COMPETÊNCIA
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
TRIBUNAL COMPETENTE
CONTRATO DE EMPREITADA DE OBRAS PÚBLICAS
SUBEMPREITADA
Sumário

I - O contrato de subempreitada celebrado entre uma empresa construtora e outra sua congénere, a quem foi entregue uma empreitada de obra pública por uma câmara municipal, não é um contrato administrativo, por não se discutir qualquer relação jurídica administrativa, mas uma relação obrigacional subjacente a normas de direito privado.
II - Os tribunais administrativos carecem de competência para julgar a acção em que aquela subempreiteira pede a condenação da empreiteira no pagamento do preço (quantias em dinheiro), invocando o incumprimento do contrato de subempreitada.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães


I – Relatório;
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A autora “V (…), Lda.” intentou contra a Ré “A (…), S.A.” a presente acção especial para cumprimento de obrigações emergentes de contrato, sob a forma de processo ordinário, pedindo a condenação desta no pagamento da quantia global de € 50.717,53, por via da prestação de serviços de construção civil à Ré na obra do Velódromo Nacional de Sangalhos, no âmbito de um contrato de subempreitada celebrado entre si, emitindo para o efeito duas facturas com datas de 30.03.2009 e 01.10.2009, nos valores de €: 17.787,06 e €: 40.247,00 respectivamente, que não foram pagas na totalidade.
A ré deduziu oposição, afirmando que a primeira factura corresponde a serviços no montante de €: 7.787,06 e já foi paga e que a segunda descreve serviços que nunca foram prestados pela requerente.
Mais alega que os serviços foram prestados pela autora numa obra denominada “Velódromo Nacional de Sangalhos”, obra esta que foi adjudicada à requerida por contrato de obras públicas, pelo que, alem do mais, tem de ser executada em prazos e condições definidos pelo dono da obra e de acordo com as instruções do mesmo, sob pena de pesadas sanções e de rescisão do contrato.
A autora replicou pugnando pela procedência da presente acção.
A ré apresentou tréplica, reafirmando, no essencial, o já constante da oposição, mais excepcionando a incompetência do tribunal civil da Comarca de Cabeceiras de Basto para conhecer e julgar a presente causa. Com o fundamento de que as partes expressamente submeteram o contrato de em questão ao regime jurídico da empreitada de obras publicas, pelo que emergindo de relação contratual estabelecida em sede de subempreitada de obras publicas, possui estreita conexão com a relação jurídico-administrativa relativa à celebração de contrato de empreitada de obras publicas entre entidade publica, e adjudicatário particular.
Após os articulados, a Mmº Juiz a quo declarou a fls. 57 e sgs., a incompetência em razão da matéria do Tribunal Judicial da Comarca de Cabeceiras de Basto para conhecer e julgar os presentes autos, por ser competente o tribunal administrativo, com o fundamento de que o litígio emerge de uma relação jurídica administrativa.

Inconformada com tal decisão, a A. dela interpôs o presente recurso, em cujas alegações formulam, em súmula, as seguintes conclusões:

I- A Mm.ª juiz “a quo”, atentas as transcrições e referências normativas que fez na sentença, decidiu o presente pleito à luz do ETAF, na redacção do Decreto-Lei n.º 129/87, de 27 de Abril – veja-se a transcrição feita na sentença do art.º 3.º, ou a alusão à al. g), do n.º 1, do art.º 51.º, ambos do ETAF para fundamentar a remessa dos autos para a jurisdição administrativa, por aí estar prevista a competência dos tribunais administrativos para a apreciação dos contratos administrativos e da responsabilidade das partes pelo seu incumprimento;
II - A al. do art.º 8.º, do diploma preambular do ETAF, da Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, que aprovou o novo ETAF, revogou aquele Decreto-Lei n.º 129/87, de 27 de Abril, pelo que a sentença padece de erro de julgamento, ao fazer a apreciação da causa ao abrigo de legislação revogada à data a que se reportam os factos, isto é, 2009;
III - No âmbito da actual legislação, a competência dos tribunais administrativos, é essencialmente definida no art.º 4.º do ETAF, e nos termos do disposto na al. f), do n.º 1, do art.º 4.º do ETAF, as questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos, reportam-se apenas às normas de direito público que regulem aspectos do respectivo regime substantivo, ou em que, pelo menos, uma das partes seja entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime de direito público, o que manifestamente, in casu, não acontece.
IV - Sendo certo que, também não é enquadrável na previsão da alínea e), pois na presente acção a questio facti está directamente relacionada com o direito privado, maxime, o cumprimento ou incumprimento das obrigações, neste caso da obrigação de pagar o preço, nos termos do disposto nos art.ºs 762.º e seguintes do Código Civil.
V - Assim, não existem dúvidas na jurisprudência administrativa e judicial quanto à competência para apreciar este tipo de questões relacionadas com o cumprimento das obrigações em contratos que, embora no âmbito da execução de obras públicas, versam sobre matéria exclusivamente privada, quedando-se para os tribunais judiciais;
VI - Assim, a sentença recorrida violou, para além de outros o disposto nos art.ºs 102.º, 102.º, 103.º, 105.º, 493.º, n.ºs 1 e 2, 494.º, al. a) e 795.º do CPC, e art.º 4.º n.º 1 al.s e) e f), art.º 2.º de CPTA, pelo que deve ser revogada.

Não houve contra alegações.


II – Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar;

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações, nos termos dos artigos 660º, nº 2, 664º, 684º, nºs 3 e 4 e 690º, nº 1, ex vi do artigo 749º, todos do Código de Processo Civil (CPC).

A única questão a apreciar é esta:
A competência para a presente acção cabe ao Tribunal “ a quo “ ou é da competência dos tribunais administrativos?
Colhidos os vistos, cumpre decidir:

III – Fundamentos;

Quanto à factualidade em causa e que releva em sede do presente recurso, remetemos para o que é descrito na parte inicial do relatório (I).

A competência do tribunal deve ser apreciada em face dos termos em que a acção é proposta, ou seja, atendendo ao pedido formulado e à respectiva causa de pedir.
No caso, a apelante/autora peticiona a condenação da recorrida no pagamento da quantia de 50.717,53€, referente a serviços de construção civil prestados e discriminados nas facturas 71.º e 117.º de 30-03- 2009 e 01-10-2009, respectivamente, no âmbito de um contrato de subempreitada celebrado entre si – a A. enquanto subempreiteira e a Ré como empreiteira.
A recorrida deduziu oposição à injunção, impugnando a dívida reclamada, afirmando que a primeira factura, cujo valor efectivo reconhece ser de €: 7.787,06, já está paga e, quanto à segunda, não reconhece tal débito, dizendo que tais serviços aí relatados não lhe foram prestados.
A presente acção funda-se assim na invocação de um direito de crédito emergente de um contrato de subempreitada de construção civil entre particulares, cuja obrigação de pagamento ainda não se mostrará cumprida.
Importa, pois, indagar qual a ordem jurisdicional competente para dirimir o litígio emergente de um contrato de subempreitada celebrado, no âmbito da execução de um contrato de empreitada de obras públicas, entre o empreiteiro (no caso a Ré) que celebrou o contrato de empreitada com o ente público (no caso, o Município de Anadia, que não é parte na acção) e a subempreiteira, a quem a Ré adjudicou parte dos trabalhos da referida empreitada (a Autora).

O tribunal recorrido - tribunal civil - entendeu que essa competência cabia aos Tribunais Administrativos, por considerar que se está perante um caso de qualificação do contrato como de empreitada de obras públicas, nos termos dos artºs 1º e 3º do Regulamento Jurídico de Empreitadas de Obras Públicas – RJEOP - ( Dec. Lei nº 59/99, de 02 de Março ), subsumindo-se à previsão normativa do artº 51º, nº 1, al. g), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF).
Começa a recorrente por se insurgir contra a decisão recorrida com o argumento de, em sede de fundamentação jurídica, se faz referência nesta ao ETAF oriundo do Dec.Lei n.º 129/84, de 27 de Abril – transcrição feita na sentença do art.º 3.º, ou a alusão à al. g), do n.º 1, do art.º 51.º, ambos do ETAF, para justificar a competência dos tribunais administrativos, quando é certo que a al. c) do art.º 8.º, do diploma preambular do ETAF, da Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, que aprovou o novo ETAF, revogou aquele Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril.
Com efeito, tem razão a recorrente, uma vez que a lei aplicável ao caso é a que deriva do novo ETAF, na redacção dada pela apontada Lei nº 13/2002.

Vejamos, então a relevância deste referido diploma.

Quer a oponente/recorrida, quer a decisão recorrida fazem apelo a um contrato de subempreitada emergente directamente de um contrato administrativo de empreitada de obras públicas - o celebrado entre a A. e a Ré.
Por seu turno, a recorrida/excepcionante invoca que, nos termos da cláusula 18.ª do dito contrato de subempreitada se estipulou que o mesmo seria regulado subsidiariamente pelo DL 59/99, de 02/03.

Num primeiro aspecto preliminar da questão diremos que nenhuma das partes, inclusive a ré/recorrida (já que era seu ónus) juntou aos autos o aludido contrato de subempreitada, pelo que se ignora se do mesmo constava e em que termos a redita clausula 18ª.
Daí que não pode a mesma relevar para a decisão em apreço: “ quod non este in actiis, non este in mundo”.
Como quer que seja, o tribunal a quo alicerça a sua decisão essencialmente na afirmação de que o contrato (que contrato? - diremos nós ) celebrado entre as partes é um contrato de empreitada de obras públicas e, como tal, um contrato administrativo, nos termos do artº 51º, nº 1, al. g) do mencionado Dec.Lei nº 129/84, que atribuía competência aos tribunais administrativos para apreciar as acções sobre contratos administrativos e sobre responsabilidade das partes pelo seu incumprimento.

Seguindo de perto o entendimento perfilhado no douto Acórdão do Tribunal de Conflitos, de 09-12-2010, Processo: 020/10, in www.dgsi.pt., diremos que o art.º 212.º, nº 3, da CRP, estatui que "compete aos tribunais administrativos e fiscais o conhecimento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas", normativo que tem tradução no art.º 1.º/1 do ETAF ( Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, onde se dispõe que “os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.”
O que quer dizer que, por um lado, a jurisdição dos Tribunais Judiciais se define por exclusão, cabendo-lhe julgar todas as acções que não sejam atribuídas a outros Tribunais – cfr. artº 211º, nº1, da Lei Fundamental, e, por outro, que o conceito de relação jurídica administrativa é decisivo para determinar a repartição de competências entre os Tribunais Administrativos e os Tribunais Judiciais, na medida em que essa repartição se faz em função do litígio cuja resolução se pede emergir, ou não, de uma relação jurídica administrativa.
Destarte, para se saber qual o Tribunal materialmente competente para conhecer da pretensão formulada pelo Autor - se o Judicial se o Administrativo - importará analisar em que termos foi configurada a causa de pedir e qual foi o pedido formulado, pois será essa análise que nos indicará se estamos, ou não, perante uma relação jurídica administrativa.
Sublinhe-se que é irrelevante o juízo de prognose que se faça relativamente à viabilidade da pretensão, por se tratar de questão atinente ao seu mérito Neste sentido, vide Acórdãos Tribunal de Conflitos de 11/7/00 (Conflito n.º 318), de 3/10/00, (Conflito n.º 356), de 6/11/01 (Conflito n.º 373), de 5/2/03, (Conflito n.º 6/02), de 29/10/2006 (Conflito n.º 18/06) e de 15/07/2007 (Conflito n.º 5/07) e do Pleno do STA de 9/12/98, rec. n.º 44.281 (BMJ 482/93) e do STJ de 21/4/99, rec. n.º 373/98 e Prof. Manuel de Andrade ”Noções Elementares de Processo Civil” pg. 88 e seg.s.. .
Cingindo-se o cerne da questão nos autos ao cumprimento ou não de um contrato de subempreitada entre particulares, nomeadamente quanto ao pagamento do preço, o Tribunal Administrativo será competente para dirimir esse conflito, se aquele contrato puder ser qualificado como administrativo, isto é, como contrato em que foi constituída, modificada ou extinta uma relação jurídica administrativa (art.º 178.º/1 do CPA) e isto porque, nos termos do art.º 4º, n.º 1, al. f) do ETAF, compete aos Tribunais Administrativos o julgamento das acções que tenham por objecto dirimir litígios que tenham por objecto “questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja um entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público.”
Aquilatando, abstracta ou genericamente, da natureza de tal tipo de contratos (já que se ignora o conteúdo do contrato em questão, por não se mostrar junto aos autos), pode sintetizar-se que não pode ser qualificado como administrativo, uma vez que através dele não se constitui, modifica ou extingue qualquer relação jurídica administrativa.
Sendo administrativas as relações estabelecidas entre duas pessoas colectivas públicas ou entre dois órgãos administrativos e aquelas em que um dos seus sujeitos (público ou privado) actua no exercício de um poder de autoridade ou no cumprimento de deveres administrativos com vista à realização do interesse público, é forçoso concluir que a relação jurídica estabelecida na referida subempreitada não goza desta característica. E isto porque nela não só não está envolvida nenhuma pessoa colectiva pública como também nenhum dos seus sujeitos - autora e ré - interveio munido de um poder de autoridade ou no cumprimento de deveres administrativos tendo em vista a realização de um interesse público – neste sentido o citado Acórdão de 09.12.2010 do Tribunal de Conflitos.
Ou seja, os elementos caracterizadores da competência dos Tribunais Administrativos - a qualidade dos sujeitos da relação jurídica litigiosa, os poderes com que nela intervêm e a finalidade que visam alcançar - não se encontrarão plasmados no enunciado contrato de subempreitada.
Tais premissas são de molde a concluir-se que o litígio entre a Autora e a Ré não decorre de um contrato administrativo Veja-se. M. Esteves de Oliveira e R. Esteves de Oliveira CPTA Anotado, vol. I, pg. 25 e seg.s.; Freitas do Amaral, Direito Administrativo III, pg. 439/440 e, entre outros, Acórdão do STA de 25/01/2005 e Acórdãos de 18.09.2007 e 19.11.2009, do Tribunal de Conflitos, respectivamente processos nºs 04/07 e 18/09, in www.dgsi.pt.
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Em suma, o único contrato que poderia ser qualificado como administrativo era o contrato de empreitada celebrado entre a Ré e o Município de Anadia (que não é parte na causa) [art.º 178.º/2/a) do CPA], mas a natureza pública deste contrato não foi comunicada à subempreitada que a Autora acordou com a Ré, ainda que nela se possa ter referido – na propalada cláusula 18ª - que se lhe aplicaria subsidiariamente o disposto no DL 59/99, de 2/03.
Logo, não se revestindo de natureza administrativa a relação jurídica objecto do contrato de subempreitada convencionado entre a autora e a ré, nem podendo tal contrato ser qualificado como contrato administrativo, conclui-se que os Tribunais Administrativos carecem de competência para dirimir o litígio que dele possa emergir.
De facto, não se descortina no art. 4º do ETAF, mormente na al. f) do seu nº 1, ou em qualquer outra norma a atribuição específica de competência à jurisdição administrativa para decidir sobre esta matéria, tal competência cabe, por força do disposto no art. 18.º n.º 1 da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, a esta ordem judiciária.
Tem sido esta a jurisprudência unânime do Tribunal de Conflitos - vd. Acórdãos de 6/10/99, (proc. n.º 44905), de 29/03/2001 (proc. n.° 366), de 18/09/2007 (proc. 4/07), de 19/11/09 (proc. 18/09) e de 17/06/2010 (proc. 29/09). - e que se pode sumariar no seguinte: “Compete aos tribunais judiciais e não aos tribunais administrativos dirimir os litígios emergentes de um contrato de subempreitada celebrado, na execução de uma empreitada de obra pública, entre o empreiteiro originário e um terceiro, uma vez que esse contrato está materialmente submetido a normas de direito privado” Ac. do Trib. De Conflitos de 09.12.2010.


Nestes termos, conclui-se não ser da competência dos tribunais administrativos a apreciação do objecto deste processo, mas sim dos tribunais comuns, sendo materialmente competente para os termos da causa o tribunal “ a quo “.
Procede, pois, a apelação.

IV – Decisão;

Em face do exposto, acordam os Juízes desta 1ª secção cível em julgar procedente o recurso e, consequentemente, em revogar a decisão recorrida nos termos sobreditos, atribuindo-se ao Tribunal Judicial da Comarca de Cabeceiras de Basto competência para conhecer e julgar a presente acção.

Custas pela apelada.


Guimarães, 3 de Fevereiro de 2011
António Sobrinho
Isabel Rocha
Manuel Bargado