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DEMANDANTE CÍVEL
TESTEMUNHA
IRREGULARIDADE
DEPOIMENTO INDIRECTO
TRIBUNAL DA RELAÇÃO
MATÉRIA DE FACTO
FURTO
ABUSO DE CONFIANÇA
HERANÇA
LEGITIMIDADE
JUROS DE MORA
TERMO
Sumário
1. A audição em julgamento de um demandante cível como testemunha constitui uma mera irregularidade processual que deve ser arguida no acto, sob pena de ficar sanada e o Tribunal ser livre de valorar as respectivas declarações. 2. Em termos testemunhais, depoimento indirecto é aquele que versa sobre aquilo que outrem referiu quanto aos factos que constituem o objecto do processo. 3. Embora a 1.ª instância tenha valorado o depoimento indirecto, tal não significa que a Relação deva alterar a factualidade apurada: basta que esta se prove por outros meios de prova produzidos nos autos. 4. O Tribunal da Relação só pode/deve determinar uma alteração da matéria de facto assente quando concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão. --- 5. Embora o bem jurídico protegido pela incriminação do furto e do abuso de confiança seja o mesmo – isto é, grosso modo a propriedade -, no furto o agente adquire um poder de facto de disposição sobre a coisa sem que tenha aquando da apropriação uma relação de domínio sobre ela, ao passo que no abuso de confiança o agente torna sua uma coisa relativamente à qual tinha algum poder, não sendo, contudo, proprietário dela. 6. Daí que comete um crime de furto aquele que está autorizado a movimentar uma conta bancária e a movimenta após o óbito do titular da conta. 7. Os herdeiros do falecido titular de tal conta bancária têm legitimidade processual para, em nome da herança daquele, demandarem o autorizado em processo-crime e em sede de pedido cível. 8. Em tal caso, os respectivos juros moratórios devem ser contados desde o dia em que o autorizado transferiu o dinheiro do falecido.
Texto Integral
Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães: ---
I. RELATÓRIO. ---
Nestes autos de processo comum, com julgamento em Tribunal Singular, o Tribunal Judicial de Melgaço, porsentença datada de 18.03.2010, depositada no mesmo dia, condenou a arguida Pureza P..., além do mais, ---
· “Da prática de um crime de furto qualificado previsto nos arts. 203.º, n.º 1, 204.º, n.º 2, al. a), do Código Penal, em conjugação com o disposto no art. 202.º, al. b), do C.P., na pena de dois anos e seis meses de prisão, suspensa na execução por igual período (art. 50.º, n.º 5 do CP), com a condição de a arguida pagar a quantia de 53.931,85€ (cinquenta e três mil, novecentos e trinta e um euros e oitenta e cinco cêntimos), montante peticionado no pedido cível, à Herança aberta por óbito de Eduardo P..., aqui lesada e representada pelos seus únicos e universais herdeiros que são Patrícia P..., Manuel P... e Olivério P..., no prazo de 1 mês, a contar do trânsito em julgado da presente decisão, e a comprovar nos presentes autos”; ---
· A pagar à herança aberta por óbito de Eduardo P... “a quantia de 53.931,85€, acrescidos de juros de mora legais, contados desde a citação da demandada até integral pagamento”. --- Dos recursos para a Relação. ---
Inconformada com a referida decisão, em 20.04.2010 a arguida dela interpôs recurso para este Tribunal, concluindo a respectiva motivação nos seguintes termos (transcrição): ---
“ 1. Da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, aliás, documentada, não se pode concluir que esteja preenchido o elemento do tipo legal de furto qualificado por que a arguida foi condenada que se traduz na ilegítima intenção de apropriação, na vontade intencional de se apropriar do dinheiro.
2. Existem, por isso, pontos de facto, da douta sentença, incorrectamente julgados, o que desde logo impõem uma alteração da matéria de facto.
3. Considera a recorrente que mal andou o tribunal ao dar como provado os factos elencados em 6, 10, 13, 14, que serviram para o Tribunal a quo considerar preenchido o elemento do tipo legal de furto de ilegítima intenção de apropriação.
4. Devendo, portanto estes factos, ou a matéria de facto que versa sobre a intencionalidade de apropriação ser retirada da matéria de facto dada como assente.
5. A própria arguida nega a intenção de apropriação e justifica essas transferências com a necessidade de colocar o dinheiro a render, tal como tinha feito a vida toda, além de que a justificação que a mesma refere de que ainda não devolveu o dinheiro aos sobrinhos porque eles não se dirigiram a ela para fazer contas por ter tratado do irmão. Não sendo exigível que fosse ela a contactar os sobrinhos se estes nunca a contactaram nem quiseram saber do pai (facto elencado em 18).
6. O depoimento da arguida, conjugada com a restante prova constante do processo, mormente do depoimento da testemunha Pureza E..., do irmão Armindo P..., apenas podia ser valorado no sentido de afastar o elemento do tipo que se traduz na ilegítima intenção de apropriação de modo que mal andou o tribunal ao dar como provado os factos elencados em 6, 10 e 13 da matéria assente.
7. O depoimento da arguida podia e deveria ser valorado no sentido de que a arguida não sabia que ao fazer as transferências do dinheiro agia contra a lei.
8. Não é ao depoimento da Assistente, e seus irmãos, todos demandantes civis, com especial interesse na causa e da mãe destes últimos (também com particular interesse na causa) que o Tribunal poderia recorrer para concluir pela ilegítima intenção de apropriação do dinheiro por parte da arguida.
9. O Tribunal não se poderia socorrer das suas declarações dos filhos do falecido Eduardo P... e Demandantes civis para dar como assente a ilegítima intenção de apropriação, porque nos termos do artigo 133 do CPP as partes Civis estão impedidos de depor como testemunhas.
10. Além de que depoimento de todas estas pessoas na parte em que estes explicam como souberam do dinheiro e os procedimentos que tomaram (constante da douta motivação) não serve para provar que ao fazer as transferências.
11. E o depoimento da assistente a Patrícia P... e o irmão Manuel P..., na parte em disseram que vieram ao funeral do pai a Portugal, e que a tia/arguida nunca foi ter com eles a pedir-lhes o que é que quer que seja, ou a informá-los da existência das contas bancárias”, importa ter presente, conforme resulta dos seus depoimentos que os mesmos não se viam há mais de 10 anos e que os sobrinhos não foram ter com ela.
12. Não é á arguida que se pode censurar o comportamento de não se aproximar dos sobrinhos e lhes contar do dinheiro. E pretender ver neste comportamento um justificativo da intenção de apropriar-se daquele dinheiro. Pelo contrário, é sim de censurar o comportamento da Assistente e do irmão que vieram ao funeral, e não obstante estar de relações cortadas, não se dirigir à tia (arguida) a agradecer o facto de ter cuidado do pai.
13. Da matéria de facto assente ou até da matéria de facto constante da acusação não consta que a arguida tenha sido interpelada directamente pela assistente ou por qualquer um dos demandantes civis ou pela mãe destes e que esta tenha negado a existência do dinheiro. Apenas se fazendo referencia a tal facto na douta motivação da matéria de facto.
14. Esta suposta negação por parte da arguida serviu para a Meritíssima juiz criar a sua convicção de que a arguida Pureza ao fazer as transferências do dinheiro o fez com a intenção de se apropriar do referido dinheiro.
15. O Tribunal deveria ter ignorado as declarações da assistente e das restantes testemunhas nesta parte (vide transcrição de depoimentos) pois trata-se de um depoimento indirecto, em que as testemunhas não relatam factos vividos por si, mas relatam factos que lhe foram contados por outra pessoa, designadamente o Ex.mo senhor advogado das partes civis, interveniente no próprio julgamento.
16. E como este não pode depor em tribunal, aquele depoimento daquelas pessoas nesta parte não pode ter valor algum, nos termos nos termos do artigo 130.º, n.º 1, do CPP. Constituindo esses depoimentos nessa parte prova não legal nos termos do artigo 129.º do CPP.
17. Do depoimento das testemunhas Anabela G... e Aprígio C... apenas poderemos chegar à conclusão que a arguida não informou a funcionária bancária ou ao Instituição bancária que o irmão tinha falecido. O que apenas o poderá servir para prova do elemento da subtracção. Mas nunca do elemento de ilegítima intenção de apropriação.
18. A valoração que a Sr.ª Juiz fez do depoimento da testemunha Pureza E... viola as regras máximas comuns da lógica e da experiência comum. Violando assim o principio da livre apreciação da prova, pois que a testemunha era vizinha de toda a vida da arguida e do falecido, e depôs de forma credível e verosímil; relatando ao tribunal um episódio por si vivido, não, nos últimos tempos de vida do falecido, mas quando logo a seguir ao mesmo regressar de França e logo após ser acolhido pela irmã Pureza.
19. Ao socorrer-se do depoimento da testemunha José E... para prova do tipo legal de crime de furto que lhe era imputado e mormente do elemento do tipo de ilegítima intenção de apropriação, a Meritíssima Juiz socorreu-se de prova ilegal, pois que esta testemunha foi apenas indicada pelos Demandantes para prova dos factos justificativos do pedido de indemnização por ele formulados.
20. No entanto a ser válido este depoimento (vide transcrição) o mesmo nenhuma credibilidade deveria ter merecido ao tribunal por também ele estar desprovido de lógica e violar as regras máximas da experiência comum, pois que é de todo em todo improvável e inverosímil que estando o falecido internado num centro de desintoxicação, com uma saúde debilitada, que morre 5 ou 6 dias depois venha de Santarém passa pelo Porto e vem a Melgaço, precisamente para falar com aquela testemunha.
21. Do depoimento do demandante civil Manuel P... e do depoimento da arguida resulta que deverá ser alterada a matéria de facto no sentido de que a irmã Pureza pagou o funeral do irmão.
22. Existe pois erro de julgamento por parte da Meritíssima juiz ao dar como provados os factos elencados em 6, 10, 13, 14, pois que além de violar o princípio da livre apreciação da prova inserto no artigo 127 do CPP, violou ainda os normativos legais dos artigos 129 e 133 do C.P.P, servindo-se de meios de prova de que não se poderia servir para formar a sua convicção.
23. O que necessariamente redundará na falta de preenchimento de todos os elementos do tipo legal de furto qualificado p. e p. pelos artigos 203, n.° 1, 204, n.° 2 al. a) do C.P e a consequente absolvição da mesma, como se requer.
Sem prescindir
24. Os factos imputados à arguida serão susceptíveis de integrar, não o crime de furto, mas antes o tipo legal de abuso de confiança, pois que neste caso a suposta apropriação sucede à posse ou detenção, na medida em que a arguida por causa da autorização que detinha de movimentar o dinheiro da conta do irmão, sempre esteve na posse do dinheiro, ou na livre disponibilidade de utilizar o dinheiro.
25. Assim e porque o Tribunal da Relação conhece de direito impõe-se alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, dando ainda cumprimento ao disposto no artigo 358, n.° 3 do C.P.P
26. Além do que supra se disse quanto à não prova do elemento da intenção de apropriação, dir-se-á que no crime de abuso de confiança a consumação do mesmo corre com o acto de inversão do titulo de posse que ocorre precisamente com a negação de restituição da coisa, após interpelação que não consta da matéria de facto assente.
27. Mesmo que se entenda que essa interpelação foi feita, não será suficiente para considerar verificado o elemento do tipo legal de crime de apropriação ilegítima, pois existe fundamento legal e motivo razoável para que a arguida se recuse a entregar o dinheiro simplesmente quer que estes façam contas com ela designadamente lhe paguem o dinheiro que esta gastou com o irmão.
28. Do exposto resulta que em caso de se decidir pela requalificação do crime, como crime de abuso de confiança, deverá igualmente ser a arguida absolvida da prática deste crime por não se verificar o elemento da intenção de apropriação ilegítima.
Do pedido de indemnização civil.
29. Ao ser o pedido de indemnização deduzido pelos herdeiros e não pela herança jacente, nos termos do artigo 6° do CPC devendo por isso ser declarada a ilegitimidade dos demandantes e consequentemente ser absolvida a demandante do pedido.
30. Ora sendo a arguida absolvida do crime como se impõe e requer deve o pedido de indemnização improceder por não se verificar um dos elementos que a lei exige que é a ilicitude do comportamento, além de não existir a culpa.
31. Até porque como supra se referiu, a arguida/demandada tem fundamento legal e motivo razoável pois que a arguida não se recusa a entregar o dinheiro simplesmente quer que estes façam contas com ela designadamente lhe paguem o dinheiro que esta gastou com o irmão.
32. O que desde logo justifica a arguida/demandante a usando do direito de retenção previsto no artigo 754 do Código Civil reter o dinheiro em causa até que os demandantes civis se disponham a pagar as despesas que a mesma teve com o falecido, designadamente com o funeral.
33. Assim faltando o elemento da ilicitude e da culpa que o artigo 483 e seg. do C.C exige , deverá igualmente o Venerando Tribunal da Relação absolver a demandada do pedido de indemnização civil contra ela deduzido.
34. Ao não decidir deste forma violou no mais a disposição dos artigos 483 e 754 do C.Civil.
Nestes termos”, concluiu pedindo que o recurso deve “proceder e em consequência ser alterada a matéria de facto e consequentemente alterada a douta Sentença recorrida, e substituída por outra que absolva a arguida do crime de furto qualificado por que foi condenada, ou absolvida do crime de abuso de confiança em caso de requalificação jurídica dos factos, e sempre absolvida do pedido de indemnização contra ela formulada” Cf. fls. 297 a 312. --- . ---
Por sua vez, a assistente Patrícia P... e os demandantes cíveis Manuel P... e Olivério P... interpuseram recurso subordinado no qual concluem que (transcrição): ---
“I. - A demandada apropriou-se em 09 de Abril de 2007 da importância de € 441,73 e em 10 de Abril de 2007 da importância de € 53.490,12, pertencentes à herança de Eduardo P..., aqui representada, pelos seus únicos e universais herdeiros, os demandantes;
II. - Essa apropriação foi feita de forma ilícita;
III. - Até à presente data ainda não entregou essas importâncias aos demandantes, pelo que está em mora para com eles;
IV. - A data em que entrou em mora é aquela em que se apropriou desses montantes;
V. - A indemnização por essa mora, porque se trata de obrigações pecuniárias e não foram estipulados outros juros, corresponde aos juros legais, sobre as referidas importâncias, que deverão ser os vencidos e vincendos, desde a data da sua apropriação até efectivo e integral reembolso;
VI. - Não o entendendo assim, a douta sentença violou o disposto nos artigos 804.°, 805.° n.°2 al. b) e 806.° n.° s 1 e 2, todos do C. C.
Termos em que” concluiu pedindo que “a demandada seja condenada a pagar os juros de mora já vencidos e vincendos, sobre as referidas importâncias, desde a data em que delas se apropriou até efectivo e integral pagamento, para se fazer, como sempre Justiça” Cf. fls. 319 a 324. ---. ---
Notificado do indicado recurso da arguida, a assistente Patrícia P... a ele respondeu, tendo concluído no sentido de que tal recurso deve ser julgado improcedente Cf. fls. 331 a 336. ---. ---
A arguida respondeu ao recurso subordinado da assistente concluindo que (transcrição): ---
«1. A única questão que a Recorrente coloca é a de saber qual o momento da constituição em mora da devedora/demandada.
2. A recorrente insurge-se contra a aplicação pelo Meritíssimo Juiz a quo do momento da constituição em mora aquando da citação da demandada.
3. Considerou o Meritíssimo Juiz a quo que “sobre esta quantia acrescem juros de mora, à taxa legal, contados desde a citação da demandada até integral pagamento - a este respeito vide o Ac. STJ de 28/09/95, CJ, Ano III, Tomo II, p. 36 ss., e o Ac. STJ de 18/03/97, CJ, V, 1, 163.”.
4. Por sua vez, a recorrente vem dizer que, o momento da constituição em mora, é no preciso instante em que há apropriação de determinada quantia em dinheiro.
5. Nos termos do artigo 562.° do Código Civil, o objectivo da indemnização consiste em colocar o lesado na situação em que se encontraria se não fora o acontecimento produtor do dano, desde que este seja resultante desse evento em termos de causalidade adequada.
6. Tal resultado deve ser procurado, em primeiro lugar, pela reposição da situação tal como estava antes da produção do dano - princípio da restauração natural.
7. Como resulta do artigo 563.° Código Civil, a obrigação de indemnizar supõe a existência de um nexo causal entre o facto e o prejuízo.
8. O montante da indemnização medir-se-á pela diferença entre a situação (real) em que o lesado se encontra e a situação (hipotética) em que se encontraria se não tivesse ocorrido o facto gerador do dano — Cfr. Artigo 566.°, n.°2 do Código Civil.
9. Com a publicação do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n° 4/2002, instituiu-se como regra, nestas situações de responsabilidade por facto ilícito, a 2.ª parte do n.° 3 do artigo 805.° do Código Civil.
10. Os juros de mora são, assim, devidos desde a data da citação do responsável - Cfr. Acórdão Relação de Coimbra, de 05/05/2009, processo n°2945/06.5TBVIS.C1, in www.dgsi.pt.
11. Aplica-se o artigo 805.°, n.° 3 do Código Civil uma vez que, o facto ilícito gerador da responsabilidade do demandado consistiu no furto de determinada soma de dinheiro.
12. A lesante/demandada deve reparar os danos moratórios correspondentes ao montante devido, contados desde a citação na acção de condenação - Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume II, 3.ª edição, Coimbra Editora Lda., páginas 65 a 67 inclusive.
13. O Meritíssimo Juiz a quo, na douta sentença, não violou o disposto nos artigos 804.°, 805.°, n.° 2 b) e 806°, n.°s 1 e 2, todos do Código Civil, porquanto apenas foi aplicada a lei competente.
14. Não pode, assim, ser assacada à douta sentença qualquer falha, devendo, por isso, ser mantida na íntegra” Cf. fls. 338 a 341. ---. ---
O Ministério Público no Tribunal recorrido respondeu ao recurso interposto pela arguida, sustentando, em síntese, a sua improcedência Cf. fls. 341 a 344. ---. ---
Neste Tribunal, na intervenção aludida no artigo 417.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o Ministério Público foi de parecer que o recurso da arguida não merece provimento. ---
Devidamente notificados daquele parecer os recorrentes/recorridos nada disseram. ---
Proferido despacho liminar, colhidos os vistos legais e efectuada a conferência, cumpre ora apreciar e decidir. --- II. OBJECTO DO RECURSO.
Atentas as indicadas conclusões apresentadas, sendo que é a tais conclusões que este Tribunal deve atender no presente recurso, definindo aquelas o objecto deste, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, cumpre no presente acórdão apreciar e decidir: ---
· Dos alegados vícios na produção de prova; --
· Do referido erro de julgamento quanto aos pontos n.ºs 6, 10, 13 e 14 dos factos provados; ---
· Da pretendida alteração de qualificação jurídica dos factos; ---
· Da reclamada ilegitimidade dos demandantes cíveis; ---
· Da requerida absolvição do pedido cível; ---
· Do recurso subordinado. --- III. FUNDAMENTAÇÃO. --- 1. A decisão recorrida – factos e sua motivação. ---
A decisão recorrida configura a factualidade provada e não provada, assim como a respectiva motivação da seguinte forma: (transcrição)
« 2.1. Factos provados:
1) Eduardo P... faleceu no dia 04/04/2007, na freguesia de Romeira, concelho de Santarém.
2) Era divorciado, e pai de Patrícia P..., Manuel P... e Olivério P....
3) Todos os seus filhos, à data do decesso do pai, encontravam-se a residir em França, país onde residem habitualmente, e onde trabalham.
4) Após o decesso de seu pai, pensando que tinham herdado apenas bens imóveis e os móveis que naqueles se encontravam, vieram porém a descobrir a existência de duas contas bancárias tituladas por Eduardo P..., na Caixa Geral de Depósitos: a conta n.º 0456.020017.844, estando nela depositada uma quantia equivalente a €53.490,12; a conta n.º 0456.020017.500, estando nela depositada uma quantia equivalente a €441,73.
5) As aludidas quantias pertenciam, na totalidade, a Eduardo P....
6) No entanto, Pureza P..., irmã daquele, com quem este residiu nos últimos anos da sua vida, e que tinha autorização datada de 30/04/2003 para movimentar tais contas, com o intuito de se apoderar daqueles depósitos, efectuou as seguintes transferências bancárias:
a. No dia 09/04/2007, transferiu €441,73 da conta n.º 0456.020017.500 para a conta n.º 0035.0456.014562.900, de que é co-titular;
b. No dia 10/04/2007, transferiu €53.490,12 da conta n.º 0456.020017.844 para a mesma conta n.º 0456.14562.900;
7) Fê-lo a arguida, no uso dos poderes de movimentação que tinha, entre 5 a 6 dias após o decesso do seu irmão, e apenas porque a Caixa Geral de Depósitos ignorava tal facto.
8) Nunca informou os seus sobrinhos, filhos de Eduardo P..., da existência dessas contas bancárias, ou das transferências por si efectuadas.
9) Presentemente, as referidas quantias continuam depositadas na conta n.º 0456.14562.900.
10) Na realidade, pois, como os factos o demonstram, pretendia a arguida com tal conduta apoderar-se daquelas quantias monetárias, para em relação a elas agir como se fosse a sua verdadeira proprietária.
11) Sempre soube que a totalidade das quantias monetárias depositadas não lhe pertencia.
12) A arguida, apesar de estar autorizada a movimentar tais contas, bem sabia que, por morte do seu irmão, e titular das mesmas contas, as quantias nelas depositadas integravam a herança de Eduardo P....
13) Por querer apropriar-se de tais quantias, usou os poderes que lhe haviam sido atribuídos para proceder às reditas transferências.
14) Sabia que agia contra a lei e, ainda assim, não se coibiu de agir como descrito, de modo livre, deliberado, consciente e voluntário.
15) Patrícia P..., Manuel P... e Olivério P... são os únicos e universais herdeiros de Eduardo P...;
16) Em virtude dos factos elencados de 3. a 14. os demandantes civis tiveram que se deslocar a Portugal, de forma a reivindicar da tia/arguida o que lhes pertence por herança aberta por óbito do pai.
17) A arguida prestou assistência ao seu irmão Eduardo P..., dando-lhe apoio na doença que o mesmo padecia — alcoolismo — até ao falecimento daquele.
18) O falecido Eduardo contou apenas com o apoio da arguida no final da sua vida, pois os seus filhos não lhe prestavam qualquer atenção ou apoio.
19) A arguida não tem antecedentes criminais;
20) A arguida é uma pessoa respeitadora e respeitada por todos aqueles com quem convive, tem uma família organizada e estruturada;
21) A arguida é casada, vive em casa própria, o seu marido aufere a título de reformas a quantia de 262,77€ (da França) e 228,64 (do Canadá) e tem o 4.º ano de escolaridade.
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Os demais factos constantes da contestação ou do pedido cível, não se deram como provados ou não provados, por os mesmos se tratarem de meras conclusões ou expressões de direito.
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2.2. Factos não Provados:
Com interesse para a decisão da causa, não resultou provado que:
A) Era a irmã Pureza/arguida do falecido Eduardo que suportava as suas despesas com a alimentação, vestuário e despesas médicas;
B) A actuação da arguida descrita de 4. a 14., em especial por se tratar de uma irmã do seu falecido pai causou a todos os requerentes grande desgosto, pois jamais podiam imaginar tal comportamento daquela.
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2.3 - Fundamentação:
O Tribunal formou a sua convicção com base na análise, crítica e global, de toda a prova produzida em audiência, bem como da que consta dos autos, com recurso a juízos de experiência comum, nos termos do art. 127.º do Código de Processo Penal.
Factos provados:
- Quanto aos factos elencados em 1, 2 e 15 o tribunal teve em atenção a escritura de Habilitação junta aos autos a fls. 6 a 10 e a certidão de óbito junta aos autos a fls. 31, documentos cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
- Quanto aos factos elencados em 3 a 14: O tribunal teve em atenção as declarações da arguida, que confirmou os montantes que existiam na conta titulada pelo seu irmão, bem como o valor das transferências que efectuou da conta do irmão para uma conta titulada em seu nome. Mais confirmou que tinha uma autorização para movimentar tais contas e que apesar de ter efectuado tais transferências nunca mexeu em tal dinheiro, pelo que o mesmo permanece na sua conta depositado.
Porém negou que tivesse feito as ditas transferências com o propósito de se apropriar de tal dinheiro. Justificou que apenas pretendia colocar o dinheiro a render e quando foi ao banco disse que o irmão tinha falecido e que mesmo assim não lhe colocaram qualquer obstáculo a transferir o dinheiro. Acrescentou que só ainda não devolveu o dinheiro aos sobrinhos porque eles não se dirigiram a ela para fazer contas por ter tratado do irmão. Mais referiu que o irmão sempre disse que o dinheiro era de ambos, motivo pelo qual ela nunca levantou qualquer quantia da referida conta aquando em vida daquele, sendo que era ela que alimentava, vestia e pagava as despesas de saúde do irmão.
Contudo tal justificação das ditas transferências, bem como a sua não intenção de apropriação do mesmo, não logrou convencer o Tribunal, atento nomeadamente às declarações da assistente Patrícia P... e dos depoimentos das testemunhas Manuel P..., Olivério P..., filhos do falecido Eduardo P... e da testemunha Rosa R..., ex-mulher do falecido Eduardo P..., tendo todas de forma objectiva, clara e credível, demonstrado um conhecimento directo dos factos e relatado ao Tribunal que quando o Eduardo P... faleceu a testemunha Rosa R... disse aos filhos para averiguarem que bens o pai teria dado que do divórcio de ambos, ocorrido em 2001, o pai ficou com algum dinheiro, nomeadamente, com cerca de 45.000,00€ do apartamento que o extinto casal possuía em França e que venderam, e que além disso, tinham uma casa em Parada do Monte, que ficou para ela, que por sua vez, lhe deu cerca de metade do valor da casa, dando-lhe a quantia 50.000,00€. Perante isto mandataram um advogado em Portugal para averiguarem quais os bens que o pai possuía à data da sua morte, dado que todos residem e trabalham em França. Assim ficaram a saber das referidas contas bancárias elencadas em 6., das datas das transferências, bem como o destinatário das mesmas. Mais referiram a Patrícia P... e o Manuel P..., que vieram ao funeral do pai a Portugal, e que a tia/arguida nunca foi ter com eles a pedir-lhes o que é que quer que seja, ou a informá-los da existência das contas bancárias. Pelo contrário, a tia/arguida quando confrontada com a existência do dinheiro a mesma negou, dizendo que não havia dinheiro nenhum, pelo que tiveram que recorrer a tribunal de forma a reivindicar o que lhes pertence, facto confirmado pelas três referidas testemunhas e pela assistente. Deste modo, “cai por terra” a teoria da arguida, que afirmou que sabia que os herdeiros do irmão eram os sobrinhos e que o dinheiro lhes pertencia, que apenas quis colocar a render o dinheiro. Ora, para o fazer, em primeiro lugar a arguida não necessitava de transferi-lo para uma outra conta, ainda por cima sua, e ao negar a sua existência, e o dinheiro estando numa conta titulada pela mesma, e como tal em seu poder quis apropriar-se dele.
Acresce, que como já se referiu que a arguida dirigiu-se à agência da Caixa Geral de Depósitos em Melgaço, aquando as ditas transferências e disse que embora tenha dito que o irmão tenha falecido, no banco autorizaram-na a fazer as ditas movimentações na conta. Porém, mais uma vez, não logrou convencer o Tribunal, atento o depoimento das testemunhas Anabela G..., funcionária da agência da Caixa Geral de Depósitos em Melgaço, que atendeu a arguida aquando as ditas transferências, tendo a mesma de forma peremptória, objectiva e credível, demonstrado um conhecimento directo dos factos, e relatado ao Tribunal que a arguida nunca lhe deu essa informação, pois se a tivesse dado não poderia fazer qualquer movimentação nas contas para as quais tinha poderes de movimentação, dado que com o óbito do irmão tais poderes caducaram. Tal testemunho foi corroborado pela testemunha Aprígio C..., bancário da agência da Caixa Geral de Depósitos em Melgaço, que embora não tivesse atendido a arguida aquando as transferências, relatou os procedimentos da Caixa Geral de Depósitos, em caso de óbito, nomeadamente, que após o sistema ter a informação do óbito de um titular de conta, ninguém a pode movimentar até haver uma habilitação de herdeiros, dado que a mesma bloqueia automaticamente, sendo que quem tem poderes de movimentação de uma conta, com o óbito do titular do mesmo esses poderes caducam.
A testemunha Pureza E..., vizinha da arguida veio corroborar a versão da arguida no que toca que o irmão queria que o dinheiro em questão fosse dos dois, relatando ao Tribunal que um dia encontrou-se casualmente na rua com o falecido Eduardo que ia com as ovelhas, tendo este lhe dito que a irmã o tratava muito bem e que tinha “um dinheirinho no banco que era para ele e para ela”, mais disse que a irmã nunca lhe mexeu no dinheiro. Contudo tal depoimento, não logrou convencer o tribunal, pois a referida testemunha que referiu ser vizinha e amiga da arguida, tentando demonstrar que sabia o que se passava na “casa daquela”, que até o falecido fez-lhe aquelas confidências no meio da rua, embora recorrendo às regras da experiência da vida não se sabe como alguém do nada, diz aquilo que é exactamente necessário dizer para corroborar a versão da arguida, e quiçá desresponsabilizá-la de qualquer conduta criminosa. E quando questionada sobre factos, esses sim, que toda a gente de Parada do Monte sabia, nomeadamente que o falecido esteve bastante tempo num centro de desintoxicação em Santarém, o que foi afirmado unanimemente por todas as testemunhas, excepto as do banco, ouvidas em sede de audiência de julgamento, a mesma referiu que não sabia. Então mas não é esta testemunha vizinha da arguida e da casa onde o falecido vivia, que via amiúde o falecido pela freguesia, e não se apercebeu que ele esteve durante meses ausente. Por outro lado, se o irmão quisesse que o seu dinheiro pertencesse também à sua irmã teria aberto uma conta bancária, cujos titulares fossem os dois, ou teria-a instituído legatária, efectuando para o efeito o respectivo testamento.
Também a testemunha Armindo P..., irmão da arguida, relatou ao Tribunal quando o irmão faleceu a irmã/arguida, que vivia com o irmão falecido, lhe terá dito que este tinha uma conta, ao que ele a aconselhou a esperar que os filhos fossem ter com ela para fazer contas. Porém também afirmou desconhecer que os sobrinhos soubessem da referida conta. Ora, mesmo partindo do pressuposto que tais afirmações correspondem à verdade, cumpre-nos dizer o seguinte, uma coisa é até não dizer nada da existência do dinheiro aos sobrinhos, outra bem diferente é aproveitar-se a arguida desse facto e transferir o dito dinheiro para uma conta sua, o que demonstra a sua intenção de apropriação. Depois fê-lo poucos dias após a morte do mesmo, antes que a instituição bancária o soubesse e bloqueasse o seu acesso às referidas contas. Como senão bastasse, quando os sobrinhos tomaram conhecimento da existência das mesmas, e confrontada com a existência de tal facto negou que existisse tal dinheiro. Ora se a mesma apenas não deu o dinheiro porque queria fazer contas, porque é que não apresentou em Tribunal até à presente data um processo especial de prestações de contas contra a herança aberta do óbito do irmão, pois é esta, e não os sobrinhos em singelo que tem que prestar contas, se é até que elas existam, dado que da prova produzida, nenhuma prova foi feita a esse respeito. Pelo contrário, a testemunha José E..., relatou ao Tribunal, de forma completamente descomprometida, e por isso credível, que dia antes do Eduardo falecer teve com ele no café e em conversa quando este o aconselhou a ir ter com as irmãs, a arguida e a Maria, pois tinha conhecimento que cuidavam dele, o mesmo disse que não queria, que todos achavam que ele vivia de graça, mas dava á irmã Pureza cerca de 45 contos por mês.
O Tribunal teve ainda em atenção todos os documentos junto aos autos, nomeadamente os de fls. 12, 23, 24, 39, 45, 46, 81, 82, 83, 103-107, 112, 115-119, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
- Quanto ao facto elencado em 16.: O tribunal teve em atenção o depoimento da testemunha Rosa R..., mãe dos demandantes civis, que de forma isenta e credível, demonstrou ter um conhecimento directo dos factos, tendo relatado que os seus filhos deslocaram-se pelo menos duas vezes a Portugal por causa do processo, para falar com o advogado e irem ao Ministério Público.
Atendendo às actas da audiência de julgamento resulta das mesmas, que os mesmos foram ouvidos como assistente e testemunhas em sede de audiência de julgamento, o que demonstra a sua deslocação a Portugal, dado que residem em França.
- Quanto ao facto elencado em 17, 18 e 20.: O tribunal teve em atenção o depoimento das testemunhas Manuel CP, Virgínia A..., António G..., Maria A..., António F..., vizinhos e amigos da arguida, que de forma objectiva e credível, relataram ao Tribunal que o falecido Eduardo residia com a irmã Pureza/arguida, sendo que esta o acompanhava aos estabelecimentos médicos aonde este se deslocava, nunca tendo visto os filhos do mesmo a visitar o pai (Aliás os próprios filhos do falecido Eduardo aquando os seus depoimentos relataram que já não viam ou falavam com o pai desde quando ele regressou a Portugal.). Mais relataram que a arguida é uma pessoa considerada por todos aqueles com quem convive, tem uma família organizada e estruturada;
- Quanto ao facto elencado em 19 teve o Tribunal em atenção o CRC de fls. 218.
- Quanto às condições sócio - económicas da arguida e elencadas em 21 teve o Tribunal em atenção as declarações da mesma e os documentos de fls. 268-269.
Factos não provados
- Quanto ao facto referido em A) o tribunal deu-o como não provado face às razões já explicitadas aquando a fundamentação da matéria provada, e que aqui se dá por integralmente reproduzida, nomeadamente no que toca à apreciação das declarações da arguida e dos depoimentos das testemunhas Pureza E... e José E....
- Quanto ao facto elencado em B) o Tribunal deu-o como não provado em virtude de que a única testemunha que se pronunciou sobre o mesmo foi a Rosa R..., uma vez que embora tenha dito que os filhos ficaram desgostosos e tristes com o sucedido, o que não duvidámos, o certo é que o ficaram por se verem desembolsados da quantia em causa, e não em virtude de a prática de tais factos seres perpetuados por a tia, irmã do pai, uma vez que como os mesmos admitiram, bem como a arguida, não havia qualquer relacionamento de afecto entre eles e a arguida, e nos últimos anos de vida do pai entre eles e este”. Cf. fls. 273 a 279. --- --- 2. Dos alegados vícios na produção de prova. ---
A recorrente/arguida alega que na situação em causa a produção de prova padeceu de vícios na medida em que: ---
· Os demandantes cíveis Manuel P... e Olivério P... foram ouvidos como testemunhas, ---
· Houve depoimentos indirectos que foram valorados, ---
· A testemunha José E... foi ouvido quanto a matéria criminal embora tenha sido arrolada tão-só no que respeita ao pedido cível. ---
Vejamos. --- 2.1. Dos demandantes cíveis ouvidos como testemunhas. ---
Nos termos do artigo 133.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, «estão impedidos de depor como testemunhas as partes civis». ---
Pode, contudo, o demandante cível prestar declarações em julgamento, sendo que então, embora não ajuramentado, está sujeito ao dever de verdade e incorre em responsabilidade criminal pela sua violação – cf. artigos 145.º, n.ºs 1, 2 e 4, assim como 347.º, ambos do referido Código de Processo Penal, bem como 359.º, n.º 2, do Código Penal. ---
Ou seja, as partes civis podem depor em julgamento, sendo que o valor probatório das suas declarações é sempre livremente apreciado – cf. artigo 126.º do mesmo Código. --- No caso em apreciação. ---
Conforme resulta de fls. 162 a 166 e 238 dos autos, assim como da gravação feita quanto às respectivas declarações no julgamento efectuado em 20.01.2010, Manuel P... e Olivério P... deduziram pedido de indemnização cível contra a arguida e depuseram na qualidade de testemunhas, prestando o juramento próprio destas. ---
Tal significa que estamos perante a inobservância de uma disposição legal: foi ouvida como testemunha quem nessa qualidade não o devia ser. ---
Trata-se de um vício na produção de prova. ---
Esse vício não consubstanciando um método proibido de prova, nem sendo uma nulidade legalmente indicada, deve ser tido como uma mera irregularidade relativamente à qual não recai qualquer proibição de valoração, por não arguida no próprio acto – cf. artigos 126.º, 118.º, n.º 1, 2 e 3, e 123.º, todos do Código de Processo Penal Cf. no mesmo sentido Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 2.ª edição, página 358, e Acórdão da Relação de Coimbra de 19.12.2001, CJ, V, 58. ---. ---
Ou seja, tem razão a recorrente/arguida no que respeita à existência de vício na produção de prova. ---
Contudo, aquele vício não afecta a valoração da prova produzida irregularmente, pelo que devem ser valoradas as declarações prestadas em audiência de discussão e julgamento pelos demandantes cíveis Manuel P... e Olivério P.... --- 2.2. Da valoração de depoimentos indirectos. ---
«O testemunho é directo ou indirecto, consoante se reporte imediatamente aos factos probandos, ou aos meios de prova destes: testemunhas de vista ou de ouvir dizer, na linguagem vulgar» Cf. Cavaleiro Ferreira, Curso de Processo Penal, II, 1981, página 326. ---. ---
Nomeadamente, depoimento indirecto é aquele que versa relativamente àquilo que outrem referiu sobre os factos que constituem o objecto do processo. ---
O n.º 1 do artigo 129.º do Código de Processo Penal proíbe os chamados depoimentos indirectos: «se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas». -- A proibição de valoração do depoimento indirecto decorre do princípio da imediação da prova próprio de um Estado de Direito: sob pena de postergação deste, impõe-se que, em regra, as provas com relevância processual-penal sejam apresentadas directamente ao Tribunal, o que não sucederia caso relevasse o depoimento de ouvir dizer. --- Na situação em apreciação. ---
A recorrente/arguida refere que a decisão recorrida serve-se de depoimentos indirectos para concluir que a arguida negou a existência de uma conta bancária titulada pelo falecido Eduardo P... e, assim, concluir pela sua ilegítima intenção de apropriação. ---
Vejamos. ---
Na verdade, a decisão recorrida refere expressamente que a arguida negou a existência de tal conta bancária Para «colocar a render o dinheiro” (…) “a arguida não necessitava de transferi-lo para uma outra conta, ainda por cima sua, e ao negar a sua existência, e o dinheiro estando numa conta titulada pela mesma, e como tal em seu poder quis apropriar-se dele». «Como senão bastasse, quando os sobrinhos tomaram conhecimento da existência das mesmas [contas], e confrontada com a existência de tal facto negou que existisse tal dinheiro». ---. ---
Para tanto, a decisão recorrida funda-se nas declarações da assistente e dos demandantes cíveis, bem como no depoimento da testemunha Rosa R.... ---
Ouvidas tais declarações e depoimento, com pertinência à questão ora em causa decorre tão-só que o Exm.º Sr.º Dr.º Manuel Domingues, Ilustre Advogado, terá dito à assistente, aos demandante cíveis e à testemunha Rosa R... que a arguida lhe disse que o falecido Eduardo P... não tinha deixado dinheiro Quanto às declarações da assistente vejam-se minutos 7.56 a 10.25 e 21.17 a 22.42 da gravação; das declarações do demandante Manuel P... confrontem-se minutos 00.00 a 00.21 e 06.10 das suas segundas declarações; quanto ao declarante Olivério P... atentem-se minutos 4.20 a 4.32 das suas declarações; finalmente, no que respeita à testemunha Rosa R... vejam-se minutos 15.30 a 16.46 do seu depoimento. ---. ---
Ou seja, as declarações da assistente e dos demandantes cíveis, assim como o depoimento da testemunha Rosa R... na matéria ora em causa decorre do que elas ouviram dizer a pessoa diversa da arguida. ---
Nestes termos, trata-se de depoimento indirecto, o que significa que não pode ser valorado pelo Tribunal. ---
Tal significa que mal andou o Tribunal recorrido quando a partir das declarações da assistente e dos demandantes cíveis, assim como do depoimento da testemunha Rosa R... concluiu em sede de fundamentação da matéria de facto que a arguida negou a existência de contas bancária tituladas pelo falecido Eduardo P.... ---
Das consequências daí resultantes quanto à apurada factualidade relativa ao tipo subjectivo de ilícito e à culpa é aspecto que cuidaremos infra. ---
Isto é, relega-se para mais tarde saber se mesmo sem a arguida negar a existência de contas bancárias na titularidade do falecido se deve entender que ela sabia e quis se apropriar do dinheiro relativo às contas bancárias em causa, bem sabendo do carácter proibido de tal conduta. --- 2.3. Do Depoimento da testemunha José E... à matéria da acusação.
Refere a recorrente/arguida que a testemunha José E... foi indicada tão-só ao pedido cível e, contudo, foi ouvida à matéria da acusação. ---
Apreciemos. ---
De fls. 162 dos autos resulta que a assistente deduziu acusação particular contra a arguida “nos precisos termos em que o fez o Digno Representante do MP”, indicando como prova “toda a constante da acusação formulada e ainda as seguintes testemunhas: Rosa R..., (…) José E... Menciona-se o nome de “Manuel E...” por manifesto lapso, pois da Acta de Julgamento de fls. 251 consta o nome de “José E...” e este é então tido como aquele que foi arrolado pela assistente, conforme decorre da gravação – cf. o registo feito de 00.00 a 01.15 quanto àquela testemunha. --- (…) e José P...”. ---
Ou seja, a testemunha José E... foi indicada pela assistente à matéria da acusação. ---
Conforme resulta do disposto no artigo 284.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Penal, tal configura-se legal. --- Carece, pois, de qualquer fundamento o alegado pela recorrente/arguida na matéria ora em apreço, pelo que improcede a sua pretensão na matéria. --- 3. Do referido erro de julgamento. ---
Segundo o artigo 428.º do Código de Processo Penal, «as relações conhecem de facto e de direito». ---
Tal constitui uma concretização da garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto - reapreciação por um tribunal superior das questões relativas à ilicitude e à culpabilidade. ---
O recurso em matéria de facto não constitui, contudo, uma reapreciação total pelo tribunal de recurso do complexo de elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida. ---
Diversamente, apenas poderá ter como objecto uma reapreciação autónoma do tribunal de recurso sobre a razoabilidade da decisão tomada pelo tribunal a quo quanto aos pontos de facto que o recorrente considere incorrectamente julgados, na base, para tanto, da avaliação das provas que, na indicação do recorrente, imponham decisão diversa da recorrida ou determinado a renovação das provas nos pontos em que entenda que deve haver renovação da prova Cf. Acórdão do Venerando Supremo Tribunal de Justiça de 20.01.2010, Processo n.º 149/07.9JELSB.E1.S1 - 3.ª Secção, relatado pelo Senhor Conselheiro Henriques Gaspar, www.stj.pt/jurisprudencia/sumáriosdeacórdãos /secção criminal. ---. --- O recurso não é, pois, um novo julgamento, em que a 2.ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes é um remédio jurídico destinado a colmatar erros que devem ser identificados e individualizados, com menção das provas que os evidenciam e indicação concreta, por referência à acta, das passagens em que se funda a impugnação Cf. Acórdão do Venerando Supremo Tribunal de Justiça de 26.02.2009, Processo n.º 3270/08 - 5.ª Secção, relatado pelo Senhor Conselheiro Rodrigues da Costa, www.stj.pt/jurisprudencia/sumáriosde acórdãos/secção criminal. ---. ---
Quanto ao julgamento de facto pela Relação, uma coisa é não agradar ao recorrente o resultado da avaliação que se fez da prova e outra é detectar-se no processo de formação da convicção desse julgador erros claros de julgamento, incluindo eventuais violações de regras e princípios de direito probatório, sendo que só aquele último aspecto constitui objecto do recurso de facto para a Relação.
Ao apreciar-se o processo de formação da convicção do julgador não pode ignorar-se que a apreciação da prova obedece ao disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal, ou seja, fora as excepções relativas a prova legal, assenta na livre convicção do julgador e nas regras da experiência, não podendo também esquecer-se o que a imediação em 1.ª instância dá, e o julgamento da Relação não permite. Basta pensar, naquilo que, em matéria de valorização de testemunhos pessoais, deriva de reacções do próprio ou de outros, de hesitações, pausas, gestos, expressões faciais, enfim, das particularidades de todo um evento que é impossível reproduzir. ---
Serve para dizer, que o trabalho que cabe à Relação fazer, na sindicância do apuramento dos factos realizado em 1.ª instância, se traduz fundamentalmente em analisar o processo de formação da convicção do julgador, e concluir, ou não, pela perfeita razoabilidade de se ter dado por provado o que se deu por provado Cf. Acórdãos do Venerando Supremo Tribunal de Justiça de 23.04.2009, Processo n.º 114/09 - 5.ª Secção, e de 29.10.2009, Processo n.º 273/05.2PEGDM.S1 - 5.ª Secção, ambos relatados pelo Senhor Conselheiro Souto Moura, www.stj.pt/jurisprudencia/sumáriosdeacórdãos /secção criminal. ---. ---
O Tribunal da Relação só pode/deve determinar uma alteração da matéria de facto assente quando concluir que os elementos de prova impõemuma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão Cf. Acórdãos do Venerando Supremo Tribunal de Justiça de 15.07.2009, Processo n.º 103/09 - 3.ª Secção, 10.03.2010, Processo n.º 112/08.2GACDV.L1.S1 - 3.ª Secção, e 25.03.2010, Processo n.º 427/08.0TBSTB.E1.S1 - 3.ª Secção, relatados pelo Senhor Conselheiro Raul Borges, www.stj.pt/jurisprudencia/sumáriosdeacórdãos /secção criminal. ---. --- In casu. ---
A recorrente/arguida põe em causa a matéria factual indicada nos pontos 6, 10, 13 e 14 da factualidade apurada, no que respeita tão-só à sua intenção de apropriação ilegítima do dinheiro em causa e ao conhecimento do carácter proibido da sua conduta. ---
Para tanto a recorrente/arguida funda-se nas suas próprias declarações da arguida e no depoimento das testemunhas Pureza E... e Armindo P..., pondo em causa a convicção do Tribunal recorrido nomeadamente quer por este ter feito depor como testemunhas os demandantes cíveis, quer por ele ter lançado mão de depoimentos indirectos, quer por ter dado credibilidade à testemunha José E... e ouvido este à matéria da acusação, quer por o Tribunal ter descredibilizado o depoimento da testemunha Pureza E.... ---
Vejamos. ---
Da decisão recorrida decorre que o dado como provado em sede de tipo subjectivo de ilícito e de culpa resulta, além do mais, do modo de procedimento da arguida na situação vertente. ---
Ora, do nosso ponto vista, levando em conta tão-só tal modo de agir da arguida no caso vertente justifica-se o apurado quanto ao tipo subjectivo de ilícito e de culpa. ---
Ou seja, sem considerar os depoimentos indirectos prestados e supra referidos, que não podem ser valorados, quer das declarações da arguida, da assistente e dos demandantes cíveis, quer dos depoimentos das testemunhas Rosa R..., Anabela G... e Aprígio C..., quer dos documentos de fls. 12, 31, 45, 46, 81 a 83, 103 a 107, 112 e 115 a 119, decorre que: ---
· A arguida estava autorizada a movimentar o dinheiro existente em duas contas bancárias pertencentes a Eduardo P..., seu único titular;
· Aquele faleceu em 04.04.2007, ---
· Em 09.04.2007 e 10.04.2007 a arguida apresentou-se na instituição bancária referente àquelas duas contas e transferiu todo o dinheiro constante das mesmas para uma outra conta bancária de que ela era exclusiva titular, ---
· Assim procedendo sem mencionar o óbito de Eduardo P... junto da instituição bancária, ---
· Bem sabendo que se o fizesse o Banco não permitia que a arguida levantasse tal dinheiro, ---
· E bem sabendo igualmente que o referido defunto tinha como seus únicos herdeiros os ora assistente e demandantes cíveis, seus filhos e sobrinhos da arguida, ---
· A arguida nada disse àqueles herdeiros da existência do dinheiro, muito embora o pudesse ter feito, tendo deixado decorrer mais de três anos sob a morte de Eduardo P... sem apresentar contas àqueles herdeiros, ---
Aspectos estes comummente aceites, ---
Os quais, segundo as regras da experiência comum, impõem que se conclua que a arguida lançou mão das quantias tituladas pelos indicados depósitos bancários, com o propósito de as fazer suas, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, conforme provado pelo Tribunal recorrido. ---
Vista assim a matéria factual em causa, prejudicado se mostra apreciar tudo o mais que a recorrente/arguida alega na matéria ora em apreço: havendo unanimidade quanto aos indicados pontos despiciente se torna a apreciar da credibilidade de depoimentos em concreto. ---
Em suma, os elementos probatórios constantes dos autos justificam a decisão da matéria de facto conferida pelo Tribunal recorrido, não impondo decisão diversa da recorrida. ---
Tal significa que se tem definitivamente assente a matéria de facto constante dos autos. --- 4. Da pretendida alteração de qualificação jurídica dos factos. ---
Entende a recorrente/arguida que a factualidade em causa integra um crime de abuso de confiança e não um crime de furto. ---
Como tipos gerais, tais ilícitos criminais estão previstos nos artigos 203.º, n.º 1, e 205.º, n.º 1, do Código Penal, respectivamente. ---
Segundo aquele primeiro preceito legal, comete o crime de furto «quem, com intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel alheia».
Por sua vez, o n.º 1 do artigo 205.º dispõe que comete o crime de abuso de confiança «quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade». ---
Embora o bem jurídico protegido pela incriminação do furto e do abuso de confiança seja o mesmo – isto é, grosso modo a propriedade -, no furto o agente adquire um poder de facto de disposição sobre a coisa sem que tenha aquando da apropriação uma relação de domínio sobre ela, ao passo que no abuso de confiança o agente torna sua uma coisa relativamente à qual tinha algum poder, não sendo, contudo, proprietário dela. ---
Dito de outro modo, quando a coisa objecto de subtracção estava entregue ao agente «por título não translativo da propriedade» em momento anterior à apropriação daquele, o mesmo comete o crime de abuso de confiança. ---
Caso o agente se aproprie da coisa sem ter aquando da apropriação qualquer poder sobre ela comete um crime de furto. --- No caso em apreço. ---
A apropriação do dinheiro constantes das indicadas contas bancárias ocorreu em 09.04.2007 e em 10.04.2007. ---
Então, o titular de tais contas já havia falecido, o que significa que em 09.04.2007 e 10.04.2007 a recorrente/arguida não tinha qualquer poder sobre os depósitos bancários em causa: a morte do titular destes fez cessar os poderes que a arguida anteriormente detinha para movimentar as contas, pertencendo estas a partir de então ao acervo patrimonial da herança do falecido. ---
A movimentação do referido dinheiro pela recorrente/arguida após o óbito de Eduardo P... consubstancia uma apropriação ilegítima, por não titulada, sendo, por isso, de todo em todo infundada a invocação de um «direito de retenção» Segundo o disposto no artigo 734.º do Código Civil, «o devedor que disponha de um crédito contra o seu credor goza do direito de retenção se, estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados». --- : esta pressupõe uma apropriação legítima sobre a coisa retida, o que inexiste na situação sub judice. ---
Nestes termos, uma vez que aquando da apropriação do dinheiro correspondente às indicadas contas bancárias a arguida não detinha qualquer poder quanto às mesmas, está-se in casu perante um crime de furto qualificado, conforme a decisão recorrida, improcedendo, pois, a pretensão da recorrente/arguida na matéria. --- 5. Da reclamada ilegitimidade dos demandantes cíveis. ---
A recorrente/arguida arguiu a ilegitimidade dos demandantes cíveis, sustentando, em resumo, que o pedido deveria ter sido deduzido pela herança jacente de Eduardo P.... ---
Apreciemos. ---
Segundo o disposto no artigo 26.º do Código de Processo Civil, “(…) o autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar (…)”, sendo que tal interesse exprime-se pela utilidade derivada da procedência da acção e “na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação jurídica controvertida, tal como é configurada pelo autor”. ---
Nestes termos, a legitimidade processual activa representa uma qualidade ou posição da parte em relação ao objecto do processo e pode ser apreciada em concreto por dois modos diferentes: um que considera o objecto do processo como um litígio e outro que entende que o objecto do processo é uma relação jurídica - a relação jurídica subjacente, material ou controvertida.
Seguindo aquele dos primeiros modos, o autor é parte legítima quando é titular dum dos interesses em litígio e, por isso, tem um interesse pessoal, directo e legítimo em demandar. ---
De acordo com o segundo dos indicados modos de apreciar a legitimidade, o autor é parte legítima quando haja coincidência entre os sujeitos da relação jurídica processual e os sujeitos da relação jurídica material tal como a configura o autor O que corresponde à teoria de Barbosa de Magalhães, seguida, entre outros, por Palma Carlos e Castro Mendes, e consagrada no artigo 26.º, n.º 3, do Código de Processo Civil na sua redacção actual, decorrente da revisão de 1997 daquele diploma legal. ---. --- Nos presentes autos. ---
O pedido cível foi deduzido pela assistente e pelos demandantes cíveis, além do mais, na qualidade de herdeiros de Eduardo P.... ---
Enquanto tais, alegam eles que a herança foi aceite por todos os herdeiros e ainda se encontra por partilhar, fazendo dela parte dois depósitos bancários de que a arguida se apropriou ilegitimamente. ---
Nesse domínio, concluem pedindo que a arguida seja “condenada a restituir à massa da herança aberta por óbito de Eduardo P... (…) a importância de € 53.931,85 (…) acrescida dos juros legais (…)». ---
Visto assim o pedido de indemnização cível deduzido nos autos é manifesto que a assistente e os demandantes cíveis, enquanto representantes da herança de Eduardo P..., têm um interesse pessoal, directo e legítimo em civilmente demandar a arguida e são parte na relação jurídica material tal como a configuram.
O disposto nos artigos 2078.º, n.º 1 Segundo o qual «sendo vários os herdeiros, qualquer deles tem legitimidade para pedir separadamente a totalidade dos bens em poder do demandado, sem que este possa opor-lhe que tais bens lhe não pertencem por inteiro». ---, e 2091.º, n.º 1 Dispõe-se aí que «fora dos casos declarados nos artigos anteriores, e sem prejuízo do disposto no artigo 2078.º, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros». --- , ambos do Código Civil consolidam tal entendimento. ---
Tanto basta para conferir legitimidade à assistente e aos demandantes cíveis, termos em que improcede também neste domínio a pretensão da recorrente/arguida. --- 6. Da reclamada absolvição do pedido cível. ---
A recorrente coloca em causa a verificação dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual na situação em apreço. ---
Ora, no nosso ordenamento jurídico a responsabilidade civil por facto ilícito pressupõe a verificação de um facto voluntário, ilícito, culposo e danoso - cf. artigo 483.º, n.º 1 Que preceitua que “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.---, do Código Civil Quanto aos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, no sentido a que se alude neste acórdão, vejam-se, entre outros, na nossa doutrina, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 1º vol., 6.ª ed., 494 e seguintes, e Almeida Costa, Direito das Obrigações, 3.ª edição, 367 e seguintes.---
Na jurisprudência do Venerando Supremo Tribunal, nas secções criminais, vejam-se, por exemplo, os acórdãos de 29.11.2005, Processo n.º 3212/05 - 5.ª Secção, e de 21.06.2006, Processo n.º 64/03 – 3.ª, relatados pelos Senhores Conselheiros Costa Mortágua e Soreto de Barros, respectivamente, www.stj.pt/jurisprudencia/sumáriosdeacórdãos/secçãocriminal. ---. ---
Do ponto de vista civil, facto voluntário é aquele que é dominável ou controlável pela vontade humana. ---
O carácter anti-jurídico ou ilícitode uma determinada conduta pode resultar quer da violação de um direito de outrem, quer da violação da lei que protege interesses alheios sem conferir aos respectivos titulares um direito subjectivo, quer ainda do abuso de direito - cf. artigos 334º Que preceitua que “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico”.--- e o citado 483.º, n.º 1, do Código Civil. ---
A culpa constitui um vínculo de natureza psicológica, ligando o facto ao agente no sentido em que implica um juízo normativo de reprovação ou censura da conduta do agente. ---
Ou seja, por outras palavras, agir com culpa significa actuar em termos tais que a conduta do agente merece a reprovação ou a censura do direito, sendo que a conduta do lesante é reprovável quando pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação se concluir que ele podia e devia ter agido de outro modo Cfr. neste sentido Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, 1º vol., 6.ª ed., 531.---. ---
Finalmente, a conduta considera-se danosa quando da acção ou omissão do agente resulta, em termos de causalidade adequada, uma afectação da esfera jurídico-patrimonial de outrem ou uma lesão no corpo ou na saúde deste. ---
Por constitutivo do respectivo direito indemnizatório, é o demandante cível que têm o ónus de provar os factos constitutivos da responsabilidade civil por facto ilícito - cf. artigo 342.º, n.º 1 Segundo o qual “àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos”.---, do Código Civil. --- Na situação em apreço. ---
Conforme resulta do supra exposto, a apurada conduta da arguida foi voluntária, ilícita, culposa e danosa: agindo de forma livre, voluntária e consciente, a arguida apropriou-se ilegitimamente de dinheiro, causando assim prejuízos à herança aberta por óbito de Eduardo P.... ---
Como já se deixou dito, configura-se absolutamente infundada a invocação de um «direito de retenção» na situação presente por o mesmo pressupor uma apropriação legítima sobre a coisa retida, o que de todo em todo inexiste na situação sub judice, conforme já se deixou dito. ---
Nestes termos, por verificados in casu os indicados pressupostos da responsabilidade civil extra-contratual, improcede também o recurso da arguida na matéria ora em apreço. ---
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Decorre, pois, do exposto, que improcede in totum o recurso interposto pela arguida. --- 7. Do recurso subordinado. ---
Em causa está o termo inicial dos juros moratórios. ---
No seu pedido cível, a assistente e os demandantes cíveis, enquanto representantes da herança de Eduardo P..., pediram a condenação da arguida no pagamento de juros moratórios contados desde 10.04.2007. ---
Ora, no recurso subordinado interposto, peticionaram a condenação da arguida no pagamento de juros moratórios contados sobre € 441,73 (quatrocentos e quarenta e um euros e setenta e três cêntimos) desde 09.04.2007 e sobre € 53.490,12 (cinquenta e três mil, quatrocentos e noventa euros e doze euros) desde 10.04.2007. ---
Por sua vez, a arguida/ora recorrida preconiza a manutenção do decidido na sentença recorrida: juros moratórios contados sobre € 53.931,85 (cinquenta e três mil, novecentos e trinta e um euros e oitenta e cinco euros), desde a sua notificação para contestar o pedido cível. ---
Vejamos. ---
Segundo o disposto no artigo 806.º, n.ºs 1, 2, alínea b), e 3 do Código Civil, «o devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir», sendo que «há, porém, mora do devedor, independentemente de interpelação se a obrigação provier de facto ilícito» e «se o crédito for ilíquido, não há mora enquanto se não tornar líquido, salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor; tratando-se, porém, de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, o devedor constitui-se em mora desde a citação, a menos que já haja então mora, nos termos da primeira parte deste número». ---
Ou seja, nas obrigações pecuniárias em regra o termo inicial da mora corresponde ao dia da interpelação do devedor para cumprir a obrigação. --- Se, porém, no momento da interpelação o crédito proveniente de facto ilícito ou do risco já estiver liquidado ou a falta de liquidação decorrer de facto imputável ao devedor tem-se este em mora desde a data da liquidação ou do facto do devedor impeditivo desta. --- Na situação presente. ---
Conforme se deixou dito, a obrigação em causa nos autos decorre de facto ilícito cometido pela arguida. ---
É manifesto que tal obrigação está há muito liquidada: no total ela cifra-se no montante de € 53.931,85 (cinquenta e três mil, novecentos e trinta e um euros e oitenta e cinco euros), sendo que o montante de € 441,73 (quatrocentos e quarenta e um euros e setenta e três cêntimos) mostra-se liquidado desde 09.04.2007 e a quantia de € 53.490,12 (cinquenta e três mil, quatrocentos e noventa euros e doze euros) está liquidada desde 10.04.2007, bem sabendo a arguida. ---
Considerando o disposto no artigo 661.º, n.º 1 Segundo o qual «a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir». ---
, do Código de Processo Civil, não podendo o Tribunal condenar além do pedido, um dos corolário do pedido do dispositivo, tendo a assistente e os demandantes cíveis, enquanto representantes da herança de Eduardo P..., peticionado juros a partir de 10.04.2007 é desde então que devem ser contados os respectivos juros de mora sobre a quantia de € 53.931,85 (cinquenta e três mil, novecentos e trinta e um euros e oitenta e cinco euros). --- Procede, pois, em grande parte o recurso subordinado. --- IV. DECISÃO. ---
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso da arguida e concede-se parcial provimento ao recurso subordinado da assistente e dos demandantes cíveis, termos em se confirma a decisão recorrida, salvo no que respeita ao termo inicial de contagem dos juros moratórios peticionados no pedido cível, pelo que nesse âmbito condena-se a arguida a pagar à herança aberta por óbito de Eduardo P... a quantia de € 53.931,85 (cinquenta e três mil, novecentos e trinta e um euros e oitenta e cinco euros), acrescida de juros de mora legais, contados desde o dia 10.04.2007 até integral pagamento. ---
Custas pela recorrente/arguida, recorrida no recurso subordinada, fixando-se a taxa de justiça no mínimo legal. ---
Notifique. ---
Guimarães, 11 de Novembro de 2010