Proc.º N.º 3693/11.0TBSTB-E.E1; de 09.02.2017, Proc.º N.º 2698/10.2TBSTB.E1; de 23.03.2017, Proc.º N.º 360/11.8TBSSB.L.E1, e mais recentemente de 11.05.2017, Proc.º N.º 1124/10.1TBSSB-R.E1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[14] Cfr. Lebre de Freitas, in Código de Processo Civil Anotado, pág. 681.
[15] Processo nº 190-A/1999.E.S1. disponível em www.dgsi.pt.
[16] Cfr. “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 5.º, págs. 132 a 134, e RLJ, 87.°.
[17] E igualmente se sublinhou no ainda mais recente Acórdão de 08.02.2017, proferido no processo n.º 412/17.0T8OLH.E1, de cujo sumário consta que «Resulta do n.º 7 do artigo 233.º do CIRE, introduzido pelo Decreto-Lei n.º 79/2017, de 30.06, que a existência de bens ou direitos a liquidar não obsta ao encerramento do processo de insolvência no despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante; porém, nessa hipótese, o encerramento determina unicamente o início do período de cessão do rendimento disponível».
[18] Texto elaborado e revisto pela Relatora.