CHEQUE SEM PROVISÃO
CRIME SEMI-PÚBLICO
QUEIXA
LEGITIMIDADE PARA A QUEIXA
LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO
CASO JULGADO FORMAL
MANDATÁRIO JUDICIAL
PODERES DE REPRESENTAÇÃO
PODERES ESPECIAIS
RATIFICAÇÃO
EXTINÇÃO DO DIREITO DE QUEIXA
Sumário

I - A decisão genérica sobre a legitimidade do Ministério Público no despacho, transitado, a que alude o artigo 311, nº 1 do Código de Processo Penal, não faz caso julgado formal, podendo conhecer-se de tal questão prévia até ao trânsito em julgado da decisão final, salvo se tiver incidido sobre ela decisão concreta.
II - Relativamente a crime semi-público, a queixa é uma declaração de vontade, um negócio jurídico unilateral receptício, que deverá ser apresentada pela titular do respectivo direito ou por mandatário munido de poderes especiais especificados.
III - A queixa apresentada por mandatário sem tais poderes não poderá ser ratificada se entretanto já tiver decorrido o período de seis meses a contar da data em que o titular do direito teve conhecimento do facto e do seu autor.
IV - É de recusar em processo penal a utilização da norma do nº 2 do artigo 40 do Código de Processo Civil.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
O Digno Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal Criminal da Comarca do Porto requereu o julgamento, em processo comum e com intervenção do tribunal singular, da arguida MARIA DE FÁTIMA ..., com a sinalética dos autos, imputando-lhe a prática dos seguintes factos:
- Datando-os de 22/05/90 e 05/05/90, a arguida preencheu, assinou e entregou a M..... os cheques nºs, respectivamente, 3330 e 568932167, sacados sobre, respectivamente, Caixa Geral de Depósitos e Crédito Predial Português;
- no valor de, respectivamente, 1515 escudos e 15697 escudos, para pagamento de dívida comercial.
- Apresentados tais cheques a pagamento, na área desta Comarca do Porto, foram aqueles recusados por falta de provisão em, respectivamente, 24/05/90 e 10/05/90.
- A arguida agiu de livre vontade e conscientemente ao emitir os referidos cheques, tinha perfeito conhecimento de que não possuía fundos no banco sacado, sabendo, além disso, que tal conduta não lhe era permitida.
Assaca-lhe, por isso, a autoria material de dois crimes de emissão de cheque sem provisão previsto e punido nos termos do disposto nos artigos 23 e 24, nº 1 do Decreto nº 13004, de 12/01/1927, na redacção introduzida pelo artigo 5 do Decreto-Lei nº 400/82 de 23/09.
Distribuídos os autos ao 2º Juízo Correccional da Comarca do Porto, a Meritíssima Juíza, por despacho de fls. 31, declarou o tribunal competente, o processo o próprio, que não havia nulidades, ilegitimidades, excepções, questões prévias ou incidentais de que se pudesse desde já, ou devesse conhecer e que obstassem ao conhecimento do mérito da causa, e recebeu a acusação do Ministério Público nos seus precisos termos, designando dia para julgamento.
Posteriormente, já em audiência de julgamento, a Excelentíssima Juíza proferiu o despacho de fls. 43-44, que se dá por integralmente reproduzido, no qual, em resumo, tendo em vista a publicação no Diário da República do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 2/92, obrigatório para os tribunais judiciais, sobre a interpretação do artigo 49, nº 3 do Código de Processo Penal, o carácter semi-público das infracções indiciadas, a circunstância de a ofendida ser "M.... - Comércio e Indústria, Lda" e a queixa ter sido apresentada por Advogado sem poderes especiais especificados, não tendo sido ratificado - nem o podendo ser mais, por se ter esgotado o prazo do artigo 112 do Código Penal -, julgou o Ministério Público parte ilegítima para promover o processo penal e absolveu a arguida da instância.
É deste despacho que a Excelentíssima Magistrada do Ministério Público traz o presente recurso, no qual invoca também, como questão prévia, excepção de caso julgado formal, traçando em douta motivação, o seguinte quadro de conclusões: a) No despacho de saneamento do processo, proferido ao abrigo do disposto no artigo 311, nº 1 do Código de Processo Penal, a Meritíssima Juíza "a quo" decidiu no sentido de que não havia ilegitimidades que pudessem obstar à apreciação do mérito da causa, tendo tal despacho transitado em julgado; b) Ao conhecer de novo, agora como questão prévia ao julgamento, da ilegitimidade, a Meritíssima Juíza "a quo" violou o disposto no artigo 338, nº 1 do Código de Processo Penal, já que, por força deste normativo, o tribunal só conhece e decide questões prévias ou incidentais susceptíveis de obstar à apreciação do mérito da causa acerca das quais ainda não tenha havido decisão; c) E ao considerar agora o Ministério Público parte ilegítima, a Meritíssima Juíza "a quo" violou o disposto no artigo 672 do Código de Processo Civil, aplicável subsidiariamente ao processo penal, por força do disposto no artigo 4 do Código de Processo Penal, onde se consigna o caso julgado formal - a obrigatoriedade das decisões dentro do processo; d) Bem como o assento do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de Fevereiro de 1963, onde se estabelece que "é definitiva a declaração em termos genéricos no despacho saneador transitado relativamente à legitimidade, salvo a superveniência de factos que nesta se repercutam"; e) Mesmo que se entenda que a decisão sobre a legitimidade, proferida no despacho de saneamento, não faz caso julgado e que o tribunal podia de novo conhecer da mesma, não era caso para, sem mais, se declarar o Ministério Público parte ilegítima; f) É certo que o procedimento criminal pelo crime de emissão de cheque sem provisão, de que o arguido está acusado, depende de queixa do legítimo portador, por força do disposto no artigo 24 do Decreto nº 13004, de 12/01/1927, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 400/82, de 23/09; g) E que a queixa foi apresentada por mandatário, o qual não estava munido de poderes especiais especificados, nos termos do artigo 49, nº 3 do Código de Processo Penal, na interpretação que lhe foi fixada pelo Acórdão nº 2/92 do Supremo Tribunal de Justiça; h) No entanto, a queixa foi apresentada dentro do prazo de seis meses a que se refere o artigo 112 do Código Penal, pelo que se está apenas perante uma irregularidade de mandato; i) E tal irregularidade pode ser sanada ao abrigo do disposto no artigo 40 do Código de Processo Civil, aplicável ao processo penal por força do disposto no artigo 4 do Código de Processo Penal; j) Na verdade, a ratificação da queixa pode ser efectuada, nos termos do preceito acima referido, no prazo que for fixado para tal, mesmo que tenha decorrido o prazo de seis meses previsto no artigo 112 do Código Penal, já que, com tal ratificação, a queixa fica válida e eficaz, e, portanto, apresentada atempadamente; l) Pelo que a Meritíssima Juíza "a quo", ao considerar a queixa efectuada por mandatário juridicamente irrelevante, por insuficiência de procuração, sem primeiro convidar o titular de direito de queixa a ratificar a mesma, violou o disposto no artigo 40 do Código de Processo Civil, "ex vi" do artigo 4 do Código de Processo Penal.
- Pede que, em provimento do recurso, se ordene que se designe dia para julgamento ou, se assim se não entender, se ordene a notificação do titular do direito de queixa para, em prazo a fixar, juntar aos autos procuração ao seu mandatário, concedendo-lhe poderes especiais especificados e ratifica a queixa por este apresentada.
A arguida não respondeu à motivação do recurso e a Meritíssima Juíza sustentou a decisão.
Nesta instância, o Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto, depois de chamar a atenção para o facto de que se deve julgar despenalizado o ilícito relativo ao cheque nº 3330, no valor de 1515 escudos ( artigos 11, nº 1, alínea a) do Decreto-Lei nº 454/91, de 28/12, 2, nº 2 do Código Penal e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/01/1993 ), acompanhou, com dúvidas, a tese do caso julgado formal, lembrou que a argumentação formulada no cumprimento do artigo 40 do Código de Processo Civil é obrigatória para todo o Ministério, em razão de circular da Procuradoria- -Geral da República e tem o aval do parecer do Professor Figueiredo Dias, concluindo que, ao menos pela segunda ordem de razões da motivação, sempre o recurso haverá de proceder, ut douto parecer lavrado a fls. 66-67.
Colhidos os vistos, há que decidir:
1. Da questão prévia
Recorde-se que, no despacho de saneamento do processo de fls. 31, proferido ao abrigo do disposto no artigo 311, nº 1 do Código de Processo Penal, a Meritíssima Juíza "a quo" decidiu, "inter alia", que "não há ilegitimidades de que se possa desde já ou deva conhecer e que obstem ao conhecimento do mérito da causa", tendo tal despacho transitado.
E no despacho recorrido, sem que tivessem ocorrido factos supervenientes que se repercutissem na legitimidade do Ministério Público ( a publicação do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 2/92 apenas veio definir doutrina, obrigatória para os tribunais judiciais, sobre a interpretação do artigo 49, nº 3 do Código de Processo Penal, mas já perfilhada antes por forte corrente jurisprudencial ), acabou por julgar o Ministério Público parte ilegítima.
Na ausência de regulamentação desta situação no Código de Processo Penal, a Digna Recorrente entende que se deve lançar mão das normas do Código de Processo Civil ( artigo 672 e Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 01/02/1963, publicado no Diário do Governo, I Série, de 21/02/63 e Boletim do Ministério da Justiça nº 124, página 414), "ex vi" do artigo 4 do Código de Processo Penal.
Afigura-se-nos que estamos realmente perante um caso omisso. "Quid juris", então?
A questão é conhecida em processo civil como a do valor das declarações genéricas no saneador sobre pressupostos.
Duas soluções costumam ser apresentadas teoricamente pela doutrina:
"A primeira seria a de, tomado o despacho à letra, entender que, uma vez transitado em julgado ( artigo 677 ), nenhuma das excepções declaradas inexistentes poderá ser alegada pelas partes ou conhecida "ex oficio" ( artigo 672 ). Seria a aplicação rígida da doutrina do caso julgado ( formal ) à interpretação literal do despacho.
A outra, conjugando o teor do despacho com a realidade constante dos autos, limitará a força do caso julgado às questões concretas que o despacho haja com efeito decidido, relativamente a cada uma dessas excepções, capazes de conduzirem à absolvição da instância" ( cfr. Manual de Processo Civil de Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, página 394 ).
"De jure condito", o problema exacerbou-se por existirem duas soluções parcelares ou sectoriais antagónicas: a do artigo 104, nº 2 do Código de Processo Civil e a do Assento.
Nos termos do artigo 104, nº 2 do Código de Processo Civil, a declaração genérica no saneador sobre a competência absoluta deixa em aberto a apreciação deste pressuposto processual até à sentença final, pois, como nele se diz, só as decisões concretas são vinculativas.
De acordo com o Assento, "é definitiva, a declaração em termos genéricos no despacho saneador transitado relativamente à legitimidade, salvo a superveniência de factos que nesta se repercutam".
Numa primeira aproximação, dir-se-ia que é de aplicar a doutrina do Assento também em processo penal, já que haveria analogia entre os casos ( o omisso no processo penal e o do processo civil ), ou, dito de outro modo, haveria, na essência, igualdade jurídica, entre o caso que nos ocupa, a regular, e o caso regulado ( vide, sobre este ponto, M. Andrade, Ensaio Sobre a Teoria da Interpretação das Leis, 2ª edição, 1963, página
160 ).
Essa igualdade jurídica resultaria desde logo de o objectivo essencial do saneador em processo civil ( artigo 510, nº 1, alíneas a) e b) e nº 2 do Código de Processo Civil ) e o do despacho de saneamento proferido ao abrigo do disposto no artigo 311, nº 1 do Código de Processo Penal serem idênticos: "desentorpecer a acção ( cível ou penal ) de tudo aquilo que possa impedir o julgamento do mérito, evitando assim a instrução dum processo que praticamente se tornaria inútil".
Mas acabarão aqui as afinidades. Com efeito, a regulamentação do despacho saneador em processo civil é muito mais exigente para o juiz: só pode deixar de decidir sobre os pressupostos se o estado do processo o impossibilitar de se pronunciar sobre eles, devendo neste caso justificar a decisão ( artigo 510, nº 2 ); e deve conhecer das excepções pela ordem prevista no artigo 288, e das nulidades ( nº 1 ).
Em processo penal, a lei impõe ao juiz apenas que se pronuncie sobre as questões prévias ou incidentais ( pressupostos processuais e nulidades ) de que possa, desde logo, conhecer ( artigo 311, nº 1 - cfr. também o artigo 308, que rege o despacho de pronúncia ).
Depois, porque a legitimidade em processo penal não se estrutura nos mesmos termos que em processo civil. Aquele só formalmente é um processo de partes. O Ministério Público nem sequer é parte, no sentido definido no artigo 26 do Código de Processo Civil ( vide Cavaleiro de Ferreira, Curso, I, página 74 ) e, em relação ao arguido ( ou réu ), sustenta Luís Osório que o problema da sua ilegitimidade não se põe ( cfr. Comentário, II, página 212 ).
Estas últimas considerações talvez já sejam suficientes para afastar a aplicação da doutrina do Assento à hipótese "sub judicio", na medida em que fazem desaparecer a tal igualdade jurídica e essencial que só aparentemente existia entre os casos regulados pelo Assento e o nosso.
Como quer que seja, "at last but not the least", a doutrina do Assento não se harmoniza com princípios gerais fundamentais do processo penal, tais como o do "favor rei" e, em certos casos, o do "favor libertatis".
Em crítica ao Assento, em processo civil, sustentava o Professor Anselmo de Castro que a sua doutrina "levava o juiz a exercer a sua actividade decisória sobre o fundo da causa em casos em que ela será inteiramente inútil e proferida sem o necessário contraditório, e, por isso, em termos de não poder representar a boa decisão da causa, contra todos os princípios do processo", acrescentando:
"E não se diga que isto se dará também quando o juiz concretamente conheça do pressuposto, mas profira decisão errada..." Nesse caso, houve uma decisão, e os princípios do caso julgado formal não permitem juridicamente dizer-se que a decisão é errada. No outro, estar-se-á apenas perante uma simples preclusão.
Quer dizer: um conhecimento meramente hipotético e desprovido de qualquer análise e fundamentação, exigida pela lei para todos os despachos decisórios, e não de mero expediente, teria aqui excepcionalmente um valor que a lei faz sempre depender de decisão fundamentada ( artigo 158, nºs 1 e 2 ) - cfr. Lições, II, páginas 829-830.
E esta posição é de sufragar, com as necessárias adaptações, também em processo penal ( o artigo 97, nº 4 do Código de Processo Penal impõe a fundamentação de todos os actos decisórios ).
Mas, nesta sede, a doutrina do Assento pode conduzir a situações totalmente inaceitáveis. Basta imaginar que, a pretexto do caso julgado da decisão sobre a legitimidade do Ministério Público, o arguido pode vir a ser desnecessariamente submetido a julgamento e a ser injustamente condenado, inclusivé a pena privativa de liberdade.
Em conclusão: é de recusar "in casu" a aplicação da doutrina do Assento.
Ao contrário, é de seguir com toda a confiança a doutrina civilística limitativa do caso julgado, com base no fundamento concreto em que a decisão se apoia. Ela fundamenta-se no artigo 104, nº 2 do Código de Processo Civil, que considera como afloramento de um princípio geral: assim como a lei não quer que a apreciação de competência se encerre no saneador a não ser quanto a questões concretas e não há razões para distinguir - o próprio Assento reconhece que nenhuma razão justifica um tratamento especial para o pressuposto da competência, mas retira dessa circunstância consequências contrárias às esperadas, como acentua Antunes Varela - igual regime deverá aplicar-se às restantes excepções dilatórias.
Corresponde à orientação mais razoável, à doutrina dominante em processo civil ( cfr. Alberto dos Reis, in Comentário, I, páginas 318 e seguintes e Anotado, III, página 119; M. Andrade, Noções, I, página 172 e nota 3; Antunes Varela e outros, obra citada, página 394 ) e harmoniza-se com os princípios gerais de processo penal ( mesmo o princípio de segurança fica sempre salvaguardado com o respeito pelo caso julgado formado sobre a decisão concreta sobre o pressuposto ).
E não se diga, como faz a Digna Recorrente, que se viola assim o disposto no artigo 368, nº 1 do Código de Processo Penal: quando este preceito se refere a decisão, deve interpretar-se como referido a decisão concreta, isto é, fundamentada e incidindo sobre questões concretas.
De resto, sempre se dirá que vai no mesmo sentido a jurisprudência corrente dos tribunais judiciais.
Em conclusão: a decisão genérica sobre a legitimidade do Ministério Público no despacho, transitado, a que alude o artigo 311, nº 1 do Código de Processo Penal, não faz caso julgado formal, podendo conhecer-se de tal questão prévia até ao trânsito em julgado da decisão final, salvo se tiver incidido sobre ela, antes, decisão concreta.
Improcede, pois, a questão prévia suscitada pela Digna Recorrente.
2. Do objecto do recurso a) "M...... - COMÉRCIO E INDÚSTRIA, Lda", sociedade comercial por quotas com sede em Lisboa, apresentou queixa na Polícia Judiciária, em 12/07/90, contra Maria de Fátima ....., subscrita pelo Advogado Senhor Doutor ....., com procuração nos autos, na qual lhe conferia, para além dos mais amplos poderes forenses em Direito permitidos, os especiais para em nome da mandante participar criminalmente por crimes de emissão de cheques sem cobertura, pela autoria de dois crimes da previsão dos artigos 23 e 24, nº 1 do Decreto nº 13004, com referência a dois cheques, emitidos a 22/05/90 e 05/05/90 e que, apresentados a pagamento, foram devolvidos por falta de provisão em, respectivamente, 24/05/90 e 10/05/90, sendo o primeiro desses cheques, nº 3330, sacado sobre a Caixa Geral de Depósitos, do montante de 1515 escudos.
Em 28/05/91, José Pedro ......., procurador da ofendida, foi ouvido no inquérito e confirmou a queixa ( fls. 14 ).
O denunciado crime de emissão de cheque sem provisão relativo ao cheque nº 3330, sacado sobre a Caixa Geral de Depósitos e do montante de 1515 escudos, encontra-se despenalizado, visto o disposto no artigo 11, nº 1, alínea a), com referência ao artigo 8, ambos do Decreto-Lei nº 454/91, de 28/12, na interpretação do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 6/93 de 27/01, publicado no Diário da República, I Série-A, de 07/04, obrigatória para os tribunais judiciais, pelo que é de julgar extinto, sem mais, o procedimento criminal em relação a tal crime ( artigo 2, nº 2 do Código Penal ). b) Relativamente ao outro crime da previsão dos artigos 23 e 24, nº 1 do Decreto nº 13004, concernente ao cheque nº 568932167, no montante de 15697 escudos, "quid juris?"
Esse crime é indubitavelmente semi-público ( ou quase público ), isto é, dependente de queixa do ofendido, entendendo-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, neste caso a sociedade "M......" ( artigos 24, nº 1 do Decreto nº 13004 e 111, nº 1 do Código Penal ).
Com a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 454/91, os tribunais judiciais, ao que julgamos, maioritariamente, vêm entendendo que o crime de emissão de cheque sem cobertura, tal como aquele o estrutura, é agora público, por esse diploma ter revogado tacitamente o artigo 24, nº 1 do Decreto nº 13004.
Se assim é, põe-se aqui um problema de sucessão de leis penais, a resolver de acordo com o critério do artigo 2, nº 4 do Código Penal, sendo de aplicar, portanto, o regime mais favorável à arguida, neste caso o da "lex tempus delicti".
Crime semi-público, portanto.
Nos termos do artigo 49, nº 3 do Código de Processo Penal, relativamente a tal crime, a queixa deve ser apresentada pelo titular do direito respectivo ou por mandatário munido de poderes especiais.
Mas tais poderes especiais são poderes especiais especificados, e não simples poderes para a prática de uma classe ou categorias de actos, como decidiu, com carácter obrigatório para os tribunais judiciais, o Acórdão nº 2/92 do Supremo Tribunal de Justiça de 13/05/92, publicado no Diário da República I Série-A, nº 150, de 02/07/92.
Pode ler-se em dado passo do aresto citado:
"É preciso, realmente, que os poderes especiais se concretizem em condições de permitirem a conclusão de que o titular do direito de queixa deseja procedimento criminal por delito concretamente denunciado e, se possível, com a indicação da pessoa ou pessoas contra quem se visa a instauração de um processo de índole penal.
De resto, a procuração que confira simples poderes para "fazer participação crime"... deixa ao mandatário a faculdade de apresentar as queixas que quiser, por crimes de todos os tipos, contra as pessoas que ele próprio indicar. E este efeito é, de qualquer sorte, inaceitável...".
No caso "sub judicio", é patente a todas as luzes que a procuração junta a fls. 8 não confere ao mandatário da ofendida, que subscreveu a queixa de fls. 4, os tais poderes especiais especificados exigidos por lei, ao menos na interpretação que do artigo 49, nº 3 do Código de Processo Penal faz o "assento" do Supremo Tribunal de Justiça citado.
Temos para nós que a queixa é uma declaração de vontade, um acto ou negócio jurídico processual, como lhe chamava o Professor Cavaleiro de Ferreira, quiçá mais rigorosamente um negócio jurídico unilateral receptício ( cfr. Mota Pinto, Teoria Geral, 3ª edição, página 388, vide ainda Francesco Carnelutti, Direito Processual Civil e Penal, II, página 41 ).
Dest'arte sempre se poderá sustentar, mesmo no silêncio do actual Código de Processo Penal ( confrontar com o artigo 101 do Código de Processo Penal de 1929 ), que a queixa dos autos, como negócio jurídico que também é, bem poderia ser ratificada pela Sociedade ofendida, através de algum representante com poderes bastantes, o que a tornaria eficaz em relação àquela ( artigo 268, nº 1 do Código Civil ).
Mas tal ratificação não foi feita até agora: os sócios gerentes da ofendida nunca tiveram qualquer intervenção pessoal no processo e, como tal, não vale a confirmação de fls. 16 feita por procurador sem poderes bastantes - vid. processo de fls. 14-15.
E nem poderá mais ter lugar:
É que a ratificação, para além do mais, haveria que ter sido feita dentro do prazo a que alude o artigo 112, nº 1 do Código Penal - 6 meses a contar da data em que o titular teve conhecimento do facto e do seu autor -, sob pena de esvaziar de sentido este último preceito. Com a extinção do direito de queixa "procura-se evitar que o ofendido, movido por ódio ou desejo de vingança, possa prolongar, ilimitadamente, a ameaça da acção penal, mantendo indefinidamente um constrangimento sobre o ofendido, procurando talvez obter daí vantagens" ( vid. O Código Penal de 1982, de Leal Henriques e Simas Santos, I, página 560 ).
Basta pensar que, no caso em apreço, já lá vão três anos sobre a prática do facto e do conhecimento deste e da sua autora; vale por dizer que, com entendimento diferente do nosso, o prazo de prescrição do direito de queixa passaria a ser, não de seis meses, mas de três anos ou mais.
O prazo de seis meses exigido para a ratificação há muito que expirou "in casu".
Pretende a Digna Recorrente que se devia cumprir o artigo 40, nº 2 do Código de Processo Civil.
No caso "sub judicio", pelo que já se deixou dito, nunca poderia lançar-se mão de um tal preceito.
Mas, mesmo em termos gerais, a utilização de tal normativo é de recusar em processo penal, salvo sempre o devido respeito por opinião contrária.
Em primeiro lugar, porque não há, no caso em apreço, caso omisso ( artigo 4 do Código de Processo Penal ).
O artigo 49 é bem claro: a acção penal deve ser exercida pela entidade para tal legitimada e na forma prescrita na lei ( nºs 1 e 3 ); de outro modo, falecerá um pressuposto processual ( cf. Cavaleiro de Ferreira, Curso, III, página 20 ).
Ainda que se admitisse, só por mera hipótese, que existia aqui caso omisso, nunca haveria a tal igualdade jurídica, na essência, ( de que falava
M. Andrade ) entre a nossa hipótese, a regular, e o caso regulado, nem o disposto no artigo 40, nº 2 do Código de Processo Civil se harmoniza, em alguns aspectos, com o processo penal.
Com efeito, o artigo 40, quer pela sua colocação no Código ( Secção III - Patrocínio Judiciário do Capítulo II do Título e Livro I ), quer pela sua epígrafe ( falta, insuficiência ou irregularidade do mandato ), visa apenas a regularização do mandato forense ou judicial, com o conteúdo e alcance do artigo 36, e do que se trata nestes autos é da formalização de um mandato para a prática de um negócio jurídico - declaração de vontade de procedimento criminal ou queixa -, que pode ser exercido por qualquer pessoa, estranha - e até o será na maioria dos casos - aos profissionais do foro.
Depois, porque, em alguns casos, como já vimos, designadamente quanto à prescrição do direito de queixa regulada no artigo 112 do Código Penal, o direito penal substantivo acabaria por ser postergado pela aplicação do artigo 40 do Código de Processo Civil, contrariando assim a instrumentalidade ( ou subordinação ) que deve caracterizar o processo penal, no plano funcional, em face do seu correspondente direito substantivo.
De resto, ainda se dirá que, correspondendo a apresentação da queixa "ao exercício de um direito processual ( Luís Osório, Comentário ao Código de Processo Penal, I, página 150, e Cavaleiro de Ferreira, Curso, II, página 139 ) ou à prática de um acto pessoal ( Leal Henriques e Simas Santos, O Código Penal de 1982, I, página 555 ), "prevalece aqui a vontade da pessoa ofendida e nenhuma norma impõe que essa vontade seja estimulada por iniciativa do Ministério Público ou do juiz". c) Ora se o procurador que apresentou queixa, não estava munido de "poderes especiais especificados" e não houve ( nem pode mais haver ) ratificação válida de tal queixa pela ofendida, tudo se passa como se essa queixa não existisse, o que implica necessariamente a ilegitimidade do Ministério Público para o procedimento criminal, a absolvição da arguida da instância e o arquivamento dos autos ( artigos 48 e 49 do Código de Processo Penal e 112, nº 1 do Código Penal ).
3. Decisão:
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam em, negando provimento ao recurso: a) Julgar improcedente a questão prévia suscitada pela Excelentíssima Magistrada do Ministério Público recorrente; b) Julgar extinto, por despenalização da correspondente conduta, o procedimento criminal nos autos, quanto ao indiciado ilícito da previsão dos artigos 23 e 24, nº 1 do Decreto nº 13004, relativo ao cheque nº 3330, sacado sobre a Caixa Geral de Depósitos, no valor de 1515 escudos. c) Confirmar, no mais, o douto despacho impugnado, determinando o arquivamento dos autos.
Não é devida tributação.
Porto, 26 de Maio de 1993
Moura Pereira
Costa Mortágua
Emídio Teixeira