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EXCEPÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO
CUMPRIMENTO DEFEITUOSO
Sumário
I – A referência, no art. 428º, nº 1 do CC, à inexistência de prazos diferentes, não é obstáculo à invocação da excepção de não cumprimento do contrato, pois aquilo que a lei pretende é que o excepcionante não se encontre obrigado a cumprir antes da contraparte. II – No caso de cumprimento defeituoso, o alcance da excepção deve ser proporcional à parte da prestação ainda por executar, sob pena de abuso de direito.
Texto Integral
Acordam nesta Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães
I - RELATÓRIO
A…, S.A. dirigiu ao Senhor Secretário de Justiça do Balcão Nacional de Injunções, requerimento de injunção contra B…, LDA., com vista a obter o pagamento da quantia de € 63.766,50, sendo € 62.641,00 de capital e € 957,50 de juros de mora, à taxa de 11,07%, desde 10.11.2008 até à data da apresentação da injunção, relativamente a um contrato de prestação de serviços turísticos.
Citada a Requerida, deduziu oposição, invocando a ineptidão do requerimento de injunção, a excepção do não cumprimento do contrato e o seu cumprimento defeituoso, impugnado por último o valor o valor dos juros de mora, alegando que as facturas cujo valor é reclamado não se venciam na data da sua emissão, por ter sido acordado entre as partes que as mesmas seriam sempre pagas em data posterior àquela emissão.
Houve réplica, opondo-se a Autora à procedência das excepções e concluindo como na petição inicial.
Realizada a audiência preliminar em que se gorou a conciliação das partes, veio a ser proferido despacho saneador por escrito, que julgou improcedente a excepção da ineptidão da petição inicial, concluindo pela existência de todos os pressupostos processuais e pela validade e consistência da instância, com subsequente enunciação da matéria de facto tida por assente e organização da pertinente base instrutória, sem reclamação.
Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento, com gravação da prova, sendo a matéria de facto decidida pela forma constante do despacho de fls. 188 a 190, sem reclamação.
Foi proferida sentença a julgar a acção parcialmente procedente, com a condenação da Ré no pagamento à Autora da quantia de € 62.641,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal aplicável às obrigações comerciais, desde 11 de Novembro de 2008 sobre € 46.669,00 e desde 26 de Novembro de 2008, sobre o restante, até integral pagamento.
Inconformada com o assim decidido, a Ré interpôs o presente recurso de apelação, tendo formulado, a rematar a respectiva alegação, as seguintes conclusões: 1- Tendo-se a A. obrigado a organizar viagens e a cumprir o programa turístico previamente ajustado, efectuando visitas aos locais constantes do programa e concedendo tempo livre aos clientes/passageiros para efectuarem compras caso quisessem, e onde quisessem e tendo os colaboradores da A. levado os clientes/passageiros a tipos de comércio (lojas de tapeçarias e farmácias) que não estavam previstos no programa (recebendo os guias da A. gratificações económicas dos donos dos estabelecimentos), levando a que alguns clientes manifestassem descontentamento por tais visitas, verifica-se cumprimento defeituoso, ou seja, incumprimento contratual das obrigações assumidas pela A. 2- Tendo a A. assumido a obrigação de contratar hotéis e restaurantes cuja qualidade assegurou e não reunindo um dos hotéis por si seleccionado e contratado as mínimas condições de higiene e limpeza, incumpriu a A. o contrato celebrado nesta parte, verificando-se também cumprimento defeituoso das obrigações por parte da A. 3- O incumprimento contratual das obrigações da A., quer no tocante aos locais a visitar, quer no tocante à qualidade dos hotéis e restauração, gerou descontentamento e desagrado nos clientes da Ré, que manifestaram e exprimiram. 4- Sendo a Ré uma empresa organizadora de viagens de turismo é essencial que os seus clientes fiquem plenamente satisfeitos, sendo que a menor insatisfação, queixa ou reclamação afecta negativamente a imagem e reputação comercial da Ré, face à actual concorrência cada vez mais agressiva das novas empresas “low coast” e virtuais (internet). 5- Medindo-se a imagem, o prestígio e a reputação comercial de uma agência de viagens pelo grau de satisfação dos seus clientes é evidente que qualquer insatisfação, descontentamento ou desagrado dos seus clientes tem repercussão e efeitos negativos na sua imagem, prestígio e reputação comercial, afectando-a economicamente. 6- A alteração ao programa previamente estabelecido e as deslocações dos clientes da Ré a locais não previstos constitui violação da obrigação contratual assumida pela A. 7- A A. violou ainda a obrigação contratual que assumiu perante a Ré de contratar hotéis e restaurantes de qualidade, sendo esta violação grave, face à falta de condições de higiene e limpeza quer do Hotel C…, quer da restauração, conforme resulta do relatório de fls. 142 (quartos sujos, alguns tinham baratas e ratos, cheiro a mofo e a mijo de gato, o hotel mais parecia um bordel…), 143, 144 (no restaurante havia um rato a passear pelo restaurante e um gato em cima do buffet das saladas…), 145 e 152 e ainda das opiniões dos clientes exprimidas nos folhetos de fls. 154 a 167, todos unânimes no sentido de classificar o hotel Chellah como péssimo, mau, sem condições e horrível, o que é gravíssimo, tanto mais que o hotel “C…” era o último da viagem e todos sabemos que numa viagem a impressão e a imagem que nos fica é sempre a última. 8- Dos depoimentos das testemunhas e dos vários documentos juntos aos autos, nomeadamente de fls. 142 a 167, cujo conteúdo, veracidade e autoria não foram impugnados pela A., salta à evidência o cumprimento defeituoso das obrigações contratuais por parte da A., ou seja, o seu incumprimento contratual. 9- O incumprimento contratual da A., que a Ré provou, não é irrelevante, não constitui um pequeno detalhe no âmbito da relação contratual em causa e não pode passar incólume. 10- O incumprimento contratual da A., na parte em que desviou os clientes da Ré para lojas de comércio não previstas (agindo no interesse económico dos colaboradores da A.) e na parte em que alojou os clientes da Ré em hotéis sem as mínimas condições de limpeza (sendo este o último hotel) e os levou a restaurantes sem condições de higiene, é grave e tem peso relevantíssimo na relação contratual em questão, como nos parece evidente, tanto mais que daí resultou o descontentamento e o desagrado dos clientes, que afectam inevitável e negativamente a imagem e reputação da Ré. 11- Tendo a Ré invocado o incumprimento do contrato por parte da A. alegando que o seu cumprimento defeituoso acarretou e acarreta prejuízos para o seu nome e reputação comercial que ainda não se encontram liquidados, assiste-lhe o direito de recusar o pagamento (ou seja a sua contraprestação) até se determinar o crédito que a Ré detém sobre a A. relativo ao valor correspondente ao incumprimento desta. 12- O cumprimento defeituoso das obrigações assumidas pela A. implica que se proceda a uma redução do valor da contraprestação a que teria direito, sob pena de enriquecimento injusto e de se beneficiar o infractor, não podendo o direito nascer do injusto (ex injuria jus non oritur). 13- Provado que a A. não cumpriu ou cumpriu deficientemente as suas obrigações, não pode a mesma receber o valor a que teria direito como se a sua prestação tivesse sido integral e pontualmente cumprida, devendo proceder-se à redução do valor correspondente ao seu incumprimento ou cumprimento defeituoso, valor este cuja determinação deve ser relegada para momento ulterior ou liquidação em execução de sentença, por dos autos não constarem elementos suficientes para a determinação do montante de tal redução. 14- Deve, assim, reconhecer-se que à Ré assiste o direito de opor à A. a excepção do não cumprimento até que em incidente de liquidação ou em liquidação de sentença se apure qual o montante a que corresponde a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da prestação da A., procedendo-se posteriormente à compensação. 15- Subsidiariamente e caso se entenda que o incumprimento contratual da A. pode e deve ser fixado por equidade, deve o mesmo ser computado em montante não inferior a 15.000,00 € (ou noutro que V. Exas. considerem mais justo e adequado, face às circunstâncias do caso). 16- Tendo em conta o montante facturado e peticionado pela A., o seu incumprimento contratual, os problemas relatados nos resumos das viagens e as opiniões manifestadas pelos clientes da Ré e o descontentamento e desagrado destes, e o facto de o último dos 5 hotéis não ter quaisquer condições de higiene e limpeza, deve entender-se como justo e adequado o montante de 15.000,00 € (valor, aliás, aproximado a 1/5 do valor reclamado pela A) para a parte não cumprida ou cumprida defeituosamente pela A. 17- Não tendo a Ré cumprido na íntegra as suas obrigações (tendo falhado no cumprimento dos locais a visitar e na qualidade da hotelaria e da restauração) não pode a mesma receber o valor da contraprestação que teria direito a receber como se a sua prestação tivesse sido integralmente cumprida, ou seja, como se nada tivesse sucedido, sob pena de benefício injusto. 18- Deve, assim, ser revogada a douta decisão recorrida e substituída por outra que condene a Ré a pagar à A. a quantia de 47.641,00 €. 19- Os juros de mora apenas devem ser contabilizados a partir da data em que se apurar o valor da prestação deficientemente cumprida pela A. através do respectivo incidente de liquidação ou a partir da data da decisão que fixar por equidade o valor da redução a que deve estar sujeita a prestação da A. face ao seu incumprimento parcial e defeituoso. 20- Tendo o excipiente-comprador sofrido danos em montante não apurado pelo cumprimento defeituoso da prestação do vendedor, aquele (que não pagou qualquer do preço a que se obrigara) só será devedor de juros moratórios depois de apurado o montante de tais danos – Ac. STJ, de 17/4/2007, CJ/STJ, 2007, 2º-41. 21- A douta decisão recorrida violou por errada interpretação e aplicação o disposto nos arts. 406 nº 1, 428 e 798 do Cód. Civil.
Termina pedindo a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que:
- condene a Ré a pagar à A. o montante que se vier a determinar, em momento ulterior através do respectivo incidente de liquidação, correspondente à prestação que foi integralmente cumprida, reconhecendo-se que à Ré assiste o direito de recusar o pagamento até que seja fixado o montante a que corresponde o não cumprimento ou o cumprimento defeituoso das obrigações da A., acrescida de juros de mora contados da decisão que fixar o valor a pagar à A.
Subsidiariamente
- deve ser fixado, por equidade, em 15.000,00 € (ou noutro que V. Exas. entendam mais justo e adequado) o valor da redução da prestação da A., face ao seu incumprimento ou cumprimento defeituoso, condenando-se a Ré a pagar à A. a quantia de 47.641,00 € acrescido de juros de mora contados da decisão.
A Ré apresentou contra-alegações, pedindo que a Autora seja condenada como litigante de má fé no pagamento de uma indemnização nos termos do art. 457º, nº 1, als. a) e b), do CPC, impugnando o efeito suspensivo do recurso requerido pela Autora O tribunal a quo, por despacho de 04.10.2010, a fls. 264, desatendeu a pretensão da apelante, tendo fixado ao recurso o efeito meramente devolutivo, o qual foi confirmado pelo ora relator (cfr. fls. 169), pelo que se considera definitivamente arrumada a questão atinente ao efeito do recurso, que é o devolutivo., rematando o corpo alegatório com as seguintes conclusões: 1. A matéria sub judice funda-se num contrato no âmbito da actividade turística. E, sem muitas delongas, um contrato em que terá que se colocar timbre na bilateralidade das prestações. 2. A Apelante tentou colocar em crise o contrato, ausente de justificação fundante por “inventado” cumprimento defeituoso. 3. A Apelante face a essa descoberta (para eximir-se claramente ao pagamento) faz abuso de instituto jurídico de todo inapropriado ao caso - excepção de não cumprimento. 4. Tal instituto tem pressupostos que in casu não estão minimamente preenchidos. 5. Nenhuma prova foi carreada para os autos que possa demonstrar desconformidade entre a prestação que a Apelada realizou e a que foi contratada. 6. Os factos apurados não têm conexão directa com a legítima pretensão da Apelada que funda o presente processo, não há pressuposto algum para reivindicar responsabilidade civil à Apelada com carácter indemnizatório. 7. Assim, nenhuma matéria fáctica resultante da prova produzida, permitiu encontrar alguma justificação, fundamentação e motivação para aplicação do cumprimento defeituoso. 8. A matéria de facto provada é, ainda mesmo que por mera hipótese tivesse conexão com conquanto exige a Apelante, claramente sustentada em “pequenos detalhes” que jamais podem afectar o conteúdo contratual ou prestacional. 9. A prova testemunhal produzida e “transcrita” sem que se faça apelo à sua reapreciação nenhuma relevância inovatória traz, designadamente, que auxilie Vossas Excelências a interpretar do direito. 10. Há nos autos um défice de que a Apelante se pode queixar ou penitenciar, mas que advém sobretudo da efectiva realidade, e esta não é modificável e não encontra nos relapsos possibilidade de com isso fazer uso de institutos jurídicos. 11. Não havendo nenhum facto gerador de responsabilidade por cumprimento defeituoso. 12. Nenhum dano ou prejuízo efectivo foi demonstrado por ausência de qualquer inexacto cumprimento da Apelada.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II - ÂMBITO DO RECURSO
Sabendo-se que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente (arts. 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1, do CPC), e que não foi objecto de impugnação a matéria de facto dada como provada na 1ª instância, a questão que somos convocados a resolver respeita ao saber se é legitimo aplicar ao caso a excepção de não cumprimento do contrato.
III - FUNDAMENTAÇÃO A) - OS FACTOS
Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
1. Autora e Ré, no exercício das respectivas actividades, ajustaram um acordo nos termos do qual a primeira se obrigou a prestar à segunda os serviços de turismo correspondentes ao circuito turístico denominado “Sonho Marroquino”, com visita a Ceuta, Rabat, Casablanca, Marrakech e Tânger [alínea A) dos factos assentes].
2. Nos termos do acordo referido em A), a Ré organizava as viagens com os destinos aí mencionados, com duração de 6 dias e 5 noites, e a Autora cumpria nesses locais um programa turístico entre ambas previamente ajustado, incluindo o acompanhamento dos passageiros/clientes da Ré durante toda a viagem, efectuando visitas aos locais constantes do programa, concedendo nos seus termos tempo aos passageiros/clientes para efectuarem compras caso quisessem e onde desejassem, e a contratação dos hotéis onde os passageiros/clientes ficavam alojados e restaurantes onde faziam as suas refeições, cuja qualidade assegurou [alíneas B), C) e D) dos factos assentes].
3. Em execução do acordo referido em A), a Ré organizou várias viagens a Ceuta nas quais a Autora se obrigou a cumprir um programa de viagem previamente traçado [alínea E) dos factos assentes].
4. A Ré não liquidou as facturas referidas em 1.º a 5.º [alínea F) dos factos assentes].
5. Para cobrança dos serviços de turismo prestados em execução do acordo referido em A), a Autora emitiu e enviou à Ré a factura n.º 133438, de 10 de Outubro de 2008, no valor de € 940,00, relativa a metade do custo de uma noite extra, do grupo de 5 de Outubro desse ano, por causa do mau tempo [resp. ao artigo 1º da base instrutória].
6. E a factura n.º 25 101, datada de 11 de Outubro de 2008, no valor de € 14.241,00, que se refere ao grupo que viajou de 1 a 6 de Outubro de 2008 [resp. ao artigo 2º].
7. E a factura n.º 25 102, datada de 11 de Outubro de 2008, no valor de € 17.440,00, que se refere a um dos grupos que viajou a 5 de Outubro de 2008 [resp. ao artigo 3º].
8. E a factura n.º 25 103, datada de 11 de Outubro de 2008, no valor de € 14.248,00, que se refere a outro grupo que viajou a 5 de Outubro de 2008 [resp. ao artigo 4º].
9. E a factura n.º 25 114, datada de 26 de Outubro de 2008, no valor de € 15.972,00, que se refere a um grupo que viajou a 19 de Outubro de 2008 [resp. ao artigo 5º].
10. Em data indeterminada mas posterior ao envio das facturas à Ré, a Autora solicitou a esta o respectivo pagamento [resp. ao artigo 6º].
11. No âmbito das viagens organizadas em execução do acordo referido em A), os guias contratados pela Autora conduziam os passageiros/clientes a vários tipos de comércio, nomeadamente farmácias e lojas de tapeçarias, o que não estava previsto no programa aludido em B) [resp. aos artigos 7º e 8º].
12. Tal ocorria no período previsto no programa como tempo livre [resp. ao artigo 9º].
13. Os donos dos estabelecimentos referidos na resposta conjunta aos quesitos 7.º e 8.º compensavam economicamente os colaboradores da Autora que acompanhavam a excursão [resp. ao artigo 11º].
14. A 20 de Outubro de 2008, no decurso de uma excursão, a Ré advertiu telefonicamente a Autora de que não permitia qualquer alteração ao programa previamente estipulado, referido em B), nem que a Autora efectuasse visitas que não constassem do mesmo [resp. aos artigos 15º e 16º].
15. Alguns clientes manifestavam descontentamento pelas visitas referidas na resposta conjunta aos quesitos 7.º e 8.º [resp. ao artigo 17º].
16. Os passageiros/clientes exprimiam desagrado pelas más condições de higiene do hotel “C…”, em Tânger [resp. ao artigo 21º].
17. No programa em causa, e fruto da relação comercial anterior entre Autora e Ré, aquela aceitava que esta pagasse as facturas no último dia da viagem a que dissessem respeito [resp. aos artigos 23º e 24º].
B - O DIREITO
Embora não venha questionada a natureza do contrato em causa, não deixará de se dizer que se afigura correcta a qualificação do acordo celebrado entre as partes feita na sentença recorrida, como um contrato de prestação de serviços, tal como o define o art. 1154º Código Civil, o qual reveste natureza comercial, considerando que tanto a Autora como a Ré se dedicam à actividade turística, sendo-lhe assim aplicável o disposto no D.L. n.º 32/2003, de 17 de Fevereiro.
Na execução do contrato, a Ré organizou várias viagens, nas quais a Autora se obrigou a cumprir um programa previamente traçado, vindo a Autora reclamar, por não ter sido pago, o valor de cinco facturas relativas a essas viagens, as quais não foram liquidadas pela Ré, que se pretende eximir ao respectivo pagamento invocando a excepção de não cumprimento do contrato, alegando cumprimento defeituoso do mesmo por parte da Autora.
Decorre do disposto no artigo 428º do Código Civil que “Se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo.
A excepção de não cumprimento do contrato, como refere José João Abrantes, “é a faculdade que, nos contratos bilaterais, cada uma das partes tem de recusar a sua prestação enquanto a outra, por seu turno, não realizar ou não oferecer a realização simultânea da sua prestação” (A Excepção de Não Cumprimento do Contrato no Direito Civil Português, Almedina, Coimbra, pág. 39).
O exercício da exceptio pressupõe a existência de um contrato bilateral, a simultaneidade do prazo e a mora de um dos contraentes.
Nos contratos bilaterais cada uma das partes está vinculada ao cumprimento de - pelo menos - uma prestação e cada uma dessas prestações funciona como a contrapartida da outra.
Como esclarece José João Abrantes, ob. cit., pág. 61, o contraente que, relativamente às obrigações em sinalagma, se não encontra obrigado ao cumprimento prévio, tem ao seu dispor a aludida excepção, como única forma de o garantir contra o não cumprimento pelo outro de prestações atrasadas.
É que, nos contratos em que a prestação se protela no tempo, denominados de duração ou de prestação duradoura, mesmo o contraente que deva efectuar a sua prestação antes do outro pode lançar mão da excepção de não cumprimento do contrato, baseando-se na inexecução de prestações anteriores, isto é, de prestações correspondentes a outras que ele próprio anteriormente tenha efectuado.
Esclarecem também Pires de Lima e Antunes Varela que, “mesmo estando o cumprimento das prestações sujeito a prazos diferentes, a exceptio poderá sempre ser invocada pelo contraente cuja prestação deve ser efectuada depois da do outro, apenas não podendo ser oposta pelo contraente que devia cumprir primeiro (Código Civil Anotado. vol. I, 3ª ed., pág. 381).
Este entendimento é, de resto, perfilhado por Vaz Serra, na RLJ, ano 105, pág. 283, em anotação ao Ac. do STJ de 19.11.71, BMJ, 211º, pág. 297, por Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, Coimbra, 1987, pág. 331 e por larga jurisprudência (cfr. a título meramente exemplificativo o Ac. do STJ de 04.11.2010, proc. 11412-06.6TBOER-A.L1, in www.dgsi.pt.).
“A exceptio é, ainda, admitida quando a outra parte cumpriu, embora com defeitos (exceptio non rite adimpleti contratus). Mas, como observa Antunes Varela, “na falta de disposição específica, o problema terá de ser resolvido … sem nunca perder de vista o princípio básico da boa fé”. Adverte, contudo, para o facto de o credor ter recebido a sua prestação, sem nenhuma reserva ou protesto, apesar dos vícios ou defeitos, quando em princípio não o deveria ter feito, não lhe ser lícito invocar a exceptio, pelo menos em relação à parte da prestação a que se encontra adstrito (Das Obrigações em Geral, Vol. I, 8ª ed., pág. 399).
Luís Teles de Menezes Leitão defende que a solução deverá ser a de que a aceitação da prestação não deve precludir o recurso à exceptio “se os defeitos de que a prestação padece prejudicam a integral satisfação do interesse do credor”, mas já não será admissível o recurso à exceptio se os defeitos da prestação, atendendo ao interesse do credor, tiverem escassa importância”, por aplicação analógica do artigo 802º do Código Civil (Direito das Obrigações, Volume II, 3ª ed., págs. 255 e 256).
Também Pedro Romano Martinez admite a exceptio após o credor ter não só denunciado os defeitos, como também exigido que os mesmos fossem eliminados, a prestação substituída ou realizada de novo, o preço reduzido, ou ainda, o pagamento de uma indemnização por danos circa rem, sublinhando, no entanto, que a sua invocação deve ter em linha de conta o princípio da boa fé (Cumprimento Defeituoso, Em Especial Na Compra e Venda e na Empreitada, págs. 328 e 329).
José João Abrantes esclarece, por sua vez, que “a excepção do contrato não cumprido não pressupõe a culpa do devedor da contraprestação no seu atraso. A inexecução por parte deste, pode ser-lhe imputável ou não, tanto pode ele constituir-se em mora como não. Ainda que o incumprimento lhe não seja imputável, antes obedeça a circunstâncias fortuitas, independentes da vontade, a excepção é invocável pelo outro contraente” (ob. cit., pág. 88).
Do ponto de vista adjectivo, pode-se definir a exceptio como uma excepção material dilatória, pois como observa Calvão da Silva, “o excipiens não nega o direito do autor ao cumprimento nem enjeita o dever de cumprir a prestação; pretende tão-só um efeito dilatório, o de realizar a sua prestação no momento (ulterior) em que receba a contraprestação a que tem direito e (contra) direito ao cumprimento simultâneo” (ob. cit. pág. 334).
Revertendo ao caso concreto, competia à Autora, como elemento constitutivo do seu direito de crédito à prestação pecuniária, o ónus probatório do cumprimento dos serviços a que se vinculou (art. 342º, nº 1, do CC), o que a todas as luzes resultou provado.
Incumbindo à Ré, por seu lado, na qualidade de devedora da mesma prestação, provar os factos impeditivos ou extintivos desse direito, integradores da exceptio non adimpleti contratus (nº 2 do art. 342º).
Ora, cumprido o ónus da prova da efectiva prestação dos serviços, impendente sobre a Autora, há que ver se a Ré cumpriu o ónus probatório da excepção de não cumprimento.
Escreveu-se a este propósito na sentença recorrida:
“Alegava a Ré um conjunto de factos que, na sua opinião, se teriam traduzido numa violação do contrato por parte da Autora. A este respeito, provou-se que os guias contratados pela Autora conduziam os clientes da Ré a vários tipos de comércio, como farmácias e lojas de tapeçarias, o que não estava previsto no programa e ocorria durante o tempo aí considerado como livre, tendo alguns clientes manifestado descontentamento por essas visitas; em troca, os donos desses estabelecimentos compensavam economicamente os colaboradores da Autora que acompanhavam a excursão; havia também queixas de clientes pelas más condições de higiene de um hotel de Tânger.
Chegarão estes factos para configurar um cumprimento defeituoso da obrigação por parte da Autora? A resposta não pode deixar de ser negativa, e por vários motivos.
Desde logo, porque ficou por demonstrar – o que era ónus probatório da Ré, nos termos do art. 342º, nº 2 – que tudo isso tivesse ocorrido nos circuitos cujo pagamento está em causa (e que são os de Outubro de 2008); aliás, em relação ao último deles, provou-se até que a Ré advertiu telefonicamente a Autora, a 20 de Outubro, de que não permitia qualquer alteração ao programa estipulado, nem que a Autora efectuasse visitas que não constassem do mesmo (advertência que nem a Ré alegou ter sido desatendida pela Autora nessa mesma viagem, por sinal a última).
Mas, ainda que tal se tivesse demonstrado, os factos em causa não são mais do que pequenos detalhes neste conteúdo contratual: as más condições de higiene de um hotel, entre cinco cidades visitadas, além de não serem directamente imputáveis à Autora, deveriam já ter determinado, por parte da Ré, uma reclamação formal junto da Autora, a exigência de troca do mesmo no circuito ou um desconto no valor fixado. Não podem é servir para que a Ré se exima ao pagamento de todas as outras despesas.”
Estamos de total acordo com esta análise, pouco mais ou nada havendo a acrescentar aos argumentos explicitados naquela decisão.
Sempre se dirá, na hipótese das situações ocorridas no âmbito dos circuitos respeitarem às facturas dos autos, que a Ré não logrou demonstrar, como lhe incumbia, que tais “defeitos” tenham tornado inadequada a prestação, no seu conjunto, em termos de justificarem o recurso à excepção de não cumprimento.
É que, no caso de incumprimento parcial, o alcance da excepção de não cumprimento do contrato deve ser proporcional à gravidade da inexecução, sob pena de abuso de direito (cfr. Acs. do STJ de 04.02.2010, in CJ/STJ, Ano XVIII, tomo 1, pág. 51 e de 26.10.2010, proc. respectivamente, proc. 571/2002.P1.S1, in www.dgsi.pt).
Ora, no caso em apreço, considerando a hipótese referida, sempre a invocação da exceptio pela Ré configuraria um abuso de direito, tal a manifesta desproporção entre a inexecução (insignificante) do contrato pela Autora e o não pagamento pela Ré dos serviços prestados.
Improcedem assim todas as conclusões da recorrente, pelo que a sentença deve manter-se.
Não indiciam os autos litigância de má fé por banda da Ré.
IV - DECISÃO
Pelo exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela apelante.
Guimarães, 14 de Dezembro de 2010
Manuel Bargado
Helena Gomes de Melo
Amílcar Andrade