Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
SEGURO DE RESPONSABILIDADE CIVIL
ANIMAL PERIGOSO
DEVER DE INFORMAÇÃO DA SEGURADORA
Sumário
“1 – Não se encontra fundamentada uma sentença que não indica e interpreta as normas jurídicas aplicáveis aos concretos factos provados.
2 - Ainda que o actual CPC não inclua uma disposição legal com o conteúdo do artº 646º n.º 4 do pretérito CPC (o qual considerava não escritas as respostas sobre matéria de direito) o princípio subjacente ao preceito não desapareceu, devendo hoje continuar a entender-se que, na fundamentação (de facto) da sentença, só os factos interessam, desprovidos de juízos conclusivos e/ou matéria de direito.
3 – Um animal que tenha mordido, atacado ou ofendido o corpo ou a saúde de uma pessoa é considerado animal perigoso.
4 - O detentor de qualquer animal perigoso é obrigado a possuir um seguro de responsabilidade civil destinado a cobrir os danos causados por este, com um capital mínimo de € 50.000,00.
5 – Não cabe nos deveres de informação de uma seguradora, alertar os seus clientes para a necessidade de celebrarem novos contratos de seguro. “
Texto Integral
Processo n.º 122786/13.6YIPRT.G1
2.ª Secção Cível – Apelação
Relatora: Ana Cristina Duarte (R. n.º 653)
Adjuntos: João Diogo Rodrigues
Anabela Tenreiro
***
Sumário:
1 – Não se encontra fundamentada uma sentença que não indica e interpreta as normas jurídicas aplicáveis aos concretos factos provados.
2 - Ainda que o actual CPC não inclua uma disposição legal com o conteúdo do artº 646º n.º 4 do pretérito CPC (o qual considerava não escritas as respostas sobre matéria de direito) o princípio subjacente ao preceito não desapareceu, devendo hoje continuar a entender-se que, na fundamentação (de facto) da sentença, só os factos interessam, desprovidos de juízos conclusivos e/ou matéria de direito.
3 – Um animal que tenha mordido, atacado ou ofendido o corpo ou a saúde de uma pessoa é considerado animal perigoso.
4 - O detentor de qualquer animal perigoso é obrigado a possuir um seguro de responsabilidade civil destinado a cobrir os danos causados por este, com um capital mínimo de € 50.000,00.
5 – Não cabe nos deveres de informação de uma seguradora, alertar os seus clientes para a necessidade de celebrarem novos contratos de seguro.
***
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
I. RELATÓRIO
Unidade Local de Saúde X, EPE requereu Injunção contra Companhia de Seguros A Plc, Sucursal em Portugal, Maria e José, pedindo a notificação dos requeridos no sentido de lhe ser paga a quantia de € 3.277,42 proveniente de cuidados médicos disponibilizados a duas utentes que foram mordidas por cão propriedade dos 2.º e 3.º requeridos, tendo estes transferido para a 1.ª requerida a responsabilidade civil pelos danos causados pelo animal.
Contestou a Companhia de Seguros A PLC – Sucursal em Portugal invocando a inconstitucionalidade material do artigo 192.º da Lei 64/2011 de 30 de dezembro e, bem assim das normas dos números 2 e 3 do artigo 1.º do DL n.º 219/99 de 15 de junho, se interpretadas no sentido de permitir a cobrança de créditos hospitalares no âmbito de uma injunção em que seja demandada outra pessoa ou entidade que não o próprio assistido, ou que não tenha celebrado com a instituição reclamante tal contrato de prestação de serviços. Consequentemente, invocou o erro na forma de processo. Quanto ao mais, declinou a sua responsabilidade, alegando que o cão não estava abrangido pelo contrato de seguro que celebrou com a ré por se tratar de um cão perigoso e, como tal, deveria ter sido feito outro seguro específico respeitante a cães perigosos, bem como que a sua dona não cumpriu os deveres especiais de vigilância e segurança a que estava obrigada. Mais acrescentou, que a apólice em causa apenas cobre os riscos até ao valor de € 14.963,94 e que se encontra pendente ação proposta por uma das vítimas em que é pedido o pagamento de indemnização no montante de € 17.768,36.
Contestaram, também, os réus José e Maria, peticionando a suspensão desta ação até que se encontre julgada outra em que se discute a responsabilidade pelos danos provocados pelo cão. Invocaram a existência do seguro e negaram a perigosidade do animal.
A autora respondeu pugnando pela improcedência das exceções.
A instância foi suspensa.
A ação intentada por uma das vítimas contra os donos do animal foi julgada parcialmente procedente, tendo estes sido condenados a pagar a quantia de € 9.868,36, acrescida de juros de mora, e intentado contra a Companhia de Seguros A ação de regresso para serem ressarcidos do que pagaram, considerando a existência do contrato de seguro.
Foi ordenada a apensação das duas ações.
Na ação apensada, a autora Maria pediu que a Ré Seguradora seja condenada a pagar-lhe:
a) A título de direito de regresso e pelos valores já pagos a quantia de € 14.092,71 (catorze mil e noventa e dois euros e setenta e um cêntimos); b) A quantia de € 2500,00 (dois mil e quinhentos euros) a título de danos morais; c) Juros de mora vencidos e vincendos sobre todas as quantias reclamadas, calculados à taxa de juro legal, contabilizados desde a citação da presente ação até efetivo e integral pagamento.
Tal ação foi contestada pela ré.
Teve lugar a audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença, que julgou improcedente o pedido de inconstitucionalidade e a exceção de erro na forma do processo e cujo teor decisório é o seguinte:
“Em face do exposto, julgo as ações em parte procedentes por provadas e, em consequência decido:
a) Condenar a Ré Companhia de seguros a pagar ao requerente Unidade Local De Saúde X em primeiro lugar a quantia de 3.277,42 € (três mil duzentos e setenta e sete euros e quarenta e dois cêntimos) acrescida dos juros de mora, à taxa legal, vencidos e vincendos a contar da data de 08/05/2011, até integral e efetivo pagamento. b) Do remanescente do capital de seguro condenar a Ré Companhia de Seguros a pagar a Autora Maria a quantia de € 9.868,36 (nove mil oitocentos e sessenta e oito euros e trinta e seis cêntimos) a título de direito de regresso pelos valores pagos acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos à taxa legal, desde a citação da presente ação até efetivo e integral pagamento. c) No mais, decido absolver os requeridos Maria e José, do pedido formulado contra si pelo Unidade Local De Saúde X”.
Discordando da sentença, dela interpôs recurso a ré Companhia de Seguros A PLC – Sucursal em Portugal, tendo finalizado a sua alegação com as seguintes
Conclusões:
1ª – Estão incorretamente julgados os factos considerados como provados na Fundamentação, de facto sob os nºs 1, 2, 3 , 13, 16, 17 e 18 (a parte que diz “o que leva os requeridos a manterem habitualmente o cão preso à corrente”). E estão incorretamente julgados na ação apensa (proc. 765/15.5T8PTL), os factos considerados provados com os nºs 20, 22, 23, 24, 28, 29, 30, 31, 37, 40, 41 (a parte que diz bom e meigo), 42, 43, 44, 45, 46, 47, 48, 49 (a parte que diz soltou-se da corrente), 50, 51 ( a parte que diz confrontada com a necessidade de contestar o processo apresentado pela sinistrada), 52, 53, 54, 55 e 56. 2ª - Os concretos meios probatórios que impõem decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnada diversa da recorrida são os seguinte:
- Apólice de seguro, doc. de fls. 127 a 132;
- Proposta para seguro, doc. de fls. 140 e 141.
- Depoimento da testemunha A. C., gravado através do sistema integrado de gravação digital, ficheiro 201702502101758_104934_2871864, sessão de 2 de maio de 2017.
- Depoimento da testemunha R. L., gravado através do sistema integrado de gravação digital, ficheiro 20170502105419_1049234_2871864, sessão de 2 de maio de 2017.
- Depoimento da testemunha João, gravado através do sistema integrado de gravação digital, ficheiro 20170502143839_1049234_2871864 (videoconferência), sessão de 2 de maio de 2017.
- Depoimento da testemunha I. B., gravado através do sistema integrado de gravação digital, ficheiro 20170502150242_1049234_2871864, sessão de 2 de maio de 2017.
- Depoimento da testemunha A. D., gravado através do sistema integrado de gravação digital, ficheiro 20170502151407_1049234_2871864, sessão de 2 de maio de 2017.
- Depoimento da testemunha M. J., gravado através do sistema integrado de gravação digital, ficheiro 20170502154719_1049234_2871864, sessão de 2 de maio de 2017.
- Depoimento da testemunha M. B., gravado através do sistema integrado de gravação digital, ficheiro 20170502161240_1049234_2871864, sessão de 2 de maio de 2017.
- Depoimento da testemunha P. E., gravado através do sistema integrado de gravação digital, ficheiro 20170606100120_1049234_2871864, (videoconferencia), sessão de 6 de junho de 2017.
- Depoimento da testemunha J. J. ,gravado através do sistema integrado de gravação digital, ficheiro 201707606101351_1049234_2871864, sessão de 6 de junho de 2017.
- Depoimento da testemunha R. J., gravado através do sistema integrado de gravação digital, ficheiro 20170606102744_1049234_2871864, sessão de 6 de junho de 2017.
- Depoimento da testemunha C. M., gravado através do sistema integrado de gravação digital, ficheiro 2017060611813_1049234_2871864, sessão de 6 de junho de 2017.
- Declarações de parte da autora Maria, gravado através do sistema integrado de gravação digital, ficheiro 20170606112324_1049234_2871864, sessão de 6 de junho de 2017. 3ª – As passagens da gravação dos depoimentos das testemunhas e das declarações de parte são as transcritas no corpo das presentes alegações com indicação dos seus tempos. 4ª – O cão “Boxer depois de ter mordido em 19 de agosto de 2008, na via pública, o corpo da M. S., atacou no dia um de novembro de 2010, na via pública, o corpo de A. C., mordeu na manhã do dia 09 de novembro de 2010, na via pública, o corpo de R. L. e nessa mesma manhã, depois de ter mordido o corpo da R. L., mordeu a seguir, na via pública, o corpo de A. C., as quais não caminhavam juntas, nem sequer próximas uma da outra.
. o cão não era conduzido pelos seus donos, não era portador de qualquer açaime e não ia seguro com trela (facto assente por acordo das partes na audiência prévia, de 12 de outubro de 2016).
. A autora Maria e marido tinham habitualmente aberto o portão da sua casa de habitação, que dá diretamente para a via pública, por cuja abertura o cão podia sair.
. Tal portão dista do alpendre onde era alojado o cão cerca de 50 metros.
. O alpendre era completamente fechado e dotado de cancela com a altura de dois metros.
. Impossível, em consequência, a saída do cão para a via pública se a cancela e portão estivessem fechados.
. O cão saia para a via pública porque tinha abertos, quer a cancela do alpendre, quer o portão de comunicação com a via pública.
. O que sucedia porque os seus donos assim o queriam –presunção natural-. Por isso e por inobservância dos deveres de cuidado e vigilância deram aqueles intencionalmente azo a que o cão constituísse um permanente perigo para ofender o corpo ou a saúde de outras pessoas. 5ª – Consequentemente, deve ser a factualidade constante na sentença alterada para não provada. E que são os iens da Fundamentação de factos seguintes:
1, 2, 3, 16 (por ser matéria conclusiva e de direito, 17 , 1ª parte, 18, desde “a quo” até preso à corrente”, 20, 22 ( a parte que diz “que cobria os riscos inerentes à qualidade de proprietários de cães, gatos ou outros animais domésticos),24 (a parte que refere “sem que nada o fizesse prever o cão soltou-se da corrente e inexplicavelmente). Com efeito se vivia em alpendre fechado, dotado de cancela, como disse a A. em declarações de parte e mesmo que se tivesse soltado de qualquer corrente, não sairia do alpendre, se a cancela estivesse fechada, nem pelo portão se este não estivesse aberto 28 , 29 (a parte que diz “para justificar tal posição”,30, 31, 34 (a expressão “por isso”, já que em declarações de parte a A. disse que mesmo não tendo já o cão, tinha outras coisas), 37,- (aliás, contraditório com o facto 22), 39, 40, 41, 42, 43, 44 (por total falta de prova), 45, 46, 47, 48, 49 (a parte que diz “o cão soltou-se da corrente”, 50, 51, 52, 53, 54, 55, 56 - E deve dar-se como provado que a A. e seu marido tinham habitualmente aberto o portão da sua casa de habitação, que dá diretamente para a via pública, por cuja abertura o cão podia sair. 6ª – O contrato de seguro titulado pela apólice …, proposto pela A. 26.07.92 (docs. de fls 140 e 141 e 127 a 132) não inclui o cão “Boxer” nem a A. alguma vez solicitou que constasse no corpo da apólice (V. a condição 815), por isso não havendo ata adicional, aliás não alegada na petição. 7ª – A responsabilidade civil pelos danos provocados por tal cão não estava transferida para a recorrente. 8ª - A apólice vigorou com o seu clausulado até ao ano da sua anulação (2014), com exclusão, porém, do cão dos presentes autos.
Relembram-se as declarações de parte da autora Maria. Embora sem cão, por ter sido abatido logo após os factos ocorridos em 09.11.2010, continuou em vigor o contrato de seguro de 1992, titulado pela acima referida apólice. “Eu também já não tinha cão, mas tinha outras coisas” disse ao minuto 00:09:37. E estando em vigor o contrato de seguro, a A. pagava os respetivos prémios. Na motivação da decisão de facto, o meritíssimo juiz “a quo” refere que a validade do seguro e eficácia nunca foi posta em causa e que a Ré seguradora nunca exigiu à autora que fizesse outro seguro por considerar o cão perigoso. Nem tinha que exigir. A iniciativa de proposta de seguro competia à A. que a poderia apresentar à recorrente ou a qualquer outra seguradora.
Na parte da sentença, “O direito”, também se afirma que “a Ré não deu conhecimento à A. que por força do primeiro sinistro, ocorrido no ano de 2008, que o animal em causa deveria ser objeto de um seguro de responsabilidade civil próprio, por a seguradora considerar o canídeo um “animal perigoso” e que a apólice vigente já não cobria eventuais danos por este causados por força do sinistro”, pelo que se verifica “ter ocorrido a violação do dever de informação imputável à Seguradora aqui ré. Assim sendo as modificações não comunicadas pela companhia de seguros não são oponíveis à A.”. E que não tendo informado a A. que a apólice contratada deixava de cobrir os danos eventualmente causados pelo animal em causa após o sinistro de 2008, não informando também de que teria de “efetuar outro contrato de apólice, especificamente para aquele animal”.
Com o devido respeito, discorda-se de tal entendimento, aliás, não alicerçado em qualquer preceito legal. 9ª -Não competia à Ré Companhia de Seguros A a função de prestar à A. informação sobre legislação e, muito menos, impor-lhe ou solicitar-lhe a celebração consigo própria de contrato de seguro de responsabilidade civil destinado a cobrir os danos causados por animal perigoso ou potencialmente perigoso. 10ª - Quem qualifica um animal como perigoso é a lei e quem obriga o detentor a possuir o respetivo seguro de responsabilidade civil pelo capital mínimo de 50.000,00 € é a mesma lei. 11ª- Em agosto de 2008 vigorava o D.L. 312/2003, de 17 de dezembro, que estabeleceu as normas aplicáveis à detenção de animais perigosos e potencialmente perigosos, enquanto animais de companhia.
O seu artº 2º, a), i), entendia por animal perigoso aquele que tenha mordido, atacado, ou ofendido o corpo ou a saúde de uma pessoa.
Esse diploma vigorou até 31 de dezembro de 2009.
Em 01 de janeiro de 2010 vigorava o D. L. 315/2009, de 29 de outubro, cujo artº 3º, b) e i) define como “animal perigoso”, aquele que tenha mordido, atacado ou ofendido o corpo ou a saúde de uma pessoa.
Tanto o artº 13º do D.L. 312/2003, como o artº 10º do D.L. 315/2009, estipulavam que o detentor de qualquer animal perigoso ficava obrigado a possuir um seguro de responsabilidade civil destinado a cobrir os danos causados por este, sendo os critérios quantitativos e qualificativos definidos por portaria.
Tal portaria é a nº 585/2004, de 29 de maio, segundo a qual o contrato de seguro de responsabilidade civil tem por objeto a garantia de responsabilidade civil dos detentores de qualquer animal perigoso e potencialmente perigoso e o capital mínimo de 50.000,00€ (arts. 1º e 3º). 12ª - O cão Boxer mordeu em 19 de agosto de 2008, o corpo duma pessoa, a M. S., atacou em 1 de novembro de 2010, o corpo de outra pessoa, a A. C., mordeu em 9 de novembro de 2010, o corpo de mais outra pessoa, a R. L., e posteriormente, nesse mesmo dia, de manhã, mordeu o corpo da já referida A. C.. 13ª - Quando atacou o corpo da A. C. em 01.11.2010, o cão tornou-se duplamente perigoso, por ter mordido o corpo da menina com deficiência, a M. S. em 19.08.2008 e por ter atacado o corpo da R. L. em 09.11.2010. 14ª - Consequentemente, sendo perigoso em 01.11.2010, quando atacou o corpo da A. C., ao morder o corpo da R. L. em 9.11.2010 e de seguida o corpo da A. C. deveria ser a autora detentora do já referido seguro de responsabilidade civil pelo capital mínimo de 50.000,00€. 15ª - E não era. 16ª – A sentença recorrida violou as normas acima referidas, bem como o disposto nos arts. 483º e 562º do Cód. Civil e ainda, o disposto no artº 607º, nº 3 e 4, do Cód. Proc. Civil, estando, por isso, ferida de nulidade a sentença.
Nestes termos deve julgar-se procedente a presente apelação em conformidade com as conclusões supra, deste modo revogando-se a sentença recorrida e absolvendo-se a apelante dos pedidos,
Com que se fará JUSTIÇA
A ré Maria contra alegou, pugnando pela manutenção da sentença recorrida.
O Sr. Juiz pronunciou-se sobre as arguidas nulidades, entendendo que as mesmas não se verificam.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata nos próprios autos e com efeito devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.
As questões a resolver prendem-se com a impugnação da decisão de facto e com a averiguação da responsabilidade da seguradora em face do contrato de seguro existente.
II. FUNDAMENTAÇÃO
Na sentença foram considerados os seguintes factos:
Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos:
Da ação especial para cumprimento de obrigações
1. A 09/11/2010, em hora que a Requerente não sabe precisar, mas antes das 11:40 horas, A. C. e R. L. passavam a pé num caminho público, sito no Lugar d…, Ponte de Lima. 2. E ao passarem em frente à residência da 2.º e 3.º Requerido José, Maria e José, sem no entanto invadir a propriedade que pertence a ambos. 3. Subitamente e sem que nada o fizesse prever, foram ambas surpreendidas por um animal de raça canina, de grande porte, que naquele dia andava à solta no referido caminho. 4. Este cão é propriedade dos 2.ª e 3.º Requeridos, que são os seus donos e legítimos proprietários. 5. O cão dos 2.ª e 3.º Requeridos atacou R. L., cravando os dentes no seu corpo, mais concretamente, mordendo a sua perna esquerda e a face anterior do seu cotovelo esquerdo. 6. O cão dos 2.ª e 3.º Requeridos atacou, ainda, A. C. cravando também os dentes no seu corpo, nomeadamente, mordendo-a na face superior externa da tíbia esquerda, seja dizer, na perna esquerda e no pé esquerdo. 7. Como consequência direta e necessária das mordeduras causadas pelo cão dos 2.ª e 3.º Requeridos, R. L. sofreu lesões, designadamente, ferimentos no joelho, na perna (exceto coxa) e tornozelo com complicações, do lado esquerdo, escoriação e ferida incisa infra centimétrica da face anterior do cotovelo esquerdo e A. C. sofreu feridas traumáticas em 1/3 da parte superior da perna esquerda, disestias da perna e lesão por esmagamento da coxa e da perna. 8. R. L. deu entrada nas instalações da Requerente, no mesmo dia 09/11/2010, às 11:40 horas, originando o episódio de urgência nº 10118060, ficando aí internada para tratamentos médicos, tendo tido alta médica a 23/11/2010. 9. E A. C. deu entrada nas instalações da Requerente, no mesmo dia 09/11/2010, às 11:35 horas, originando o episódio de urgência nº 3003356, ficando aí internada até receber alta médica a 12/11/2010. 10. Na sequência das lesões causadas pelo cão dos 2.º e 3.º Requeridos, R. L. recebeu da Requerente todos os tratamentos médicos adequados, nomeadamente, desbridamento não excisional de ferida, infeção ou queimadura, encerramento da pele e tecido-subcutâneo de locais NCOP, aplicação de outros pensos para feridas e injeção de antibiótico, foram desinfectadas feridas, foram aplicados pensos, foi ministrada medicação com Amoxicilina Ac. Clavulanico, com Paracetamol, foi ministrada uma vacina antitetânica e frequentou consultas no Centro de Saúde de 27/12/2010 a 25/01/2011 para tratamento de feridas e aplicação de pensos. 11.- Na sequência das lesões causadas pelo cão dos 2.ª e 3.º Requeridos, A. C. recebeu, também, da Requerente todos os tratamentos médicos adequados, designadamente, ficou internada para cirurgia, foram efetuadas radiologias à perna e tornozelo esquerdos, foi feito encerramento da pele e tecido-subcutâneo de locais NCOP, foi-lhe ministrada injeção de antibiótico e injeção ou infusão de substância terapêutica ou profilatic NCOP, foi feito desbridamento não excisional de ferida, infeção ou queimadura, para tratamento ambulatório. A. C. frequentou consultas externas de medicina física para reabilitação e tratamento de feridas, no Centro de Saúde, de 15/11/2010 a 30/12/2010, e entre Janeiro e Maio de 2011, para limpeza e desinfeção das feridas e mudança de pensos. 12. Na sequência de todos os tratamentos médicos prestados, a Requerente teve uma despesa no valor total de € 3.277,42, sendo que € 2.138,26 é relativo aos tratamentos de A. C. e € 1.139,16 é relativo aos tratamentos de R. L., conforme Faturas nºs 10009799, 11000667, 11003204, 11004025, 11004681, 102070131, 102070132, 10009794, 12004983. 13. À data dos factos, a responsabilidade civil pelos danos provocados pelo cão dos 2.ª e 3.º Requeridos, encontrava-se transferida para a 1ª Requerida Companhia de Seguros A, através da Apólice nº …. 14. Até à data, a 1ª Requerida Companhia de Seguros A ainda não pagou o valor em dívida de € 3.277,42, apesar de já ter sido interpelada para o fazer, pela Requerente, através de carta. 15. Tendo inclusivamente recusado qualquer pagamento. 16. Razão pela qual, deve a 1.ª Requerida Companhia de Seguros A ser condenada a pagar à Requerente o valor de € 3.277,42, acrescendo juros de mora, de € 304,58, calculados à taxa legal e contados desde 08/05/2011 e até efetivo e integral pagamento, nos termos do Decreto-lei nº 218/99, de 15 de Junho. 17. Os Requeridos têm o referido cão com o fim de lhes guardar e proteger a residência, sendo conhecido por ser feroz e capaz de atacar pessoas. 18. O que leva os Requeridos a manterem habitualmente o cão preso à corrente, não tendo, contudo, o animal preso no dia 09/11/2010, sendo que o referido cão só deixou de morder A. C. e R. L. porque entretanto surgiram algumas pessoas que, gritando, conseguiram afastá-lo.
Factos provados da ação comum (apenso A)
19.- A A. e marido José foram condenados no âmbito do processo n.º 221/11.0TBPTL – Comarca de Viana do Castelo, Ponte de Lima, Inst. Local, Sec. Comp. Gen. – J1, a proceder ao pagamento da indemnização à A. C., no montante de € 9.868,36 (nove mil oitocentos e sessenta e oito euros e trinta e seis cêntimos), acrescido dos respetivos juros, por danos causados por um cão, propriedade da A., conforme melhor consta do documento n.º 1 junto a fls. 30 a 61 da referida ação comum. 20. - Tendo a aqui A. procedido ao pagamento do montante de €.10.432,31 (dez mil quatrocentos e trinta e dois euros e trinta e um cêntimos) à referida A. C., em 23/04/2015, conforme melhor consta do documento n.º 2 junto a fls. 62, 21. - Na sentença proferida nessa ação, confirmada pelo Tribunal da Relação de Guimarães, foram dados como provados, entre outros, os factos seguintes:
a) Os réus Maria e José, à data de 09 de novembro de 2010, eram donos e legítimos proprietários de um cão da raça “Boxer”, de grande porte, que costumavam ter preso à corrente.
b) Na referida data, quando a autora passava no caminho público existente em frente à residência dos réus, foi surpreendida pelo animal, que a atacou ferozmente e mordeu-a, fixando a mandíbula na região antero-medial do terço proximal da perna esquerda, aí cravando os dentes, só a tendo deixado quando o afastaram.
c) O cão dos réus, nessa altura, não era conduzido pelos seus donos, não era portador de qualquer açaimo e não ia seguro com trela.
d) Antes de morder a autora, o referido animal, poucos minutos antes, havia mordido uma outra pessoa, de nome R. L..
e) Já anteriormente, em dia que, em concreto, não se logrou apurar, este cão atacara aquela A. C., sem, porém, ter causado danos corporais.
f) Nesse dia, o animal não era conduzido pelos seus donos – os réus –, não era portador de qualquer açaimo e não ia seguro com trela.
g) No ano de 2008, no dia 19 de Agosto, o referido cão mordeu outra pessoa, de nome M. S., em idênticas circunstâncias.
h) Os réus Maria e José e a chamada “Companhia de Seguros A PLC – Sucursal em Portugal”, no dia 18 de Agosto de 1992, celebraram um acordo, constante da apólice com o nº …, renovável anualmente, referente ao ramo “0040 Responsabilidade Civil Particular – Produção Agrícola”, com um capital máximo assegurado de €14.963,94 (catorze mil novecentos e sessenta e três euros e noventa e quatro cêntimos). 22. Efetivamente, em 09.11.2010, vigorava o contrato de seguro titulado pela apólice nº …, referente ao ramo “0040 Responsabilidade Civil Particular – Produção agrícola”, que cobria os riscos inerentes à qualidade de proprietários de cães, gatos ou outros animais domésticos no valor limite de 14.963,94€. (cfr. doc. n.º 3 junto a fls. 63 e 140 e 141 da ação especial) 23. À data do sinistro cerne dos autos de processo mencionados 19.º supra, a referida apólice de seguro encontrava-se válida e em vigor. 24. Sucede que no dia 9 de Novembro de 2011, sem que nada o fizesse prever o cão soltou-se da corrente e inexplicavelmente mordeu a A. C. e R. L.. 25. Imediatamente após tal facto, foi chamada uma ambulância ao local e a aqui A. solicitou ao canil Intermunicipal de Valimar que viesse recolher o animal. (cfr. doc. n. 4 junto a fls. 64) 26. As sinistradas foram hospitalizadas no CHAM em Viana do Castelo, tendo a aqui A. participado o sinistro à companhia de seguros, aqui Ré. 27. Sucede que, após tal participação, a companhia de seguros aqui Ré declinou a responsabilidade pela reparação do sinistro. 28. A Autora sempre pensava que estavam reunidas todas as condições para que em caso de sinistro eventualmente causado pelo animal, os danos daí decorrentes seriam cobertos pela apólice em causa. 29. Para justificar tal posição, a Ré vem referir que no ano de 2008, em 19 de Agosto, o cão de nome “boby” havia mordido outra pessoa, e que por isso, o referido cão passou a considerar-se “Animal Perigoso”. 30. A Ré seguradora em nenhum momento deu conhecimento à A., conforme lhe incumbia pelo dever de informação a que está obrigada, que após o sinistro de 2008 que o cão “boby” passava a ser considerado “ animal perigoso”, e que teria de contratar outro apólice de seguro própria para o efeito. 31. Se tal tivesse sido transmitido à A., a mesma teria optado por abater o animal de imediato, o que não fez confiando nas posições do perito e da médica veterinária. 34. A A. continuou por isso a pagar normalmente o prémio relativo à Apólice do seguro contratado com a aqui R. 36. E a Ré Companhia de Seguros A, continuou durante estes anos a receber as prestações devidas pelo contrato celebrado. 37. Contrato este exclusivamente celebrado para cobrir o pagamento de despesas originadas com a atuação do animal. 36. Nos autos de processo referidos no facto 19. supra, a A. requereu a intervenção provocada da aqui Ré, alegando a celebração do referido contrato de seguro de responsabilidade civil, e mencionado que a apólice contratada abrangia os danos causados. 38. Na contestação apresentada, a Ré alegou que aquela apólice não cobria os danos pelo referido sinistro. (cfr. doc. n.º .5 junto a fls. 67 a 72). 39. Após o sinistro ocorrido em 2008, em que o referido cão havia mordido M. S., nas mesmas circunstâncias, o cão foi avaliado por um perito da seguradora Companhia de Seguros A, aqui R. e por uma médica veterinária que concluíram pela inofensividade do animal. 40. Após tal sinistro a A. providenciou pelo reforço das condições de segurança do referido cão. 41. O referido animal sempre foi um animal bom, meigo, tinha o boletim sanitário em dia e a aqui A. estava devidamente licenciada pela junta de Freguesia para a sua detenção. ( cfr. doc. n.º 6 e 7 juntos a fls. 73 e 74). 42. A A. tinha sempre o animal preso à corrente, não por este ser um animal feroz, mas apenas porque o mesmo não podia andar solto. 43. O cão apenas andava no exterior, quando era levado para passear, mas sempre preso com a trela. 44. Perto do cão circulavam diariamente vizinhos e crianças que brincavam com ele, sem que tivesse acontecido qualquer sinistro. 45. Os RR. tomaram todas as precauções devidas de forma a evitar que o cão pusesse em risco a vida ou a integridade física de outras pessoas e que seriam exigíveis a uma pessoa normal, colocada nas mesmas condições, baseando-se exclusivamente nas informações do perito da seguradora, que informou, aquando do 1º sinistro:- o animal é inofensivo; - pode continuar alojado nas mesmas condições; - continua a vigorar a mesma apólice para cobrir os danos que venha a causar; 46. Além disso, procederam ao reforço das medidas de segurança, substituindo a coleira e colocando um cabo de aço de forma a evitar o rompimento da corrente. 47. O referido animal encontrava-se preso à corrente, devidamente afastado do caminho público, numa acomodação resguardada no interior do quintal da aqui A. 48. A referida acomodação estava devidamente vedada, com dimensões adequadas a impedir a sua fuga. 49. O cão soltou-se da corrente não era conduzido pelos seus donos, não era portador de qualquer açaimo e não ia seguro com trela. 50. A. procedeu aos seguintes pagamentos:
- € 10432,31 a título de indemnização liquidada à sinistrada A. C.; (cfr. doc. n.º 2)
- € 306,00 a título de taxas de justiça devida pela contestação (cfr. doc. n.º 11)
- € 153,00 a título de taxa de justiça devida pela intervenção provocada da companhia de seguros Companhia de Seguros A. (cfr. doc. n.º 12)
- € 204,00 a título de taxa de justiça devida pela apresentação do recurso da decisão (cfr. doc. n.º 13);
- € 204,00 a título de taxa de justiça devida pela apresentação das contra alegações de recurso, face ao recurso subordinado apresentado pela A. C.; (cfr. doc. n.º 14)
- € 204,00 a título de taxa de justiça devida pela apresentação da oposição à injunção (cfr. doc. n.º 10);
- € 492,00 + € 400,00 honorários mandatário;
- € 443,63 para pagamento da guia de conta processual. (cfr. doc. n.º 15 e 16 )
- € 1452,28 para pagamento de custas devidas ao agente de execução;
- € 245,43 custas de parte devidas à A. (cfr. doc. n.º17 ); 51. Face à recusa da Ré na assunção de responsabilidade pela reparação dos danos causados em virtude do sinistro, a A. viu-se confrontada com a necessidade de contestar o processo apresentado pela sinistrada, na qual a mesma reclamou da A. e marido, o pagamento da indemnização pelos danos sofridos pelo sinistro. 52. O que constituiu uma fonte de graves preocupações à A., com a possibilidade de virem a ser condenados naqueles autos no pagamento da indemnização à Ré. 53. O que gerou muita preocupação e mal estar no seio familiar, com receio de ter suportar o pagamento de uma quantia avultada de dinheiro, da qual os mesmos não dispunham. 54. Obrigando a A. a recorrer à ajuda de familiares, e pedir o empréstimo de tal quantia para satisfazer àquela indemnização à sinistrada. 55. O que gerou conflitos e preocupações no seio familiar 56. Fruto da situação, a aqui A. sofreu desgosto e vergonha por ter de recorrer a familiares para os ajudar monetariamente.
Factos não provados
A A. e seu marido tinham habitualmente aberto o portão da sua casa de habitação, que dá diretamente para a via pública, por cuja abertura o cão podia sair.
Insurge-se a recorrente contra a decisão de facto, designadamente, os pontos n.ºs 1, 2, 3, 13, 16, 17 e 18 desta ação e 20, 22, 23, 24, 28, 29, 30, 31, 37, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46, 47, 48, 49, 50, 51, 52, 53, 54, 55 e 56 da ação apensa e ainda o único ponto de facto não provado.
Invoca a nulidade da sentença por falta de fundamentação de facto e de direito, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea b) do CPC.
Como é sabido, a falta de fundamentação apenas conduz à nulidade da sentença, quando é absoluta, ou seja, quando inexiste, de todo.
Não é o caso dos autos, no que toca à fundamentação de facto.
Contudo, não podemos deixar de concordar com a apelante quando refere que a fixação dos factos foi efetuada sem o cuidado que seria exigível – transcrições das peças processuais que conduziram a repetições, juízos conclusivos e matéria de direito – não resultando da fundamentação o processo de formação da convicção do julgador e sendo a análise das provas muito superficial. Por outro lado, na parte intitulada “O direito”, não é indicada qualquer norma jurídica que sustente os raciocínios aí desenvolvidos. Tudo, em clara violação do disposto no artigo 607.º, n.ºs 2, 3 e 4 do Código de Processo Civil.
Vejamos, mais pormenorizadamente.
O n.º 1 dos factos provados, salvo o devido respeito, não inculca a ideia de que as duas vítimas seguiam juntas. O que aí se diz é factual e corresponde à prova produzida.
Também os n.ºs 2 e 3, pese embora alguma redação menos feliz, traduzem o que resultou da prova: que ao passarem na rua, subitamente, foram surpreendidas por um animal de raça canina, de grande porte, que naquele dia andava à solta no referido caminho. Os factos provados n.ºs 13 e 16 encerram matéria de direito e são conclusivos, pelo que serão eliminados (o facto n.º 13 resolve mesmo a questão de direito subjacente à presente ação, não devendo, por isso mesmo, constar do elenco dos factos). Relativamente à identificação do contrato de seguro, não se torna necessário acrescentar qualquer outro facto, considerando que o mesmo se encontra descrito nos factos provados n.ºs 21 h) e 22.
Quanto aos factos descritos sob os pontos n.ºs 17 e 18, apesar de se revelarem de certa forma inócuos, também não se vê que os depoimentos citados pela recorrente ponham em causa o que aí se diz, até porque o cão sendo feroz e capaz de atacar pessoas – como ficou provado, pelo menos em cinco situações diferentes – serviria, com toda a certeza para guardar e proteger a residência. Quanto ao facto de ele estar habitualmente preso, apenas a autora e a sua empregada C. M., referiram esse facto, sendo que as demais testemunhas também não podiam saber, uma vez que o alpendre onde o animal se encontrava não era visível da rua. O que releva, neste caso, é que, neste dia e nos outros em que andava na rua, o cão não estava preso, o que resulta, não só da prova, como da evidência do que se passou de seguida. Nada há a alterar, portanto, quanto a estes dois pontos.
Quanto ao facto provado n.º 20, para além de estar provado documentalmente, a apelante nada refere que possa pôr em causa este facto.
Quanto ao facto provado n.º 22, apesar de na proposta e na apólice do contrato de seguro (documentos para os quais este ponto remete), não se vislumbrar qualquer referência à cobertura de riscos inerentes à qualidade de proprietários de cães, gatos ou outros animais domésticos (aí se referindo como “coberturas suplementares por cada animal utilizado em atividade laboral (cavalos, mulas, burros, bois, etc)”, a que se acrescentou, escrito à mão “vacas leiteiras (4)”), a verdade é que as Condições Gerais e Particulares da apólice juntas pela própria seguradora a fls. 127 a 132 dos autos, referem expressamente que a apólice abrange os danos causados por animais domésticos, com exceção de gado, cavalos ou outros animais de tiro ou sela (daí a necessidade das coberturas suplementares contratualizadas), de cães polícias, cães lobos, pastores alemães ou belgas, “dobermanns”, cães de Bordéus, “danois” e cães similares – cláusula 803 das condições particulares e artigo 2.º, § 7.º das condições gerais. Daí que improceda o pedido de alteração deste ponto de facto (veja-se, aliás, que a apelante aceita que pagou a indemnização devida na primeira vez que o cão atacou uma pessoa, com base nesta apólice). O facto provado n.º 24 será eliminado, não só porque é uma repetição do que já consta dos factos provados n.ºs 1, 2 e 3, como porque não houve prova suficiente de que, nesse dia, o cão estaria preso numa corrente (aliás, no ponto n.º 18 diz-se exatamente o contrário – que no dia 09/11/2010 o animal não estava preso).
O facto provado n.º 28 resulta do que a autora transmitiu nos seus articulados e em audiência de julgamento. É apenas a posição que defende nos autos. Quanto ao facto provado n.º 29, será eliminada a parte onde se diz “Para justificar tal posição”, uma vez que o facto é apenas que a ré referiu que o cão passou a considerar-se animal perigoso depois de ter mordido outra pessoa. Os factos provados n.ºs 30 e 31, com exceção da matéria jurídica aí incluída, que será eliminada - “conforme lhe incumbia pelo dever de informação a que está obrigada” -, serão mantidos, pois a própria apelante não nega que não deu conhecimento à autora desse facto – também confirmado pela testemunha M. B., que mediou a celebração deste contrato de seguro – como porque, tal foi referido, com bastante convicção, pela autora nas suas declarações de parte e confirmado pela testemunha R. J., filho da autora, para além de resultar do facto de, após os ataques aqui em questão, a autora ter mandado abater o animal. Quanto ao ponto de facto n.º 34, a autora confirmou nas suas declarações de parte que continuou a pagar normalmente o prémio relativo a esta apólice até 2014, porque, apesar de já não ter o cão, tinha outras coisas, pelo que se elimina a expressão “por isso”. O ponto de facto n.º 37 não está provado, muito ao contrário, como já referimos supra, o contrato de seguro tinha em vista as atividades da casa agrícola da autora e permaneceu em vigor após o abate deste animal, pelo que sempre teria que passar para os factos não provados, se tivesse relevância, o que não é o caso, pelo que se elimina. Quanto aos factos n.ºs 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45 (conclusivo), 46, 47, 48 e 49, para além da absoluta falta de fundamentação, constante da sentença, no sentido da prova dos mesmos, apenas se considera provado que
40 – Após o sinistro (de 2008) a autora providenciou pelo reforço das condições de segurança do referido cão. 41 – O animal tinha o boletim sanitário em dia e a aqui autora estava devidamente licenciada pela Junta de Freguesia para a sua detenção. 46 – Os autores substituíram a coleira e colocaram um cabo de aço. 47 – O animal encontrava-se numa acomodação resguardada no interior do quintal da aqui autora. 49 – O cão não era conduzido pelos seus donos, não era portador de qualquer açaimo e não ia seguro com trela.
A estes factos apenas se referiram a autora, o seu filho e a sua empregada, sendo que a generalidade das testemunhas, aqui se incluindo o guarda da GNR e alguns vizinhos, relataram que o portão estava sempre aberto, ou pelo menos quando lá foram, ou lá passavam. A verdade é que o cão andava solto na rua, o que aconteceu várias vezes, pelo que as condições de segurança a que se referiu a autora, se tornam irrelevantes, uma vez que, apesar da coleira, cabo de aço, cancela e outros, o animal era deixado solto e ia para a rua.
Os pagamentos referidos no ponto de facto provado n.º 50, estão documentados e o maior deles foi referido pela testemunha/vítima, a quem o pagamento foi efetuado.
Quanto aos factos provados n.ºs 51 a 56, também não se vê razão para proceder a qualquer alteração. Trata-se de factos integrativos de danos não patrimoniais, que resultam da experiência comum e que, no caso, são irrelevantes, uma vez que não foram considerados na sentença, por se ter concluído que não estavam abrangidos pelas cláusulas contratuais do seguro.
Do que fica exposto resulta já que o único facto não provado deve passar para os factos provados.
Nestes termos, procede, parcialmente, a impugnação da decisão de facto introduzida pela apelante, devendo os factos provados e não provados supra transcritos da sentença, ser lidos com as alterações agora introduzidas.
Vejamos, então, agora, se o contrato de seguro referido nos factos provados, celebrado em 18/08/92 e titulado pela apólice …, cobria os eventos referidos nos autos.
Já acima referimos que a proposta de seguro – fls. 140 e 141 dos autos – tinha assinalado, apenas, como coberturas suplementares, os animais utilizados em atividade laboral (cavalos, mulas, burros, bois, etc), a que se acrescentou, escrito à mão, “vacas leiteiras (4)”, esclarecendo que se aplicam as Condições Particulares 802, 803, 804 e 815.
Ora, analisando as Condições Particulares, verifica-se que o n.º 803 refere que a apólice abrange os danos causados por animais domésticos, com exceção de gado, cavalos ou outros animais de tiro ou sela, de cães polícia, cães lobos, pastores alemães ou belgas, “dobermanns”, cães de Bordeus, “danois” e cães similares. Já o n.º 815 reporta-se a coberturas adicionais, aí se esclarecendo que a apólice abrange os danos causados pelo animal cujas características constam do corpo da apólice e/ou da acta adicional.
Assim, a apelante não tem razão quando diz que este contrato de seguro não abrangia os danos causados por animais domésticos, por não estar especificamente descrita a existência deste cão de raça “boxer”. O cão está incluído no n.º 803 das Condições Particulares da apólice, quando aí se refere “danos causados por animais domésticos” e que se aplica a este contrato por nele se fazer expressa referência a este n.º 803. A menção expressa a vacas leiteiras, apenas tem a ver com as coberturas adicionais. Só para estas (815) é necessário fazer constar expressamente da apólice ou da acta adicional as características do animal que se pretende segurar.
Aliás, da primeira vez que este animal provocou danos, a seguradora pagou os montantes devidos. Nem se diga que um cão de raça “boxer” é similar aos descritos no n.º 803, como excluídos da apólice, uma vez que todos os aí descritos são cães tidos por perigosos (ferozes), o que não é o caso de um boxer, normalmente meigo e conhecido até por ser amigo de crianças.
A lei – DL 312/2003 de 17/12, entretanto revogado pelo DL 315/2009, de 29/10, com a mesma redação, no que aqui interessa - considera potencialmente perigoso qualquer animal que, devido às características da espécie, comportamento agressivo, tamanho ou potência de mandíbula, possa causar lesão ou morte a pessoas ou outros animais, nomeadamente os cães pertencentes às seguintes raças, ou resultantes de cruzamentos com elas:
Esta mesma lei, considera perigoso qualquer animal que:
• Tenha mordido, atacado ou ofendido o corpo ou a saúde de uma pessoa;
• Tenha ferido gravemente ou morto outro animal fora da propriedade do detentor;
• Tenha sido declarado como tal pelo seu detentor à junta de freguesia da sua área de residência;
• Tenha sido considerado como tal pela entidade competente devido ao seu comportamento agressivo ou especificidade fisiológica.
Ambos os diplomas legais estipulam que o detentor de qualquer animal perigoso é obrigado a possuir um seguro de responsabilidade civil destinado a cobrir os danos causados por este, sendo que a Portaria 585/2004, de 29/05, estipulou como capital mínimo para esse seguro a quantia de € 50.000,00.
Ora, regressando ao caso dos autos, o que se verifica é que este cão, não estando incluído na lista dos potencialmente perigosos, passou a considerar-se perigoso quando, em 2008 atacou na rua e mordeu o corpo de uma pessoa – artigo 2.º,a) i) do DL 312/2003 de 17/12 e artigo 3.º, b) i) do DL 315/2009 de 29/10.
A partir dessa altura, os seus detentores estavam obrigados a celebrar um contrato de seguro de responsabilidade civil destinado a cobrir os danos causados por animal perigoso, com um capital mínimo de € 50.000,00.
Já vimos que esse seguro não existia.
E estando obrigados a contratar um seguro específico, com um capital superior, é evidente que o contrato aqui em causa, deixou de cobrir os danos provocados por esse animal que passou a considerar-se, nos termos da lei, perigoso.
Contudo, tal contrato não ficou sem objeto, pois ele se destinava, também, e sobretudo a cobrir os riscos provenientes da exploração agrícola e dos animais aí utilizados.
A questão que se coloca é a de saber se a seguradora estava obrigada a informar a detentora do animal que este, após ter atacado e mordido uma pessoa na via pública, se tinha tornado, na expressão da lei, um animal perigoso e, consequentemente, da necessidade de efetuar um novo contrato de seguro.
A esta questão o tribunal recorrido respondeu afirmativamente, apesar de, como já salientámos, não se ter baseado em qualquer norma legal.
Entendeu que foi violado o dever de informação por parte da seguradora.
Não podemos concordar.
Os deveres de informação do segurador estão previstos nos artigos 18.º a 23.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro – DL 72/2008 de 16/04 – e aí se estabelece um dever geral de esclarecimento e informação ao tomador do seguro, que o habilite à compreensão das condições do contrato (Lei do Contrato de Seguro Anotada, 2016, 3.ª edição, Almedina, anotação de Eduarda Ribeiro, pág. 101). Perante a vontade de celebrar um determinado contrato, está o segurador obrigado a esclarecer o tomador e informá-lo de todas as condições contratuais (desse contrato).
No caso dos autos, existia um contrato, plenamente válido e cuja vigência subsistiu muito para lá do sinistro recusado pela seguradora – até 2014 – porque, como se viu, era um contrato de seguro de responsabilidade civil particular – produção agrícola – que cobria outros riscos, que não apenas o de danos provocados por animais domésticos.
É certo que, nos termos do artigo 91.º da Lei do Seguro citada, durante a vigência do contrato, o segurador e o tomador do seguro ou o segurado devem comunicar reciprocamente as alterações do risco respeitantes ao objeto das informações prestadas nos termos daqueles artigos 18.º a 21.º. Trata-se, aqui, como se pode ler na anotação de Arnaldo Costa Oliveira, na obra citada, pág. 327, de deveres de informação recíproca das partes sobre actualizações ao tido em conta aquando da celebração do contrato. Não é, de novo, o caso dos autos. Veja-se que, quando o contrato foi celebrado, nem sequer ainda existia o animal em questão e o contrato subsistiu para além da sua morte, com os riscos e as coberturas constantes das suas condições particulares e gerais.
Aliás, se, para a diminuição do risco, a obrigação de comunicação é do segurador – artigo 92.º - já para o agravamento do risco, é o tomador do seguro ou o segurado que tem o dever de comunicação – artigo 93.º.
No caso dos autos, os detentores do animal, como já vimos, estavam obrigados à celebração de um novo contrato de seguro, com a finalidade específica de cobrir os danos causados por animal perigoso. Tal obrigação decorria da lei, não competindo à aqui seguradora informar os detentores do animal das obrigações a que estavam sujeitos (inclusivamente, a seguradora não é obrigada a saber se o animal continuou a pertencer aos autores, ou se foi abatido – na sequência do ataque -, ou oferecido ou vendido). Não se trata de informação acerca do contrato celebrado ou de qualquer agravamento/alteração dos riscos, mas sim, a necessidade de celebrar um novo contrato, com um clausulado diferente, com a mesma ou qualquer outra seguradora.
Procede, assim, a apelação, pelo que a sentença recorrida terá de ser revogada, indo a ré seguradora absolvida, em ambas as ações, e os réus Maria e marido José, condenados na ação principal, a pagar à Unidade Local DE Saúde X, a quantia de € 3.277,42 e juros
III. DECISÃO
Em face do exposto, decide-se julgar procedente a apelação, revogando-se a sentença recorrida que se substitui por outra que absolve a ré Companhia de Seguros A PLC – Sucursal em Portugal dos pedidos formulados em ambas as ações e condena os réus Maria e marido José no pagamento à autora Unidade Local De Saúde X – Unidade Local de Saúde X, EPE da quantia de € 3.277,42, acrescida de juros de mora, à taxa legal, vencidos e vincendos, desde 08/05/2011, até efetivo e integral pagamento.
Custas da ação principal pelos réus Maria e marido José e da ação apensa, pela autora Maria.
***
Guimarães, 8 de março de 2018
Ana Cristina Duarte
João Diogo Rodrigues
Anabela Tenreiro