SEGREDO DE CORRESPONDÊNCIA
TELECOMUNICAÇÕES
ESCUTA TELEFÓNICA
Sumário

As mensagens recebidas em telemóvel e mantidas em suporte digital, depois de recebidas e lidas, não têm mais protecção do que as cartas recebidas, abertas e guardadas pelos seus destinatários.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório
Nestes autos de processo comum com intervenção do tribunal singular, após a realização da audiência de julgamento, foi proferida sentença que, além do mais, decidiu:
a) Absolver o arguido José S... de um crime de injúria p. e p. pelo artigo 181.º, n.º 1 do Código Penal bem como de um crime de ameaça p. e p. pelo artigo 153.º, n.º 1 do mesmo diploma;
b) Absolver a arguida Maria S... de um crime de injúria p. e p. pelo artigo 181.º, n.º 1 do Código Penal;
c) Absolver ainda ambos os arguidos-demandados do pedido de indemnização civil, no montante de 1.500,00 €, acrescido de juros, à taxa legal, desde a notificação até integral pagamento, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais, formulado pela assistente Kátia R....
Inconformada a assistente veio interpor recurso da sentença, retirando da sua motivação as seguintes conclusões (transcrição):
1ª) Salvo o devido respeito e melhor opinião, deveriam ter sido dados como provados que a arguida Maria S... tenha solicitado à Assistente que conseguisse um emprego para o seu marido, o arguido José, na empresa da seu irmão Francisco T..., o que acabou par fazer; que, em sequência, o arguido José passou a trabalhar para a empresa do dito Francisco T..., o que ocorreu até AG02008, acabando por se despedir no dia 5SET2008; que a partir dessa data, com o argumento de que as contas não haviam sido devidamente saldadas entre o dito Francisco T... e o arguido José, os arguidos passaram a insultar a Assistente; que deste modo, no dia 10OUT2008, cerca das 18.00h, quando a ofendida se deslocava de Valença para Viana do Castelo, na companhia do seu marido (testemunha Carlos R... e da sua filha (testemunha Ana R...), já na freguesia de Carreço, a mesma recebeu uma chamada telefónica para a seu telemóvel da arguido José; que no decorrer dessa chamada, o arguido José apelidou a Assistente de “caloteira” dizendo-lhe devias ter vergonha de ir de férias e dever dinheiro a toda a gente, sois uns filhos da puta sem palavras..., vou ao café do Adro e vou te partir os cornos e pôr à frente de toda a gente na lama; que o telemóvel encontrava-se na altura ligado ao sistema de mãos livres do veículo automóvel via bluetooth, razão pela qual as expressões supra referidas foram ouvidas pelo marido da Assistente e pela filha desta”.
2ª) Perguntado à recorrente como conheceu a arguida Maria S..., esta respondeu “Porque a D. Conceição, portanto, cheguei a ir algumas vezes ao cabeleireiro e na altura pediu-me se arranjava emprego para o marido, que estava desempregado. E depois perguntei ao meu irmão” e continuando “Sim, se conseguia arranjar algum emprego para o marido que estava desempregado e entretanto eu falei com o meu irmão.”, e explica ainda “Pois, eu conheço diversas pessoas, mas na altura como o meu irmão sabia que estava a precisar de funcionários falei e o meu irmão disse que até naquela altura não precisava mas que poderia falar com os sócios em Espanha e veria o que podia fazer.”
3ª) E continua a explicação, afirmando “...havia uns tempos que o Sr. José não se compatibilizava com a forma de trabalhar da firma. A esposa só fazia queixas quando eu ia lá tomar café, que havia uma incompatibilidade. Eu dizia sempre que isso era uma coisa que tinha que ser resolvida entre o meu irmão e o funcionário, não é? Portanto, depois no mês de Julho soube que o meu irmão ia para os Açores, para uma obra. Não sabia nada em concreto, não entrei em pormenores. Entretanto, perguntei, vi este Sr. e perguntei ao meu irmão porque é que ele não tinha ido. Ele disse que não se tinha disponibilizado para o serviço. E pronto, o meu irmão, aquilo foi uma conversa muito rápida, por telefone, adiante. Entretanto começaram a haver sempre pressões, porque o meu irmão que devia, porque ele é que devia, que era um caloteiro. Desculpe o termo. Posso repetir?” “Isto foi tudo um seguimento. Entretanto, eu sou operada no dia 5 de Outubro, no dia 10 de Outubro eu ia buscar a minha filha, que eu e o meu marido íamos entregar um BMW a um cliente a Valença e fomos buscar a miúda à escola e no caminho recebo um telefonema deste Sr..”
4ª) Perguntado onde é que recebeu o telefona, esta responde “Recebemos o telefonema no meu telemóvel, não é? Portanto, só que nós nas viaturas usamos sempre esse sistema de voice mail, bluetooth.” e perguntado que viatura era, esta respondeu “BMW, série 5, série 5 ou série 3, portanto. Nós usamos sempre os telemóveis, sempre que entramos no carro ficam sempre adjudicados os telemóveis. Começou a chamar que éramos uns caloteiros.”
) Perguntado de quem era o telefonema, esta respondeu “Do Sr. José” e como é que sabe que era o arguido, esta responde “Pela voz, conheci-o perfeitamente. Identifiquei. E em que dizia que éramos uns caloteiros, éramos uns filhos da puta, que devíamos ter vergonha de ir de frias e a dever às outras pessoas. Que me ia por de ladra lá no café do adro, que me ia partir os cornos, desculpando o termo, etc.. Entretanto o meu marido ouviu isso e perguntou “Mas quem é que esse pensa que é para se estar a meter na nossa vida.”. Entretanto ele desligou. Isto passou-se. Entretanto eu estive em casa.”
6ª) A recorrente explica, deste modo, de forma clara os factos que ocorreram, fazendo enquadrar os mesmos numa sequência lógica de acontecimentos, já que as situações não acontecem sem um contexto objectivo.
7ª) Quanto à testemunha Carlos R..., perguntado pelo Exmo. Sr. Procurador o que se passou este respondeu “Simplesmente o que se passou foi o comentado pela minha esposa e o que eu ouvi numa, num deslocamento da, entre, quando fomos buscar a minha filha a Valença. E continuando “2008, há dois anos. Portanto quando vínhamos de Valença para cá, a minha esposa atendeu uma chamada e como estávamos, tínhamos os telefones, os telefones emparelhados, e ouvimos aquilo que estava a pessoa do outro lado a ameaçar com frase mesmo.... Disse Sr. Dr., disse muita coisa, que, que lhe ia ao focinho, que lhe ia partia os dentes.
8ª) O Exmo. Sr. Dr. Procurador apenas faz uma pergunta sobre o teor da conversa a que a testemunha assistiu e que consistiu em “e o que é que ele disse?”, ao que esta respondeu “Disse Sr. Dr., disse muita coisa, que, que lhe ia ao focinho, que lhe ia partia os dentes....”
9ª) E a partir daí as perguntas do Exmo. Sr. Dr. Procurador foram feitas para saber do motivo dessa conversa, perguntando porque motivo é que estava a dizer isso?”; “mas ele exigiu alguma coisa a sua esposa?”; “exigiu a entrega de alguma coisa?”; “mas de pedir alguma coisa?” ao que a testemunha deu as seguintes respostas:
- “Porque eu acho que o meu cunhado, havia ali uma diferença de dinheiros que agora me ultrapassa, mas o que é o facto é que me estava também, nessas frases todas que disse, estava-me também a atingir, a atingir, não é?
- Mais, mais, eu não quis saber muito do, do, o que me afectou mais foi injurias que ele referiu.
- Não me, isso não me, não me, não me recordo Sr. Dr. Juiz, agora o que recordo e aquilo que eu limitei-me a simplesmente a ouvir mas não me recordo de certas coisas. Agora o que me recordo mais foi o facto de dizer que não tínhamos nada que ir de férias. Ora bem, eu para mim, acho que não devo nada a ninguém não tenho nada que ouvir essas coisas de pessoas estranhas, que eu nem conheço.”
10ª) Assim, a resposta dada “não me recordo” foi no seguimento das perguntas feitas pelo Exmo. Sr. Dr. Procurador para saber se o arguido exigiu a entrega de alguma coisa ou se se limitou a proferir as expressões.
11ª) A testemunha em causa, em instância da mandatária da recorrente e após lhe perguntar o teor da dita conversa respondeu “A expressão exacta é que lhe ia dar cabo dos cornos, partir os dentes, que lhe ia rasgar a boca até ó, até não sei aonde, pronto, até ao rabo. Assim, coisas assim que. ... Sim, disse que não tínhamos nada que ir de férias, que éramos uns caloteiros, que não tínhamos nada que ir de férias, porque tínhamos que pagar a divida. Ora, a dívida, que dívida, que dívida” E explicou que “Relativamente ao negócio eu não tenho nada a ver com isso. Nem quis ouvir, eu simplesmente me, o que mais me magoou nisso, no início, naquelas frases todas foi simplesmente me dizerem, que eu que não devo nada a ninguém, que não devia ter ido de férias, que sou um vigarista, que isto que aquilo pá. Eu acho que não tenho nada a ver com o assunto do meu cunhado, não é? Era isso que eu estava a falar com o Sr. Dr..
12ª) Salvo o devido respeito, entendemos que o Meritíssimo Juiz a quo não apreciou correctamente, o depoimento da testemunha em questão, não tendo a mesma tido um comportamento diferente às perguntas do Exmo. Sr. Dr. Procurador ou à mandatária da recorrente, apenas tendo sido mais aprofundado o teor da conversa.
13) A testemunha Ana Carina perguntado o que assistiu respondeu,
T: No ano de ..., há dois anos, no mês de Outubro, se não me engano, a minha mãe e o Sr. Carlos Alberto, que é meu padrasto, foram a Valença ter com um cliente e trouxeram-me, que eu estudava na Escola de Valença, e quando regressamos a Viana, por cerca das seis horas, recebemos um telefonema, e o telemóvel estava em sistema de bluetooth, em que o Sr. Rui dizia que a minha mãe e o Sr. Carlos deveriam ter vergonha de ir de férias e não pagarem o que devem, que os ia difamar no Café do Adro, que é lá na freguesia de Çarreço, que ia por a minha mãe na lama, quando a apanhasse ia-lhe foder os cornos, e foi isso. E depois foi uma chamada da esposa do Sr. Rui que telefonou para a minha mãe e deixou uma mensagem a dizer que a minha avó, como é que eu hei-de explicar, disse assim a minha mãe é tão puta como a minha sogra, vou-te por na lama, vou-te difamar, devias pagar aquilo que deves. E foi praticamente isto. E perguntado se reconheceu a voz do arguido, esta respondeu, T: Sim, sim, sim, reconheci, que aquilo estava em sistema de bluetooth e reconheci. E continuou T: Sim, sim, porque frequentava o café do adro e eu também costumava estar no café do adro e a voz”
14ª) Trata-se de um depoimento que relata com clareza o que ouviu, referindo as expressões utilizadas pelo arguido.
15ª) Finalmente, e salvo sempre o devido respeito, discordamos do douto entendimento quanto ao emparelhamento de dois telemóveis, já que é possível dois telemóveis estejam emparelhados no interior do veículo em causa.
16ª) Deste modo, entendemos que as testemunhas depuseram com clareza e isenção, relatando os factos de que tinham conhecimento.
17ª) Por outro lado, a transcrição que consta dos autos, e que o Meritíssimo Juiz a quo não tomou em consideração, salvo sempre o devido respeito, por errada interpretação dos artigos 189º do CPP, comprova à saciedade a situação que é relatada pelas testemunhas em causa.
18ª) E ao dar como assentes os factos constantes do nº 1 destas conclusões, deveria o arguido ter sido condenado no crime de injúrias e de ameaça de que vinha acusado.
19ª) Quanto ao episódio 2, entendeu o Meritíssimo Juiz a quo que “...quanto ao episódio 2 dir-se-á que não está junto aos autos qualquer transcrição válida do teor do mesmo. De facto, aceitando que se tratasse de uma mensagem de voz, em que como tal o emitente sabia que a mesma ficaria guardada, ainda assim o regime a aplicar não é diferente do aplicado às mensagens de texto, pelo que por força do artigo 189º do CPP, sob pena de nulidade, tal meio de obtenção de prova tem que seguir certos formalismos legais, que nos autos se não verificam como cumpridos.”
20ª) No caso em apreço, estamos perante uma mensagem voz que foi deixada na caixa de correio do telemóvel da recorrente.
2lª) A audição dessa mensagem, que já entrou na esfera de domínio do destinatário, não pode, em nossa modesta opinião, configurar como intercepção de conversação ou comunicação telefónica, para efeitos de se lhe aplicarem directamente as regras dos artigos 187º e 188º do CPP.
22ª) Como se ajuizou no Ac. da Rel. de Lisboa de 15/07708, Proc. nº 3453/2008, www.dgsi.pt,na sua essência, a mensagem mantida em suporte digital depois de recebida e lida terá a mesma protecção da carta em papel que tenha sido recebida pelo correio e que foi aberta e guardada em arquivo pessoal”, salientando ainda que “tratando-se de meros documentos escritos, estas mensagens não gozam de aplicação do regime de protecção de reserva da correspondência e das comunicações” - no mesmo sentido tinha sido já decidido no Ac. Rel. de Coimbra de 29/03/06, Proc. nº 607/06, www.dgsi.pt.
23ª) Deste modo, atento tudo o supra exposto, entendemos que o Meritíssimo Juiz a quo deveria ter considerado válida a transacção junta e, em consequência deveria ter dado como assente “que no dia 4N0V2008, cerca das 15.00h, a Assistente recebeu uma mensagem de voz no atendedor de chamadas automática do seu telemóvel proveniente do número de telefone 258 836 537, pertencente ao salão de cabeleireiro Vânia, com sede na freguesia de Carreço, Viana do Castelo, na qual a arguida Maria S... dizia: Olha, diz ao animal do teu irmão que ainda se anda aqui a passear. Anda aqui a passear, não? Esse animal. Anda aqui a fazer pouco das pessoas mas anda que já está a queixa feita, ele qualquer dia vai ter vão-lhe bater à porta e não só, que os espanhóis também lhe vão cair em cima. Não penses que estamos parados pá, não penses que estamos parados. Ele está a fazer pouco de mim e do meu marido, mas não penses que estamos parados, ouviste bem? Ah? Ainda se anda aqui a passear, esses cabrãozinho. Eu quero. Diz-lhe a ele pergunta-lhe a ele quem é a filha da puta. Diz-lhe a ele. Chamou o meu marido filho da puta, diz-lhe a ele quem é o filho da puta, diz-lhe a ele. Ah? Que a minha sogra devia ser tão puta como a mãe dele! Cuidado com as palavras. Olhe que não penses que estás a lidar com, com quem estais, não pensais que estás a lidar com a merda da raganha dos russos e do caralho. Ouviste? Que seja a última vez que ele anda aqui a passear e que não vem entregar o filho da puta do dinheiro. Caloteiros, vós sois uns caloteiros, toda a gente já sabe que eu abro a boca até ao cú”, condenando, em consequência, a arguida pela prática do crime de injúria.
24ª) Quanto ao pedido de indemnização civil, entendemos que, ao dar como provado, como deveria ter sido, que os arguidos proferiram tais expressões torna-se evidente que a recorrente ficou envergonhada, assustada e temerosa, por ser notório e da nossa experiência comum.
25ª) A testemunha Carlos R..., perguntado se o facto de ser aquela ameaça com “vou-te partir os cornos”, se deixou a recorrente transtornada, este respondeu “Sim o facto de, isso é um facto. Até tinha, tinha receio de ir a esse café que, que até era uns amigos que são os proprietários e tinha receio, receio... De cruzar com esses, com esse casal.” perguntado se ficou nervosa, este respondeu “Exactamente, exactamente.”
26ª) Quanto à testemunha Ana Carina, perguntado se a recorrente ficou perturbada com essa situação, esta respondeu “Sim, sim, tinha acabado de ser operada, depois estava constantemente a receber ameaças também no café do adro, tomava calmantes para dormir e tinha um bocado de receio, tinha medo.”
27ª) Pelo que, mais uma vez entendemos que o Meritíssimo Juiz a deveria ter dado como assente o referido facto, e, em consequência, deveriam os arguidos terem sido condenados nos pedidos de indemnização civil.
28ª) A douta sentença violou por errada interpretação os artigos 187, 188º e 189º, todos do C.P.P., 153º, nº 1 do C.P., 181º, nº 1 do C.P., 129º do C.P., 483º e 562º do C.C.
TERMOS EM QUE
Dando-se provimento ao presente recurso e
substituindo-se a douta sentença recorrida por outra que
ordene os arguidos pela prática dos crime de que vinham
acusados, bem como no pagamento do pedido de
indemnização civil, far-se-á a habitual
JUSTIÇA

*
Respondeu o Ministério Público junto do Tribunal a quo, tendo concluído nos seguintes termos (transcrição):
“I) O recurso ora em análise, não obedece ao preceituado no art.º 412.º do Código de Processo Penal.
II - O exame crítico da prova é insusceptível de censura
III - Do texto sentença não resulta nenhum vício, que por si só ou conjugada com as regras da experiência comum resulte um erro notório na apreciação da prova.
IV) A validade da transcrição é um falso problema, pois não se trata de validar um meio de prova, mas antes de aferir da legalidade de um meio de obtenção de prova.
Por todo o exposto, entendemos que se deve manter nos seus precisos termos a douta sentença, ora recorrida.
Porém, Vossas Excelências farão a habitual Justiça.”

O arguido José da Silva Sousa respondeu também ao recurso interposto pela assistente, tendo concluído nos seguintes termos (transcrição):
- Inexiste erro algum na apreciação da prova na douta sentença do Tribunal recorrido.
2ª - Quem ouvir as gravações ou ler os depoimentos transcritos, produzidos em audiência, fica desde logo sem qualquer dúvida.
3ª - Aplica-se ao caso sub judice o princípio in dubio pro reu, pois que, nada se tendo provado relativamente àquele telefonema, a questão resolve-se a favor do arguido.
4ª - Aplica-se ainda o princípio da presunção da inocência, uma vez que não se provou que o arguido José da Silva Sousa tivesse culpa.
Termos em que deve ser negado provimento ao
recurso interposto pela ora recorrente Kátia Cristina Ramalhosa Torres
Rodrigues Ribeiro, mantendo-se a douta sentença proferida no Tribunal
de 1ª instância (recorrido), com as legais consequências, fazendo-se,
assim,
Justiça.

Nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto foi de parecer que a sentença deve ser confirmada no que respeita ao arguido José e deve ser revogada quanto à arguida Maria S... e substituída por outra que, considerando a validade e relevância duma prova – uma gravação de voz deixada no atendedor de chamadas de um telemóvel -, pondere essa prova com as demais produzidas em audiência, sem prejuízo de, caso se mostre necessário, a audiência ser reaberta e produzida, em plenitude, a prova rejeitada, sujeitando-a a pleno contraditório.
No âmbito do disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, os arguidos e a assistente nada disseram.
Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.
*
II - FUNDAMENTAÇÃO
1. Da sentença recorrida consta o seguinte quanto à factualidade provada e não provada, assim como no que diz respeito à respectiva motivação (por transcrição):
2.1 – Matéria de facto provada:
De relevante para a discussão da causa, resultou provado o seguinte circunstancialismo fáctico:
1. Inexiste.
2.2 - Matéria de facto não provada:
A. Que a arguida Maria S... tenha solicitado à Assistente que conseguisse um emprego para o seu marido, o arguido José, na empresa do seu irmão Francisco T..., o que acabou por fazer.
B. Que, em sequência, o arguido José passou a trabalhar para a empresa do dito Francisco T..., o que ocorreu até AGO2008, acabando por se despedir no dia 5SET2008.
C. Que a partir dessa data, com o argumento de que as contas não haviam sido devidamente saldadas entre o dito Francisco T... e o arguido José, os arguidos passaram a insultar a Assistente.
D. Que deste modo, no dia 10OUT2008, cerca das 18.00h, quando a ofendida se deslocava de Valença para Viana do Castelo, na companhia do seu marido (testemunha Carlos R...) e da sua filha (testemunha Ana R...), já na freguesia de Carreço, a mesma recebeu uma chamada telefónica para o seu telemóvel do arguido José.
E. Que no decorrer dessa chamada, o arguido José apelidou a Assistente de “caloteira”, dizendo-lhe “devias ter vergonha de ir de férias e dever dinheiro a toda a gente”, “sois uns filhos da puta sem palavras… vou ao café do Adro e vou te partir os cornos e pôr à frente de toda a gente na lama.”
F. Que o telemóvel encontrava-se na altura ligado ao sistema de mãos livres do veículo automóvel via bluetooth, razão pela qual as expressões supra referidas foram ouvidas pelo marido da Assistente e pela filha desta.
G. Que no dia 4NOV2008, cerca das 15.00h, a Assistente recebeu uma mensagem de voz no atendedor de chamadas automática do seu telemóvel, proveniente do número de telefone 258 836 537, pertencente ao salão de cabeleireiro “Vânia”, com sede na freguesia de Carreço, Viana do Castelo, na qual a arguida Maria S... dizia: “Olha, diz ao animal do teu irmão que ainda se anda aqui a passear. Anda aqui a passear, não? Esse animal. Anda aqui a fazer pouco das pessoas mas anda que já está a queixa feita, ele qualquer dia vai ter, vão-lhe bater à porta e não só, que os espanhóis também lhe vão cair em cima. Não penses que estamos parados pá, não penses que estamos parados. Ele está a fazer pouco de mim e do meu marido, mas não penses que estamos parados, ouviste bem? Ah? Ainda se anda aqui a passear, esses cabrãozinho. Eu quero. Diz-lhe a ele, pergunta-lhe a ele quem é a filha da puta. Diz-lhe a ele. Chamou o meu marido filho da puta, diz-lhe a ele quem é o filho da puta, diz-lhe a ele. Ah? Que a minha sogra devia ser tão puta como a mãe dele, cuidado com as palavras. Olhe que não penses que estás a lidar com, com quem estais, não pensais que estás a lidar com a merda da raganha dos russos e do caralho. Ouviste? Que seja a última vez que ele anda aqui a passear e que não vem entregar o filho da puta do dinheiro. Caloteiros, vós sois uns caloteiros, toda a gente já sabe que eu abro a boca até ao cu.
H. Que, em consequência, a Assistente tenha ficado envergonhada, assustada e temerosa, o que se mantém.
TUDO O QUE EM CONTRÁRIO COM O DADO COMO PROVADO SE ASSUMA, OU SE TRATE DE MATÉRIA DE DIREITO, INSTRUMENTAL OU CONCLUSIVA E, COMO TAL, INSUSCEPTÍVEL DE SER CHAMADA À COLAÇÃO NESTA SEDE.

2.3 – Motivação da matéria de facto provada e não provada:
O Tribunal formou a sua convicção com base, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também por declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões, parcialidade, coincidências e mais inverosimilhanças que, porventura, transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos.
O dever constitucional de fundamentação da sentença basta-se com a exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, bem como o exame crítico das provas que serviram para fundar a decisão e o exame crítico da prova, exigindo, pois, a indicação dos meios de prova que serviram para formar a convicção, como, também, os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção se forme em determinado sentido, ou se valore de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência.
Concretizando:
Os arguidos estiveram presentes em Tribunal e usaram do seu direito ao silêncio.
Ouviram-se, assim, em termos de prova da pronúncia, a Assistente e as testemunhas Carlos R..., marido da Assistente e Ana R..., filha da Assistente.
Dir-se-á, antes de mais, que os depoimentos em causa foram por demais ensaiados e colados, o que lhes conferiu um grau de credibilidade insuficiente.
A Assistente, num depor pessoalista e agastado, sempre tentando fazer vincar a sua tese, reportou os factos nos moldes essenciais das acusações que a mesma formulou. Reportou a alegada situação de emprego e de relacionamento nesse sentido entre o arguido e o seu irmão, bem como alegadas pressões sobre imputadas dívidas após a cessação da relação laboral.
Concretamente quanto aos factos – episódio 1 – diz que estando no carro, em alta voz, recebeu o telefonema sendo que o mesmo era do arguido, pessoa a quem reconheceu pela voz. Reportou a situação em causa. Situa os factos no tempo e espaço dito nas acusações que formulou.
Relativamente ao episódio 2, refere que se trata de uma mensagem de voz deixada no telemóvel, reportando a situação.
Por seu turno, a testemunha Carlos R..., marido da Assistente, referindo-se a conduzir o carro, vindo com a Assistente e filha, diz que em OUT2008, estando com os telefones emparelhados, foi recebido um telefonema, telefonema que todos ouviram e no qual foi a sua esposa ameaçada com frases (que não reporta). Perante tal, perguntou à esposa quem era, e segundo a mesma era um senhor que trabalhara para o irmão (assim o disse). Acrescenta então, que no telefonema dói dito que “ia ao focinho”, “que lhe partia os dentes), o que consabidamente não consta de qualquer acusação nem referido por quem quer que seja o foi.
Este depoimento é assim, veramente destituído de veracidade.
Não fosse já assim às perguntas feitas inicialmente, em que respondeu de forma espontânea, mais se firmou tal opinião a partir do momento em que às perguntas da I. Advogada da Assistente (que não se entenderam como atentatórias das regras do CPP) logo a testemunha vestiu a camisola da acusação e passou a relatar tudo.
No que diz respeito, por seu turno, ao episódio 2, refere que não ouviu a mensagem em causa, sendo que só ouviu comentar sobre tal.
Por último diz que não conhece a voz do arguido, pessoa que não conhece, pelo que não sabe se era ele a pessoa do telefonema do episódio 1, apenas referindo que foi a sua esposa que lhe disse que era o arguido tal pessoa.
Por último, a testemunha Ana R..., que ao que consta dos autos (na parte que podemos ler e conhecer) terá evoluído no seu depor, mais lembrando quão mais lata é a distância aos factos, o que não deixa de ser muito próprio, refere-se presente no carro em OUT2008, altura em que foi recebido um telefonema por parte do arguido (de quem diz conhecer a voz), reportando os dizeres. Com relação ao episódio 2 diz que os insultos eram os mesmos que do episódio 1, e que por isso não se lembra dos mesmos.
Ora, antes de mais dir-se-á que inexiste um único documento que ateste a existência dos telefonemas em causa, documento esse essencial para se aquilatar, desde logo, sobre a veracidade da existência dos telefonemas, que não do seu teor. E tal documento podia ser obtido, mas não o foi.
Por outro lado, quanto ao episódio 2 dir-se-á que não está junto aos autos qualquer transcrição válida do teor do mesmo. De facto, aceitando que se tratasse de uma mensagem de voz, em que como tal o emitente sabia que a mesma ficaria guardada, ainda assim o regime a aplicar não é diferente do aplicado às mensagens de texto, pelo que por força do art. 189.º do CPP, sob pena de nulidade, tal meio de obtenção de prova tem que seguir certos formalismos legais, que nos autos se não verificam como cumpridos.
Assim e no mais, não pode deixar o Tribunal de dizer que estamos na fase da moda do mãos livres, pois toda e qualquer situação de telefonema e de problemas nos mesmos é hoje em dia tratado em espaço aberto e público, pelo menos na alegação de vários Assistente neste Tribunal.
É certo que o Tribunal conhece a globalização, a vivência big brother que nem Orwell pensou vir existir, mas também conhece o mínimo de regras em sociedade e até regras técnicas de uso de telefones, emparelhamento dos mesmos com bluetooth e viabilidade de uso dos mesmos.
Com tal queremos dizer que são plúrimas as situações em que temos sido chamados a julgar casos em que operando algo de estranho via telefone, logo se argumenta que a chamada estava em voz alta, seja no café, no carro, em família, no trabalho ou mesmo na rua.
E assim, por este modo, todos ouviram e testemunhas já temos.
Esquecem-se, porém, os inventores e defensores de tais factos que a experiência de vida, as regras da normalidade de vida, aquelas regras que são próprias do homem mediano, nos dizem de forma cabal que não é assim que no dia a dia os telefonemas se processam, pelo menos para já.
É certo que todos temos a experiência da falta de pudor e de privacidade com que certas pessoas vivem, pessoas essas que na mesa de café, no transporte público, na rua, no elevador, e em muitos outros locais, nos forçam a saber a sua vida. Fazem-no, porém, a 50% do telefonema, ou seja, na parte em que são emissores, já não na parte em que são receptores, o que muitas vezes não trunca a globalidade da conversa.
Por outro lado, bem sabe o Tribunal que sendo possível emparelhar mais do que um telefone a um bluetooth, não podem estar, porém, conexionados dois em simultâneo de modo a que de forma indiscriminada, ou sucessiva, ou alternada, se atenda o telefone. Tal tecnicamente não é possível. Possível é, isso sim, que sendo vários os telefones emparelhados, o primeiro dos que aceda ao bluetooth fique ligado, assim impedindo os demais. De facto, defender o contrário seria retirar uma das características do bluetooth que é a de ligação ponto – ponto, passando a ponto – multiponto. Explicando. Todos percebem que um portátil esteja ligado a umas colunas wireless, um rato wireless, um teclado wireless, um telefone por bluethooth, etc., tudo em simultâneo. Nestes casos o ponto (o portátil) recebe multiponto (os vários periféricos) e consegue tratar de todos em simultâneo. No caso do sistema de alta voz bluethooth, sendo possível emparelhar vários aparelhos telefónicos à central do carro, o certo é que o que essa pluralidade funciona com exclusão.
Ou seja, hoje liga o aparelho de A, por ser o primeiro a fazer conexão, amanhã liga o de B, por ser este que então primeiro conexionou.
Como tal, uma conexão exclui outra. A não ser assim, o que ocorreria na situação de várias conexões simultâneas seria que recebida uma chamada em cada um dos telefones, todos estariam ligados ao sistema e então as conversas seriam sobrepostas no sistema do carro. Dai a situação de ponto – ponto.
As demais testemunhas sobre os factos nada sabiam de concreto e de validamente aceitável em termos processuais penais.
Nenhuma outra prova foi produzida em sede de audiência.
Perante tal quadro, não tem o Tribunal meios de prova que lhe permitam chegar a uma positividade de prova, nos moldes constantes da acusação.
Assim sendo, entendemos que face à fragilidade da prova da acusação e face à situação em causa, não existe prova que permita concluir sequer pela concreta versão da mesma, pelo que estamos perante uma situação próxima de ausência de prova, o que se situa quase no além da situação do princípio da presunção de inocência dos arguidos na vertente do in dubio pro reu que neste campo sempre é chamado à colação.
O princípio in dubio pro reo tem aplicação no domínio probatório e significa que, em caso de falta de prova sobre um facto, a dúvida se resolve a favor do arguido; é justamente por isso que é no princípio da presunção de inocência, incluído pela Constituição entre as garantias do arguido em processo criminal (ar. 32º, n.º 2 CRP), que se encontra a base constitucional para a sua protecção. Este princípio, em estreita ligação com o princípio da presunção de inocência (cfr., quanto à relação entre a presunção de inocência e o in dubio pro reo, HELENA MAGALHÃES BOLINA, Razão de ser, significado e consequências do princípio da presunção de inocência (artigo 32º, nº 2, da CRP), in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. LXX, 1994, págs. 440-446), assenta na ideia de que a impunidade do culpado é mais tolerável do que a condenação de um inocente (cfr. CAVALEIRO DE FERREIRA, Curso de Processo Penal, II, reimp. da Universidade Católica, Lisboa, 1981, pág. 310). Noutros termos, pode afirmar-se que é "resultante de dois postulados processuais – o postulado processual geral da exigência dirigida ao juiz de decidir sempre (...) e o postulado processual criminal que tem por incondicionalmente inadmissível uma condenação penal em que se não tenha 'convencido' o réu da sua efectiva responsabilidade e culpabilidade" (cfr. CASTANHEIRA NEVES, Sumários de processo criminal, policop., Coimbra, 1968, págs. 55-56). Assim, decorre do in dubio pro reo que "todos os factos relevantes para a decisão (quer respeitem ao facto criminoso, quer à pena) que, apesar de toda a prova recolhida, não possam ser subtraídos à 'dúvida razoável' do tribunal, também não possam considerar-se como 'provados'" (cfr. FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, I, reimp., Coimbra, 1984, pág. 213).»
Os Tribunais, por via dos juízes, são quem está constitucionalmente legitimado para administrar a justiça em nome do povo, e julgam de acordo com factos concretos e provas trazidas à audiência. Não julgam, e esperemos que nunca se altere tal, para bem de toda a sociedade, com base em suposições e em meras arrelias e criação de interesses, quantas vezes de carácter menos importante. Daí que fazendo a correlação de toda a prova o Tribunal não se convenceu da prática dos factos por parte do arguido nos moldes constantes da acusação, pois, a prova da mesma não é suficiente nem convincente.
Como afirma Sentís Melendo, citado por Miguel Machado (in O princípio in dubio pro reo e o novo CPP, ROA 49, págs. 583-611, em especial, 608) a "suspeita, dúvida, certeza, evidência, são as etapas de um caminho até à verdade" (também, VAZ SERRA, Provas - Direito Probatório Material -, in BMJ separata, 1962, 22), o que, logicamente é da natureza das coisas, do mesmo modo que não dá o Tribunal «saltos no escuro», antes perante a dúvida se rege por critérios de normalidade, os quais passam pelo recurso ao princípio da presunção de inocência do arguido e ao in dubio pro reu.
Com esta via, obviamente, está o Tribunal a reconhecer que não logrou aceder à prova positiva dos factos imputados ao arguido tal qual, ou ainda que em parcialidade, a constante da acusação, e não o fez também porque não logrou obter encaixe em todas as peças que, não sendo obviamente situações de presunções ou situações de dúvida sobre factos, se encaixariam em raciocínios lógico-dedutivos, ou demonstrativos, elaborados a partir de «indícios» ou factos indirectamente relevantes para alcançar a verificação dos «factos juridicamente relevantes». A esse patamar não logrou chegar o Tribunal. Por isso, tal como refere Karl Engisch (in Introdução ao pensamento Jurídico, pág. 87), “como a maioria das acções puníveis, no momento do processo, estas apenas são apreensíveis pelo tribunal através de diferentes manifestações (ou efeitos) posteriores. Daí que são principalmente as regras da experiência e as conclusões logicamente muito complexas que tornam possível a verificação dos factos”. No confronto das provas obtidas, mesmo por recurso aos tais processos lógicos, não pode o Tribunal obter a positividade da prova, desde logo porque não superou a dúvida vivida pelo confronto de depoimentos: ficou-se, pois, pelo in dubio pro reu.
De facto perante a prova outra solução não pode ser aplicada.
A matéria de facto dada como não provada, quanto ao PIC, resultou da ausência de produção de prova sobre a mesma, conjugada com a incompatibilidade da mesma com a matéria de facto dada como provada.
Atenderam-se aos documentos juntos aos autos.”.

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2. Apreciando.
Dispõe o artigo 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal (- Diploma a que se referem os demais preceitos legais citados sem menção de origem.) que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Por isso é entendimento unânime que as conclusões da motivação constituem o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso( - Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, volume III, 2ª edição, 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 7ª edição, 107; Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 17/09/1997 e de 24/03/1999, in CJ, ACSTJ, Anos V, tomo III, pág. 173 e VII, tomo I, pág. 247 respectivamente.), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso( - Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado no Diário da República, Série I-A, de 28/12/1995.).
Assim, atentas as conclusões formuladas pela recorrente( - Diga-se aqui que são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar – Germano Marques da Silva, obra citada, pág. 335; Daí que se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões – Simas Santos e Leal Henriques, obra citada, pág. 107, nota 116.) ( - Diga-se ainda que o texto recursório se apresenta bastante confuso, como, aliás, bem assinala o Ministério Público na resposta, estando as conclusões longe de ser proposições sintéticas que emanam naturalmente do que se expôs e considerou ao longo da alegação – cfr. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, volume V, pág. 359.), importa, em primeiro lugar, apreciar a questão da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto e, caso esta questão seja decidida afirmativamente, apurar se os arguidos devem ser condenados pela prática dos crimes lhes foram imputados bem como no pedido de indemnização civil.
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2.1 – Da impugnação da matéria de facto
Nos termos do disposto no artigo 428.º os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito.
Uma vez que no caso em apreço houve documentação da prova produzida em audiência, com a respectiva gravação, pode este tribunal reapreciar em termos amplos a prova, nos termos dos artigos 412.º, n.º 3 e 431.º, b), ficando, todavia, o seu poder de cognição delimitado pelas conclusões da motivação do recorrente.
Alega a recorrente que os factos constantes da 1ª conclusão deveriam ser dados como assentes e o arguido deveria ser condenado pela prática dos crimes de injúria e ameaça de que vinha acusado, assim como alega que deveria ser dada como assente a matéria que indica na conclusão 23ª e a arguida condenada pela prática do crime de injúria.
Como é sabido a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, no que se convencionou chamar de “revista alargada”, ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, nºs 3, 4 e 6.
No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do referido artigo 410.º, cuja indagação, como resulta do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos estranhos àquela, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento( - Cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal, Anotado, 10ª edição, pág. 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., pág. 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recurso em Processo Penal, 6ª ed., págs. 77 e segs.).
No segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4 do art. 412.º.
Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.
O recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados.
Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa( - Cfr. Acórdãos do S.T.J. de 14 de Março de 2007, de 23 de Maio de 2007e de 3 de Julho de 2008, disponíveis em www.dgsi.pt/jstj.).
Justamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deve expressamente indicar, impõe-se a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o artigo 412.º, n.º 3, o seguinte:
«Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.»
A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados.
A especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.
A especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artigo 430.º).
Por outro lado, estabelece o n.º 4 do artigo 412.º que, havendo gravação das provas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 6 do artigo 412.º).
Expostas estas breves considerações sobre o sentido e alcance da impugnação ampla da matéria de facto, assim como sobre os ónus impostos à recorrente, torna-se evidente que estes não foram observados como se constata da leitura quer da motivação, quer das conclusões do recurso.
Na verdade, se dúvidas não há que a recorrente indicou os pontos de facto que entendeu incorrectamente julgados, o mesmo não ocorre com o ónus de indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação por referência ao consignado na acta, nos suportes técnicos, posto que, tendo sido gravadas as provas orais, em parte alguma da motivação especifica por referência aos suportes técnicos as que impõem decisão diversa, isto é, não indica a localização (início e termo) da gravação das declarações através das quais fundamenta a sua discordância relativamente aos pontos de facto que considera incorrectamente julgados.
Embora tivesse indicado prova, nomeadamente as suas declarações e os depoimentos de duas testemunhas, que, no seu entender, deveriam levar a decisão diferente do tribunal recorrido, a recorrente não indicou as passagens ou os concretos segmentos das declarações e dos depoimentos que tivessem a virtualidade de fazer inverter a decisão proferida sobre a matéria de facto – a alínea b) do n.º 3 do artigo 412.º reporta-se a provas que imponham decisão de facto diversa( - Como se diz no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Julho de 2006, www.stj.pt, com este normativo “visou-se, manifestamente, evitar que o recorrente se limitasse a indicar vagamente a sua discordância no plano factual e a estribar-se probatoriamente em referências não situadas, porquanto, de outro modo, os recursos sobre a matéria de facto constituiriam um encargo tremendo sobre o tribunal de recurso, que teria praticamente em todos os casos de proceder a novo julgamento na sua totalidade. Terá, pois, de se ir para uma exigência rigorosa na aplicação destes preceitos”.).
Ao discorrer sobre a apreciação da prova, fazendo apelo a tais declarações e depoimentos, a recorrente dispensou-se de indicar os concretos excertos em que se funda a impugnação, assim como também não os indica por referência aos suportes técnicos de forma específica e individualizada.
Essa especificação não se confunde com a transcrição, parcial ou completa, das declarações por si prestadas, assim como dos depoimentos das testemunhas, como se limitou a fazer a recorrente, quer no corpo da motivação, quer nas próprias conclusões de recurso.
Aliás, o legislador do Código de Processo Penal de 2007, através da Lei n.º 48/07, de 29/8, abandonou a transcrição da audiência de julgamento para pôr termo a uma das principais razões de morosidade na tramitação do recurso; o recorrente pode transcrever as passagens mas não é obrigado; o tribunal “ad quem” é que procede à audição ou visualização das passagens indicadas e outras que, porventura, repute relevantes, clarificou o legislador na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 109/X que precedeu a Lei n.º 48/07, de 29/8.
Assim, a prova não deve ser transcrita, devendo o tribunal de recurso proceder ao controlo desta prova por via da audição ou da visualização dos registos gravados (artigo 412.º, n.º 6), com base na indicação pelo recorrente das passagens da gravação em que funda a impugnação (artigo 412.º, n.º 4), sendo para esse efeito postas à disposição dos sujeitos processuais que o requeiram cópias da gravação (artigo 101.º, n.º 3).
A recorrente não cumpriu, portanto, o ónus de impugnação especificada, apesar de o programa de reprodução da gravação da prova oralmente produzida em audiência de julgamento, auto-executável a partir de suporte informático (CD), no qual foram gravadas quer as suas declarações quer os depoimentos das testemunhas, apresentar todos os elementos necessários à indicação com a maior precisão dos segmentos de prova seleccionados, a saber: número e tipo de processo; data; identificação da diligência, do magistrado que preside, do funcionário que auxilia, nome do declarante, data e hora do início das declarações, econometria integral do andamento das mesmas, ao segundo.
Assim, cada parte seleccionada da gravação pode ser facilmente identificada com indicação da hora, minuto e segundo de início e da hora, minuto e segundo de termo( - A referência aos suportes magnéticos só se cumpre com a indicação do número de voltas do contador, se a gravação tiver sido feita em cassete, ou do momento, tempo, se gravadas em CD, em que se encontram as passagens dos depoimentos gravados que impõem diferente decisão ou do tempo correspondente ao início e ao fim de cada depoimento – cfr. Acórdão da Relação do Porto de 19/5/2010, Proc. n.º 179/04.2IDAVR.P1. ).
Salienta-se ainda que a remissão para os suportes técnicos não é a simples remissão para a totalidade das declarações prestadas mas para os concretos locais da gravação que suportam a tese do recorrente.
Como se afirma em aresto da Relação de Coimbra “...ao determinar o n.º 6, do art.º 412º que "no caso previsto no n.º 4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas (...)", se terá que concluir que as concretas provas terão de corresponder a segmentos das declarações ou do depoimento e não a toda a extensão dos mesmos”( - Acórdão de 21/7/2009, Proc. 407/07.2GBOBR.C1.).
A referência aos suportes magnéticos torna-se necessária à praticabilidade do confronto da gravação com as indicadas passagens da prova gravada em que se funda a impugnação e com os pontos controversos da matéria de facto que se pretende ver alterada.
Por isso que o artigo 412.º, n.º 4 refere que “as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação”, acrescentando o n.º 6 do mesmo preceito que [no caso previsto no n.º4] o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.
A argumentação da recorrente denota a intenção de expor ao tribunal de recurso a “sua” convicção quanto à produção da prova, ou seja, pretende que o tribunal de recurso homologue a sua visão dos factos, em substituição da convicção alcançada pela primeira instância, pretensão legítima mas que está sujeita ao ónus de impugnação especificada nos termos do artigo 412.º, nºs 3 e 4.
O que bem se compreende pois o recurso não é um novo julgamento mas um mero instrumento processual de correcção de concretos vícios praticados e que resultem de forma clara e evidente da prova indicada.
Como tem sido repetidamente afirmado, a garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto não se destina a assegurar a realização de um novo julgamento, de um melhor julgamento, mas constitui apenas remédio para os vícios do julgamento em 1.ª instância( - Cfr. Germano Marques da Silva, Código de Processo Penal, vol. II, Lisboa 1999, pág. 65; Cunha Rodrigues, Recursos, in O Novo Código de Processo Penal, Jornadas de Direito Processual Penal, Coimbra, 1989, pág. 393; José Manuel Damião da Cunha, A estrutura dos recursos na proposta de Revisão do CPP - Algumas Considerações, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 8º, fasc. 2, Abril/Junho 1998, págs. 259-260; Vínicio Ribeiro, Código de Processo Penal, Notas e Comentários, Coimbra, 2008, págs. 848-849; na jurisprudência, os Acórdãos do TC n.º 59/2006, 677/99, 322/93, 124/90, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt e, entre outros, os Acórdãos do STJ de 11-11-2004, Proc.º n.º 04P3182, de 17-2-2005, Proc.º n.º 04P4324, de 17-3-2005, Proc.º n.º 05P129, 15/12/2005, Proc. 2951/05, de 23-3-2006, Proc.º n.º 06P547, de 20-7-2006, Proc.º n.º 06P2316, de 10/1/2007, Proc. 06P3518, de 31-5-2007, Proc.º n.º 07P1412, disponíveis in www.dgsi.pt/jstj e de 18-10-2006, in CJ, ACSTJ, ano XIV, tomo 3, pág. 210.) ( - «(…) O julgamento em 2ª instância não o é da causa, mas sim do recurso e tão só quanto às questões concretamente suscitadas e não quanto a todo o objecto da causa, em que estão presentes, face ao Código actual, alguns apontamentos da imediação (somente na renovação da prova, quando pedida e admitida) e da oralidade (através de alegações orais, se não forem pedidas e admitidas alegações escritas)» - Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 59/2006, de 18/01/2006.).
A apreciação da prova no julgamento realizado em primeira instância beneficiou de claras vantagens de que o tribunal de recurso não dispõe: a imediação e a oralidade. E constitui uma manifesta impossibilidade que a segunda instância se substitua, por inteiro, ao tribunal recorrido, através de um novo julgamento.
Daí a necessidade de impugnação especificada com a devida fundamentação da discordância no apuramento factual, em termos de a prova produzida, as regras da lógica e da experiência comum imporem diversa decisão.
Assim, sendo certo que a recorrente não cumpriu o ónus de impugnação especificada a que estava vinculada, refira-se que tal omissão não dá lugar a qualquer convite ao aperfeiçoamento das conclusões de recurso já que as deficiências afectam o próprio corpo da motivação, ou seja, não estamos perante deficiências relativas apenas à formulação das conclusões mas perante deficiência substanciais da própria motivação.
Neste caso, quando o corpo das motivações não contém as especificações exigidas por lei, já não encontramos insuficiência das conclusões mas sim insuficiência do recurso com a cominação de não poder a parte afectada ser conhecida( - Acórdão da Relação de Coimbra de 25/6/2008, disponível em www.dgsi.pt/jtrc. ).
A situação em presença é inteiramente similar àquela que levou o Supremo Tribunal de Justiça a referir que o «convite ao aperfeiçoamento conhece limites, pois que se o recorrente no corpo da motivação do recurso se absteve do cumprimento daquele ónus, que não é meramente formal, antes com implicações gravosas ao nível substantivo, não enunciou as especificações, então o convite à correcção não comporta sentido porque a harmonização das conclusões ao corpo da motivação demandaria a sua reformulação, ao fim e ao cabo, contas direitas, inscreveria um novo recurso, com novas conclusões e inovação da motivação, precludindo a peremptoriedade do prazo de apresentação do direito ao recurso»( - Acórdão do STJ de 31/10/2007, disponível em www.dgsi.pt/jstj.).
Neste sentido se pronunciou também o Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 259/2002, ao referir “quando a deficiência de não se ter concretizado as especificações previstas nas alíneas a), b) e c), do n.º 3 do art. 412º, do CPP, reside tanto na motivação como nas conclusões, não assiste ao recorrente o direito de apresentar uma segunda motivação, quando na primeira não indicou os fundamentos do recurso ou a completar a primeira, caso nesta não tivesse indicado todos os seus possíveis fundamentos.”( - Acórdão de 18/6/2002, publicado no D.R., II Série, de 13/12/2002.).
A haver despacho de aperfeiçoamento, quando o vício seja da própria motivação equivaleria, no fundo, à concessão de novo prazo para recorrer, o que não pode considerar-se compreendido no próprio direito ao recurso.
Seguindo esta orientação, que se perfilha, o Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 140/2004, veio uma vez mais proclamar que não é inconstitucional a norma do art. 412.º n.º 3, al. b) e n.º 4, do CPP quando interpretada no sentido de que a falta, na motivação e nas conclusões de recurso em que se impugne matéria de facto, da especificação nele exigida tem como efeito o não conhecimento desta matéria e a improcedência do recurso, sem que ao recorrente tenha sido dada oportunidade de suprir tais deficiências( - Acórdão de 10/3/2004, publicado no D. R., II Série, de 17/4/2004.).
Para além disso, refira-se que se a decisão factual do tribunal recorrido se baseia numa livre convicção objectivada numa fundamentação compreensível e naquela optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção - obtida com o benefício da imediação e da oralidade - apenas pode ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum.
Não basta, pois, que o recorrente pretenda fazer uma “revisão” da convicção obtida pelo tribunal recorrido por via de argumentos que permitam concluir que uma outra convicção “era possível”, sendo imperiosa a demonstração de que as provas indicadas impõe uma outra convicção.
Torna-se necessário que demonstre que a convicção obtida pelo tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica, uma impossibilidade probatória, uma violação de regras de experiência comum, uma patentemente errada utilização de presunções naturais, ou seja, que demonstre não só a possível incorrecção decisória mas o absoluto da imperatividade de uma diferente convicção.
Tudo isto vem para se dizer que, no caso, inviabilizada que está a apreciação da prova oralmente produzida em audiência pelas razões supra expostas, examinada a restante prova indicada pela recorrente, não resulta da sua análise crítica razão válida para alterar o decidido relativamente ao episódio 2.
Não acompanhamos a decisão recorrida quando sustenta que o regime a aplicar a uma mensagem de voz, em que o emitente sabia que a mesma ficaria guardada, é o que regula as escutas telefónicas e as intercepções de outras conversações de outras conversações ou comunicações (artigos 187.º e segs.).
O que a norma do artigo 189.º prevê e regula por remissão para os artigos
antecedentes é a intercepção e a gravação da transmissão das conversações ou comunicações efectuadas por qualquer meio diverso do telefone, designadamente pelo correio electrónico ou por outras formas de transmissão de dados por via telemática.
Como em qualquer outra comunicação, também as comunicações por via
electrónica ocorrem durante certo lapso de tempo. Começam quando entram na rede e acabam quando saem da mesma. É a sua intercepção neste lapso de tempo o objecto do preceito.
Quando o momento do seu recebimento já pertence ao passado, qualquer contacto com a comunicação feita não tem qualquer correspondência com a ideia de intercepção a que se reportam os artigos 187.º a 190.º.
As mensagens que, depois de recebidas, ficam gravadas no receptor deixam de ter a natureza de comunicação em transmissão.
Nesta perspectiva, são comunicações recebidas, pelo que deverão ter o mesmo tratamento da correspondência escrita já recebida e guardada pelo destinatário.
Tal como acontece na correspondência efectuada pelo correio tradicional, diferenciar-se-á a mensagem já recebida mas ainda não aberta da mensagem já recebida e aberta.
A mensagem recebida em telemóvel, atenta a natureza e finalidade do aparelho, é de presumir que uma vez recebida foi lida pelo seu destinatário.
Deste modo, na sua essência, a mensagem mantida em suporte digital depois de recebida e lida terá a mesma protecção da carta em papel que tenha sido recebida pelo correio e que foi aberta e guardada em arquivo pessoal.
Tratando-se de meros documentos escritos, estas mensagens não gozam de aplicação do regime de protecção da reserva da correspondência e das comunicações( - Cfr., neste sentido, Acórdãos da Relação do Porto de 19/6/2002, CJ, Ano XXVII, Tomo III, pág. 218, da Relação de Coimbra de 29/3/2006 e da Relação de Lisboa de 15/7/2008, estes disponíveis em www.dgsi.pt.).
Aliás, importa distinguir entre meios de prova, cuja regulamentação consta dos artigos 128.º e seguintes, e meios de obtenção de prova, cuja disciplina consta dos artigos 171.º e seguintes, todos do Código de Processo Penal.
Um registo de voz é um documento, no sentido de uma declaração corporizada num suporte técnico (artigos 164.º do CPP e 255.º, a) do CP), que pode ser obtido através de um processo de escuta telefónica ou de outro tipo de intercepção de conversações ou comunicações entre ausentes ou entre presentes (artigos 187.º e 190.º), ou através de qualquer outro processo técnico.
No caso em apreço, o registo não resultou de qualquer ordem judicial mas de um acto de alguém que, voluntariamente, pretendeu que a sua voz ficasse registada no sistema de gravação do telefone de outra pessoa para que a mensagem pudesse ser ouvida por ela num momento posterior e, eventualmente, conservada.
Nenhum fundamento existe, portanto, para aplicar ao processo que permitiu a sua obtenção o regime previsto nos artigos 187.º e seguintes para a intercepção e gravação de conversações ou comunicações telefónicas.
A danosidade social que as escutas acarretam, que justificam o regime estabelecido na lei, não existe numa gravação voluntária da voz promovida pelo titular dos bens jurídicos que com ela podem ser postos em causa( - Cfr. Acórdão da Relação de Lisboa de 5/2/2003, CJ, Ano XXVIII, Tomo I, pág. 134.).
Não sendo a gravação ilícita, nomeadamente nos termos do artigo 199.º do Código Penal, nada obsta, portanto, à sua valoração como meio de prova (artigo 167.º do Código de Processo Penal).
De todo o modo, nos termos do n.º 3 do artigo 166.º, se o documento consistir em registo fonográfico, é, sempre que necessário, transcrito nos autos, nos termos do artigo 101.º, n.º 2, podendo o Ministério Público, o arguido, o assistente e as partes civis requererem a conferência, na sua presença, da transcrição( - Conforme refere Paulo Pinto de Albuquerque, a transcrição de documento em registo fonográfico é feita pelo funcionário, no prazo mais curto possível, devendo a entidade que presidiu ao acto certificar-se da conformidade da transcrição. O Ministério Público, o arguido, o assistente e as partes civis podem requerer a conferência, na sua presença, da dita transcrição – Comentário do Código de Processo Penal, 3ª edição actualizada, pág. 449.).
Ora, tanto quanto resulta dos autos, não foi ordenada qualquer transcrição, isto é, o conteúdo da mensagem constante do registo fonográfico não foi reduzido a escrito por funcionário nos termos do citado preceito.
O que se pode ver dos autos, designadamente do termo de juntada de fls. 32, é que a própria assistente entregou ao órgão de polícia criminal a transcrição da mensagem de voz que consta de fls. 34 bem como o respectivo CD.
Não foi, portanto, utilizado o mecanismo previsto no artigo 101.º, n.º 2, sendo certo que a transcrição de uma mensagem de voz é uma reprodução fiel, feita por escrito, do que se encontra registado por outros meios, fidelidade essa que não se compadece com o indicado procedimento.
Como refere o Ministério Público na sua resposta, a assistente fez chegar ao processo uma transcrição da mensagem de voz deixada no seu telemóvel, acompanhada de um CD com a respectiva gravação, sem que qualquer autoridade judiciária possa ter aferido a proveniência daquela gravação, desacompanhada também de qualquer documento que comprove o recebimento da chamada que deu azo a tal gravação.
A este respeito, após analisar criticamente as declarações da assistente bem como os depoimentos das testemunhas, o tribunal recorrido afirmou o seguinte:

“Ora, antes de mais, dir-se-á que inexiste um único documento que ateste a existência dos telefonemas em causa, documento essencial para se aquilatar, desde logo, sobre a veracidade da existência dos telefonemas, que não do seu teor. E tal documento podia ser obtido, mas não foi.
Por outro lado, quanto ao episódio 2 dir-se-á que não está junto aos autos qualquer trancrição válida do teor do mesmo. De facto, aceitando que se tratasse de uma mensagem de voz, em que como tal o emitente sabia que a mesma ficaria guardada, ainda assim o regime a aplicar não é diferente do aplicado às mensagens de texto, pelo que por força do artigo 189.º do CPP, sob pena de nulidade, tal meio de obtenção de prova tem que seguir certos formalismos legais, que nos autos se não verificam como cumpridos.”.

Ou seja, perante as dúvidas e reservas que lhe mereceram as declarações prestadas pela assistente bem como os depoimentos prestados pelas testemunhas acerca dos factos, o tribunal recorrido ponderou que não existe nos autos qualquer documento que ateste a existência dos telefonemas em causa - documento que considerou essencial para se aquilatar sobre a veracidade da existência de tais telefonemas -, assim como ponderou que não se encontra junta aos autos qualquer transcrição válida relativamente ao episódio 2.
Daqui resulta, portanto, que o tribunal recorrido desconsiderou o registo da mensagem de voz porque entendeu, desde logo, que não estava demonstrada a existência do respectivo telefonema e depois, no que concerne ao seu teor, porque não existe nos autos qualquer transcrição válida do mesmo, invocando, então, o regime previsto para a intercepção e gravação de conversações ou comunicações telefónicas.
Assim, conclui-se que o tribunal recorrido ponderou tal meio de obtenção de prova e se o rejeitou foi, antes de mais, porque considerou que não estava demonstrada a existência de tal telefonema em face da fragilidade da prova produzida expressa na motivação da decisão sobre a matéria de facto, o que ontologicamente prejudica o conhecimento do seu teor e relevância.
Daí que, ressalvando o devido respeito, não faça qualquer sentido determinar que o tribunal recorrido pondere a relevância do registo da mensagem de voz com as demais provas produzidas quando o próprio tribunal recorrido já concluiu, na apreciação global que fez da prova produzida, que não se encontrava sequer demonstrada a existência do respectivo telefonema por parte da arguida.
Sendo certo que a decisão proferida sobre a matéria de facto envolveu a apreciação de todo o conjunto da prova carreada para os autos e produzida, discutida e analisada em pormenor durante a audiência de julgamento com base na oralidade e imediação, obrigando não só à apreciação de todos e cada um dos vários depoimentos produzidos em audiência e avaliação da respectiva credibilidade, como ainda da prova documental constante dos autos discutida em audiência, com a intervenção da assistente e dos arguidos, assim como dos seus representantes, que sobre ela puderam exercer amplamente o contraditório, é patente que a fundamentação da matéria de facto é minuciosa e exaustiva, estruturada nos elementos de prova que referencia e analisa de forma racional, lógica e crítica, bem como nas regras da experiência que indica e não são questionadas.
De acordo com o disposto no artigo 431.º, b), havendo documentação da prova, a decisão do Tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto só pode ser modificada se esta tiver sido impugnada nos termos do art. 412.º, n.º 3, o que, como vimos, não ocorre no caso em apreço.
Na circunstância do não acatamento do ónus de impugnação especificada, tem-se entendido, como decorrência da sua própria noção( - Um ónus consiste na necessidade de observância de determinado comportamento como pressuposto de obtenção de determinada vantagem, que até pode cifrar-se em evitar a perda de um benefício ou faculdade, no caso, a de viabilizar o recurso sobre a matéria de facto.), não ocorrer o condicionalismo referido na alínea b) do artigo 431.º, tornando-se inviável a modificabilidade da decisão proferida sobre a matéria de facto, o que implica que se tenha a mesma por assente.
Donde se conclui que o recurso não pode ser conhecido enquanto impugnação ampla da matéria de facto e, por conseguinte, improcede a pretendida condenação dos arguidos pela prática dos crimes por que nestes autos vinham acusados bem como no pedido de indemnização civil contra eles deduzido.
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III – DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam os juízes desta Relação em negar provimento ao recurso interposto pela assistente e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.
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Custas pela recorrente fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC.
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(O acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.º 2 do CPP)
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Guimarães, 24 de Janeiro de 2011