ÓNUS DA PROVA
DOCUMENTO
Sumário

I. Ao fazer a distribuição do ónus de prova pelas partes intervenientes num litígio, o Código Civil não está a proibir que a prova seja feita pela parte a quem a mesma não incumbe.
II. Com efeito, o ónus da prova em relação a determinados factos traduz-se, para a parte a quem compete, no dever de fornecer a prova desses factos, sob pena de sofrer as consequências desvantajosas da sua falta e não na proibição da prova pela parte contrária.

Texto Integral

Acordam na 1ª Secção Civil do Tribunal da Relação de Guimarães:
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Na acção com processo comum e forma ordinária em que é Autora Maria… e Ré a ”A… , Companhia de Seguros, SA”, no seu requerimento de prova, requereu esta “… nos termos do artigo 519º-A e 535º do Código de Processo Civil, que a Autora Maria… junte cópia das declarações de rendimentos que apresentou junto da administração fiscal relativamente ao ano de 2008”.
Sobre esse requerimento recaiu o seguinte despacho:
Indefiro o requerido sob o nº 4 de folhas 50, pois não incumbe à Ré fazer prova dos factos que os documentos em causa se destinariam a provar”.
É deste despacho que vem interposto o presente recurso pela Ré, que conclui a sua alegação da seguinte forma:
- segundo o tribunal, a Ré apenas poderia requerer as provas indeferidas desde que fosse ónus seu produzir prova sobre tais factos.
- relativamente a uma parte – Autor ou Réu – que esteja onerada com a prova de um determinado facto, a contraparte exercerá o correspondente direito de defesa, seja procurando fazer prova do contrário, seja procurando apenas fazer contraprova da prova oferecida pela outra parte;
- quando a contraparte procura fazer prova do contrário, procura demonstrar que determinado facto que até aí se poderia considerar provado, não é verdadeiro;
- pelo contrário, quando a contraparte se limita a querer contraprovar determinado facto, a sua actividade probatória dirige-se unicamente a criar no espírito do julgador uma dúvida ou incerteza consistentes sobre factos que se poderiam considerar provados;
- a Ré, ao requerer as provas indeferidas, procurava fazer prova do contrário, ou procurava pura e simplesmente contraprovar a prova do Autor (artigo 346º do Código Civil) relativamente ao valor dos seus rendimentos;
- a ”…contraprova não tem de seguir-se temporalmente à prova principal”, podendo até precedê-la. O seu fautor pretende então apenas precaver-se dos efeitos ou consequências da actividade probatória de quem se acha onerado com a prova dos factos;
- um dos mais elementares postulados do princípio da igualdade das partes de que nos fala o artigo 3º-A do Código de Processo Civil é o de que o tribunal tem de assegurar às partes um estatuto de absoluta e substancial igualdade, designadamente no exercício de faculdades;
- tal significa que sempre que o tribunal reconhece a uma das partes a faculdade de praticar determinado acto, ou solicitar determinada diligência, igual direito de praticar ou solicitar tem de ser reconhecido a quem se defende das investidas da outra parte, constituindo típicas e formais manifestações deste princípio, os artigos 42º n.º 2 e 512º-A n.º 1 do mesmo diploma;
- no âmbito do direito probatório, o princípio das igualdade assume particular relevo, porquanto é nesse domínio que mais sentido faz falar-se da igualdade de armas que são colocadas á disposição das partes, que em sede de discussão da matéria de facto, esgrimem, verdadeiramente, provas ou meios de prova;
- o princípio da igualdade de armas visa assegurar na sua plenitude uma verdadeira igualdade entre as partes;
- ”corolários necessários do princípio da igualdade, quando conjugado com o direito fundamental de acesso aos tribunais, são os princípios do contraditório e da igualdade de armas, os quais assumem, no direito processual civil, particular relevância, se não mesmo a sua máxima expressão e sentido.
Na verdade, só com a plena consagração desses princípios processuais – que se não bastam com um conteúdo meramente formal, mas antes reclamam a verdadeira possibilidade de as partes disporem, em completa paridade, dos mesmos meios processuais, designadamente de produção de prova, gozando assim de iguais possibilidades de reconhecimento das respectivas pretensões - se pode alcançar e realizar de forma efectiva quer o direito de acesso aos tribunais, quer uma verdadeira igualdade entre as partes.” – Ac. do TC n.º 497/96, de 20 de Março de 1996;
- assim sendo, impedir a Ré de utilizar quaisquer meios de prova processualmente previstos, apenas porque o ónus da prova sobre ela não recai, constitui uma formal violação do princípio da igualdade das partes, segundo o qual o tribunal deve assegurar a ambas as partes as mesmas condições, seja para exercer o seu direito à prova de um facto, seja para exercer o seu direito à contraprova ou à prova do contrário de determinado facto;
- a decisão recorrida violou neste particular o disposto no artigo 3º-A do Código de Processo Civil, o qual proíbe se impeça a parte, só porque não está onerada com o ónus da prova de um determinado facto, de quanto a ele requerer os meios de prova legalmente admissíveis, tendo em vista a prova do contrário ou a mera contraprova da prova do Autor;
- ou seja, Autor e Ré devem dispor, sempre que possível, dos mesmos meios de prova, sob pena de sair violado o princípio da igualdade;
- tendo em vista introduzir no processo todos os elementos necessários para uma legal e conscienciosa decisão, a Ré limitou-se a Requerer que o tribunal obtivesse da outra parte os meios de prova necessários à recolha dos elementos necessários para o cálculo da indemnização o que, naturalmente, não fez apenas enquanto parte onerada com a contraprova de um facto.
- fê-lo porque, tendo confessado a culpa do seu segurado, reconheceu ser seu dever pagar uma indemnização, sendo por isso do seu inteiro interesse que a mesma se contenha nos limites legais, para o que lhe interessará a junção de tais elementos documentais.
Não foram oferecidas contra alegações.
Cumpre-nos agora decidir.
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Sendo certo que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões respectivas – artigos 684º, n.º 3 e 690º do Código de Processo Civil – a questão que se nos coloca consiste em saber se à parte está vedado oferecer prova a factos em relação aos quais lhe não cabe o respectivo ónus.
Dispõe o artigo 3º-A do Código de Processo Civil, na parte que nos interessa, que o tribunal deve assegurar, ao longo de todo o processo, um estatuto de igualdade substancial das partes, designadamente no uso dos meios de defesa; trata-se de uma emanação do princípio do contraditório, que encontra a sua consagração no artigo anterior, no que concerne à possibilidade de utilização dos meios de prova, no sentido de assegurar o que se designa usualmente pelo princípio de igualdade de armas.
Neste sentido, a lei processual coloca ao dispor dos intervenientes um naipe de meios de prova de que cada um deles pode lançar mão, dentro dos limites estabelecidos e, dentre tais meios de prova, ressalta a prova por documentos que, no caso de o documento de que se pretenda fazer uso se encontrar em poder da parte contrária (artigo 528º do Código de Processo Civil) ou de terceiro (artigo 531º do mesmo Código) é facultado ao interessado que requeira a notificação do seu detentor para proceder à sua apresentação.
Foi o que sucedeu no caso deste processo: a Apelante requereu a notificação da Apelada, Maria… , para esta juntar ao processo cópia das declarações de rendimentos que apresentou junto da administração fiscal relativamente ao ano de 2008; o requerimento foi indeferido por não incumbir à requerente fazer prova dos factos que os documentos em causa se destinariam a provar.
Rigorosamente, não se trata da violação do princípio referenciado, mas da recusa de diligência pela razão apontada, pelo que o que está em questão reside em saber se existe algum impedimento legal de a parte oferecer prova a facto em relação ao qual lhe não cabe o respectivo ónus.
Depois de afirmar, no seu artigo 341º, que “As provas têm por função a demonstração da verdade dos factos”, o Código Civil procede, nos artigos seguintes, ao estabelecimento da distribuição do ónus de prova pelas partes intervenientes num litígio; mas ao impor a cada uma das partes o encargo de provar determinados factos, não proíbe que eles o sejam pela outra ou pelo próprio tribunal: com efeito, o ónus da prova em relação a determinados factos traduz-se, para a parte a quem compete, no dever de fornecer a prova desses factos, sob pena de sofrer as consequências desvantajosas da sua falta e não na proibição da prova pela parte contrária.
Ao invés, o artigo 515º do Código de Processo Civil determina expressamente que o juiz deve levar em consideração todas as provas produzidas, “… tenham ou não emanado da parte que devia produzi-las …”; é o chamado princípio da aquisição processual, que se traduz na admissibilidade expressa de a parte produzir prova sobre factos cujo ónus recai sobre a parte contrária.
Como assim, a circunstância de o ónus de prova do facto para cuja prova é oferecido um determinado meio de prova não pode fundamentar a recusa da respectiva produção pelo tribunal; tratando-se de prova por documento, cabe ao juiz apenas controlar a pretensa idoneidade do documento para a prova dos factos e decidir sobre a necessidade dos elementos requisitados para o esclarecimento da verdade.
E uma vez que as declarações de rendimentos apresentados junto da administração fiscal num determinado ano apenas por documento pode ser provada, não podia o tribunal indeferir o requerimento do Apelante para que a Apelada Maria… juntasse a cópia das declarações de rendimentos que apresentou junto da administração fiscal relativamente ao ano de 2008.
Termos em que se acorda em conceder provimento ao recurso e se ordena a notificação da Autora, Maria… , para que junte cópia das declarações de rendimentos que apresentou junto da administração fiscal relativamente ao ano de 2008.
Sem custas.
Guimarães, 30 de Junho de 2011
Carlos Guerra

SUMÁRIO:
I. Ao fazer a distribuição do ónus de prova pelas partes intervenientes num litígio, o Código Civil não está a proibir que a prova seja feita pela parte a quem a mesma não incumbe.
II. Com efeito, o ónus da prova em relação a determinados factos traduz-se, para a parte a quem compete, no dever de fornecer a prova desses factos, sob pena de sofrer as consequências desvantajosas da sua falta e não na proibição da prova pela parte contrária.