PROVA PERICIAL
PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
CONTRATO DE SEGURO
SEGURO DE GRUPO
Sumário


▪. A prova pericial está, em regra, sujeita à livre apreciação do tribunal (cf. artºs. 389º do Cód. Civil e 498º do Cód. Proc. Civil) quer se trate da primeira perícia quer da segunda, vale, por inteiro, de harmonia com a máxima segundo a qual o juiz é o perito dos peritos o princípio da livre a apreciação da prova, e, portanto, o princípio da liberdade de apreciação do juiz (art.º 389 do Código Civil).

▪. Convém não esquecer o peculiar objecto a prova pericial: a percepção ou averiguação de factos que reclamem conhecimentos especiais que o julgador comprovadamente não domina (art.º 388 do Código Civil).

▪. Deste modo, à prova pericial há-de reconhecer-se um significado probatório diferente do de outros meios de prova, maxime da prova testemunhal. Mas se os dados de facto pressupostos estão sujeitos à livre apreciação do juiz – já o juízo científico que encerra o parecer pericial, só deve ser susceptível de uma crítica material e igualmente científica.

▪. Porém o juízo pericial tem que constituir sempre uma afirmação categórica, isenta de dúvidas, sobre a questão proposta, não integrando tal categoria, os juízos de probabilidade ou meramente opinativos.

▪. Por isso, quando tal não sucede, quando o perito, em vez de emitir um juízo técnico-científico claro e afirmativo sobre a questão proposta, emite uma probabilidade, uma opinião ou manifesta um estado de dúvida, devolve-se plenamente ao tribunal a decisão da matéria de facto, este decide livre de qualquer restrição probatória e portanto, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, onde deverá ter na devida conta que a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita – artº342º nº2 do C. Civil e que a dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita- artº 414º do CPC.

▪. Nos contratos de seguro de grupo em que os segurados contribuem para o pagamento, total ou parcial, do prémio, a posição do segurado é substancialmente assimilável à de um tomador do seguro individual.
Pelo que o facto de o contrato de seguro ser celebrado na modalidade de seguro de grupo não constitui um elemento que determine um diferente nível de protecção dos interesses do segurado e que prejudique a transparência do contrato.
Pelo que se deve considerar que não é oponível ao aderente, pela seguradora, a violação do devedor de comunicação de cláusulas que deveriam ter sido informadas e esclarecidas.

Texto Integral

*
- Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães –

I. RELATÓRIO

A presente ação sob a forma comum foi intentada por M. T., NIF …, e C. T., NIF …, solteiros, maiores, residentes na rua …, Esposende contra COMPANHIA DE SEGUROS A, SA, NIPC …, com sede na rua …, Lisboa, pedindo seja a Ré condenada a pagar a quantia de € 50.000,00 (cinquenta mil euros), acrescida dos juros vencidos no montante de € 1.221,92 (mil duzentos e vinte e um euros e noventa e dois cêntimos).
Para tanto, alegaram, em síntese, que: os Autores são filhos e únicos herdeiros de R. T., o qual faleceu a 02.05.2015, no estado de divorciado; à data do falecimento, vigorava o contrato de seguro celebrado entre o falecido e a Ré, onde se convencionou o pagamento de € 50.000,00 em caso de morte aos herdeiros daquele; interpelada a Ré a esse pagamento, recusou-se à sua satisfação, com o fundamento de que a situação de facto está integrada na exclusão de seguro, segundo a qual a morte derivou da ingestão de bebidas alcoólicas; no relatório de autópsia consta que o pai dos Autores apresentava a taxa de alcoolemia de 2,87 g/l + ou – 0,37 g/l; a morte resultou de acidente, não tendo o pai dos Autores praticado qualquer ato ou omissão que tenha sido causa da sua morte.
Regularmente citada, a Ré apresentou contestação, a fls. 22 a 26, onde sustentou, em súmula, que a morte foi provocada pelas alterações neurológicas induzidas pela intoxicação alcoólica de 2,87 g/l, que levaram à queda do falecido, estando excluída, por isso, do âmbito do contrato de seguro contratado, face à disposição constante das Condições Especiais da apólice previstas no artigo 4º/1, a), d).
Os Autores apresentaram resposta, a fls. 44 a 47, na qual sustentaram que a morte não foi consequente da prática de atividade ilícita por parte do falecido, mas antes da atividade de locomoção e, para além do mais, que a cláusula onde se prevê a exclusão do seguro não foi informada àquele, nem quanto à sua existência, nem quanto ao seu significado.
Foi dispensada a realização da audiência prévia, tendo-se proferido despacho saneador, a fls. 50, que afirmou a validade e regularidade da instância. Selecionou-se o objeto do litígio e estabeleceram-se os temas da prova, a fls. 50/verso a 51/verso, em termos que não mereceram reclamação das partes.
Foi realizada a audiência de julgamento com observância do formalismo legal, como consta da ata respetiva, sendo que, no seu decurso, o Tribunal determinou o aditamento ao tema da prova relativo à comunicação do teor da condição especial atinente à exclusão de seguro, tendo facultado às partes que requeressem o que tivessem por conveniente (cf. fls. 68 a 71).
No final foi proferida sentença que terminou com o seguinte dispositivo:
Pelo exposto, julgo a ação totalmente procedente e, em consequência, condeno a Ré COMPANHIA DE SEGUROS A, SA, no pagamento aos Autores M. T. e C. T. da quantia de € 50.000,00 (cinquenta mil euros), acrescida dos juros vencidos desde 10.02.2016 e vincendos até integral pagamento, às taxas de juros aplicáveis às transações comerciais.
As custas são da responsabilidade da Ré, por força do seu decaimento (cf. artigo 527º/1, /2, do C.P.Civ).
Valor da ação: o fixado a fls. 50.
Registe e notifique.
Dê pagamento à fatura de fls. 66, entrando, oportunamente, em regra de custas.

A ré descontente com a sentença apresenta recurso que termina com as seguintes conclusões:

1. O presente recurso de apelação vem interposto da Douta Sentença que, julgando procedente a presente acção, condenou a Ré “Companhia de Seguros A, S.A” a pagar aos AA. a quantia de Euros 50.000,00 mais juros vencidos desde 10.02.2016 com aplicação das taxas de juros comerciais.
2. Em síntese, o sinistro reclamado nos autos não se encontra coberto pela Apólice de seguro de vida grupo dos autos tendo em conta a Cláusula artº 4º Nº 1 d) das Condições Gerais da Apólice ou, em qualquer caso, por interpretação da Apólice no sentido de excluir a ingestão abusiva de bebidas alcoólicas em taxa superior à permitida por lei em termos de contraordenação ou crime de condução sob o efeito do álcool.
3. Da prova produzida, documental e testemunhal, demonstrou-se que as alterações neurológicas induzidas pela intoxicação alcoólica de 2,87 g/l levaram à queda do falecido e não outro qualquer factor “acidental”, como refere o Tribunal.
4. Ao contrário do entendido pelos Apelados, a morte do falecido R. T. não ocorreu independentemente da sua vontade pois foi causada por intoxicação alcoólica aguda, estado esse em que voluntariamente se colocou e de que conhecia os riscos – veja-se a referência a várias quedas na rua devido ao estado etilizado, cf. esclarecimentos ao relatório de autopsia fls.
E também ao facto de já estar medicado para o alcoolismo.
5. Com a presente Apelação pretende-se, então, a alteração da decisão sobre a matéria de facto, por erro de julgamento, do ponto 9º.
6. A MMª Juiz justifica o sentido de não provado com o argumento de que não se sabe como se desenrolou a queda do falecido R. T..
7. Diz também que não se acompanha a tese da testemunha Dr. J. S., pois, que a queda pode ter sido provocada por qualquer elemento acidental, não directamente relacionado com a ingestão de bebidas alcoólicas.
8. Ora, antes da prova testemunhal, em sede documental, com valor de prova plena, deve ter-se em atenção relatório de autópsia a fls doc. 3 junto com a Contestação:
“C – Informação: 3 – Conteúdo da Informação: Etilismo crónico de longa data. Frequentes internamentos na sequência de quedas por etilismo agudo. História de várias quedas na via pública antes da morte. J
– Discussão Pelo exame tanatológico é de admitir que a morte da mesma tenha ocorrido por hemorragia aracnóideia consequente a queda.
L – Conclusões: 1 – A pesquisa de álcool no sangue periférico de 2,87 g/l + ou – 0,37 g/l
2 – Os resultados histológicos aos fragmentos de encéfalo detectaram lesões ligeiras de hemorragia recente sub aracnóideia, a nível cardíaco sem lesões dignas de nota.
3 – Pelos achados necrópsicos e corroborado com os exames laboratoriais, tudo se conjuga no sentido de que a morte de R. T., tenha sido por hemorragia sub aracnóideia.
4 – É, pois, de concluir médico legalmente que se tratou de uma morte natural associada a queda e sob a influência do álcool.”
9. Também em sede de esclarecimentos da perícia, no âmbito da tanatologia, a fls, consta:
“1 – Segundo informação descrita pelo INEM o mesmo encontrava-se debruçado sobre a banheira e com a face dentro de um balde. Tinha sido visita (vista) no dia anterior e estava etilizado.
2 – Que a irmã da vítima o viu chegar a casa dia 1-05-2015, pelas 21.30, com aspecto de ter bebido e que dia 2-05-2015, pelas 14.30, ….
3 –Na colheita de história circunstancial da morte fornecida pela irmã M. E., a mesma referiu que o mesmo tinha hábitos alcoólicos de longa data. Que a 17-04-2015 terá tido crise associada com o álcool e que motivou o internamento no Hospital de Braga e que a 27 e 28 terá tido quedas na rua “andava bêbado.”
Sic. 4 – No exame tanatológico, a nível do hábito externo, foram detectadas e estão descritas lesões próprias de contusões a nível da face e região frontal. Existe, pois, uma sequência de história clínica, hábitos alcoólicos e zonas de contusão, que nos permitem confirmar as conclusões do respectivo relatório de autópsia. Cumpre-nos ainda esclarecer que nos alcoólicos crónicos são frequentes as hemorragias subaracnoídeas sem fratura de crânio.”
10. Se não houvesse nexo de causalidade ou influência, de acordo com o termo que consta na cláusula, entre a ingestão alcoólica aguda e a morte, não havia necessidade de se mencionar nas conclusões do relatório da autópsia “sob a influência de álcool”.
11. Não se tratou apenas de uma simples queda, como o Tribunal acaba por concluir, colocando hipóteses factuais, com matéria não alegada, de que pode qualquer outro factor acidental ter influenciado a queda.
12. Em termos testemunhais, devidamente conjugado com o relatório de autópsia atrás mencionado e esclarecimentos transcritos, remete-se para o depoimento do Dr. J. S., ouvido na sessão de julgamento de 3-04-2017 – cujo depoimento ficou registado no sistema de gravação áudio do Tribunal – entre
10.29.30 até 11.09.01 ( 00.00.001-00.39.31).
13. Remete-se para a transcrição do depoimento no corpo da alegação, ponto 2, realçando-se no entanto as seguintes partes: Dr. J. S.: … dia 4-05-2015 novamente com quadro de intoxicação alcoólica aguda desenvolve uma hemorragia subaracnoídea e vem a morrer deste quadro tendo como causa subjacente a portanto uma Intoxicação alcoólica aguda que se veio a confirmar pelo doseamento da alcoolemia. Portanto ele conclui que havia uma correspondência (havia uma correspondência) entre o quadro clínico descrito, a taxa de alcoolemia e o resultado da autópsia e perante os dados (perante os dados) da apólice conclui que o Srº António … não reunia as condições para que o seguro fosse… em termos clínicos.
14. A testemunha diz expressamente: “…A intoxicação aguda alcoólica provoca as alterações do sistema nervoso central que desencadeiam… o traumatismo e o traumatismo é que provoca a hemorragia. Portanto a hemorragia é que leva à morte.
15. Aos 8.28: … descrição das circunstâncias da morte, como o corpo é encontrado, como a morte se apresenta – tudo isto leva a concluir que a situação é desencadeada por uma intoxicação aguda alcoólica.
16. A prova testemunhal está sujeita ao princípio da livre apreciação da prova mas o relatório da autópsia e esclarecimentos não devem ser considerados como meros documentos particulares mas sim como documentos autênticos, com valor provatório especial e diferenciado.
17. E, em conjugação com o depoimento da testemunha Dr. J. S., médico especialista de medicina interna, na ausência de outros factos que inviabilizassem o estabelecimento do nexo causal ou influência entre a ingestão alcoólica e a morte do falecido R. T., deve dar-se como provado o facto 9 da Sentença.
18. Ao contrário do que consta na Douta Sentença, não se trata de comprometimento do equilíbrio em termos de regras da experiência comum, trata-se de haver prova documental e testemunhal fundamentada por critérios médico legais que foi por causa da intoxicação alcoólica aguda que o falecido sofreu alterações neurológicas que desencadearam e iniciaram o processo causal da morte.
19. Com todo o respeito que o Tribunal merece, considera-se que a Sentença contém violação aos artºs 369º, 370º e 371º do C.C., bem como do artº 607º Nº 5 do C.P.C., também desrespeitado.
20. Pelo exposto, o Tribunal deve dar como provado que o falecido pai dos AA./ Apelados que as alterações neurológicas induzidas pela gestão alcoólica de 2,87 g/l levaram à queda do falecido – facto 9 da Sentença e perante tal factualidade, mostra-se preenchida a exclusão do artº 4 Nº 1 d) das condições Gerais da Apólice.
21. A Sentença contém erro de julgamento também na parte de direito pois não decide pela aplicação directa da CLÁUSULA 4 Nº 1 D) DAS CONDIÇÕES GERAIS DA APÓLICE, isto tendo em conta que deu como não provada a matéria deduzida na resposta, pelos AA., ponto 10.
22. Ora, tratando-se de um seguro de grupo, comercializado aos balcões do próprio tomador do seguro, não directamente pela Apelante, cabe ao Banco Tomador cumprir os deveres de comunicação das condições do contrato, por aplicação do artº 78 Nº 1 do Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, que estabelece o regime jurídico do contrato de seguro.
23. Por sua vez, o falecido não solicitou quaisquer esclarecimentos à Ré – aliás, matéria não alegada.
24. Assim, por aplicação do artº 78º do RJCS, violado pelo Tribunal, não havendo matéria de facto que possa levar à imputação à Apelante da violação dos deveres de prestar esclarecimentos ao seguro comercializado no balcão do Tomador, tem-se por plenamente válida a cláusula 4/1 d) das Condições Gerais da Apólice.
25. Dada a factualidade dos autos como defende a Apelante, deve improceder a acção por aplicação da mesma cláusula.
26. Sem conceder, se não se considerar aplicável e válida a cláusula de exclusão invocada pela Apelante – artº 4º nº 1 d), das Condições Gerais da Apólice, aplicável ao caso dos autos por ter ocorrido uma morte por intoxicação alcoólica aguda, deve seguir-se a interpretação do Tribunal e não a interpretação dos Apelados.
27. Ou seja, deve a interpretação do contrato ficar limitada no sentido de que a declaração não pode valer num sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do documento, por aplicação das regras gerais dos artºs 236º e 238º do C.C.
28. Se não se aplicar a cláusula 4 1), deve, assim, interpretar-se a Apólice no sentido de excluir a cobertura do seguro quando um segurado pratica um facto determinado pela ingestão abusiva de bebidas alcoólicas, tendo de haver um nexo de causalidade entre o consumo excessivo e a causa da morte.
29. E, dada a factualidade defendida pela Apelante a respeito da influencia do álcool no iter da morte, tal situação é enquadrável na mencionada exclusão, levando igualmente à improcedência da acção.
30. Por fim, os AA peticionam juros à taxa legal, porém na Sentença consta a condenação da Apelante a pagar juros às taxas comerciais desde 10.02.2016, por se considerar que o contrato de seguro é um acto comercial, nas duas vertentes objectiva e subjectiva.
31. Atenta a qualidade dos AA. e o pedido, a haver condenação, o que não se concede, seriam devidos juros à taxa legal supletiva civil, que é de 4%, não tendo aplicação as taxas comerciais.
32. O Tribunal violou o Artigo 102º Cód. Comercial pela Redacção introduzida pelo Decreto-Lei Nº 262/1983 de 16 de Junho e alterado pelo artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de Fevereiro, que estipula que a taxa de juros comerciais só pode ser fixada por escrito e que se aplica apenas a créditos de que sejam titulares empresas comerciais, singulares ou colectivas, o que não é o caso.
33. Pelo exposto, o normativo do artº 102º do Código Comercial, foi violado pelo MMº Juiz, tendo em conta que a sua aplicação depende da existência de créditos de natureza ou origem comercial, o que não se enquadra nos factos dos presentes autos.
34. Por fim, se não se entender pela absolvição da Apelante do pedido, o que não se concede, deve sempre ser revogada a Douta Sentença na parte em que condena a Apelante a suportar juros desde 10.02.2016 à taxa comercial, substituindo-se tal taxa pela taxa de juros civis.
Pelo exposto, nestes termos e nos doutamente supridos por V. Ex.as deve ser dado provimento ao presente Recurso de Apelação, revogando-se a douta sentença recorrida, para se fazer J U S T I Ç A!


Nas contra-alegações os AA concluem que a douta decisão recorrida não enferma de qualquer erro de julgamento quanto à matéria de facto nem quanto à matéria de direito, pelo que deve ser integralmente confirmada.
TERMOS EM QUE pelo exposto, pelo mérito dos autos e pelo que doutamente será suprido, deve ao recurso ser negado provimento, confirmando-se integralmente a douta Sentença recorrida porque assim se fará J U S T I Ç A!

O recurso foi recebido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo, ao abrigo do disposto nos artºs 638º, nº 1 e 7, 644º, nº 1, al. a),645º, nº 1, al. a) e 647º, nº 1 todos do Código de Processo Civil.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

As questões a resolver, partindo das conclusões formuladas pela apelante, como impõem os artºs. 635º, nº 4, e 639º, nºs 1 e 2, do C.P.Civ, são as seguintes:

I. Verificar se a prova produzida em audiência permite extrair as conclusões de facto expressas na sentença.
II. Da eventual reanálise da qualificação jurídica em face da eventual alteração da matéria de facto assente.

III. Se deverá ser alterada a decisão propriamente jurídica da causa.


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II. FUNDAMENTAÇÃO

OS Factos:

O Tribunal recorrido considerou provada e não provada a seguinte matéria de facto:

a. Factos provados
§ Oriundos da petição inicial:
1. Da escritura de habilitação de herdeiros celebrada a 08.05.2015 consta que os Autores são os únicos filhos e herdeiros de R. T. – artigo 1º e certidão de fls. 4/verso a 5/verso;
2. Da certidão de óbito consta que R. T. faleceu no dia 02.05.2015, no estado de divorciado – artigo 2º e certidão de fls. 6.
3. Entre o falecido R. T. e a Ré foi celebrado o acordo de seguro, titulado pela apólice n.º …, com início a 16.12.2013 e termo a 16.12.20143, com as coberturas de morte e de invalidez absoluta e definitiva, sendo o capital seguro de € 50.000,00, em quaisquer dos casos – artigo 3º e documento de fls. 26/verso a 28;
4. Ocorrida a morte de seu pai, os Autores informaram a Ré desse facto, interpelando-a para o pagamento do capital seguro – artigo 4º;
5. A Ré recusou o pagamento com invocação da exclusão do seguro prevista no artigo 4º/1, d), das Condições Especiais da apólice, por carta de 11.02.2016 – artigo 5º e documento de fls. 7/verso;
6. Das Condições Gerais do acordo de seguro consta do artigo 4º/1, d) que: «1. Ficam sempre excluídos das coberturas principais e complementares deste Contrato de seguro os riscos devidos a: (…) d) Acção ou omissão da Pessoa Segura, influenciada pelo uso de estupefacientes (sem prescrição médica) ou de bebidas alcoólicas de que resulte grau de alcoolemia igual ou superior àquele que, em caso de condução sob o efeito do álcool, determine a prática de contra ordenação ou crime» - artigo 6º.
7. No relatório de autópsia médico-legal consta, quanto à quantificação de etanol em sangue, o resultado de 2,87 +- 0,37 g/l – artigo 7º.
§ Oriundos da contestação:
8. O R. T. sofreu uma queda com embate do crânio em superfície dura que desencadeou a hemorragia subaracnoídea causante da morte – artigo 8º/parte final.
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b. Factos não provados

§ Oriundos da contestação:
9. As alterações neurológicas induzidas pela intoxicação alcoólica de 2,87 g/l levaram à queda do falecido – artigo 8º/parte;
§ Oriundos da resposta:
10. A Ré informou V. R. T. do teor da condição aludida em 6 – artigo 43º.
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O Direito:
Questão prévia:
Por se tratar de manifestos lapsos de escrita, evidenciados no próprio contexto dos factos em questão, ordena-se a rectificação do ponto 3 dos factos provados e 10 dos factos não provados por forma a onde consta (…) “e termo a 16.12.20143” passar a constar “e termo a 16.12.2014”; “V. R. T. passar a constar “o R. T.””.
Retificações que assim se consideram desde já para apreciação das questões suscitadas neste recurso.
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Reponderação da Prova
A Apelante insurge-se contra este último segmento da decisão de facto apontando os seguintes fundamentos:
Com a presente Apelação pretende-se, então, a alteração da decisão sobre a matéria de facto, por erro de julgamento, do ponto 9º.
Da prova produzida, documental e testemunhal, demonstrou-se que as alterações neurológicas induzidas pela intoxicação alcoólica de 2,87 g/l levaram à queda do falecido e não outro qualquer factor “acidental”, como refere o Tribunal.
4. Ao contrário do entendido pelos Apelados, a morte do falecido R. T. não ocorreu independentemente da sua vontade pois foi causada por intoxicação alcoólica aguda, estado esse em que voluntariamente se colocou e de que conhecia os riscos – veja-se a referência a várias quedas na rua devido ao estado etilizado, cf. esclarecimentos ao relatório de autopsia fls.
E também ao facto de já estar medicado para o alcoolismo.
Relativamente ao ponto 10, mesmo que se mantenha como decidido, considera-se irrelevante para a decisão pois, tratando-se de um seguro de grupo, competia ao Banco Tomador a entrega das Condições Gerais da Apólice. E, como à Ré/ Apelante não foram solicitados esclarecimentos pelo falecido, não podem ser apontadas faltas à Apelante nessa matéria.
Deve, assim, ser aplicada por válida a cláusula de exclusão invocada – artº 4 Nº 1 d) Doc. 2 junto com a Contestação.
Assim, a acção terá necessariamente de improceder, atenta a prova do nexo causal entre a morte do falecido R. T. e a intoxicação alcoólica aguda no grau de 2,87 g/l e a exclusão da Apólice dos riscos devidos por ingestão de bebidas alcoólicas no valor mencionado.
Alegação esta que faz cumprindo os ónus impostos pelo nº 1 do art. 640 do CPC, já que:
- indicou os concretos pontos da materialidade fáctica que considera incorrectamente julgados, com referência ao que foi decidido na sentença recorrida (que fixou também a matéria de facto provada e não provada) e que corresponde ao que foi alegado na petição inicial
- e referiu os concretos meios de prova que, na sua óptica, impunham decisão diversa, tendo mesmo transcrito o que, em seu entender, disse em julgamento a testemunha cujo depoimento pretende ver reapreciados e que se mostram gravados no CD de suporte indicando as passagens da gravação aonde consta o depoimento, indicando também os concretos documentos que pretende ver reapreciados.
Vejamos:
Invoca a ré como fundamento do pedido de alteração da matéria de facto o relatório da autopsia, relatório tanatológico e depoimentos médicos.
A salientar desde já que todos estes elementos se referem ao mesmo meio de prova, à prova pericial concretamente produzida nos autos.
Consabido é que o art.º. 388º do Cód. Civil define a prova pericial, de acordo com um critério funcional, como aquela que visa a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos às pessoas, não devam ser objecto de inspecção judicial.
Em tal noção legal de prova pericial destacam-se, assim, duas notas caracterizadoras:
- A primeira é a de que a prova pericial tem por fim a percepção ou apreciação de factos, ou seja, a emissão de juízos de valor sobre factos - sendo estes juízes de valor designados por ANTUNES VARELA como juízos periciais de facto (cf. R.L.J., ano 122º, nº 3784, p. 219, 221-223) -, fundada na necessidade de conhecimentos especiais (científicos) que os julgadores não possuem;
- A segunda é a de que a prova pericial também tem lugar quando os factos relativos às pessoas não devam ser objecto de inspecção judicial, fundando-se a respectiva necessidade na preservação do pudor das pessoas.
Quanto à respectiva força probatória, a prova pericial está, em regra, sujeita à livre apreciação do tribunal (cf. artºs. 389º do Cód. Civil e 489º do Cód. Proc. Civil) quer se trate da primeira perícia quer da segunda.
Vale, por inteiro, de harmonia com a máxima segundo a qual o juiz é o perito dos peritos o princípio da livre a apreciação da prova, e, portanto, o princípio da liberdade de apreciação do juiz (art.º 389 do Código Civil).
Deste princípio decorre, naturalmente, a impossibilidade de considerar os pareceres dos peritos como contendo verdadeiras decisões, às quais o juiz não possa, irremediavelmente, subtrair-se. Uma tal conclusão só se explicaria por um deslumbramento face à prova científica de todo inaceitável e incompatível com os dados, que relativamente à pericial, a lei coloca à disposição do intérprete e do aplicador.
Agora, convém não esquecer o peculiar objecto a prova pericial: a percepção ou averiguação de factos que reclamem conhecimentos especiais que o julgador comprovadamente não domina (art.º 388 do Código Civil).
Deste modo, à prova pericial há-de reconhecer-se um significado probatório diferente do de outros meios de prova, maxime da prova testemunhal. Mas se os dados de facto pressupostos estão sujeitos à livre apreciação do juiz – já o juízo científico que encerra o parecer pericial, só deve ser susceptível de uma crítica material e igualmente científica. Deste entendimento das coisas deriva uma conclusão expressiva: sempre que entenda afastar-se do juízo científico, o tribunal deve motivar com particular cuidado a divergência, indicando as razões pelas quais decidiu contra essa prova ou, pelo menos, expondo os argumentos que o levaram a julgá-la inconclusiva (607 nº5 do CPC). Dever que deve ser cumprido com particular escrúpulo no tocante a juízos científicos dotados de especial densidade técnica ou obtidos por procedimentos cuja fiabilidade científica seja universalmente reconhecida.
Porém para que seja reconhecido o denominado efeito probatório o juízo pericial tem que constituir sempre uma afirmação categórica, isenta de dúvidas, sobre a questão proposta, não integrando tal categoria, os juízos de probabilidade ou meramente opinativos. Por isso, quando tal não sucede, quando o perito, em vez de emitir um juízo técnico-científico claro e afirmativo sobre a questão proposta, emite uma probabilidade, uma opinião ou manifesta um estado de dúvida, devolve-se plenamente ao tribunal a decisão da matéria de facto.
Este decide livre de qualquer restrição probatória e portanto, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, onde deverá ter na devida conta que a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita – artº342º nº2 do C. Civil e que a dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita- artº 414º do CPC.
Conjugando o Relatório da Autópsia com o Relatório de Anatomia Patológica – tendo em conta os segmentos transcritos nas alegações e contra-alegações – retiramos que:
- A morte sobreveio por hemorragia sub aracnóideia; morte natural como a denomina o relatório da autópsia.
Este facto é uma percepção directa da perita médica que efectuou a autópsia.
Quanto ao mais.
- Não existem elementos seguros e concretos que permitem ter-se por adquirido que essa hemorragia tenha sido consequência de uma queda;
- Não existem elementos seguros e concretos que permitem ter-se por adquirido que essa hemorragia se tenha ficado a dever ao simples facto de o segurado conter uma taxa de álcool no sangue no valor apurado:
- Ao se admitir no relatório da autópsia que a morte tenha ocorrido por hemorragia sub aracnóideia subsequente a queda”, não fica excluída a admissão de que a hemorragia possa ter tido outra causa, nomeadamente causa não traumática.
Justificamos estas afirmações da seguinte forma:
Como se pode ler no Relatório da Autópsia em:
“J. DISCUSSÃO”,
(….) (é de admitir que a morte tenha ocorrido por hemorragia aracnóideia consequente a queda…).
Também a fls. 6 do Relatório, em:
“L. CONCLUSÕES” diz-se que
“1. (…)
“2. (…)
“3. Pelos achados necrópsicos e corroborado com os exames laboratoriais, tudo se conjuga no sentido de que a morte do R. T., tenha sido por hemorragia subaracnoídea.
“4. É, pois, de concluir medico legalmente que se tratou de uma morte natural, associada a queda e sob a influência do álcool.
Do que resulta é que se a causa da morte se baseia numa percepção médica- hemorragia subaracnoídea já a causa da causa de morte - queda e sob a influência do álcool é uma conclusão que os médicos tendo por base o teor de álcool no sangue apurado (perita médica e a testemunha também médico) retiram de lhe ter sido dito pelos familiares que o Sr R. T. padecia de alcoolismo crónico e que caía muitas vezes.
Porém, como os recorridos afirmam trata-se de uma possibilidade, a par de outras possibilidades, “tal como a também adiantada possibilidade de a queda ter sido consequência de desequilíbrio espontâneo, sem interferência de qualquer elemento externo, por irregularidade da calçada em que circulava, ou qualquer das muitas causas da multiplicidade de quedas a que está sujeita qualquer pessoa, mesmo em estado de total sobriedade, ao circular na via pública”.
Atente-se ainda que, se para os médicos que neste processo intervieram o alcoolismo é um factor de risco de grande evidência na ocorrência de uma hemorragia subaracnoídea existem outras opiniões médicas que assim o não consideram.
Citam-se alguns exemplos recolhidos- para além daqueles que os recorridos citaram e confrontaram a testemunha Dr. J. S..
▪ A hemorragia espontânea geralmente resulta de ruptura repentina de um aneurisma em uma artéria no cérebro. Os aneurismas são dilatações em uma área enfraquecida da parede de uma artéria. Aneurismas ocorrem tipicamente onde uma artéria se ramifica. Os aneurismas podem estar presentes no nascimento (congênitos) ou podem se desenvolver mais tarde, depois de anos de pressão alta enfraquecer as paredes das artérias. A maioria dos episódios de hemorragia subaracnoídea espontânea resulta de aneurismas congênitos.
Menos comumente, a hemorragia subaracnoídea resulta de ruptura de uma conexão anormal entre artérias e veias (malformação arteriovenosa) no cérebro ou em torno dele. A malformação arteriovenosa pode ser congênita, mas só é identificada quando surgem os sintomas - Elias A. Giraldo, MD, MS, Department of Neurology, University of Central Florida College of Medicine.
▪ Os de maior evidência são: hipertensão arterial, tabagismo, história familiar de HSA em familiares de primeiro grau e doença renal poliquística autossómica dominante. Destacam-se também, apesar da menor evidência disponível: ingestão de bebidas alcoólicas, consumo de cocaína, síndroma de Marfan, síndroma de Ehlers-Danlos, pseudoxantoma elástico e neurofibromatose do tipo I IN Rev Port Med Geral Fam vol.32 no.4 Lisboa ago. 2016
▪ Os aneurismas surgem por uma fraqueza na parede das artérias. O paciente não costuma nascer com um aneurisma, ele o desenvolve ao longo da vida. Geralmente são precisos mais de um fator agindo concomitantemente para que um aneurisma seja formado. Entre os fatores de risco mais comuns estão:
· Tabagismo; Hipertensão; Anormalidades congênitas da parede da artéria; Endocardite infeciosa; História familiar de aneurismas cerebrais: Idade acima de 40 anos; Presença de uma malformação arteriovenosa (MAV).; Uso de drogas, especialmente cocaína; Excesso de álcool; Tumores cerebrais. trauma cranioencefálico.
Algumas doenças genéticas estão associadas a um maior risco de formação de aneurismas cerebrais. - https://www.mdsaude.com/2012/07/aneurisma-cerebral.html
Todos estamos cientes de que a ciência médica não é absolutamente exacta, resultando, em frequentes casos, o juízo médico-científico da consideração de parâmetros com algum grau de incerteza.
Veja-se, por exemplo, o caso recorrente de fracturas que obrigam a imobilização no leito, onde a ocorrência de trombo-embolia pulmonar é uma eventualidade sempre possível e frequente, sobretudo, nas semanas mais próximas do traumatismo, razão pela qual o juízo médico-científico as considera causa adequada da morte. Aqui, a incerteza é, em termos médicos, superada pela probabilidade elevada de uma fractura com imobilização favorecer a superveniência da embolia.
Mas é precisamente a inexistência, in casu, duma probabilidade elevada de a morte ter sido causada pelo alcoolismo, que não nos permite razoavelmente afastar a dúvida sobre a real causa do decesso da vítima.
Na verdade, se até a medicina não é unanime no entendimento sufragado pela recorrente não vemos como possa o julgador, que não só não dispõe de conhecimentos médicos, como até não dispõe de qualquer outro elemento probatório relevante dirigido especificamente para esta questão, ultrapassar a incerteza sobre a questão em concreto.
Já vimos que, no que a esta concreta decisão de facto respeita, o teor probabilístico e/ou dubitativo da prova pericial implicou a devolução da decisão ao tribunal sem qualquer restrição de prova, apenas sujeito ao princípio da livre apreciação da prova.
Isto dito, e revertendo à decisão acerca da matéria de facto verifica-se (fls. 191 e verso) que a Meritíssima Juiz fundamentou a sua decisão, conjugando todos os elementos de prova carreados para os autos e deixou bem claros os motivos do seu julgamento.
Da audição e análise dos depoimentos de todas as testemunhas, conjugada com a prova documental junta aos autos podemos concluir que, a convicção a que chegou o tribunal a quo quanto à matéria de facto se mostra acertada e se coaduna com a globalidade da prova testemunhal e documental carreada para os autos.
Demonstrando identificar a questão em litigio refere a Sra. Juiz que A divergência entre as partes assentou, essencialmente, sobre a causa do sinistro, em particular se ela se deveu a hemorragia provocada por queda, sendo esta devida à intoxicação alcoólica provocada pela ingestão de álcool (na taxa de 2,87 g/l).
A seguir cuidou a Sra. Juiz de esclarecer o caminho que seguiu na ponderação de toda prova esclarecendo o relevo de uma e de outra, bem como a conjugação feita.
Da informação prestada a fls. 65 resulta que as conclusões apresentadas no relatório de autópsia tiveram a ver com a história clínica (informações prestadas por familiares), zonas de contusão e hábitos alcoólicos.
No relatório de autópsia concluiu-se que «[p]elo exame tanatológico é de admitir que a morte da mesma tenha ocorrido por hemorragia sub aracnóideia consequente a queda» (cfr. fls. 57).
Tendo em conta o exposto e a existência de contusões na região frontal (vd. fls. 35/verso – exame do hábito externo), é de inferir, por presunção judicial, que a hemorragia tenha tido como causa a queda com a consequente do choque na cabeça numa superfície dura.
A questão que, a seguir, se põe é a de saber se essa queda foi causada por força do consumo de álcool. É facto que resulta das regras da experiência comum que existe comprometimento do equilíbrio com a ingestão excessiva de bebidas alcoólicas. E o grau de alcoolemia apresentado pelo falecido R. T. ultrapassa, de modo significativo, o limiar mínimo a partir do qual o legislador tipifica a circulação estradal nesse estado como crime (cfr. artigo 292º/1, do Código Penal).
No entanto, não logrou qualquer discussão ou comprovação em audiência o modo como se desenrolou essa queda. Não se obteve quaisquer elementos relativa à cena que vitimou o falecido R. T., pois que este vivia sozinho, tendo apenas sido encontrado muito mais tarde (por isso o seu corpo apresentando características de rigidez).
Perante a apontada dificuldade da questão procurou a Sra. Juiz em toda a prova produzida a verdade material possível.
Com efeito, relativamente a essa matéria, apenas foi adquirido o seguinte:

a. J. C., enfermeiro, referiu que fez uma desinfeção de escoriações dois/três dias antes da morte, por ele ter tropeçado numa calçada com paralelo. Nessa data, disse que apresentava sinais etílicos (arrastando um pouco a linguagem, mas sem afetação do equilíbrio). Mais referiu que chegou a vir mostrar-lhe a feriada e que, no dia anterior ao falecimento, não aparentava sinais de quedas;
b. J. M. foi o agente funerário que a família contactou quando encontrou o falecido, tendo aquele encontrado a vítima com o corpo debruçado na banheira, sendo percetível que a morte já tinha ocorrido há algum tempo. Tinha um balde debaixo da cabeça, com algum tipo de material, mas não tendo a certeza se seria vomitado.
Estes depoimentos, que se mostraram genuínos e prestados com base perceções diretas das testemunhas, não são, contudo, contemporâneos da queda, não permitindo, por conseguinte, alicerçar a conclusão que ela tenha sido causada por o falecido não dominar os seus movimentos.
Em sentido contrário, José, médico com especialidade em medicina interna, disse que avaliou o processo para efeitos de emissão de parecer clínico no âmbito da participação do sinistro realizada pelos familiares, tendo referido que, dos elementos que recolheu, o falecido apresentava um quadro de alcoolismo de longa duração e tinha história de episódios traumáticos. Quanto à causa da morte, acrescentou que a hemorragia teve como subjacente uma situação de intoxicação alcoólica aguda que desencadeou a queda. Nesta sequência, deu parecer no sentido de o sinistro estar excluído do âmbito de cobertura por, no seu entender, o falecido não ter salvaguardado a sua existência.
Não se acompanha a dedução efetuada pela testemunha J. S., pois que ela pode ter sido provocada por qualquer elemento acidental, não diretamente relacionado com a ingestão de bebidas alcoólicas. Como se disse, não foram adquiridos quaisquer elementos presenciais da queda e, por presunção judicial, não é, em nosso entender, desacompanhados das circunstâncias que a rodearam, efetuar essa conclusão. É que, de igual modo, são as regras da experiência comum, ancoradas na normalidade das coisas, que mostram que, inúmeras vezes, esses episódios de quedas ou doutros eventos traumáticos, podem acontecer a pessoas sem quaisquer perturbações (motivadas pela ingestão de substâncias tóxicas) e orientadas no espaço e no tempo. Poderão mais facilmente suceder a quem tem desordem de equilíbrio, mormente em razão do consumo do álcool; todavia, podem dar-se, e dão-se com frequência, acidentalmente, sem interferência de agitação provocada pelo consumo do álcool.
Nesta esteira, porque não é possível reconstituir o iter imediatamente antecedente à morte, tal impede a resposta à matéria de facto no sentido de dar como provado que a queda se deveu ao álcool ingerido.
Do exposto resulta a inconsistência da impugnação da facticidade visada pela Apelante com a consequente inexistência de qualquer vicio na decisão em apreço, impondo-se, por isso, confirmar integralmente a decisão da matéria de facto.
**

O Direito

Neste quadro, mostra-se incontroverso e não justifica considerações teóricas acrescidas, como já se mostrou para as partes (v. petição inicial e 1.º da contestação) e para as instâncias, que entre o falecido R. T. e a Ré foi celebrado o acordo de seguro, titulado pela apólice n.º …, com início a 16.12.2013 e termo a 16.12.2014, com as coberturas de morte e de invalidez absoluta e definitiva, sendo o capital seguro de € 50.000,00, em quaisquer dos casos – artigo 3º e documento de fls. 26/verso a 28”.
Por via desse contrato, a ré garantiu a cobertura, entre outros, do risco morte do segurado materializado na obrigação de pagar aos respectivos beneficiários (autores), o valor do capital seguro caso o evento infortunístico se verificasse.
Neste contexto, tendo o segurado falecido em plena vigência do contrato de seguro, verificou-se o risco garantido e incorreu, a princípio, a ré seguradora na obrigação de pagar aos autores filhos do segurado, o valor do capital seguro
Daí a presente acção.
● Argumenta a R. Seguradora na contestação que:
(…)
Pelos elementos apurados e atrás expostos, a ingestão de álcool pelo Falecido e pessoa segura foi provocada pelo próprio, contribuindo este, de forma decisiva, para o acidente.
13. O Pai dos AA. colocou-se, voluntariamente, em situação de poder vir a provocar, com toda a probabilidade, acidente, incluindo a própria morte ou grave invalidez.
14. A Morte do Pai dos AA. resultou directamente da prática de actos intencionais – ingestão de álcool na proporção de 2,87 +- 0,37g/litro – enquadráveis na previsão da contraordenação muito grave de condução sob a influência do álcool p.p. no artº 146º alínea j), praticados pelo falecido;
15. A situação em que ocorreu a morte do Pai dos AA. não se enquadra no conceito de acidente, para efeitos de funcionamento da cobertura, por aplicação da cláusula 4 exclusão artº 4º nº 1 d) das Condições Gerais Grupo do seguro de ramo vida das mesmas condições gerais das Apólices, cf doc 2 ora junto.
16. O álcool encontrado no sangue do Falecido, de 2,87 +- 0,37g/litro provocou-lhe entorpecimento, dificuldade em ficar acordado, descontrolo da parte motora, desinibição e perda de auto controlo, entre outros efeitos.
17. Numa pessoa com cerca de 70 Kg, como o falecido, uma concentração de 0,03% de álcool no sangue, provocada por um copo de vinho, por exemplo, causa uma sensação de relaxamento. Triplicando-se a dose, 0,09% de álcool no sangue, a fala e o controle dos músculos são afectados. Com 0,12%, a capacidade de raciocínio lógico é reduzida, e desaparecem as inibições e o autocontrole.
18. Com efeito, importa observar (v. Ac. da Rel. Coimbra, de 31.10.90, em CJ, ano XV, 4°, pág. 100) que, segundo dados da ciência médica encontráveis em qualquer enciclopédia médica, o álcool começa por afectar a coordenação das funções de sensação e de percepção (córtex cerebral), atinge depois a coordenação motora e o equilíbrio e, por fim, ataca a memória (sistema límbico). Vale isto dizer que o álcool, acima de certo limite, reduz consideravelmente as faculdades psicológicas elementares absolutamente necessárias à condução e dai que a influência do álcool nunca pode, de todo em todo, ser estranha ao comportamento do condutor.
19. Como se escreve na Verbo Enciclopédia Luso Brasileira de Cultura, vol. I, pág. 975, a falta de atenção, a pouca destreza, a temeridade doentia, a defeituosa percepção do ambiente exterior ou a sua alteração ilusória ou alucinatória, fazem que o alcoólico se engane nas suas ocupações, tome decisões precipitadas, se desoriente com facilidade no local em que se encontre.
20. Aliás, o artº 4º nº1 d) das Condições Gerais Grupo do seguro de ramo vida acima transcrita, manifesta, claramente, a vontade de a Ré excluir do contrato comportamentos em que a vontade da pessoa segura interfere, sob que maneira for, no evento morte ou incapacidade.
21. Tratando-se de contrato de seguro facultativo imperam apenas as normas contratuais, interpretadas de acordo com os princípios da lei, designadamente o equilíbrio entre as prestações – prémio - e o risco assumido.
22. A influência do álcool, só por si, potencia a probabilidade de sinistro morte não contemplada para o cálculo do prémio.
(…)
27.O Falecido Pai dos AA., por sua acção exclusiva, circulava a pé, influenciado pelo álcool 2,87 +- 0,37g/litro, cujas alterações neurológicas levaram à sua queda e consequente embate com o crânio em superfície dura e esta queda à hemorragia subaracnoídea que foi a causa desencadeante da morte, o que é suficiente para ocorrer a exclusão, além de se ter voluntariamente colocado nessa situação, por acção de intoxicação alcoólica.
Mais se defende dizendo que:
33.O contrato de seguro destina-se, apenas, a cobrir o risco normal de actividade lícita, à luz dos preceitos que regulam a actividade seguradora.
34. E não cobre o resultado de actividades ilícitas, ilegais ou enquadráveis em moldura criminal, como conduzir com excesso de álcool no sangue e sob efeito de substâncias psicotrópicas.
Considerou a sentença recorrida que nunca tendo sido colocada em causa pela ré a validade do contrato de seguro e não tendo feito prova do fundamento apontado para o afastamento da cobertura contratual responde pelo pagamento da prestação convencionada de € 50.000,00 (cinquenta mil euros) aos herdeiros do falecido, aqui Autores (cf. artigo 2133º/1, b), do Código Civil).
Aqui chegados, cumpre interpretar o sentido da cláusula de exclusão, no pressuposto de que a interpretação da vontade expressa na declaração negocial constitui questão de facto quando consista em apurar se o destinatário conhecia a vontade real do declarante e o seu conteúdo e constitui questão de direito sempre que haja de realizar-se, na ignorância de tal vontade, nos termos do artigo 236º, n.º 1, do Código Civil – v. Acórdão do STJ de 11.11.1992, processo n.º 003424, in www.dgsi.pt.
É a seguinte a redação da cláusula contratual controvertida constante das Condições Gerais do contrato:
“Artigo 4º EXCLUSÕES “1. Ficam sempre excluídos das coberturas principais e complementares deste Contrato de seguro os riscos devidos a: “a) (…)
“b) (…)
“c) (…)
“d) Acção ou omissão da Pessoa Segura, influenciada pelo uso de estupefacientes (sem prescrição médica) ou bebidas alcoólicas de que resulte grau de alcoolémia igual ou superior àquele que, em caso de condução sob o efeito do álcool, determine a prática de contraordenação ou crime”
Uma vez que se está perante um contrato de seguro originariamente formal – art. 426.º do Código Comercial – e não resultou apurada a vontade das partes – para efeitos do que dispõe o art. 236.º, n.º2 do Código Civil, o sentido a extrair deve ser aquele que um declaratário normal, colocado na posição dos segurados, deduzisse – art. 236.º, n.º1 do Código Civil (a chamada teoria objectivista da impressão do destinatário, cf. Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª Edição, em anotação a este artigo) - do texto da cláusula, conquanto nela tenha um mínimo de correspondência – art. 238.º, n.º 1 do Código Civil.
Dentro destes ditames legais, não nos suscita dúvida que o sentido normal apreendido ou extraído da expressão acção ou omissão por um declaratário medianamente instruído colocado na posição do segurado é o do comportamento, activo ou omissivo, do segurado concretizador do risco ou do sinistro, a que se reconduziria o facto provado de a morte ter sido causada por comportamento do falecido; e, o da expressão bebidas alcoólicas de que resulte grau de alcoolémia igual ou superior àquele que, em caso de condução sob o efeito do álcool, determine a prática de contraordenação ou crime” é o da verificação objectiva, no momento do falecimento e na pessoa do segurado, de um volume de álcool no sangue igual ou superior àquele que, em caso de condução sob o efeito do álcool, determine a prática de contraordenação ou crime expresso no facto provado de no relatório de autópsia médico-legal constar quanto à quantificação de etanol em sangue, o resultado de 2,87 +- 0,37 g/l.
Não resulta do texto em análise que basta apurar a existência de uma taxa de álcool no sangue superior à permitida pelo contrato para que a responsabilidade da seguradora seja excluída (entenda-se, a obrigação de pagar o capital seguro, nos termos contratuais).
Exige-se uma a acção ou omissão que seja influenciada pelo alcoolismo, ou seja, será de exigir o nexo de causalidade entre a taxa de alcoolemia igual ou superior àquele que, em caso de condução sob o efeito do álcool, determine a prática de contraordenação ou crime ou melhor, dos efeitos a ela associados, e o sinistro.
(…) notando-se que apenas expressões como quando causado por uma taxa de alcoolemia superior a 0,5 g/l, com origem em taxa de alcoolemia superior a 0,5 g/l, quando se encontrasse sob a influência de taxa de alcoolemia superior a 0,5 g/l, poderiam ancorar esse entendimento - neste sentido ver acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido com data de 10.03.2016 no processo nº 137/11.0TBALD.C1. S1.
Constando de um contrato de seguro de vida uma clausula segundo a qual fica excluído do âmbito do seguro qualquer “evento devido a acção do segurado originada por alcoolismo” a sua interpretação, de acordo com as regras aplicáveis, é a de que a exclusão de responsabilidade apenas ocorre quando o “alcoolismo” foi causa adequada da morte do segurado - neste sentido acórdão do STJ proferido com data de 23.09.2008 no processo nº 08B2346.
●. Defende ainda a recorrente que este sinistro não se encontra coberto pela Apólice de seguro vida grupo por interpretação da apólice no sentido de excluir a ingestão abusiva de bebidas alcoólicas em taxa superior igual ou superior àquele que, em caso de condução sob o efeito do álcool, determine a prática de contraordenação ou crime.
Sem razão esta afirmação.
Como nos ensina Figueiredo Dias, Direito Penal Parte Geral, Tomo I, 2004, 259 “A categoria de culpa jurídico-penal adiciona um novo elemento (uma nova qualificação) à acção ilícita-típica, sem a qual nunca poderá falar-se de facto punível. Este não se esgota na aludida desconformidade com o ordenamento jurídico-penal, necessário se tornando sempre que a conduta seja culposa, isto é, que o facto possa ser pessoal juridicamente desaprovado e pelo qual tem por isso de responder perante as exigências do dever ser sócio-comunitário.(…), apud” .
Como bem referem os recorridos a alcoolémia, seja qual for o seu grau, só por si não é ilícita, como o não é caminhar, sem importunar ou perturbar quem e o que quer que seja, em estado de embriaguez em local e momento próprios para a circulação de pessoas.
Situação diversa é a de o segurado por força do cometimento de uma determinada infracção – cujo cumprimento da respectiva cominação legal apenas a ele lhe cabe nos termos do artigo 11º, nº1 do CPenal – poder ser responsabilizado civilmente, sendo que nestas circunstâncias poderá transferir para um terceiro, a seguradora, a sua responsabilidade civil: não é a infracção que está coberta pelo seguro, mas a eventual responsabilidade civil dela decorrente.
Mutatis mutandis, o que se mostra excluído do contrato havido com o falecido não é a sua morte «tout court» enquanto risco ocorrido por o mesmo se encontrar em casa ou mesmo a caminhar na rua com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida a qual constitui uma infracção muito grave e pela qual o mesmo nunca poderia ser penalizado, atento o seu decesso, de harmonia com o disposto no artigo 127º, nº1 do CPenal, mas a morte como consequência necessária da circunstância de o sinistro ter sido devido/ influenciado por efeito do álcool, isto é, funcionando este como causa adequada à produção do resultado .
É que o factor alcoolémico é um entre um amplo conjunto de factores que pode conduzir à explicação de um determinado acidente, esclarecendo a etiologia das irregularidades cometidas e/ou agravando-a, ou nem sequer interferindo nas respectivas responsabilidades,
«(…). Evidentemente que muitos, talvez a maior parte dos acidentes, não conhecem qualquer relação de causa a efeito, frente ao álcool. Pode até perfeitamente admitir-se que um dado acidente, ocorrido em caso de alcoolemia perturbadora, não seja filiável na acção alcoólica, ou, por outras palavras, que ele teria ocorrido da mesma maneira, para circunstâncias idênticas excepto no que respeita à alcoolemia, ela agora supostamente nula. (…)» cf. Fernando Manuel Oliveira de Sá, Acidentes de Viação e Alcoolismo, A Alcoolemia nos Acidentes de Viação, Coimbra 1964, 142 e 158.
Esta interpretação da cláusula em apreço é a que se mostra corresponder ao que se encontra expresso no texto da mesma, posto que, por um lado as regras que regulam a actividade seguradora não coíbem estas entidades de efectuarem contratos onde segurem o risco morte, nem afastam a sua responsabilidade se aquele risco ocorrer quando o segurado esteja sob a influência do álcool, mas antes se este tiver agido sob a influência do álcool, improcedendo assim as conclusões da Recorrente.
●. Ataca ainda a ré a decisão recorrida invocando a violação pelo tribunal do artº 78 do RJCS no que concerne à prova do ponto 10 dos F.N.P alegando que em seu entender o dever de informação impendia sobre o tomador, de harmonia com a regra supletiva contida no artigo 78º, n.º 1 do DL 72/2008, de 16 de Abril.
Apreciando
Temos conhecimento de que não obstante o teor literal do mencionado artigo 78º do DL 72/2008, a jurisprudência divide-se em torno de duas teses diametralmente opostas.
A primeira, claramente maioritária e que foi acolhida pela recorrente postula que o dever de informação recai unicamente sobre o tomador do seguro e o seu incumprimento por parte deste não é oponível ao segurador, não implicando, portanto, a eliminação das cláusulas de exclusão de riscos.
Aduz-se ainda que a disciplina legal do seguro de grupo afasta a aplicabilidade do regime das cláusulas contratuais gerais definido pelo DL 446/85, de 25 de Outubro, no que é com ele incompatível, nomeadamente no que concerne à definição dos sujeitos do dever de informação (nesse sentido, entre outros, acórdão do STJ de 15/4/2015, relatado por Maria dos Prazeres Beleza e disponível em www.dgsi.pt).
A segunda, defendida no acórdão do STJ de 14 de Abril de 2015, relatado por Maria Clara Sottomayor e disponível no mesmo endereço, preconiza que “o ato de adesão do segurado em relação às condições do contrato de seguro consubstancia uma manifestação de vontade de que é contraparte a seguradora, o que permite atribuir ao aderente uma proteção equivalente à do segurado num contrato individual, aplicando-se o DL 446/85, de 25/10 para regular as relações entre o segurado e a seguradora” e bem assim que “os deveres de comunicação e esclarecimento, na íntegra, do conteúdo negocial estão previstos nos artigos 5º e 6º do DL 446/85 e resultam diretamente do princípio da boa-fé contratual consagrado no artigo 227º do Código Civil, estendendo-se a todas as partes dos contratos que tenham poder de impor cláusulas negociais ao consumidor”.
Afigura-se-nos que é esta a boa doutrina.
A responsabilidade em apreço por parte da seguradora já se defendeu no acórdão proferido com data de 15.09.2014 no processo nº 17/13.5 TVGMR.G1.
Como se defende também nesta Relação no acórdão proferido no processo nº 493/14.9 TBGMR.G1 com data de 04.05.2017 (relator Dr. João Peres Coelho) as duas teses jurisprudenciais antecedentemente resumidas radicam em interpretações distintas do sentido e alcance da disciplina contida no n.º 1 do artigo 4º do DL 176/95, transposta para o n.º 1 do artigo 78º do DL 72/2008, decisão para cuja leitura se remete pela forma clara e completa como aprecia esta questão.
Em igual sentido acórdão desta Relação proferido no processo nº 119/13.8TCGMR.G1 com data de 27.04.2017 (relatora Dr.ª Eva Almeida).
A sedimentar também a tese que seguimos ver acórdão do Supremo Tribunal de Justiça prolatado em 29 de Novembro de 2016, igualmente disponível no sítio da DGSI, cuja parte do sumário que se considera mais relevante se transcreve:
(…)
III.Sendo a boa fé e o desejável equilíbrio das partes no contrato, valores que não podem ser postergados, devendo buscar-se uma interpretação que acolha a equação económica negocial, tendo em vista os interesses nela supostos, cumpre indagar se, sendo o contrato de seguro de grupo um contrato de adesão, no caso contributivo, estando a parte mais fraca – os aderentes ao grupo – entre dois protagonistas muito mais fortes negocialmente (banco e seguradora) com quem tem lidar e, não podendo influir quanto a ambos, no conteúdo dos contratos, se uma interpretação que salvaguarde a protecção do aderente, não será procurar à luz mais intensa da regra da boa fé e da finalidade social e económica da triangulação contratual.
IV.Se aos aderentes for oponível, pela seguradora, a omissão de informar violada pelo tomador do seguro – a entidade bancária – o contrato vale plenamente em relação aos aderentes, tal qualmente tivesse sido concluído com respeito total por aquele nuclear dever cujo incumprimento apenas poderia responsabilizar civilmente o tomador e beneficiário do seguro e não a seguradora em relação a quem o aderente está mais próximo contratualmente após a adesão, sendo que é à seguradora que o aderente paga o prémio por ela calculado.
V.Não se pode esquecer que, tratando-se de uma relação negocial complexa, imposta pelo interesse contratual do banco mutuante e da seguradora que, normalmente lhe está associada em ostensiva sinergia económica, o aderente fica entre dois colossos: não tem, como consumidor, protecção eficaz perante as duríssimas consequências advenientes de lhe ser oponível a violação contratual perpetrada pelo tomador e beneficiário do seguro.
VI. A posição jurídica do aderente que, não tendo sido informado das cláusulas de exclusão do seguro, se vê surpreendido pela actuação da seguradora que declina a responsabilidade assumida por via do contrato de seguro de grupo após a adesão, tem fraca protecção no direito que o aderente pode actuar contra o tomador do seguro se a indemnização que lhe puder exigir se reportar à reintegração, no seu património, do valor dos prémios que despendeu – indemnização pelo interesse contratual negativo – podendo não lhe ter servido de quase nada a protecção do seguro, lá e quando, como no caso, uma incapacidade permanente e definitiva surge: como consumidor não se vislumbra onde a lei protege eficazmente o aderente.
VII. Se o banco mutuante, tomador do seguro, não deve ser considerado juridicamente agente, nem intermediário directo ou mediador da seguradora, muito embora exista uma ligação económica de grupo que, objectivamente faz do aderente “cliente simultâneo” do banco e da seguradora, esta circunstância evidencia que, em relação a estes sujeitos do contrato (trilateral), nenhum poder negocial detenha o segurado (o contrato principal não é de adesão entre o Banco e a Seguradora sendo apenas por eles negociado): a vinculação contratual fica acertada ao balcão do banco, sem liberdade de escolha em relação à entidade seguradora, em patente cerceamento da liberdade e autonomia negociais, que protecção pode ter o aderente.
VIII. A interpretação que protege o consumidor, como parte mais fraca, deverá considerar que, nos casos em que tiver sido demandada na acção a seguradora, mas nela tenha intervindo o Banco tomador do seguro, e não conseguindo este (nem aquela, diga-se) provar que cumpriu o ónus de informar o aderente do contrato de seguro de grupo, ante a dialéctica discussão, é oponível pelo aderente, que para nada contribuiu nem violou o contrato, a falta de cumprimento do ónus de informação, e, consequentemente, deve ser excluído o clausulado em relação ao qual o tomador do seguro violou o dever de informação.
IX. No preâmbulo do vigente diploma sobre o contrato de seguro – DL. 72/2008, de 16.6, se refere, numa lógica de protecção do aderente do contrato de seguro deste tipo, que – “Nos contratos de seguro de grupo em que os segurados contribuem para o pagamento, total ou parcial, do prémio, a posição do segurado é substancialmente assimilável à de um tomador do seguro individual. Como tal, importa realçar que da nova regulamentação deste tipo de seguro resulta que o facto de o contrato de seguro ser celebrado na modalidade de seguro de grupo não constitui um elemento que determine um diferente nível de protecção dos interesses do segurado e que prejudique a transparência do contrato”, o que, no nosso entendimento, e sob pena de o propósito do legislador nada valer, se deve considerar que não é oponível ao aderente, pela seguradora, a violação do devedor de comunicação de cláusulas que deveriam ter sido informadas e esclarecidas.
Assim interpretado e integrado o contrato de seguro, é evidente o naufrágio das conclusões da apelante, restando-nos confirmar a interpretação e aplicação do direito aos factos provados efectuada pela sentença recorrida na parte ora apreciada.
●. Analisemos por fim a questão dos juros.
O que está em causa é tão-só saber se os juros devidos como acessórios de tal indemnização seriam os comerciais, como decidiu a sentença recorrida, ou se, pelo contrário, devem ser os civis, como pretende a ré apelante.
A resposta a esta questão é evidente e fácil e não pode deixar de ser favorável à pretensão desta última.
De efeito, o Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17.2 (entretanto revogado pelo DL 62/2013, de 10.05[3], apenas aplicável aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, de acordo com o art. 14.º), que em cumprimento da Directiva n.º 2000/35/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de junho, estabeleceu medidas de luta contra os atrasos de pagamento em transacções comerciais e com esse propósito alterou a redação do art.º 102.º do Código Comercial, expressamente excluiu do seu âmbito de aplicação “os juros relativos a outros pagamentos que não os efectuados para remunerar transacções comerciais” (alínea b) do n.º 2 do art.º 2º do Dec. Lei n.º 32/2003) e “os pagamentos efectuados a título de indemnização por responsabilidade civil, incluindo os efectuados por companhias de seguros” (alínea c) do n.º 2 do art.º 2.º).”
Assim, quando o art. 102.º do CCom., na redacção do DL 32/2003, diz no seu corpo que Há lugar ao decurso e contagem de juros em todos os actos comerciais em que for de convenção ou direito vencerem-se e nos mais casos especiais fixados no presente Código, deve ler-se esta disposição em conformidade com o diploma citado, isto é, actos comerciais como transacções comerciais, assim se aplicando a Directiva que o mencionado DL transpôs para a ordem interna.
Definindo tal diploma transacção comercial» como sendo qualquer transacção entre empresas ou entre empresas e entidades públicas, qualquer que seja a respectiva natureza, forma ou designação, que dê origem ao fornecimento de mercadorias ou à prestação de serviços contra uma remuneração; concluímos não estarmos no caso em apreço perante uma transacção comercial pelo que os juros devidos são civis e não comerciais.
Procede, pois, nesta parte o recurso interposto.
***
Sumariando e concluindo:

▪. A prova pericial está, em regra, sujeita à livre apreciação do tribunal (cf. artºs. 389º do Cód. Civil e 498º do Cód. Proc. Civil) quer se trate da primeira perícia quer da segunda, vale, por inteiro, de harmonia com a máxima segundo a qual o juiz é o perito dos peritos o princípio da livre a apreciação da prova, e, portanto, o princípio da liberdade de apreciação do juiz (art.º 389 do Código Civil).
▪. Convém não esquecer o peculiar objecto a prova pericial: a percepção ou averiguação de factos que reclamem conhecimentos especiais que o julgador comprovadamente não domina (art.º 388 do Código Civil).
▪. Deste modo, à prova pericial há-de reconhecer-se um significado probatório diferente do de outros meios de prova, maxime da prova testemunhal. Mas se os dados de facto pressupostos estão sujeitos à livre apreciação do juiz – já o juízo científico que encerra o parecer pericial, só deve ser susceptível de uma crítica material e igualmente científica.
▪. Porém o juízo pericial tem que constituir sempre uma afirmação categórica, isenta de dúvidas, sobre a questão proposta, não integrando tal categoria, os juízos de probabilidade ou meramente opinativos.
▪. Por isso, quando tal não sucede, quando o perito, em vez de emitir um juízo técnico-científico claro e afirmativo sobre a questão proposta, emite uma probabilidade, uma opinião ou manifesta um estado de dúvida, devolve-se plenamente ao tribunal a decisão da matéria de facto, este decide livre de qualquer restrição probatória e portanto, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, onde deverá ter na devida conta que a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita – artº342º nº2 do C. Civil e que a dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita- artº 414º do CPC.
▪. Nos contratos de seguro de grupo em que os segurados contribuem para o pagamento, total ou parcial, do prémio, a posição do segurado é substancialmente assimilável à de um tomador do seguro individual.
Pelo que o facto de o contrato de seguro ser celebrado na modalidade de seguro de grupo não constitui um elemento que determine um diferente nível de protecção dos interesses do segurado e que prejudique a transparência do contrato.
Pelo que se deve considerar que não é oponível ao aderente, pela seguradora, a violação do devedor de comunicação de cláusulas que deveriam ter sido informadas e esclarecidas.

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IV. Decisão.

Pelo exposto, julga-se a apelação parcialmente procedente e altera-se a sentença quanto à natureza dos juros devidos, que são civis e não comerciais, no mais se confirmando.
Custas por Apelante e Apelada, na proporção de vencido.

Notifique


Guimarães, 26 de Outubro de 2017
(processado em computador e revisto, antes de assinado, pela relatora)

(Maria Purificação Carvalho)
(Maria dos Anjos Melo Nogueira)
(José Cravo)