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RECURSO DE APELAÇÃO
CONCLUSÕES DO RECURSO
NOVAS PROVAS APRESENTADAS EM RECURSO
DECISÃO INTERLOCUTÓRIA DE REJEIÇÃO DE MEIOS DE PROVA
DEFICIÊNCIA OBSCURIDADE E INSUFUCIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO
Sumário
1) Se as conclusões do recurso, mesmo que incorrectamente redigidas e arrumadas, permitem perceber, com precisão, o que o recorrente pede quanto à decisão impugnada (de facto e de direito), os fundamentos com que o faz e indica as normas violadas, não há deficiência ou obscuridade justificativas de qualquer consequência.
2) O recurso não é meio próprio para requerer novas provas que deviam ter sido apresentadas ou produzidas no momento processualmente oportuno (muito menos para repetir as que, em 1ª instância, tenham sido indeferidas), ainda que, ao motivar a decisão da matéria de facto, o tribunal recorrido assinale a sua falta.
3) A decisão interlocutória que rejeite algum meio de prova não pode ser impugnada na sentença final uma vez que, nos termos da alínea d), do nº 2, do artº 644º, dela cabe apelação imediata e autónoma.
4) Sendo pacífica nos autos a existência, na parede da casa dos autores, de duas aberturas voltadas para o prédio dos réus, mas controvertidas as circunstâncias em que foram feitas, as características delas e a utilização dada, e, por isso, a sua natureza e regime jurídico, não pode o tribunal recorrido, face aos poderes inquisitórios de que dispõe e de que deve lançar mão para apuramento da verdade e justa composição do litígio, basear na fraqueza e inconsistência da prova testemunhal e na míngua de provas periciais e documentais que considera imprescindíveis, a decisão de julgar não provada tal matéria (designadamente que as aberturas sejam janelas e o uso alegadamente dado) com fundamento em dúvidas, antes de esgotar as diligências, maxime probatórias, que se lhe perspectivem necessárias, possíveis e adequadas ao esclarecimento da verdade e remoção daquelas.
5) Se, além disso, tendo sido alegados todavia não foram considerados, discutidos, apreciados e decididos factos relevantes, ocorre deficiência, obscuridade e insuficiência da decisão da matéria de facto, pelo que esta deve ser anulada, ao abrigo do artº 662º, nº 2, alíneas c) e d), CPC, repetido o julgamento para suprir tais falhas e proferida nova sentença.
Texto Integral
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:
I. RELATÓRIO
Os autores M. D. e esposa M. M., intentaram, em 19-10-2015, no Tribunal de Vila Real, acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra os réus L. B. e A. C..
Pediram que, em consequência da prova e sua procedência:
a) Sejam os Réus condenados a demolir a parede que construíram indevidamente no seu prédio – como descrito nos artigos 7º e 9º, bem como desmontar e retirar o painel descrito nos artigos 15º, 16º e 17º, às suas custas e no prazo máximo de 30 dias após trânsito em julgado; b) Sejam os Réus condenados a efectuar as obras necessárias, no lado poente, para evitar a infiltração de águas para o interior da adega/arrecadação do prédio dos Autores; c) Absterem-se os Réus da prática de qualquer ato que impeça ou diminua a utilização da servidão de vistas, luminosidade e ventilação por parte Autores; d) Serem os Réus condenados a pagar aos Autores todos os prejuízos patrimoniais que se liquidarem em execução de sentença; e) Serem os Réus condenados a pagar uma indemnização por danos morais aos Autores, não inferior a 3.000,00 (três mil euros), com juros moratórios à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.
Invocaram, como causa de pedir, violação dos seus direitos reais de propriedade e de servidão.
Sumariamente, alegaram, como fundamentos, que:
(i) são “donos e legítimos possuidores” de uma casa de habitação, composta de rés do chão (que funciona como adega e arrumos e está soterrado), primeiro andar e um sótão (estes com duas varandas e uma janela em cada um); (ii) na mesma rua, existe um prédio urbano, de que “são donos e legítimos possuidores” os réus, o qual confronta a norte e a poente com os autores; (iii) imediatamente ao lado e a confinar com a sua habitação, há uma habitação propriedade dos réus; (iv) os réus, há cerca de cinco anos, no topo sul do seu prédio, construíram uma parede de blocos e betão, desde o 1º andar até à cornija do sótão, sem licenciamento administrativo “prejudicando assim todas as habitações que se seguem” e pondo “em perigo grave a segurança pública” e os “habitantes das mesmas” e dos “transeuntes; (v) durante o dia 17-07-2015, os réus cravaram, no solo, do lado poente, junto à parede dos autores, dois pilares, em ferro, verticais, distando cerca de 1,20 entre si e com 5 metros de altura a partir do solo (nível do 1º andar), lado poente, até à cornija do prédio dos autores; (vi) nesses pilares fixaram horizontalmente chapas metálicas, de forma rectangular, assim levantando “uma construção na frente das janelas do 1º andar e sótão do prédio dos autores, um painel tipo sinalização vertical de informação que se encontra nas vias de circulação, com cerca de cinco metros de altura por 1,20 m de largura”; (vii) tal painel e a parede “prejudicam a servidão de vistas dos autores”, “o painel vedou completamente as janelas”, deixando os autores de “ter iluminação natural e ventilação para o 1º andar e sótão”; (viii) os ditos pilares provocam infiltrações de água para a adega; (ix) foi ordenada a demolição da parede pela Câmara e os réus foram advertidos pela respectiva fiscalização de que “a construção da parede colidia com o direito de servidão de vistas, iluminação e ventilação do 1º andar e sótão dos autores”; (x) sempre os autores, desde 1979, e a anterior proprietária, vêm usando a “servidão de vistas, bem como luminosidade e ventilação do seu prédio”, em termos integrantes de usucapião; (xi) com a sua conduta, os réus prejudicaram os autores, causando-lhes danos indemnizáveis .
Juntaram a caderneta predial e fotos ilustrativas (inclusive, de duas janelas, a fls. 18).
Em contestação, os réus questionaram o valor da causa; impugnaram a factualidade alegada, dizendo que agiram licitamente e nenhum dano sofreram os autores, acrescentando que nenhuma varanda dando para a via pública ou para o prédio dos réus tem o prédio daqueles; só aquele efectivamente tem escadas e varanda, pelo que a parede erigida no topo sul desta, além de lícita, destinou-se apenas a “impedir os olhares indiscretos dos autores a partir de sua casa”; não há qualquer conexão entre as eventuais infiltrações e os pilares ou chapas; nenhuma servidão e vistas beneficia o prédio dos autores sobre o quintal dos réus; “as duas aberturas existentes no 1º andar e sótão… constituem meras frestas ou óculos para luz e ar” e nunca os autores as utilizaram para ver através delas; “a sua abertura apenas foi autorizada” pelo pai do réu para “iluminação e arejamento”; os então donos do prédio hoje dos autores aceitaram tal condição e, quanto à do 1º andar, aberta em 1979/1980, logo a “frestaram”; esta é “em forma de janela”, “com largura de 60 cm, encontra-se a mais de 1,80m de altura, a contar do solo e é provida de 4 barras fixas de ferro, distando 12 cm entre si”; a do sótão, aberta em 1984/1985, apesar de não “frestada ou gradeada” (contra o compromisso assumido), nunca teve qualquer outra finalidade senão “a de permitir a iluminação e arejamento do sótão em causa”, até porque no quintal da casa dos réus havia uma figueira cuja ramagem impedia as vistas e devassa.
Juntaram fotos anteriores às obras.
Foi ordenado o prosseguimento dos autos, com dispensa de audiência prévia.
Desencadeou-se oficiosamente incidente de verificação do valor da causa e, para sua decisão, ordenou-se e realizou-se peritagem, vindo aquele a ser fixado conforme fls. 73 (alterado de 45.000€ para 74.500€), em consequência disso transitando os autos para a Instância Central da Comarca.
Nesta, proferiu-se saneador tabelar, enunciou-se genericamente o objecto do litígio, a temática a provar, apreciaram-se os requerimentos de prova, ordenaram-se diligências e marcou-se o julgamento.
Realizou-se, então, a audiência (16-03-2017), nos termos e com as formalidades descritas na acta respectiva (fls. 102 a 109), da qual se vê que foram inquiridas oito testemunhas arrolados pelos autores e cinco pelos réus e, no fim, quanto ao requerimento daqueles formulado na petição de que se procedesse a inspecção ao local e cuja apreciação fora relegada para este momento, decidido que “Equacionando-se o objecto do processo concatenado com a produção de prova efectuada na audiência de julgamento, afigura-se manifestamente dispensável e inóqua para a decisão da causa, a efectivação da inspecção judicial peticionada pelos autores. Pelo supra exposto, indefere -se a requerida inspecção judicial ao local. Notifique.” Tal notificação às partes teve lugar de imediato.
Por fim, com data de 02-05-2017, foi proferida a sentença (fls. 110 a 117) que culminou na seguinte decisão:
“Pelo supra exposto, julga-se a acção totalmente improcedente e, consequentemente, decide-se:
A) Absolver os Réus L. B. e A. C. do peticionado; B) Condenar os Autores M. D. e esposa M. M. no pagamento das custas processuais.”
Os autores não se conformaram e (em 14-06-2017) apelaram apresentando-nos, para fundamentar o pedido de anulação do julgamento e de revogação da sentença, argumentos que sintetizaram nas seguintes conclusões:
“1º O presente recurso tem por objetivo não apenas a interpelação e aplicação da lei aos factos dados como provados, como também a reapreciação da prova produzida, documental e testemunhal (gravada), tendo em vista a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, em consonância com o disposto no art.º 662.º do CPC. 2º A matéria de facto impugnada encontra-se plasmada nos números 4 e 5 dos factos parcialmente provados e nos números 11, 12 e 13 dos factos não provados, na medida em que se considera que a mesma, ao ser dada resposta parcialmente positiva aos factos dos 4 e 5 e, bem assim, resposta negativa aos factos 11,12 e 13, foi incorretamente decidida. 3º Devendo, outrossim, merecer resposta positiva os factos dos números 11,12 e 13 e, resposta totalmente positiva os factos nºs 4 e 5, no sentido de se concluir que, as aberturas existentes na fachada virada a poente do prédio em questão, têm caraterísticas de janelas, e por isso são janelas. 4º Tal resultando, por forma inarredável, da análise critica e alicerçada nas mais elementares regras da experiência comum, quer da prova documental junta aos autos, nomeadamente, a fls. 16 – 18, quer da prova testemunhal produzida em Audiência de julgamento. 5º Sendo que, se corretamente analisada e valorada, determinam decisão diversa daquela que merecera os mencionados pontos da sentença em crise, como se alcança da transcrição de algumas passagens e sínteses de depoimentos, aqui dados por reproduzidos para legais efeitos. 6º Razão pela qual e, v.g. do art.º 662.º do PCP., deverá a decisão recorrida, no que tange à matéria de facto impugnada, ser alterada por esse Venerando Tribunal, com o inerente consuetudinário jurídico, uma vez que os elementos de prova carreada para o processo impõem decisão diversa. 7º Para além de que, a omissão por falta de análise critica às provas relativamente à construção pelos RR, da parede da fachada nascente do prédio do AA, ao não se pronunciar pelo pedido de demolição da mesma, é determinante da nulidade da sentença, conforme decorre do disposto no art.º 615º alíneas b) e d) do CPC. 8º Como também, não foram tomados em consideração os factos que estão admitidos por acordo das partes, uma vez que os artigos 22º, 23º, 24º e 28º da contestação referem expressamente que as janelas foram autorizadas pelos progenitores do R/m, nos anos de 1978/1984 (art.º 607º nº 4 do VPC.). 9º A douta Decisão recorrida enferma de NULIDADES, desconhecendo-se a razão pela qual o Tribunal deu a matéria de facto dos números 11 e 12 por não provada, por míngua de imprescindíveis provas periciais (parágrafo 19), o que deveria ter levado o Mmo Juiz abster-se de decidir sem indagar, porque na realidade a mesma foi requerida pelos AA, por ser essencial à descoberta da verdade material, pelo que, para além de se tornar necessária a inspeção judicial ao local do litigio, requer-se uma perícia efetuada por um técnico Engenheiro Civil, a nomear pelo Tribunal, para avaliar o nexo de causalidade das infiltrações de água para o interior da adega e arrecadação dos AA, da tipologia das aberturas existentes na fachada poente, e da propriedade do imóvel aqui em questão. 10º Violou, assim, a douta sentença recorrida, para além dos aludidos preceitos legais (art.º 615º alínea b) e d), 607º nº 4, 662º e 608º nº2 do CPC.) e o estatuído nos artigos 3º e 4º do RMUE, 1365º nº2 e 1362º nº2, ambos do Cód. Civil. 11º Devendo, por isso, ser revogada e substituída por outra em que se decida pela procedência da ação, ou em todo o caso, determinando-se a anulação da Audiência de Julgamento, com legal cominação.
Assim se decidindo, far-se-á, uma vez mais a acostumada e devida JUSTIÇA.”.
Os réus responderam, alegando que não há qualquer invalidade nem erro de julgamento, defendendo a bondade da decisão e sua confirmação, previamente questionando a regularidade das conclusões.
Foi admitido orecurso como de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito meramente devolutivo.
Corridos os Vistos legais, cumpre decidir, uma vez que nada a tal obsta.
II. QUESTÕES A RESOLVER
Pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, sem prejuízo dos poderes oficiosos do tribunal, se fixa o thema decidendum e se definem os respectivos limites cognitivos. Assim é por lei e pacificamente entendido na jurisprudência – artºs 5º, 608º, nº 2, 609º, 635º, nº 4, 637º, nº 2, e 639º, nºs 1 e 2, do CPC.
Neste âmbito, uma questão prévia suscitada pelos apelados urgirá resolver: as conclusões do recurso são “deficientes e obscuras, violando o disposto no artº 639º, do CPC, …pelo que se torna difícil compreendê-las”?
Além desta, uma outra relativa aos meios de prova colocada pelos recorrentes: podem eles, nesta fase e por este meio, requerer a produção de nova prova (perícia) para demonstração de factos julgados não provados?
Com esta, aliás, convirá também ab initio clarificar a brandida questão da inspecção judicial, indeferida mas em que os apelantes insistem.
Depois, as questões recursivas propostas pelos apelantes serão, assim, estas:
1) Nulidade da sentença, nos termos do artº 615º, por:
a) Não se ter pronunciado sobre o pedido de demolição – alínea d), do nº1, do artº 615º;
b) Falta de análise crítica das provas e falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito justificativos “de tal omissão como o exige o artº 615º, b), do CPC”;
c) Por não ter tomado em consideração factos admitidos por acordo;
d) Por não expor as razões por que se decidiu julgar não provados os factos 11 e 12;
e) Por não terem sido ordenados meios de prova (inspecção judicial e peritagem) sobre as características das janelas e as infiltrações.
2) Se devem ser aditados e considerados como provados os factos ínsitos aos itens 22, 23, 24 e 28 da contestação.
3) Se a decisão da matéria de facto deve ser alterada:
a) Quanto ao pontos 4 e 5 dos factos provados, julgando-se “totalmente positiva” a respectiva matéria “no sentido de se concluir” que as duas aberturas “têm as características de janelas e por isso são janelas” e permitem ver de dentro para o exterior.
b) Quanto aos pontos 11, 12 e 13 dos não provados, julgando-se provados.
c) Se a decisão da matéria de facto deve ser anulada e repetido o julgamento quanto à impugnada (cfr. nº 38 das alegações, conclusão 11ª e artº 662º, nº 2, alínea c), CPC).
4) Se a sentença violou as normas jurídicas indicadas e deve ser revogada, julgando-se procedente a acção.
III. FUNDAMENTAÇÃO
O tribunal recorrido, em sede de matéria de facto, decidiu:
“A) Factos provados
Com relevância para a apreciação do mérito da causa, o Tribunal considera provados os seguintes factos:
1. O prédio urbano composto de casa de habitação sito na Rua … com a superfície coberta de 72 m2, a confrontar do norte e poente com J. T., sul Caminho de consortes, nascente Rua …, afigura-se inscrito na matriz urbana da freguesia de … sob o artigo … em nome de M. D.. 2. Os Autores habitam o prédio indicado em 1) com a convicção de que são os seus donos. 3. O prédio referido em 1) é composto por casa de habitação, com 2 divisões no rés-do-chão, 6 divisões e varanda no 1º andar e sótão, sendo que no rés-do-chão do mesmo existe uma adega e um espaço para e arrumações. 4. No 1º andar e no sótão do prédio citado em 1), existem duas varandas viradas para a Rua …, lado nascente e norte, e duas aberturas viradas para o lado poente com características não concretamente apuradas, uma no 1º andar e outra no sótão, viradas para o lado poente. 5. As duas aberturas referidas em 4) permitem a entrada de luz natural e o arejamento do prédio citado em 1). 6. Os Réus habitam o prédio urbano sito na Rua …, com a convicção de que são os seus donos. 7. O prédio enunciado em 5) confronta a norte e poente com o prédio indicado em 1). 8. Sucede que, há cerca de cinco anos, os Réus construíram uma parede de blocos e betão no topo sul do prédio referido em 5), desde o 1º andar até à cornija do sótão. 9. No dia 17 de Julho de 2015, no prédio enunciado em 5), os Réus cravaram, no solo, lado poente, dois pilares em ferro na vertical, com cerca de 1,20 m de largura entre si e 5 m de altura, e vão desde o solo, nível do 1º andar, lado poente, até à cornija do prédio referido em 1). 10. Os Réus fixaram nos ditos pilares e na horizontal chapas metálicas com a configuração rectangular, levantando aí, na frente das aberturas mencionada em 4), um painel com cerca de cinco metros de altura por 1,20 m de largura.
B) Factos não provados
11. As aberturas referidas em 4) e 5) são “janelas” através das quais os Autores podem olhar em frente, o que fazem há mais de 35, 40 ou até 60 anos, à vista de todas as pessoas, sem a oposição de quem quer que fosse, de forma ininterrupta, com a convicção de exercerem um direito próprio. 12. Os pilares descritos em 9) e 10) provocam infiltrações de água para o interior da adega/arrecadação citada em 3). 13. As obras referenciadas em 8) a 10) provocaram tristeza e angústia aos Autores. “
Quanto à motivação, referiu o seguinte [não se transcrevendo alguns aspectos desnecessários agora]:
“A formação da convicção do tribunal estribou-se na análise crítica e conjugada do depoimento da Ré e das declarações das testemunhas M. A., F. M., L. F., J. D., J. M., A. R., A. P., M. P., L. B., A. B., A. R. P., D. S. e M. S., em concatenação com valoração da certidão matricial de fls. 14-15, das fotografias de fls. 16-18 e 35-37 e da informação de fls. 94-95, sopesados à luz das regras probatórias legalmente tipificadas e do princípio da livre apreciação, em sede de um iter objectivamente cognoscitivo e dialecticamente valorativo.
As testemunhas M. A., num primeiro plano, enquadrou minimamente as casas dos autores e dos Réus, v.g., a tipologia, confrontações, e concretizou medianamente as obras perpetradas pelos Réus, nomeadamente a parede e pilares, matéria desde logo admitida pelos mesmos em sede de contestação.
Ademais, relativamente às alegadas janelas, a testemunha afigurou-se excessivamente proclamatória e predeterminada, não positivando a exigível concretização descritiva das mesmas, limitando-se a indexá-las ao 1.º piso e ao sótão e aflorando perfunctoriamente que as mesmas existem há mais de 30 anos.
Sublinhe-se, ainda, que os depoentes se configuraram outrossim claudicantes quer em sede da enunciação das alardeadas infiltrações na adega, quer no âmbito das consequências psíquicas brandidas pelos Autores.
No que se refere às testemunhas F. M. e L. F., positivou de forma mediana uma contextualização topográfica das casas das partes, suas confrontações e tipologias, sendo que, relativamente às referenciadas janelas, sublinhou de forma clara e descomprometida que “não dão para espreitar, só para iluminar, dar claridade”, imputando com verosimilhança a sua existência desde a construção da casa.
Enfatize-se que a testemunha F. M. assinalou a existência das preditas janelas com a tolerância da mãe do réu.
Acresce que a testemunha L. F. mencionou a ocorrência de infiltrações na adega sem o mínimo de entorno explicativo, atendo-se a uma proclamação opaca.
Relativamente à testemunha J. D., filho dos Autores, em primeira instância, emanou uma descrição minimamente objectivada da casa dos seus pais e das vicissitudes inerentes Às obras perpetradas pelos Réus.
Concomitantemente, num segundo plano de aferição, o depoente revelou-se tíbio e com uma narrativa descontinuada e desprovida de lastro fáctico explicitante com referência às alegadas janelas, afigurando-se incapaz de uma caracterização linear das mesmas, e quanto às infiltrações de água na adega/garagem, não deduzindo uma explicação suficientemente plausível para tal ocorrência.
No que se atem às testemunhas J. M., A. R. e A. P., respectivamente, militares da GNR e fiscais municipais, cingiram-se ao afloramento sumário e pontual de diligências efectivadas, não titulando cognição sustentada da factualidade nuclear sob julgamento.
A testemunha M. P. efectivou um depoimento eminentemente enredado em enunciados genéricos, conclusivos e desprovidos de suficiente concreção fáctico-fundamentante, abordando predeterminadamente e lassamente a matéria concernente às janelas, infiltrações e alegado desespero dos Autores, v.g., não sabendo tampouco indicar se as sobreditas janelas têm grades.
As testemunhas L. B., A. B., A. R. P., D. S. e M. S. configuraram-se marcadamente enquistadas na tutela da posição dos réus, limitando-se a referenciar genericamente a tipologia das obras realizadas pelos mesmos configurando-se sofregamente preordenados em sede da asserção de que as janelas indicadas pelos Autores têm grades.
[…]
As fotografias de fls. 16-18 e 35-37 explicitam minimamente os prédios das partes, afigurando-se dubitativas quanto às janelas referenciadas nos autos, sendo que não foram produzidas provas documentais ou periciais susceptíveis de dilucidação.
[…]
No que se refere aos factos 11) a 12), ante a claudicância e inconsistência das testemunhas dos autores nos termos sobreditos, e à míngua de imprescindíveis provas periciais e documentais (para determinar quer a tipologia das aberturas, quer a existência e nexo de causalidade das alegadas infiltrações), postulou-se a sucumbência desta matéria fáctica.
Relativamente ao facto 13), ante a tibieza e insubsistência dos depoimentos das testemunhas dos Autores, impôs-se a sua não demonstração.
Relativamente aos demais enunciados consubstanciados na petição inicial e na contestação, os mesmos prefiguraram-se como meras declarações genéricas, juízos de inferência ou apreciações jurídicas, ou factos instrumentais à luz do objecto do processo, inidóneos para integrarem a supra matéria fáctica pertinente/nuclear. ”.
No capítulo do Direito, e relativamente ao objecto concreto do litígio que ao tribunal cabia resolver, na sequência de extensas considerações teóricas(1), com alusões normativas e citações de doutrina e jurisprudência, compendiadas na sentença sobre a natureza, objecto, conteúdo, limites, princípios e inserção legal e constitucional do direito real de propriedade, aos modos de aquisição do mesmo, respectiva noção, requisitos de cada e, particularmente, sobre toda a teoria da posse e usucapião, bem assim à origem histórica, conceito, caracterização e conteúdo do direito real menor de servidão e, ainda, à definição e aos pressupostos da responsabilidade civil, entendeu-se ali, no que respeita à situação fáctica nestes autos julgada provada e a respeito das pretensões que a partir da matéria alegada os autores queriam através da acção ver reconhecida e protegida nos termos peticionados, que:
“In casu, no que se atem ao direito de propriedade dos Autores, constata-se que os mesmos não beneficiam de presunção registal, sendo que tampouco alegaram a aquisição do prédio indciado em 1) por usucapião.
Ademais, o elenco fáctico descrito em 1) consubstancia a efectivação pelos Autores de concludentes e sustentados actos materiais de domínio do referenciado prédio, usufruindo as utilidades do mesmo, praticando típicos actos de conservação ordinária, actos que se subsumem no corpus possessório, publicizando a sua actuação.
Noutro plano, o todo complexivo inerente à actuação dos autores consubstanciou o exercício de uma situação jurídica em nome próprio, agindo, assim, com animus sibi habendi ou intenção de ter a coisa para si e animus possidendi ou intenção de ser possuidor.
Destarte, os Autores adquiriram a posse do sobredito prédio, pelo que se presume que titulam o respectivo direito de propriedade.
Concomitantemente, faleceu a demonstração de quaisquer factos passíveis de consubstanciar a violação pelos Réus do direito de propriedade dos Autores, pelo que se impõe o decaimento das pretensões formuladas na primeira parte da al. a) e na al. b) do petitório.
*
No que tange à brandida servidão, o indicado em 4) e 5) é manifestamente insuficiente quer para configurar uma janela em sentido jurídico, quer para positivar o corpus e o animus do direito de servidão de vistas (vd. Acórdão do STJ de 15.5.2008, proc. 08B1368, in www.dgsi.pt ), pelo que não se afiguram perfectibilizados os pressupostos consignados no art.º 1362.º/1, do Código Civil, pelo que se demanda a improcedência do pedido vertido na segunda parte da al. a) e na al. c) do petitório.
[…] In casu, sucumbe a factualidade passível de configurar a perpetração de quaisquer danos patrimoniais ou não patrimoniais na esfera dos autores, pelo que se postula a improcedência das pretensões formuladas nas als. d) e e) do petitório.
IV. APRECIAÇÃO
Previamente, importa, como se enunciou, saber se as conclusões do recurso são “deficientes e obscuras, violando o disposto no artº 639º, do CPC, …pelo que se torna difícil compreendê-las”.
A norma invocada impõe que o recorrente deve concluir a sua alegação indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão e, versando o recurso sobre matéria de direito, nestas deve constar a indicação das normas jurídicas violadas, o sentido com que deviam ter sido interpretadas e aplicadas e, caso na determinação destas tenha havido erro qual a que, no entender daquele, era a correcta.
A elaboração e apresentação de conclusões técnica e juridicamente escorreitas é uma das maiores pechas com que quotidianamente os tribunais superiores se debatem. Basta consultar a nossa Jurisprudência para obter um retrato elucidativo dos problemas a tal associados e colher aí sugestões para remedeio destes.
No caso, percebe-se exactamente o que os apelantes pedem a este Tribunal relativamente à sentença e, em especial, quanto à decisão de facto e à de direito nela compreendidas, os fundamentos com que o fazem. Indicam as normas a seu ver violadas. Foram exemplarmente sintéticos.
Não se vê o que notoriamente falte ou esteja a mais nelas, nem o que seja realmente opaco ou carente de adequada especificação.
A redacção e colocação das questões poderia, admitimos, ser mais esmerada e assertiva nas conclusões. Sobretudo, serem sustentadas por alegações formalmente bem delineadas quanto ao discurso e substancialmente bem estruturadas quanto à apresentação cristalina, lógica e consequente dos respectivos fundamentos.
Porém, nem isso nem a viabilidade quanto ao mérito ou demérito com que prima facie elas se apresentem, seja ao Tribunal seja aos apelados, serve de critério aferidor do cumprimento das exigências legais.
De resto, além de estes não apontarem nem justificarem o que nelas viram de deficiente ou obscuro, também não se crê, na medida em que lhes responderam plena e eficientemente, onde encontraram dificuldade em compreendê-las e em que medida.
Tal questão prévia improcede manifestamente.
Outra questão a arrumar antes de mais, respeita à suposta possibilidade de, nesta fase e por meio do recurso, os apelantes requererem a este Tribunal, por sua iniciativa e impulso, novos meios de prova (perícia) para demonstração de factos julgados não provados.
Com efeito, tendo-se na sentença decidido julgar não provado que, como fora alegado por eles, as “aberturas são janelas” e os pilares de suporte aos painéis “provocam” infiltrações de água para o interior do rés-do-chão do seu prédio, designadamente com fundamento na “míngua de imprescindíveis provas periciais” nunca antes requeridas por qualquer das partes, os recorrentes – além de, quanto a isso, alegarem que a sentença é nula – na conclusão 8ª formulam expressamente requerimento de que seja efectuada perícia.
Ora, é claro e dispensa melhor fundamentação, designadamente mediante a indicação das pertinentes normas adjectivas, que o recurso não é meio próprio para requerer novas provas que deviam ter sido apresentadas ou produzidas antes no tempo processual próprio (muito menos para repetir as que, em 1ª instância, tenham sido indeferidas).
Como tal, um requerimento assim atravessado pela parte só pode ser liminarmente rejeitado.
Sem embargo, não pode deixar de se ter em atenção que, na linha do princípio subjacente ao que dispõe, especialmente para a 1ª instância, o artº 411º, do CPC, também na alínea b), do nº 2, do artº 662º, do CPC, se comete à Relação o dever de, mesmo oficiosamente, ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios.
Deste jeito, o único sentido e utilidade com que tal requerimento pode valer é o de mera sugestão ao Tribunal para que, se tal entender necessário, oficiosamente lance mão de tal expediente – o que a seu tempo de considerará.
Neste contexto, ainda, importa assentar sobre o problema da inspecção judicial.
Tal meio de prova havia pelos apelantes sido requerido, logo na petição inicial, quanto ao “objecto da lide”, sem qualquer especificação concretizadora (ao arrepio do exigido no artº 475º). Relegada a sua apreciação para a audiência, foi, no final desta, decidido indeferi-lo por, em face da prova produzida e que viria a ser considerada frágil, não esclarecedora e duvidosa, então ter sido julgada tal inspecção como “manifestamente dispensável e inóqua para a decisão da causa” – cfr. relato.
Ora, da decisão que rejeite algum meio de prova cabe, nos termos da alínea d), do nº 2, do artº 644º, recurso autónomo, sujeito a regime algo diverso do da decisão final.
Por tal via e no tempo próprio, nenhuma atitude quanto a isso foi tomada.
Daí o trânsito da decisão.
De resto, nem no próprio recurso interposto e ora em apreço da sentença final, apesar de outras alusões feitas, os recorrentes questionam a referida decisão interlocutória vertida na acta da audiência e fundamentos nela vertidos, apenas aspirando a que deve ser realizada, tal como uma inspecção.
A rematar este capítulo prévio, deixa-se consignada a advertência de que a alusão repetida, no corpo das alegações, a uma servidão de estilicido e ao disposto no artº 1365º, do CC, é descabida no objecto do recurso, uma vez que alheia ao objecto do processo inicialmente proposto e nunca modificado.
Bem assim a referência, enfatizada pelos apelantes, no corpo daquelas, de que o Tribunal baseou a sua convicção no depoimento da ré mas que, porém, este não se encontra gravado, uma vez que bem sabe (ou devia saber e ter em conta para evitar inutilidades, visto que representado por Advogado na audiência), que, nesta, aliás como se colhe da respectiva acta (cuja fidedignidade não vem posta em causa), não foi tomado qualquer depoimento de parte (aliás, nunca requerido nem ordenado) e que, portanto, tal menção constituirá, na linha do sugerido pelos apelados, mero lapso do Mº Juiz recorrido, justificativo de reparação e não de qualquer exploração.
Desconsideram-se, pois, tais aspectos.
Prosseguindo.
Pela lógica jurídica, caberia, antes de nos pronunciarmos sobre os erros assacados à sentença, apreciar a questão da sua validade.
Sucede que, em consequência da reapreciação da decisão da matéria de facto, pode eventualmente suceder que tal apreciação acabe por ficar prejudicada.
Vamos, pois, primeiramente àquela.
Aí, comecemos por tratar da questão de saber se devem ser aditados e considerados como provados os factos ínsitos aos itens 22, 23, 24 e 28 da contestação.
Quanto às aberturas, cuja existência no 1º andar e no sótão da casa dos apelantes é pacífica, alegaram os réus:
-no item 22, que tais aberturas foram autorizadas pelo pai do réu marido, sob condição de servirem para iluminação e arejamento para os compartimentos onde se localizam;
-no item 23, que esta condição foi aceite pelos então donos do prédio;
-no item 24, que a abertura do 1º andar, feita em 1979/1980, em “forma de janela”, logo os donos daquele a frestaram, para evitar que devassassem, debruçando-se, o quintal da casa dos apelados;
-no item 28, que a abertura existente no sótão nunca foi frestada ou gradeada, apesar de compromisso nesse sentido aquando da sua abertura.
Ora, nenhum destes aspectos fácticos consta alegado pelos autores na petição, de modo a poder dizer-se que estão admitidos pelos réus. Alguns deles são mesmo opostos (maxime, a função e a data da sua alegada abertura em relação à da respectiva posse).
Não foi sequer facultado o exercício do contraditório sobre tal peça, de modo a que, antes da audiência, sobre alguns dos pontos nela alegados se estabelecesse no processo consenso.
Mesmo a descrição das características das janelas que ora ex novo os apelantes fazem nas alegações está em desarmonia com a que referem os apelados.
Daí que – sem prejuízo do que porventura se venha a entender ainda quanto à necessidade de apurar tais factos controvertidos – não deva haver lugar a aditamento deles nos termos do nº 4, do artº 607º, por não acordados.
A. Impugnação da matéria de facto
No âmbito dos danos cuja indemnização foi peticionada (morais, não inferiores a 3.000€, e patrimoniais, a liquidar em execução), notando-se que nenhum prejuízo próprio e concreto relacionado com a natureza destes foi factualmente descrito pelos apelantes em coisa sua (na petição, recorde-se, vaguearam pela abstracta alusão de prejuízos causados a outrem), haviam-se eles referido a “aborrecimentos”, perda de “tranquilidade” de “qualidade de vida”, “salubridade” e de “conforto”, “tristeza”, “angústia”, “afronta”, “noites sem dormir”, “nervosos”, “inquietação” e “alteração de paz de alma”.
O Tribunal recorrido, quanto a isso, resolveu dar como não provado, sem mais, que as obras “provocaram tristeza e angústia” – ponto 13. Em justificação, além de aludir aos depoimentos prestados e, nestes, ao que referiram quanto à matéria com ele relacionada, considerando-os frágeis quanto às “consequências psíquicas brandidas”, concluiu que, ante a sua “tibieza e insubsistência”, “impôs-se a sua não demonstração”.
Daí que tenha julgado não provado que as obras “provocaram tristeza e angústia”, assim condensando nesta alusão a sua falta de convencimento sobre a realidade de quaisquer prejuízos de natureza moral.
Ora, bem vistas as alegações, limitam-se os apelantes, quanto a tal ponto, a dizer que se justificava resposta inversa porque as testemunhas por si arroladas “mostram razão de ciência e depuseram com isenção e imparcialidade”, transcrevendo, depois, extractos de depoimentos de três das suas (oito testemunhas) testemunhas que a tal matéria se referiram.
Assim, além de propriamente não evidenciarem nem sequer apontarem a existência de um determinado erro de julgamento, o que logo conduz ao naufrágio de tal impugnação, a verdade é que, por um lado, os apelantes não atacam sequer a fragilidade e insuficiência com que o Tribunal recorrido apreciou e valorou o conteúdo da prova produzida sobre tal ponto de facto e que não tem a ver com o conhecimento acerca dele e a verticalidade dos depoimentos, e, por outro, dos quatro depoimentos extractados colhe-se que um deles não alude a tal aspecto (M. P.), outro (o do filho, J. D.) enfatiza de tal modo as consequências patológicas no dizer dele conexionadas com as obras que, ora porque nem sequer alegadas na petição, ora porque manifestamente interessadas e parciais, ora, ainda, porque embora verbalizadas por professor universitário (profissão declarada) são, contudo, requerentes de diagnóstico autorizado e credível do foro clínico (que se saiba não ao seu alcance), não se apresentam com um grau de clareza, coerência, firmeza e densificação que permita, com certeza e segurança, interligar a situação subsequente às obras com o estado de saúde e de espírito dos apelantes.
Acresce que às esparsas referências feitas no âmbito de respostas de assentimento a perguntas sugestivas sobre tal matéria, as outras duas testemunhas (M. A. e F. M.) não se mostraram espontâneas e precisas, dizendo esta última que os recorrentes nem sequer vivem na casa, não se colhendo explicação sobre se tal situação já assim se verificava antes da edificação da parede e implantação do painel ou se ocorreu depois e, neste caso, que ligação há (se é que há) entre aquela e estas.
Por isso, tal impugnação do ponto 13 não merece ser acolhida.
No ponto 12, o tribunal julgou não provado que os dois pilares referidos em 9 e 10 provocam infiltrações de água para o interior da adega/arrecadação existente no rés-do-chão do prédio dos apelantes.
Efectivamente, foi isso – e só isso – que estes alegaram na petição. Além do posicionamento relativo (desnivelado) de ambos os prédios e consequentemente dos painéis e dos dois pilares (cravados no solo para seu suporte) em relação ao rés-do-chão (mais baixo e “soterrado”), nada detalharam em ordem a concretizar e a explicar a natureza, volume e extensão das infiltrações, o seu percurso e modo como entendem que elas se processaram a partir da inovação até àquele espaço e, assim, a torná-las plausíveis.
Nem, tão-pouco, descreveram estragos e consequentes prejuízos porventura delas decorrentes, embora por estes tivessem pedido uma indemnização mas, cómoda e injustificadamente, remetida para liquidação em execução de sentença. Por nenhum modo, aliás, surgem documentados, por exemplo por meio de fotos, como seria normal, os vestígios de tais infiltrações, ao menos por tal via lhes dando ar de verosimilhança.
Na motivação, o Tribunal recorrido ajuizou como “claudicantes” os depoimentos sobre tal fenómeno, considerando “sem o mínimo de entono explicativo” e cingidas a “proclamação opaca” as menções verbalizadas pela testemunha L. F., genérico, conclusivo e lasso o depoimento de M. P. e que o próprio filho dos apelantes (testemunha J. D.) foi “incapaz de uma caracterização linear das mesmas …não deduzindo uma explicação suficientemente plausível para tal ocorrência”, concluindo que “à míngua de imprescindíveis provas periciais e documentais“ para determinar a existência e nexo de causalidade das infiltrações, não se convenceu da veracidade do alegado.
Os apelantes baseiam a impugnação deste ponto da decisão de facto mais num lamento por ter sido desatendido o seu requerimento de inspecção ao local, no argumento de que, face às dúvidas, ela se realize, acrescida de uma peritagem (que ora requereram, conforme supra dito), não detectando na motivação nem salientando, contudo, o erro em que terá laborado o Tribunal a quo.
De resto, dizem que “entendem que existe nexo de causalidade entre as obras de levantamento da placa metálica e as infiltrações de água para o interior da adega/arrecadação”.
Na verdade, além disso, apenas existem as passagens dos depoimentos testemunhais que, sem deles extraírem o que quer que seja em conexão com tal factualidade indicam e transcrevem.
Uma delas, a testemunha M. A., em resposta à pergunta, ela própria hipotética, sobre se “há possibilidades de ali, portanto, onde foram colocados os ferros para suporte dessas placas que foram colocadas à frente da janela, há a possibilidade de infiltrar águas nesse cimento”, respondeu: “No cimento não, mas num tubo que lá existia de uma caleira que apanha as águas do tal quintal, depois tem um corredor lá que era por onde as águas seguiam antigamente. O tubo agora está submerso porque foi enterrado na terra e entravam humidades para a tal dispensa. Ele chamou-me lá que eu não sabia”.
A outra, F. M., às perguntas sobre se a água entra lá e se existem infiltrações, respondeu afirmativamente e que: “existe. Meteram lá um tubo agora as águas entram todas pra lá porque até lá fui ajudar porque ali aquela senhora pediu-nos e fomos lá tirar umas batatas tava tudo podre e cebolas”.
A terceira, o filho dos autores, J. D., acerca do desnível entre pavimentos, logo adiantou: “Tanto que tem havido problemas de água, infiltração, porque a garagem dos meus pais e a parte de uma loja que têm lá ao lado, onde tinham a lanha e tinham batatas a água corre ali. Está num rio! Corre por baixo água que tudo que lá têm se estraga porque não podem ter nada, absolutamente nada, no chão”. E questionado sobre se antes lá havia tal humidade, respondeu que não, assentiu à pergunta sobre se tal apenas ocorreu depois das obras e justificou: “porque o cano que recolhia as águas do telhado foi colocado, enfiado, nessa terra, nessa parte da terra, que infiltra ali a água e escorre para onde é mais baixo como é evidente”.
Ora, tratando estes autos do cravamento no solo (dos réus) de dois pilares em ferro (presume-se que de reduzida secção, embora altos) que suportam os painéis ou chapas postadas em frente das aberturas, não resulta minimamente plausível, face ao que dizem as próprias testemunhas e ensinam as regras de experiência comum na matéria, que tenha origem em tal obra a alardeada humidade na adega/arrecadação.
Como dos depoimentos transcritos, conjugados com os demais elementos dos autos e as próprias alegações, parece poder retirar-se, com alguma segurança, o beiral da casa dos autores projectava-se sobre o espaço aéreo do prédio dos réus e pingava sobre este, havendo um tubo de escoamento. Este, entretanto, terá sido enterrado e o chão cimentado. Com isso – estamos agora a supor a partir do que sugerem os depoimentos – ter-se-á dificultado ou obstruído mesmo o curso das águas através de tal tubo, gerado uma pressão da mesma nessa zona do solo e, com isso, propiciado a propagação e penetração da mesma no interior do rés-do-chão adjacente.
A ser assim, como parece, é óbvio que, a haver humidades (o que as testemunhas afirmam), não resulta minimamente plausível que elas tenham origem no simples e aparentemente inócuo cravamento dos dois pilares de ferro no solo e, portanto, na obra de que tratam estes autos e que foi neles alegada como lesiva do direito de servidão de vistas.
Tal origem advirá, diferentemente, das mexidas no tubo e da colocação de cimento. Tanto é assim que, curiosamente, os autores, nas suas alegações, vieram agora, no recurso, alegar existir uma servidão de estilicídio em cuja lesão estará, afinal, a causa da obstrução ao curso das águas e possível infiltração delas no seu prédio.
Só que tal direito, obras lesivas dele, respectivos efeitos e consequências danosas, por nunca alegadas na devida oportunidade, são estranhas ao objecto deste processo, que tem regras a observar em caso de alteração da causa de pedir (artºs 260º, 264º e 265º, do CPC). É que, assim, o facto ilícito causador do dano consistiria, então, na violação da servidão de estilicídio e obras a ela associadas e não à colocação dos pilares e painéis alegadamente violadores da servidão de vistas.
Logo, ainda que existentes, nenhum erro se possa assacar ao juízo do Tribunal recorrido no sentido de ter julgado não provado que as infiltrações tivessem sido provocadaspelas específicas obras aqui em causa, não se crendo que, quanto a isso, e em face do quadro descrito, a realização de perícia (e mesmo da inspecção) conduzissem à comprovação da tese em que, apesar de tudo, os apelantes insistem.
Improcede, por tudo o exposto, a impugnação relativa a tal ponto 12.
Continuando.
Relativamente à factualidade integradora da pelos apelantes alegada servidão de vistas (e de ar e luz) adquirida por usucapião e fundada na existência de, no seu dizer, duas janelas abertas deitando directamente sobre o prédio dos apelados e à factualidade por estes alegada em contráriodaquela ou em fundamento do seu oposto direito a levantar os painéis contra aquelas, vedando-as (concluindo, a partir das características por eles descritas, que se trata de “frestas, seteiras ou óculos para luz e ar” ou “janelas gradadas”), o Tribunal recorrido julgou e decidiu como provado apenas que:
4. No 1º andar e no sótão do prédio citado em 1), existem duas varandas viradas para a Rua …, lado nascente e norte, e duas aberturas viradas para o lado poente com características não concretamente apuradas, uma no 1º andar e outra no sótão, viradas para o lado poente. 5. As duas aberturas referidas em 4) permitem a entrada de luz natural e o arejamento do prédio citado em 1).
E considerou como não provado que:
11. As aberturas referidas em 4) e 5) são “janelas” através das quais os Autores podem olhar em frente, o que fazem há mais de 35, 40 ou até 60 anos, à vista de todas as pessoas, sem a oposição de quem quer que fosse, de forma ininterrupta, com a convicção de exercerem um direito próprio.
Ora bem.
O artº 1360º, nº 1, do Código Civil, proíbe a abertura de janelas que deitem directamente sobre o prédio vizinho localizadas a menos de metro e meio deste.
Porém, a existência delas em contravenção à lei pode importar, nos termos gerais, a constituição da servidão de vistas, por usucapião – nº 1, do artº 1362º.
Caso seja, por usucapião ou qualquer outro título de entre os legalmente admissíveis, constituída a servidão de vistas, o proprietário do prédio vizinho (onerado) só pode edificar neste desde que, entre a edificação e as aberturas, deixe o espaço mínimo de metro e meio – nº 2.
Porém, às frestas, seteiras ou óculos para luz e ar – que se situem a pelo menos um metro e oitenta centímetros, a contar do solo ou sobrado, de altura (de ambos os lados da parede onde se encontrem) e não tenham mais de quinze centímetros numa das suas dimensões – não se aplicam as restrições do artº 1360º. Neste caso, porém, o vizinho pode levantar a todo o tempo casa ou contramuro sem ter que guardar qualquer espaço e ainda que vede as aberturas – artº 1363º.
Nos termos do artº 1364º, às janelas gradadas (com grades fixas de ferro ou outro metal, de secção não inferior a um centímetro quadrado e cuja malha não seja superior a cinco centímetros), quaisquer que sejam as suas dimensões e situadas a mais de um metro e oitenta centímetros do solo ou do sobrado, também não se aplicam as aludidas restrições (artº 1360º) mas o vizinho pode, semelhantemente, levantar edificação contra elas e vedá-las.
Como, acerca desta problemática, se refere no Acórdão desta Relação de Guimarães, de 07-12-2006 (2), resulta “do cotejo destes preceitos legais existirem três tipos de aberturas:
1º- Janelas: aberturas mais ou menos amplas, com pelo menos mais de 15 cm numa das suas dimensões, onde, no dizer tradicional, cabe uma cabeça humana, munidas de sistemas que podem abrir-se e fechar-se, permitindo a entrada de ar e luz, e ainda o debruçamento das pessoas nos seus parapeitos e gozo de vistas, sendo ainda possível, através delas, sacudir-se o pó de tapetes, verter líquidos e arremessar objectos, devassando, portanto o prédio vizinho, se circunstâncias ou regulamentos especiais a tal não obstarem.
E dentro destas, as janelas gradadas: aberturas, com pelo menos mais de 15 cm numa das suas dimensões, situadas a mais de um metro e oitenta centímetros do solo ou do sobrado, com grades fixas de ferro ou outro metal, de secção não inferior a um centímetro quadrado e cuja malha não seja superior a cinco centímetros.
2º- Frestas, seteiras ou óculos (aberturas de tolerância): aberturas que têm até 15 cm numa das suas dimensões e que se situam a um metro e oitenta centímetros ou acima de um metro e oitenta centímetros de altura, a contar do solo ou do sobrado, destinadas à entrada de ar e luz.
3º- Aberturas irregulares: aberturas abaixo da altura de 1,80 metros e/ou fora das medidas previstas no artigo 1363º, n.º2, ou seja, não toleradas por lei.
E tal distinção assume especial relevo, pois que a lei dá tratamento diferenciado a cada uma destas situações.
Assim, quanto às janelas, de harmonia com o disposto no citado art. 1360º , n.º1 , o dono do prédio vizinho tem o direito de exigir a sua tapagem caso as mesmas não distem um metro e meio deste prédio, estabelecendo o art. 1362º, n.º1 do C. Civil, que as janelas, em contravenção do disposto na lei, podem importar a constituição da servidão de vistas por usucapião.
Já quanto às frestas seteiras ou óculos, resulta do estabelecido no art.1363º, n.º1 do C. Civil, que as mesmas nunca importam a constituição de servidão, podendo ser tapadas pelo vizinho quando este resolver construir casa encostada ou contramuro, desde que no exercício legítimo do conteúdo do seu direito de propriedade (art. 1305º do C. Civil).
Contudo, no que respeito às referidas aberturas irregulares, não dá a lei tratamento específico.
E se é verdade que a doutrina e a jurisprudência estão divididas quanto à possibilidade de tais aberturas poderem, ou não, importar constituição de servidão de vistas [No sentido afirmativo, vide Pires de lima e Antunes Varela, in, “Código Civil, Anotado”, 2ª edª. revista e actualizada, pág. 225; Ac. da Relação de Évora, de 7.03.1991, in, CJ, ano 1991, tomo II, pág. 317; Ac. da Relação de Coimbra, de 29.10.96, in, CJ, ano 1996, Tomo IV, pág. 48. Em sentido contrário, vide Henrique Mesquita, in, RLJ, ano 128º, pág. 126; Ac. do STJ, de 3.4.91, in, BMJ n.º 406º, pág. 644; Ac. da Relação de Évora de 14.01.1999, in, CJ, Ano 1999, tomo I, pág. 262 e Ac. da Relação do Porto, de 21.09.2000, in, CJ, ano 2000, Tomo IV, pág. 189.], por usucapião, a verdade é que parece pacífico o entendimento de que as mesmas podem conduzir à constituição de uma servidão de ar e luz, por usucapião, posto que, nos termos do artigo 1544º do C. Civil, a servidão pode ter por objecto quaisquer utilidades Vide, doutrina e jurisprudência citadas. .
Assim, decorrido o prazo necessário para haver usucapião, o proprietário adquire uma servidão de ar e de luz, o que lhe confere o direito de manter tais aberturas em condições irregulares, impedindo, consequentemente o titular do prédio serviente de pedir a sua modificação e harmonização com a lei.”
No Acórdão do STJ, de 15-05-2008 (3), entendeu-se, sumariamente:
“1. O conceito jurídico de janela abrange a abertura e os elementos materiais que a compõem.
2. A diferença específica entre a janela, por um lado, e a fresta, a seteira e os óculos de luz, por outro, consubstancia-se, em relação à primeira, ao invés da última, no tamanho em largura e altura e na função de permitir a visão pelas pessoas de dentro para fora.
3. O objecto do direito real de servidão de vistas, susceptível de ser adquirido por usucapião, é a existência da janela em condições de por ela se poder ver e de devassar o prédio vizinho, independentemente da concretização dessa usufruição, consubstanciando-se o corpus da posse na existência daquela janela em infracção do disposto no artigo 1360º, nº 1, do Código Civil.
4. A reposição do direito de servidão de vistas, afectado pela construção de um muro no prédio serviente, apenas implica a sua demolição na dimensão do enfiamento da janela, em termos de salvaguarda da função e conteúdo daquele direito.”
No respectivo texto, justificou-se:
“A lei reporta-se a janelas, frestas, seteiras e a óculos de luz, mas não os define, pelo que é livre ao intérprete considerar que as mencionadas expressões assumem o sentido que lhes é dado na linguagem corrente, ou seja, com o significado que lhes é atribuído pelo comum das pessoas.
Por isso, ao invés do que os recorrentes alegaram, inexiste fundamento legal para se concluir no sentido da ilegalidade da utilização do termo janela na selecção da matéria de facto, designadamente na base instrutória, naturalmente com o sentido de abertura na parede exterior do prédio.
E mesmo na análise do comum das pessoas não é fácil a distinção entre janelas por um lado, e frestas, seteiras e óculos de luz por outro, esta última espécie designada por aberturas de tolerância
Mas a dimensão das mencionadas aberturas não superior a quinze centímetros e a sua localização a não menos de um metro e oitenta centímetros a contar do sobrado ou do terraço, conforme os casos, visa obstar a que por elas ocorra o devassamento dos prédios vizinhos situados nos limites do seu enfiamento imediato.
Tendo em conta a dimensão máxima prevista na lei para tais aberturas, poder-se-á afirmar que as frestas e as seteiras e os óculos significam as janelas muito estreitas ou as fendas abertas nas paredes de modo a permitirem a entrada de luz ou a claridade, as duas primeiras em regra de forma alongada, e os últimos de forma oval ou em círculo.
[…]
A expressão janela, derivada do latim janua, com o sentido de porta ou entrada, que é o comum, traduz-se numa abertura feita na parede externa das casas, em regra para entrada de ar e luz no seu interior ou para desfrute de vistas.
No caso de se colocar no vão das janelas uma grade, estar-se-á perante o que é designado por janelas gradeadas.
Na variedade das janelas, é prática distinguir as externas ou de peito - inseridas acima do solo ou do sobrado com peitoril ou parapeito, em que se apoiam os braços quando as pessoas nelas se debruçam – e as de sacada - semelhantes a portas de acesso a alpendres ou sacadas.
Em sentido jurídico, o conceito de janela abrange, além da abertura mencionada, os elementos materiais que a compõem, por exemplo as vidraças, que são peças de madeira, de plástico ou de vidro que se colocam nos respectivo vão para que penetre a luz e não o ar.
Dir-se-á, tendo em conta, além do mais, o que se expressa nos artigos 1362º e 1363º do Código Civil, que a diferença específica entre as janelas, por um lado, e as frestas, seteiras, gateiras e óculos de luz, por outro, é o tamanho em largura e altura e a função de permitir a visão pelas pessoas de dentro para fora quanto às primeiras e não em relação às últimas.”
Por seu turno, no texto do Acórdão da Relação de Coimbra, de 07-05-2013 (4), escreveu-se, aliás na esteira daquele acima citado proferido nesta Relação:
“Cunha Gonçalves, no seu Tratado de Direito Civil, Vol. XII, Coimbra Editora, 1938, pág. 87 - referia que “A inacção do proprietário vizinho, porém, dá lugar unicamente à servidão de ar e de luz”.
O mesmo sustenta Pires de Lima, ao dizer que “…o proprietário vizinho pode em qualquer altura levantar edificação, ainda que com ela tape as vistas ao prédio vizinho; o que não pode é tirar o ar ou vedar a luz porque estas ficam constituindo verdadeiras servidões” - Lições de Direito Civil (Direitos Reais), coligidas por Elísio Vilaça e David A. Fernandes. Coimbra: Atlântida Livraria Editora, 1933, pág. 229/230.
[…]
O art.º 1360º, nº 1 não define o que seja uma "janela", mas o conceito desta é-nos dado por exclusão de partes, com base no disposto no artigo 1363.º, o qual caracteriza as aberturas de tolerância, ou seja, as frestas, seteiras ou óculos para luz e ar - estas, com as reduzidas dimensões e os efeitos que lhes são peculiares, destinar-se-ão apenas a permitir a entrada da luz e do ar - ao passo que as janelas têm uma função mais ampla - estas, sendo aberturas maiores que aquelas, além de permitirem a entrada da luz e do ar, também possibilitam, em regra, caso não seja gradada, a vista e a saída de objectos com ocupação e devassamento do prédio vizinho - por janelas devem entender-se as aberturas que não só permitam a entrada de ar e luz, mas ainda a devassa do prédio vizinho, por permitirem a introdução da cabeça humana e, consequentemente o debruçar sobre o prédio alheio.
Assim sendo, são de considerar janelas todas as aberturas na parede que não possam considerar-se frestas, seteiras ou óculos para a luz e ar e, claro está, maiores que estas últimas - neste sentido Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, Volume III, segunda edição, 223; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Boletim do Ministério da Justiça 203; 169; acórdão da Relação do Porto, Colectânea de Jurisprudência, 1988, T1, 198.”
Por fim, salienta-se o que no mais recente Acórdão do STJ, de 03-03-2015 (5), se sumariou:
“Não devem as restrições ao gozo, tendencialmente pleno, dos direitos de uso, fruição e disposição da coisa sobre que incide o direito de propriedade ser ampliadas a obras cuja semelhança com as expressamente individualizadas na lei seja de afastar ou se apresente bastante duvidosa.
Tendo em mente a natureza excepcional da restrição imposta pelo art. 1362º do CC, só será suficiente para o preenchimento do corpus e do animus necessário à posse conducente à constituição da servidão de vistas por usucapião a manutenção de “janela”, com condições de através dela se poder ver, devassar e ocupar o espaço aéreo do prédio vizinho, sobre ele se debruçando ou projectando a parte superior do corpo humano.
Devem ser concebidas como irregulares as aberturas semelhantes a “frestas” e “janelas gradadas” mas com dimensões superiores e/ou situadas a uma altura inferior às indicadas, respectivamente, nos arts. 1363º e 1364º do CC– e que, nos termos anteriormente expostos, também não possam ser qualificadas como “janelas”.
A edificação e manutenção dessas aberturas irregulares, sem as características indicadas nos arts. 1363º e 1364º do CC, excedem o conteúdo do direito de propriedade e sujeitam o proprietário vizinho a um encargo a que este se pode opor, exigindo que as aberturas sejam afeiçoadas às condições (dimensão e afastamento do solo ou sobrado) impostas na lei. Se o proprietário vizinho não se insurgir contra o abuso cometido, a posse das utilidades daí resultantes pode originar a aquisição, por usucapião, de uma servidão predial, embora não de uma servidão de vistas atípica.
E uma vez constituída essa servidão predial, o dono do prédio dominante adquire o direito de manter essas aberturas em condições irregulares, cessando o direito de o proprietário vizinho exigir a sua harmonização com a lei, mas este não perde o direito de construir até à linha divisória, mesmo que tape as aberturas, porque a restrição que cria uma zona non aedificandi, no espaço de metro e meio, só é estabelecida em relação à servidão de vistas regulada no art. 1362º.”
E mais detalhadamente no texto, após transcrição dos artigos 1360º, 1362º e 1364º, lembra:
“Não é permitida a constituição, com carácter real, de restrições ao direito de propriedade ou de figuras parcelares deste direito senão nos casos previstos na lei (art. 1306º) e daí que as restrições aos direitos de construir ou edificar sejam excepções ao livre e tendencialmente pleno gozo dos direitos de uso, fruição e disposição da coisa sobre que incide tal direito (art. 1305º).
Por assim ser, não devem as excepções advindas dessas restrições ser ampliadas a obras cuja semelhança com as expressamente individualizadas na lei seja de afastar ou se apresente bastante duvidosa. Logo, mantendo sempre em mente a natureza excepcional da restrição imposta pelo art. 1362º, só a verificação da eventual existência duma abertura em contravenção com o disposto na citada norma (art. 1360º), portanto edificada em termos compatíveis com o enquadramento jurídico oferecido pela respectiva definição legal (“janela”) – no confronto com as realidades previstas nos arts. 1363º e 1364º (“frestas, seteiras, óculos para luz e ar” ou “janelas gradadas”) – poderá vir a importar, nos termos gerais, a constituição da servidão de vistas por usucapião. E a simples manutenção de uma “janela”, naquela acepção, ou seja, em condições de através dela se poder ver e devassar o prédio vizinho, será suficiente para o preenchimento do corpus e do animus necessário à posse conducente à usucapião.
Ao estabelecer um regime diferente para a “janela”, relativamente às demais aludidas realidades, a lei usa a expressão com o sentido que tem na linguagem corrente, sem lhe oferecer qualquer outro conteúdo. Todavia, nos termos assim expressos, a restrição imposta pelo art. 1362º só pode ser aplicável, no que aqui interessa, a aberturas/“janelas” que, pelas suas características, a justifiquem, em face da sua razão de ser e da sua excepcionalidade.
Na verdade, a servidão de vistas não se exerce com o facto de se desfrutar as vistas sobre o prédio vizinho, mas antes com a manutenção de uma janela – a obra que aqui relevaria –, em condições de, através dela, se poder ver e devassar esse prédio. Podemos, pois, precisar que o objecto da restrição em causa não é propriamente a visibilidade – muita ou pouca – sobre o prédio vizinho, mas a existência de uma janela que deite sobre o prédio vizinho, nas condições previstas naquele art. 1360°. «Pode a janela ou a porta estar fechada, desde que o não seja, definitivamente, com pedra e cal, que a servidão não deixa de ser exercida», como é explicado por P. Lima e A. Varela.
E adiantam os mesmos Autores: a lei pretende «facilitar as relações de vizinhança, não impedindo aqueles actos que não afectam gravemente os interesses do vizinho e que, pelo seu exercício continuado, poderiam conduzir à constituição de servidões». «Começam somente os prejuízos a ser atendíveis, se existir um parapeito, porque, neste caso, tal como numa janela, a pessoa pode debruçar-se, ocupando parcialmente o prédio alheio, e arremessar com facilidade objectos para dentro deste». «É dupla a finalidade da limitação [estabelecida no art. 1360º. Por um lado, pretende-se evitar que o prédio vizinho seja facilmente objecto da indiscrição de estranhos. Por outro lado, quer-se impedir que o prédio seja facilmente devassado com o arremesso de objectos».
O que também significa que não são propriamente (apenas) as vistas que interessam, mas o devassamento, ou melhor, a possível ocupação do terreno vizinho, a intromissão no espaço aéreo deste e possível arremesso de objectos, como ensinou o Prof. Pires de Lima: «Basta que, no parapeito de uma janela ou dum terraço, a pessoa se debruce numa atitude natural, ou estenda um braço, para que haja violação do direito de propriedade alheia, e é isso o que importa evitar».
Ainda na doutrina, salienta o Prof. Henrique Mesquita que:
«(…) as janelas e as frestas são aberturas feitas nas paredes de edifícios, mas que se distinguem não só pelas respectivas dimensões, como pelo fim a que se destinam. As frestas são aberturas estreitas, que têm apenas por função a entrada de luz e ar. As janelas, além de serem mais amplas do que as frestas, dispõem, de um parapeito onde as pessoas podem apoiar-se ou debruçar-se e desfrutar comodamente as vistas que tais aberturas proporcionam, olhando quer em frente, quer para os lados, quer para cima ou para baixo.
No nosso direito antigo (...) considerava-se janela toda a abertura, deixada na parede de um edifício, por onde coubesse uma cabeça humana.
Mas este critério, que foi formulado para edificações que apresentavam com frequência, em virtude das técnicas de construção ou dos materiais utilizados, aberturas (janelas) de dimensões muito exíguas, não parece hoje o mais adequado.».
[No] «conceito de janela devem incluir-se apenas as aberturas através das quais possa projectar-se a parte superior do corpo humano e em cujo parapeito as pessoas possam apoiar-se ou debruçar-se, para descansar, para conversar com alguém que esteja do lado de fora ou para disfrutar as vistas».
Idênticas considerações se colhem da jurisprudência:
«As aberturas situadas na parede exterior de um edifício que deitem directamente para o imóvel contíguo e alheio, podem permitir a constituição de uma servidão de vistas, se tiverem as características previstas no art. 1362º, em confronto com o disposto no art. 1363º, ambos do Cód. Civil, para serem classificadas como janelas. A diferença entre janelas e frestas está, além das suas dimensões, na finalidade de umas e outras. Assim, as janelas além de terem maiores dimensões, devem, em princípio, permitir através delas, a projecção da parte superior do corpo humano e ser dotadas de parapeito onde as pessoas possam apoiar-se ou debruçar-se para descansar, conversar com alguém que esteja do lado de fora ou para desfrutar as vistas, olhando quer em frente, quer para os lados, ou para cima e para baixo. Por seu lado, as frestas sendo de menores dimensões, e situando-se a altura superior a 1,80 metros do sobrado e do solo do prédio vizinho, não são servidas de parapeito e não permitem a projecção através dela do corpo humano sobre o prédio vizinho.».
«(…) as janelas, em sentido jurídico, além de darem ar e luz, permitem o devassamento do prédio vizinho, isto é, nos termos do artº. 1360º nº. 1 do Código Civil, têm de ser tais que “deitem directamente sobre o prédio vizinho”, por forma a permitirem o seu devassamento ou o debruçar pelo dono da janela».
«(…) Embora as aberturas em causa permitam aos recorrentes avistar o prédio dos recorridos, a sua estrutura não é vocacionada para o desfrute da utilidade das vistas em termos de direito real de servidão a que se reporta o artigo 1362º, (…) Assim, embora se trate de aberturas de maiores dimensões do que aquelas que a lei reserva às frestas, e permitam avistar o prédio dos recorridos, e, porventura, de algum modo, devassá-lo, não foram construídas para o desfrute das vistas».
Por conseguinte, a manutenção de uma abertura que não disponha de tal enquadramento fáctico e, consequentemente, jurídico não implica a futura constituição de servidão de vistas, porquanto não é possível a constituição, por usucapião, de uma servidão de vistas atípica, pelo que o proprietário vizinho, ao levantar edifício ou outra construção no seu prédio, não está obrigado a deixar entre o novo edifício ou construção e uma tal abertura o espaço mínimo de metro e meio.
Ora, as particularidades do postigo aqui invocado pela apelante, se não consentem a sua qualificação como “janela gradada” – porque, não obstante a sua aparência, se situa a menos de um metro e oitenta centímetros do sobrado – também não o deixam caber no conceito de janela, para efeitos do artigo 1360º, respeitante a aberturas mais amplas, que permitem não apenas a entrada de luz e ar mas, ainda, a devassa do prédio vizinho. Só esta concepção se adequa à finalidade prosseguida com a restrição pelo legislador que é a de evitar que o prédio vizinho possa ser devassado ou ser facilmente objecto da indiscrição de estranhos – o que sucederá sempre que sobre ele as pessoas se possam debruçar –, e impedir que seja devassado com o arremesso de objectos.”
Feito este enquadramento jurídico, regressemos à questão de facto e aos pontos em apreço.
Sendo pacífica nos autos a existência de duas aberturas (uma no 1º andar e outra no sótão), feitas na parede da casa dos apelantes que confina com o prédio dos apelados e deitam para este (aberturas essas que aqueles apelidam de janelas, por si usadas para através delas verem, iluminar e ventilar os compartimentos, mas que os apelados dizem apenas ter sido consentidas para estas duas finalidades e nunca para aquela), ficaram controvertidas – como melhor resulta do relato inicial sobre o teor dos articulados – as circunstâncias fácticas respeitantes à origem daquelas (aberturas), data em que estas terão sido feitas, espírito em que no princípio tal ocorreu (acordo e tolerância ou decisão dos antecessores dos apelantes), respectivas características (nomeadamente distâncias, localização na parede, dimensões, forma e materiais de preenchimento dos vãos, respectivo desenho e medidas, mobilidade ou amobilidade), função que têm ou uso que lhes foi dado pelos autores ou anteproprietários com o decorrer do tempo, com que ânimo e postura das partes, desde quando e com que relevo perante o público.
A alegação, apuramento e decisão, em matéria de direitos reais, de tais factos controversos, é particularmente exigente e, por isso mesmo, complexa. Isto apesar de as “coisas” de que trata esse capítulo da legislação juscivilística frequentemente por elas próprias se evidenciarem e loquazmente esclarecerem, ajudando a perceber a sua natureza e a descobrir o regime jurídico inerente. É, porém, indispensável atentar na realidade envolvente, se possível observando e ouvindo in loco, e descrevê-la claramente com toda a minúcia em ordem a facilitar a tarefa complicada de subsumir os factos às normas e decidir justamente.
Ora, sobre as alegadas “janelas” ou “frestas”, limitou-se o Tribunal recorrido a dar como provada a existências das aberturas (pacíficas, como se disse), mas “com características não concretamente apuradas” e a respectiva funcionalidade (lógica e natural) de que permitem a entrada de ar e luz. E a dar como não provado, conclusivamente, que tais aberturas “são janelas” e que os autores por elas “podem olhar em frente, o que fazem há mais de 35, 40 ou até 60 anos, à vista de todas as pessoas, sem a oposição de quem quer que fosse, de forma ininterrupta, com a convicção de exercerem um direito próprio”.
Não se pronunciou o Tribunal recorrido sobre a factualidade pelos apelados alegada na contestação, tudo remetendo para “enunciados” que perspectivou como “meras declarações genéricas, juízos de inferência ou apreciações jurídicas, ou factos instrumentais à luz do objecto do processo, inidóneos para integrarem a supra matéria fáctica pertinente/nuclear.”.
Justificou tal julgamento, para além da tabelar e genérica menção ao rol dos diversos meios de prova produzidos e invocação abstracta das regras e princípios, na concreta referência a que, segundo a sua perspectiva, a testemunha M. A., quanto às alegadas janelas foi “excessivamente proclamatória e predeterminada, não positivando a exigível concretização descritiva das mesmas, limitando-se a indexá-las ao 1º piso e ao sótão e aflorando perfunctoriamente que as mesmas existem há mais de 30 anos”; que as testemunhas F. M. e L. F. terão “sublinhado de forma clara e descomprometida que «não dão para espreitar, só para iluminar, dar claridade», imputando com verosimilhança a sua existência desde a construção da casa”, destacando que o primeiro “assinalou a existência das preditas janelas com a tolerância da mãe do réu”; que a testemunha J. D. (filho dos apelantes) “revelou-se tíbio e com uma narrativa descontinuada e desprovida de lastro fáctico explicitante com referência às alegadas janelas, afigurando-se incapaz de uma caracterização das mesmas”; que o depoimento da testemunha M. P. foi “enredado em enunciados genéricos, conclusivos e desprovidos de suficiente concreção fáctico-fundamentante, abordando predeterminamente e lassamente a matéria concernente às janelas…, não sabendo tampouco indicar se as sobreditas janelas têm grades”; que as cinco testemunhas dos apelados “configuraram-se enquistadas na tutela da posição dos réus…configurando-se sofregamente preordenadas em sede da asserção de que as janelas indicadas pelos autores têm grades”.
Nesta linha, considerou as fotos juntas – duas das quais retratam duas aparentes janelas mas sem que mais se consiga observar e concluir delas com certeza – “dubitativas”, salientou não terem sido produzidas provas documentais ou periciais (6) mais esclarecedoras, concluindo pela “claudicância e inconsistência das testemunhas dos autores” e “míngua de imprescindíveis provas periciais e documentais” (recorde-se que, no fim de tudo e apesar disto, foi indeferida a inspecção ao local requerida na petição inicial).
Os autores, salientando que a questão essencial dos autos se prende com a qualificação jurídica das duas aberturas, não se conformam, face às dimensões que os apelados na contestação até lhe atribuíram e às outras medidas e características que agora (mas só agora) alegam, considerando que os factos integrantes da servidão deviam ter sido julgados provados mas enfatizando que, face às dúvidas salientadas pelo Mº Juiz recorrido, sobre os depoimentos e as fotos, para as remover devia ter sido levada a cabo a inspecção ou deverá ainda ordenar-se peritagem.
Ora, das indicadas e transcritas passagens dos depoimentos, resulta que a testemunha M. A. refere a existência de “janelas”, isto “há trinta e tal 40 anos”, pensando que desde a construção da casa hoje dos apelantes e as consequências do tapamento. A testemunha F. M. apontou “dois janelos” ou “duas janelas pequenas” que remontam à construção da casa, acrescentando que elas eram “só mais para claridade porque nem se serviam das janelas mal abriam as janelas…aquilo deixaram fazer a mãe do senhor que é o actual dono é que deixou abrir aquelas janelas há mais de 40 anos”. A testemunha J. D., por seu turno, salientou que o tapamento eliminou qualquer tipo de visualização, de circulação de ar e de passagem de luminosidade, que, tendo 55 anos de idade, sempre existiram, enquanto qua testemunha M. P., questionado sobre se as janelas são “pequenas, médias ou grandes”, disse “médias”, sublinhando os apelados, nas suas contra-alegações, que estes dois disseram não saber se tais janelas tinham grades.
Tendo sido os apelados quem alegou ser “frestada” apenas a janela do 1º andar, o certo é que à suas testemunhas ninguém refere a confirmação de tal facto, não se percebendo a que se devem aquelas outras expressões de desconhecimento provindas das dos apelantes (estranha a do filho…), sendo, no entanto, evidente que a discussão tecida no decurso da audiência e, por isso, as instâncias feitas às testemunhas, terão aligeirado a indagação desse aspecto bem como de todos os demais relacionados com a caracterização e função das aberturas, como, face à dificuldade do objecto do processo e à complexidade do regime legal aplicável (o que se pôs em evidência acima, nomeadamente quanto à possibilidade de servidão apenas de ar e luz), seria desejável.
Efectivamente, no regime processual actual o princípio dispositivo está atenuado, os poderes inquisitórios do juiz aumentados e, consequentemente, os deveres relativos à produção de meios de prova ampliados. Comete-se-lhe mesmo a função de suprir as lacunas as partes, ainda que tecnicamente patrocinadas. O modelo do juiz passivo foi substituído pelo do juiz activo. O regime processual anterior, de cariz acentuadamente formal pautado por preclusões, deu lugar ao novo, mais preocupado com o julgamento em substancia das questões na mira de melhor justiça material.
Cabendo àquelas alegar os factos essenciais relativos à causa de pedir e às excepções, o juiz deve considerar, na sentença, além dos notórios e funcionais, os que resultem da instrução da causa e sejam complementares ou concretizadores daqueles que emanem da instrução da causa, bem como os factos instrumentais, nos termos dos artºs 5º, nº 2, 552º, nº 1, d), 572º, c), e 607º, nºs 3 e 4, do CPC.
Antes, porém, notando-se nos articulados imprecisões ou insuficiências na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, incumbe ao juiz, nos termos do artº 590º, o dever de convidar as partes a supri-las, dentro dos limites do artº 265º.
Cabendo-lhe também dirigir activamente o processo (artº 6º) e cooperar com as partes na obtenção da justa composição do litígio (artº 5º 7º), dispõe de todos os poderes necessários para assegurar a justa decisão da causa (artº 602º, nº 1).
Na instrução – que tem por objecto os temas da prova tal como delineados no artº 596º e não se cinge a aspectos parcelares e atomísticos antes envolve os instrumentais, complementares e concretizadores referidos no artº 5º, nº 2, que no seu decurso com relevo emerjam da produção de prova – “incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer”, conforme artº 411º.
Para tal, pode, por sua iniciativa, requisitar informações, pareceres, plantas, fotografias, desenhos, objectos ou outros documentos necessários ao esclarecimento da verdade (artº 436º), tomar depoimentos de parte (artº 452º), determinar a realização de perícia, fixar o seu objecto, presidir ao acto de inspecção dos peritos, inspeccionar coisas ou pessoas para tal podendo deslocar-se ao local da questão, tomar a iniciativa de inquirir testemunhas e até ouvi-las aí (artºs 467º, 477º, 480º, 490º, 526º e 501º).
Recaindo sobre as partes o ónus da prova (artºs 341º, e sgs, do Código Civil) dos factos constitutivos do direito invocado ou de excepções contra este alegadas, é certo que a dúvida sobre a realidade deles resolve-se contra a parte a quem aproveitam (artº 414º).
Não se trata porém de qualquer dúvida.
À semelhança do que estatuem o nº 1, do artº 8º, do Código Civil, e o nº 2, do artº 3º, da Lei 21/85,de 30 de Julho (EMJ), a respeito da obrigação de julgar e proibição de o não fazer com fundamento em dúvida sobre os factos do caso litigioso, num sistema como o nosso em que o dispositivo, embora prevalecente, já estava e está agora ainda mais amplamente esbatido pelos poderes inquisitórios cometidos ao juiz na busca da verdade material, o non liquet só desencadeará a aplicação do princípio consignado no artº 411º se nenhuns outros elementos (de facto ou de prova) tiverem sido aportados ao processo pela parte contrária e ao próprio juiz não se perspectivarem ou estiverem esgotadas as diligências necessárias ao esclarecimento da verdade e remoção da dúvida, tornando então esta insanável. (7)
Nesta linha, à própria Relação se cometem os deveres de – mesmo oficiosamente, como proclama a lei – ordenar a renovação da produção da prova, ordenar a produção de novos meios de prova, alterar a decisão da matéria de facto se reputar esta deficiente, obscura ou contraditória sobre certos pontos ou indispensável a sua ampliação, ou mesmo anulá-la, se do processo não constarem todos os elementos capazes de a permitir; e, ainda, determinar que o tribunal de 1ª instância proceda devidamente à fundamentação da decisão nos termos e segundo as regras decorrentes do nº 4, do artº 607º, procurando expor o mais explícita e fielmente que lhe for possível o percurso analítico feito dos meios disponíveis, a apreciação concreta merecida, o valor conferido, as conclusões extraídas e todos os demais aspectos e critérios confluentes na decisão tomada. (8)
Aqui chegados, estamos em condições de afirmar que a decisão da matéria de facto, quanto aos pontos provados nºs 4 e 5 e ao não provado nº 11, fundada em dúvidas sobre o resultado da prova produzida, e estas na míngua de outros meios e, assim, no não apuramento das características concretas das aberturas, padece de deficiência, obscuridade e insuficiência, não justificando devidamente por que não lançou mão o Tribunal recorrido de outros factos porventura resultantes da instrução e discussão (ou nestas alcançáveis) nem dos meios de prova oficiosamente ao seu alcance para esclarecer a sua incerteza sobre as características das aberturas e suas potencialidades ou fundamentar a insanabilidade da dúvida, tanto mais que a prova ou contraprova produzida pelos réus se lhe apresentou toda “enquistada”, mormente quanto à existência de “grades” e, por isso, inidónea para afastar mais seguramente a tese dos apelantes.
Com efeito, face ao mais atrás já referido sobre a diversidade típica das aberturas do género, para a solução de mérito relativa à questão da servidão de vistas, de ar e de luz, não releva, como facto, concreto, objectivo e decisivo, julgar se as aberturas “são janelas” (ou se serão “frestas”). Interessa, isso sim, saber as exactas e completas características das aberturas existentes, de modo a, chame-se-lhes o que se lhes chamar na prática (janelas, janelos, frestas, óculos, postigos, etc.), determinar o regime legal a que, em função daquelas, devem sujeitar-se.
Não se considerando apuradas tais características, é incongruente ajuizar sobre o que são ou não são as aberturas e quais as suas aptidões (designadamente se através delas podem os apelantes olhar e para onde podem ver ou se apenas servem para passagem de ar e luz). Uma vez definidas aquelas, é que terá sentido ajuizar sobre qual o uso e aproveitamento que lhes pode ser e teria sido dado, nomeadamente pelos apelantes (e antecessores) e o animus com que o fizeram no âmbito da posse necessária para usucapião.
Apesar de alegado pelos apelados e relevante para contrariar a tese dos apelantes ou obstar a qualquer pretensão destes e legitimar a edificação levada a cabo por aqueles, não foram considerados, discutidos, apreciados e decididos factos da contestação, a saber:
-data da execução das aberturas (em 1979/80, a do primeiro andar; em 1984/1985 a do sótão; ou ambas contemporâneas da construção do prédios dos autores, como dizem as testemunhas);
-se a execução das aberturas foi objecto de autorização pelo pai do réu; só para permitir entrada de ar e luz; os então donos do prédio dos apelantes aceitaram tal condição;
-se a do primeiro andar tem 60 centímetros de largura; está situada a mais de 1,80 metros a contar do solo; tem 4 barras fixas de ferro, distantes entre si 12 cm;
-se no quintal da casa dos apelados havia uma figueira cuja ramagem impedia as vistas e devassa através da abertura do solo.
Além destes, naturalmente deverão ser, caso resultem da instrução, considerados outros factos instrumentais, complementares ou concretizadores das características das aberturas (forma, medidas, localização/situação em ambos os lados das paredes e em relação ao prédio dos apelados, estrutura de que estejam dotadas para fecho do vão relativamente a materiais, dimensões, forma e mobilidade respectiva), das suas utilidades e do uso dado às mesmas pelos apelantes e termos em que tal exercitaram.
Só depois de indagados tais factos, esgotados os meios de prova e caso subsistam dúvidas sobre as características das aberturas em questão deverá, então, operar a regra do artº 411º e dela tirar as devidas consequências.
Posto isto, não constando do processo todos os elementos para tal, decidir-se-á, ao abrigo do disposto no artº 662º, nº 2, alíneas c) e d), a anulação da decisão da matéria de facto, e repetição consequente do julgamento, com prolação subsequente de nova sentença, para esclarecimento, complemento e ampliação da matéria de facto, nos termos e na parte supra apontados (ou seja, no ponto 4, quanto às exactas características das aberturas; no ponto 5, quanto à possibilidade os apelantes verem através delas; e no ponto 11, sobre o proveito possível e tirado pelos apelantes e características da sua actuação em termos possessórios e na perspectiva da usucapião), sem prejuízo da apreciação de outros pontos para evitar contradições, repetindo-se a prova com incidência naqueles ponto, devendo o Mº Juiz recorrido usar todos os poderes oficiosos que a lei lhe confere para, justamente, com certeza e segurança, remover as dúvidas ou justificar a impossibilidade de estas serem ultrapassadas.
No fundo, cremos que a tal desfecho se referiam os apelantes ao brandirem (imprecisamente, mas com alguma razão como se vê) vícios da decisão de facto subsumindo-os embora erradamente ao disposto no artº 615º e pedindo impropriamente a anulação da sentença (9).
B. Invalidade da sentença e impugnação da matéria de direito
Em face do exposto, além do demais pretendido no recurso quanto à matéria de facto, as questões elencadas no capítulo da alegada nulidade da sentença (que é realidade e tem regime diverso do da decisão de facto) não compreendidas na anulação da decisão sobre aquela e no da reapreciação da decisão de mérito, ficam prejudicadas.
V. DECISÃO
Nos termos e com os fundamentos, de facto e de direito, acima expostos, anula-se a decisão proferida sobre a matéria de facto dos pontos acima referidos e determina-se a baixa do processo, para os fins ali mencionados.
Custas pela(s) parte(s) vencida(s) a final, na medida em que o for(em) – (artºs 527º, nºs 1 e 2, e 529º, do novo CPC, e 1º, nºs 1 e 2, 3º, nº 1, 6º, nº 2, referido à Tabela anexa I-B, 7º, nº 2, 12º, nº 2, 13º, nº 1 e 16º, do RCP).
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Notifique.
Guimarães, 02 de Novembro de 2017
José Fernando Cardoso Amaral
Helena Maria de Carvalho Gomes de Melo
João António Peres de Oliveira Coelho
1. Cuja utilidade o caso nem requeria e manifestamente se frustrou.. 2. Proferido no processo nº 2282/06-2, relatado pela então Srª Desembargadora Rosa Tching, 3. Proferido no processo nº 08B1368, relatado pelo Consº Salvador da Costa, 4. Proferido no processo nº 1090/12.9TBVIS.C1, relatado pelo Desembargador José Avelino Gonçalves. 5. Proferido no processo nº 335/13.2TBAGN.C1, relatado pelo Consº Alexandre Reis. 6. Foi, contudo, realizada uma, no dealbar do processo, oficiosamente, para determinação do valor da causa. 7. Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2ªedição, páginas 445 a 451. 8. Como sumariamos no Acórdão desta Relação de Guimarães, de 02-05-2016, proferido no processo nº 196/13.1TBVRM.G1, com o mesmo Relator e 1ª Adjunta, “I) Numa sentença, tal como a parte da decisão do mérito jurídico da causa (artº 615º) pode conter vícios graves que a invalidem, também a da decisão da matéria de facto, além de poder ser errada, é susceptível de, entre outras patologias, sofrer de vícios que conduzam, além do mais, à sua anulação. É o caso da alínea c), do nº 2, do artº 662º, CPC. […] III) Em acções que tenham por objecto direitos reais, como o de propriedade e os de servidão, a alegação, selecção, instrução, prova, julgamento e decisão da matéria de facto atinente (tal como a sua reapreciação), não é simples nem fácil. Exige larga, paciente e profunda indagação, sempre que possível in loco, visando captar e compreender minuciosamente a realidade e descrevê-la com rigor, clareza, precisão, pormenor, coerência e perfeição, para sobre ela operarem os institutos jurídicos convocados. IV)Mais do que especular teoricamente acerca de conceitos jurídicos ou operar com expressões vagas e conclusivas, como, por exemplo, as de “sinais inequívocos e permanentes” ou de “detenção da posse”, importa descer e descobrir, no terreno, os factos simples e concretos expressivos dos interesses dos litigantes que gravitam em torno daqueles e que com as respectivas pretensões a dirimir se entrecruzam.V)Verificando e decidindo a Relação – mesmo oficiosamente, nos termos do artº 662º, nº 2, do CPC –, que a decisão da matéria de facto não contém fundamentação devida, é obscura, contraditória e insuficiente, precisando de ser fundamentada, esclarecida, harmonizada e completada, mas não constando do processo todos os elementos que, nos termos do nº 2, permitam alterá-la em conformidade, deve aquele Tribunal anular tal decisão e ordenar a baixa do processo para repetição da prova necessária e suprimento dos vícios, de preferência pelo mesmo juiz se tal for viável. […] VIII. Sempre, mas especialmente nas acções reais, a “percepção directa dos factos” pelo tribunal no terreno, quando naturalmente possível, como meio de compreensão e de prova dos alegados e até como meio de suprir a (cada vez mais) frequente alegação e selecção (agora nos temas da prova) deficiente deles, é indispensável, dado o grau absolutamente decisivo de certeza, segurança, confiança, credibilidade e indiscutibilidade que aporta ao julgamento da matéria de facto e, por consequência, do mérito da causa. IX)Aliás, não podendo evidentemente, na produção de tal meio de prova tal como na decisão, exceder-se os limites traçados no nº 1, do artº 5º, do CPC, já no campo das possibilidades abertas pelas alíneas a) e b), do seu nº 2, pode ser encontrado, registado e considerado um manancial de factos instrumentais, complementares ou concretizadores de capital importância para a justa decisão da causa.” 9. Anota-se que marginalmente os apelados não deixaram de aludir à circunstância de os apelantes litigarem com apoio judiciário, com isso querendo desvalorizar a sua pretensão recursiva. Em nada isso influenciando, como é óbvio, a busca de uma justa e fundamentada decisão do litígio, é de lembrar que o Tribunal não deixará de oficiosamente estar atento a qualquer conduta processual integrante de litigância de má fé e que da apreciação e decisão desta podem derivar implicações naquele benefício.