DOAÇÃO MODAL
RESOLUÇÃO
Sumário

I - A doação modal ou com cláusula modal caracteriza-se por ser aquela em que o donatário fica adstrito ao cumprimento de uma ou mais prestações no interesse do doador ou de terceiro, ou, mesmo, no seu próprio interesse.
II - A obrigação ou o dever contraído pelo donatário não representa uma contraprestação, e muito menos o correspectivo ou equivalente, da atribuição patrimonial que lhe é feita, mas um simples ónus, restrição ou limitação dela.
III - Não basta que o doador alegue e prove o incumprimento do encargo imposto e que a cláusula modal foi a causa impulsiva da doação, para obter a resolução da doação; é necessário que o direito de resolução lhe seja conferido pelo contrato e, portanto, corresponda a uma vontade real susceptível de desentranhar a sua eficácia em sede interpretativa”.

Texto Integral

Acordam nesta Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I - RELATÓRIO
I… intentou a presente acção declarativa, com processo ordinário, contra A… e P… , pedindo que se declare resolvida a doação por si efectuada a estes últimos com base em incumprimento dos encargos ali previstos.
Fundamentando a sua pretensão, alega a autora, em síntese, que doou dois prédios aos réus, ficando estes obrigados a tratar de si na saúde e na doença, prestando-lhe todos os serviços pessoais e domésticos de que ela carecesse, bem como a alimentação, vestuário, tratamento médico, medicamentoso e hospitalar, quando ela disso necessitasse, sendo que aqueles não cumpriram tal obrigação, designadamente, não contribuíram com quaisquer quantias para os seus gastos nem a apoiaram nas sucessivas doenças de que veio padecendo.
Os réus, devidamente citados, não constituíram mandatário nem contestaram.
Foi proferido despacho a considerar confessados os factos articulados pela autora.
Cumprido o disposto no art. 484º, nº 2, do CPC, não foram apresentadas alegações.
Após, foi proferida decisão a julgar improcedente a acção.
Inconformada com o decidido, recorreu a autora para esta Relação, encerrando o recurso de apelação interposto com as conclusões que a seguir se transcrevem:
«1º - A recorrente intentou a presente acção com vista a ser reconhecido o incumprimento por partes dos recorridos, dos encargos previstos na escritura de doação celebrada no dia 15 de Março de 2005, no Cartório Notarial de Esposende e a ser declarado resolvida a aludida escritura;
- Os recorridos não contestaram;
- A Meritíssima Juíza “a quo” julgou improcedente a acção;
4º - A revelia dos recorridos determinou a confissão de todos os factos articulados pela recorrente;
- Dispõe o artigo 966 do Cód. Civil que “o doador, ou os seus herdeiros, também podem pedir a resolução da doação, fundada no não cumprimento de encargos, quando esse direito lhes seja conferido pelo contrato”;
6º - O professor Carlos Alberto Mota Pinto defende que “parece inferir-se do art. 966.º que o doador ou seus herdeiros poderão pedir a resolução de toda a doação, apenas quando, por interpretação do contrato, esse direito lhes seja conferido. Não bastará, portanto, provar, por qualquer meio, que a cláusula modal foi causa impulsiva da doação, isto é, que o doador a não teria feito se soubesse que o inadimplemento teria lugar, é necessário que o direito de resolução lhe seja conferido pelo contrato e, portanto, corresponda a uma vontade real susceptível de desentranhar a sua eficácia em sede interpretativa. Isto no que toca à resolução de toda a doação, com fundamento em não cumprimento do encargo modal. Parece, porém, que, no caso do modo com valor patrimonial, o doador sempre poderá resolver a doação na parte correspondente ao valor do encargo, com fundamento na condição resolutiva tácita (arts. 801.º, n.º 2, e 808.º). Com efeito a doação com cláusula modal de valor patrimonial, parece ser um negócio misto, a tratar com negócio gratuito e unilateral, na parte excedente ao valor do encargo, e como negócio oneroso e bilateral até à correspondência desse valor. Ora, nos contratos bilaterais, em caso de inadimplemento culposo do devedor, a outra parte pode resolver o contrato 8arts. 801.º, n.º 2, e 808.º)”;
- O Dr. Francisco Alves dos Santos partilha da mesma opinião (Ciência e técnica Fiscal, nº 120, p. 225);
- Consta da escritura de doação celebrada no dia 15 de Março de 2005, no Cartório Notarial de Esposende que “pela presente escritura a sua representada Idalina, doa aos segundos outorgantes, seu filho e nora, por conta da quota disponível dela doadora, os prédios acima identificados, com as seguintes condições:
a) A doadora reserva para si o usufruto dos bens doados;
b) Os donatários ficam obrigados a tratar a doadora na saúde e na doença, prestando-lhe todos os serviços pessoais e domésticos de que ela carecer, bem como a alimentação, vestuário, tratamento médico, medicamentoso e hospitalar, quando ela disso necessitar”;
- A condição prevista na aludida escritura tem carácter patrimonial e não, pessoal;
10º - Ao não contestarem, os recorridos aceitaram como verdadeiros todos os factos alegados na p.i. reconhecendo, dessa forma, que não honraram, com culpa, os compromissos a que, voluntariamente, se submeteram em contrapartida da doação que livremente aceitaram;
11º - Ao não cumprirem os encargos a que se obrigaram, os recorridos, pura e simplesmente, desinteressaram-se da recorrente;
12º - Segundo o professor Antunes Varela, “o contrato é sempre um negócio jurídico bilateral, visto nascer do enlace de duas (ou mais) declarações de vontade contrapostas e ter assim sempre duas partes (em regra, dois contraentes). Mas há negócios bilaterais (contratos) que só criam obrigações para uma das partes (um dos lados). Assim sucede em regra na doação (art. 940.º), no comodato (art. 1.129.º), no mútuo e no mandato gratuito (art. 1 157.º), etc. Estes são os contratos unilaterais.
Dos contratos bilaterais (ou sinalagmáticos), como a compra e venda ou a locação por exemplo, não só nascem obrigações para ambas as partes, como essas obrigações se encontram unidas uma à outra por um vínculo de reciprocidade ou interdependência”;
13º - Acrescenta que “fala-se em sinalagma genético para significar que, na génese do contrato, a obrigação assumida por cada um dos contraentes constitui a razão de ser da obrigação contraída pelo outro”;
14º - A presente escritura de doação é um contrato bilateral, um contrato sinalagmático genético uma vez que a doação foi realizada pela recorrente impondo aos recorridos, encargos;
15º - Com a escritura de doação nasceram obrigações para ambas as partes.
16º - Ao não cumprirem com os encargos indicados na escritura de doação, os recorridos agiram com culpa;
17º - Este reconhecimento de culpa está implícito na falta de contestação;
18º - Os recorridos não cumpriram com nenhum dos encargos previstos na escritura de doação;
19º - Assumiram um comportamento censurável;
20º - O nº 1 do artigo 799 do Cód. Civil prevê que “incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua”;
21º - Recaia sobre os recorridos, a prova de que a falta de cumprimento dos referidos encargos não era culpa deles;
22º - Atendendo ao nº 2 do artigo 801 “tendo a obrigação por fonte um contrato bilateral, o credor, independentemente do direito à indemnização, pode resolver o contrato e, se já tiver realizado a sua prestação, exigir a restituição dela por inteiro”;
23º - A falta de cumprimento legítima a resolução do contrato;
24º - Após a celebração da escritura de doação, os recorridos nunca se interessaram pela recorrente;
25º - Entre outros acontecimentos, a recorrente sofreu um AVC, fez fisioterapia, partiu uma perna e teve de fazer radioterapia na sequência do diagnóstico de um tumor no ouvido esquerdo;
26º - Teve de arranjar uma pessoa que cuidasse dela mediante o pagamento de uma contraprestação pecuniária;
27º - A recorrente, sem a ajuda dos recorridos, tem conseguido pagar o salário da pessoa que cuida dela, os medicamentos, o médico que a visita todos os meses, a água, a luz, o telefone, o gás, vestuário, calçado, ou seja, todas as despesas fixas mensais;
28º - Deixou de ter interesse no cumprimento por parte dos recorridos, dos encargos fixados na escritura de doação;
29º - Como mãe, nunca teria “coragem” de instaurar contra o seu filho e sua nora, um processo executivo com vista a obrigá-los a cumprir os encargos fixados na escritura de doação;
30º - A doação foi, exclusivamente, realizada pela recorrente a favor dos recorridos sob a condição de estes cumprirem os encargos fixados na mesma os quais são de carácter patrimonial;
31º - Encargos esses que a recorrente tem suportado sem necessitar da ajuda dos recorridos;
32º - Atendendo ao carácter patrimonial dos encargos fixados na escritura de doação cujas características são claramente de um contrato bilateral, a recorrente tem o direito de pedir a resolução da mesma;
33º - A sentença recorrida violou as seguintes disposições legais:
- artigos 344, 798, 799, 801 nº 2 , 808».
Termina pedindo que seja revogada a decisão recorrida, a substituir por outra que julgue a acção totalmente procedente.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões da recorrente (arts. 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1, do CPC), coloca como questão decidenda saber se é resolúvel a doação feita pela autora, havendo incumprimento dos encargos impostos na doação aos réus/donatários.

III – FUNDAMENTAÇÃO
A) OS FACTOS
A 1ª instância considerou provados os seguintes factos:
1 – A A. é mãe do R. marido e sogra da R. mulher.
2 – Através de escritura pública celebrada a 15 de Março de 2005 no Cartório Notarial de Esposende, M… , na qualidade de procurador de I… e de A… e mulher P… , declarou:
“Que a sua representada identificada em a) [I… ] é dona e legítima possuidora dos imóveis a seguir identificados:
1 – Prédio rústico, composto de terreno de pastagem, situado no sítio da Redonda, freguesia de Marinhas, deste concelho (…) descrito na CRP de Esposende sob o nº 1532, de Marinhas, (…) e inscrito na matriz predial sob o art. 4343 (…); e
2 – Prédio urbano composto de casa com um pavimento, dependência e logradouro, situado no lugar de Cepães, freguesia de Marinhas (…), descrito na CRP de Esposende sob o nº 4230, de Marinhas, (…) inscrito na matriz predial sob o art. 2014º (…).
Que pela presente escritura a sua representada I… doa aos segundos outorgantes, seu filho e nora, por conta da quota disponível dela doadora, os prédios acima identificados, com as seguintes condições:
a) a doadora reserva para si o usufruto dos bens doados;
b) os donatários ficam obrigados a tratar a doadora na saúde e na doença, prestando-lhe todos os serviços pessoais e domésticos de que ela carecer, bem como a alimentação, vestuário, tratamento médico, medicamentoso e hospitalar, quando ela disso necessitar.
(…)
Que, para os seus representados A… e mulher P… , aceita a presente doação, nos termos exarados.
(…).”.
3 – Os RR. são emigrantes em França e já o eram aquando da celebração da escritura acima referida.
4 – Até à presente data, nunca os RR. prestaram à A. quaisquer serviços pessoais e domésticos.
5 – Nunca contribuíram financeiramente para a alimentação, vestuário, tratamento médico, medicamentoso e hospitalar que a A. carece.
6 – Nunca quiseram saber se a A. tinha ou não dinheiro para pagar as suas despesas.
7 – Se estava bem de saúde.
8 – Se precisava de alguém para a auxiliar nas tarefas domésticas ou para cuidar da sua própria higiene.
9 – Após a celebração da escritura, a A. sofreu um AVC.
10 - Fez fisioterapia a fim de todos os seus membros voltarem ao seu estado normal.
11 – Em Novembro de 2007, a A. partiu a perna esquerda.
12 – Esteve internada um mês no Hospital de Santa Maria Maior em Barcelos.
13 – Foi, posteriormente, transferida para o Hospital de Esposende, onde ficou internada até início de Fevereiro de 2008.
14 – A A. nasceu em 15-02-1928.
15 – Vivia sozinha.
16 – Até Novembro de 2007, era uma vizinha da A. que tratava da limpeza de casa.
17 – Na altura em que a A. se encontrava internada no hospital de Esposende, essa mesma vizinha disse-lhe que teria de arranjar outra pessoa porque tinha marido e filhos para cuidar, não lhe sobrando tempo para mais.
18 – Apesar de a A. ter 6 filhos, todos se afastaram ao tomarem conhecimento da doação que a A. fez aos RR..
19 – Ao visitar a A. no hospital de Esposende, a sobrinha da A., M… , disse-lhe que tomaria conta dela.
20 – Na sequência do AVC que sofreu, os movimentos do braço e da perna direita ficaram muito limitados.
21 – A fisioterapia permitiu apenas uma recuperação parcial.
22 – A A. tem muitas dificuldades em andar e quando anda fá-lo com a ajuda de um andarilho, podendo apenas percorrer curtas distâncias.
23 – A A. vive, exclusivamente, da reforma que aufere todos os meses, no valor de 482,93 €.
24 – Despende, em média, por mês, 90 € em medicamentos.
25 – Entrega mensalmente, a título de agradecimento, 30 € ao médico de família pela visita ao domicílio.
26 – Suporta as despesas de água, luz, telefone, gás, vestuário e calçado.
27 – Suporta o vencimento auferido pela sua sobrinha, no montante de 300 €, por cuidar dela diariamente, de dia e de noite.
28 – Os RR. telefonam à A. todas as semanas.
29 – Quando a A. lhes pede uma ajuda em dinheiro, os RR. respondem-lhe para reduzir o número de medicamentos que toma e para que o médico de família passe a ir vê-la de três em três meses sendo este período de tempo perfeitamente suficiente.
30 – Os RR. recusam-se dar qualquer ajuda financeira à A..
31 – No dia 15 de Fevereiro de 2008, em virtude de a A. fazer 80 anos de idade, o R. organizou uma festa de aniversário que contou com a presença deste e de duas filhas da A., irmãs do R..
32 – Todos os filhos da A. estão emigrados no estrangeiro, à excepção da sua filha A….
33 – Aquando da vinda a Portugal, para o aniversário da A., o R. combinou com a sobrinha desta, prima dele, M… , um vencimento mensal de 300 €.
34 – Pelo facto de ter sido o R. a combinar o valor com a M… , a A. acreditou que o vencimento seria suportado por ele.
35 – Ao fim de um mês de trabalho, a M… aguardou que os RR. lhe pagassem o vencimento.
36 – Os dias foram passando e os RR. continuavam sem pagar à M… a quantia acima referida.
37 – A A. lembrou-lhes, por isso, que estava em atraso o vencimento daquela, tendo estes respondido que quem tinha que lhe pagar era a A., e não eles.
38 – Em Julho de 2008, em virtude de lhe ter sido diagnosticado um tumor no ouvido esquerdo, a A. foi operada no IPO do Porto onde permaneceu durante 21 dias.
39 – Fez radioterapia durante uma semana do mês de Agosto.
40 – A filha A… , que reside em Portugal, acompanhou a A. à consulta.
41 – Em virtude de os RR. se encontrarem, na altura, de férias em Portugal, passou a ser este a acompanhá-la às consultas no IPO, indo sempre de ambulância.
42 – O R. nunca levou a A. no seu carro, apesar de o poder fazer.
43 – A A. suportou o custo de duas deslocações de ambulância, ao IPO, no montante de 30 €, tendo as restantes sido pagas pela Segurança Social.
44 – Nunca os RR. se ofereceram para pagar o que quer que seja.
45 – A R. não queria que o marido acompanhasse a A. na ambulância, pois achava que esta deveria ir sozinha.
46 – A A. era forçada a movimentar-se no IPO de cadeira de roda, em virtude da sua reduzida mobilidade.
47 – Após as sessões de radioterapia, a A. foi seguida em consulta externa.
48 – Inicialmente, a consulta era de dois em dois meses, actualmente, passou a ser anual.
49 – Valeu à A. a ajuda da sua filha A… , que a acompanha e sempre acompanhou às consultas, levando-a no seu carro.
50 - A A. pediu ao R. que desse à sua irmã A… uma ajuda monetária pela sua disponibilidade, bem como pelo combustível gasto.
51 – Este recusou-se a fazê-lo.
52 – Os RR. nunca telefonaram à filha da A., Â… , irmã do R., a fim de ficarem inteirados, de modo pormenorizado, do estado de saúde da A..
53 – Em 2007, 2008 e 2009, os canos da água existentes no prédio urbano aludido na escritura acima referida rebentaram.
54 – A A. teve de contactar um picheleiro e de suportar o custo da mão-de-obra, bem como do material colocado.
55 – Deu a conhecer o sucedido aos RR. mas estes alegaram que cabia à R. pagar.
56 – Quando os RR. estão em Portugal de férias residem na casa da A..
57 – Vão várias vezes ao restaurante mas nunca convidam a A..
58 – Quando esta sabe que eles vão almoçar ou jantar ao restaurante, pede-lhes, algumas vezes, que tragam o almoço ou o jantar para ela e para a sua sobrinha M… .
59 – Os RR. trazem a refeição pedida mas apresentam à A. a conta para que ela lhes pague o montante por eles despendido.
60 – Quando ficam em casa da A., os RR. não pagam nem contribuem para as refeições que aí tomam.

B) O DIREITO
Segundo dispõe o art. 963º do CC Diploma a que pertencem todos os artigos adiante indicados sem outra menção., as doações podem ser oneradas com encargos.
Como afirma Antunes Varela, a doação modal ou com cláusula modal caracteriza-se por ser aquela em que o donatário fica adstrito ao cumprimento de uma ou mais prestações. Enquanto nas outras espécies de doações o beneficiário se limita a receber (sendo o seu património gratuitamente enriquecido com a coisa ou o direito transmitido ou com o crédito nele constituído sobre a parte liberal: art. 940º), na doação modal ele fica vinculado ao cumprimento de um dever.
A obrigação ou o dever contraído pelo donatário não representa uma contraprestação, e muito menos o correspectivo ou equivalente, da atribuição patrimonial que lhe é feita – mas um simples ónus, restrição ou limitação dela Revista de Legislação e de Jurisprudência, 102º, págs. 38 e 39. .
Só existe doação com encargos quando, apesar da realização do encargo, o donatário ainda recebe um benefício que represente um valor superior àquele que se obrigou a despender em consequência dos encargos Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. III, pág. 227..
Fica, assim, o donatário obrigado a um determinado comportamento, que pode ser no interesse do doador, ou de terceiro, ou do próprio beneficiário.
Sendo a favor do doador ou de terceiro, este comportamento pode corresponder ao conteúdo de uma obrigação que fica a cargo do donatário, a qual, aliás, não tem necessariamente natureza patrimonial. Pode, porém, não haver uma verdadeira obrigação em sentido técnico, mas um simples dever jurídico, quando aquele que pode exigir o seu cumprimento não é titular de um correspondente direito de crédito P. Lima - A. Varela, Código Civil Anotado, vol. II, 4ª ed., pág. 269..
Basta que corresponda a um interesse digno de tutela legal para o seu beneficiário ou mesmo para o próprio doador Menezes Leitão, ob. cit., pág. 228..
Em caso de incumprimento do encargo pelo donatário, quer o doador, quer os seus herdeiros poderão resolver a doação. Porém, nos termos do art. 966º, a resolução só tem lugar se esse direito tiver sido conferido pelo contrato.
Revertendo ao caso concreto, está provado que através de escritura pública celebrada a 15 de Março de 2005 no Cartório Notarial de Esposende, que a autora, por intermédio do seu procurador, declarou que “(…) doa aos segundos outorgantes, seu filho e nora, por conta da quota disponível dela doadora, os prédios acima identificados, com as seguintes condições: a) a doadora reserva para si o usufruto dos bens doados e; b) os donatários ficam obrigados a tratar a doadora na saúde e na doença, prestando-lhe todos os serviços pessoais e domésticos de que ela carecer, bem como a alimentação, vestuário, tratamento médico, medicamentoso e hospitalar, quando ela disso necessitar.”.
Por sua vez, os réus, também por intermédio de procurador, declararam “aceitar a presente doação, nos termos exarados”.
Escreveu-se o seguinte na sentença recorrida:
«A resolução consubstancia-se na destruição da relação contratual - que se constituiu validamente - por um dos contraentes, com base em facto posterior à celebração do contrato e com a intenção de fazer regressar as partes à situação em que se encontrariam se não tivessem realizado o contrato (cfr. ANTUNES VARELA, “Das Obrigações em Geral”, II, 4ª ed., 265). O direito potestativo de resolução é, normalmente, de exercício condicionado à existência de um fundamento previsto na lei ou no contrato (art. 432º).
Porém, conforme decorre da parte final do art. 966º, a resolução da doação só tem lugar quando as partes no contrato de doação previram essa forma da cessação do contrato (cfr. PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, in “Código Civil Anotado”, II, 2ª Ed., pág. 262, e MOTA PINTO, “Teoria Geral”, 1967, pág. 338).
Efectivamente, como aponta este último autor, no local citado, a resolução depende “da sua instituição por cláusula contratual”. Daí que “Não bastará que o doador alegue e prove o incumprimento do encargo imposto e que a cláusula modal foi a causa impulsiva da doação, para obter a resolução da doação; é necessário que o direito de resolução lhe seja conferido pelo contrato e, portanto, corresponda a uma vontade real susceptível de desentranhar a sua eficácia em sede interpretativa”.
Isto assim é porque a doação é um contrato e, tratando-se de doação modal, a aceitação pelo donatário terá de abranger a liberalidade e o encargo. Daí que a aceitação reporta-se à proposta do doador, nos seus exactos termos, não se dirigindo apenas a uma parte da proposta.
“In casu”, tendo a doação sido realizada por escritura pública, na interpretação desse negócio não pode olvidar-se o preceituado no art. 238º, nº 1. Assim, não poderá a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento.
Ora, analisando o texto que corporiza a declaração negocial da A., nele não se detecta o menor indício que esta se tenha reservado o direito de pedir a resolução em caso de incumprimento da cláusula modal. Como vimos, deveria constar alguma referência a tal possibilidade no texto do documento para que a A. pudesse vir pedir, com êxito, essa resolução da doação.
Assim, terá a pretensão da A. que improceder.»
Estamos de total acordo com esta caracterização, que se afigura correcta e é também muito bem explicitada, e nada nos leva a acrescentar argumentos aos fortes argumentos da própria sentença.
É certo, como também se assinala na sentença e resulta da matéria de facto provada, existir incumprimento do encargo assumido pelos réus na doação, pois tendo-se estes obrigado “a tratar a doadora na saúde e na doença, prestando-lhe todos os serviços pessoais e domésticos de que ela carecer, bem como a alimentação, vestuário, tratamento médico, medicamentoso e hospitalar, quando ela disso necessitar”, a verdade é que os mesmos não têm cumprido minimamente com esse encargo.
Sucede, porém, como se viu, que o contrato de doação não confere à autora o direito de resolver a doação por incumprimento do encargo imposto aos réus donatários, o que obsta à procedência da acção.
Resta, assim, à autora o direito de exigir aos réus o cumprimento das obrigações assumidas, nos termos dos arts. 965º e 817º e seguintes.
Ou, não o querendo fazer, como afirma na conclusão 29ª, então resta-lhe equacionar um pedido de revogação da doação nos termos do art. 970º e seguintes, alegando e provando os respectivos pressupostos, o que não fez na presente acção em que se limitou a pedir a resolução da doação.
Improcedem, assim, as conclusões do recurso, não tendo sido violadas as normas indicadas pela recorrente.

Sumário (art. 713º, nº 7, do CPC)
I - A doação modal ou com cláusula modal caracteriza-se por ser aquela em que o donatário fica adstrito ao cumprimento de uma ou mais prestações no interesse do doador ou de terceiro, ou, mesmo, no seu próprio interesse.
II - A obrigação ou o dever contraído pelo donatário não representa uma contraprestação, e muito menos o correspectivo ou equivalente, da atribuição patrimonial que lhe é feita, mas um simples ónus, restrição ou limitação dela.
III - Não basta que o doador alegue e prove o incumprimento do encargo imposto e que a cláusula modal foi a causa impulsiva da doação, para obter a resolução da doação; é necessário que o direito de resolução lhe seja conferido pelo contrato e, portanto, corresponda a uma vontade real susceptível de desentranhar a sua eficácia em sede interpretativa”.

IV – DECISÃO
Termos em que acordam os Juízes desta Secção Cível em julgar improcedente a apelação, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas a cargo da recorrente.

*
Guimarães, 12 de Julho de 2011
Manuel Bargado
Helena Gomes de Melo
Amílcar Andrade