MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
RECUSA FACULTATIVA
EXECUÇÃO DE SENTENÇA PENAL
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
Sumário

I - A “lei portuguesa ”a que se refere a al. g) do nº 1 do art. 12º da Lei 65/2003 de 23 de Agosto, de acordo com a qual o Estado Português se compromete a executar a pena aplicada, em Portugal, é a lei interna de execução das penas, e não a lei que regulamenta o processo de revisão e confirmação de sentença estrangeira, ou qualquer tratado que vincule o Estado Português.
II - Os Tribunais da Relação são as entidades competentes para assumir em nome do Estado Português o compromisso de execução da pena em Portugal, nos termos da al. g) do nº 1 do citado art. 12º.
III - O tribunal de primeira instância competente para acompanhar a execução da pena é o tribunal da área da residência actual do condenado, quer por aplicação subsidiária do art. 370º do C P P (relativo à execução de penas aplicadas em primeira instância pelas Relações ou pelo S T J), por força do art. 34º da Lei 65/2003 de 23 de Agosto, quer por aplicação analógica do art. 103º da Lei 144/99 de 31 de Agosto (relativo à execução de sentenças penais estrangeiras revistas e confirmadas)”.
IV - O MDE é um instrumento específico para a execução de penas no espaço da União Europeia, que não comporta a possibilidade de no seu âmbito ser formulado qualquer juízo sobre a adequação ou justeza da pena que se executa. Ou seja, o Estado da execução deve aceitar a condenação nos seus precisos termos, embora tenha o direito de executar a pena ou a medida de segurança de acordo com a lei nacional. O art. 12 nº 1 al. g) da Lei 65/03 estabelece só uma reserva de soberania quanto à execução da pena, e não também quanto à determinação da medida ou espécie da pena.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

O Ministério Público neste Tribunal da Relação de Guimarães requereu a execução de Mandado de Detenção Europeu, emitido pelo Tribunal Penal nº 3 de Oviedo do Reino de Espanha contra:
António F..., nascido em 6 de Janeiro de 1961, em Viana do Castelo, filho de Manuel F... e de Isabel R..., residente em C..., 4905 Viana do Castelo.
Visa a execução do mandado o cumprimento de pena de prisão de 15 meses, por crimes de violação de condenação ou medida cautelar (9 meses de prisão) e de ameaça (6 meses de prisão).
São os seguintes os factos que fundamentam a aplicação daquelas penas:
António F... (…), sendo notificado do auto sentenciado pelo Tribunal de Instrução de Infiesto (…) em que lhe era imposta a medida cautelar que consiste na proibição de se aproximar de sua esposa Blanca Estrella Tardío Martinez e suas duas filhas Leandra e Anuska Lacerda Tardío, medida esta que ainda está em pleno vigor na actualidade e foi violada repetidamente realizando chamadas telefónicas aos telefones móveis de suas duas filhas, que ao identificar o número desligavam ao ouvir o seu pai, recebendo Anuska uma chamada em 14 de Maio de 2005, na qual o acusado dizia a ela, sua mãe e irmã que se não fossem viver em casa ele queimaria a casa com elas dentro, assim como enviou a elas as seguintes mensagens de SMS no dia 23 de Maio de 2005: “se eu fosse vocês sairia agora mesmo dessa casa, se não olhar para fora” e “não acreditem que estou só eu perderei vocês se me deixarem vou ao funeral de vocês acreditem antes que seja tarde”. No dia 16 de Maio de 2005 “vamos ver o que estou preparando diga a tua mãe, que de mim não irão rir nessa casa, se não posso viver aí não tenho nada a perder e irei para a prisão mas vocês verão o que pode acontecer”; no dia 6 de Maio de 2006: “diga a tua mãe que se acontecer de ir viver nessa casa um filho da puta qualquer queimo todos aí dentro”.

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Detido o requerido António F..., procedeu-se à sua audição, tendo o mesmo declarado que não esteve presente no julgamento, que não consentia na sua entrega à autoridade judiciária da emissão do mandado, mas que, caso tal venha a ser decidido, renuncia ao benefício da regra da especialidade.
Concedido prazo para a dedução da oposição ao cumprimento do mandado, apresentou o requerimento de fls. 25 e ss, no qual, em resumo, invocou as seguintes razões:
1 – “O requerido nunca foi ouvido, seja em Espanha seja em Portugal, pelos factos de que vem acusado”;
2 – O crime que lhe é imputado não cabe no âmbito do nº 2 do art. 2 da Lei 65/2003 de 23-8, havendo causa de recusa facultativa de execução do mandado de detenção europeu – art. 12 nº 1 al. a) da mencionada le Lei 65/2003;
3 – Reúne as condições para a recusa facultativa previstas no art. 12 nº 1 al. g) da mesma Lei; e
4 – A pena de prisão aplicada ao requerido deve ser suspensa na sua execução, de acordo com o princípio da lei mais favorável, por estarem reunidos os pressupostos do art. 50 nº 1 do Cod. Penal.
Foram inquiridas as testemunhas arroladas.
Cumpre decidir.
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1 – A não audição do requerido, em Espanha ou em Portugal, pelos factos que justificaram a emissão do mandade de dedetenção europeu
Dispõe o art 13 da Lei 65/03 de 23-8
al. a) “quando o mandado de detenção europeu tiver sido emitido para efeitos de cumprimento de pena ou medida de segurança imposta por decisão proferida na ausência do arguido e se a pessoa em causa não tiver sido notificada pessoalmente ou de outro modo informada da data e local da audiência que determinou a decisão proferida na sua ausência, só será proferida decisão de entrega se a autoridade judiciária de emissão fornecer garantias consideradas suficientes de que é assegurada à pessoa procurada a possibilidade de interpor recurso ou de requerer novo julgamento no Estado membro de emissão e de estar presente no julgamento”.
A norma transcrita não visa a protecção de criminosos que se tenham posto em fuga, impossibilitando a sua audição pelas autoridades judiciárias do país de emissão do mandado. O julgamento na ausência dos arguidos não repugna à ordem jurídica portuguesa, estando mesmo prevista a sua possibilidade no art. 32 nº 6 da Constituição da República. Essencial é que, mesmo aqueles contra quem correu um processo de ausentes, tenham assegurado, no momento da execução da pena, um patamar mínimo de defesa, consentâneo com as exigências de um Estado de Direito.
Pois bem, o requerido António F... não esteve presente no julgamento, mas o seu caso não foi sequer de “revelia absoluta”. Em 18-6-2009 foi notificado, por contacto pessoal, para comparecer no seu julgamento, que se efectuou em 14-4-20010 (cfr. informação de fls. 301 e certidão de notificação de fls. 304).
Isto bastaria para remover o obstáculo à entrega ao Estado da emissão do mandado, pois, como decorre univocamente da letra da norma transcrita, são cumulativos os requisitos para a decisão de não entrega, a saber: a decisão ter sido proferida na ausência do arguido e a pessoa não ter sido notificada pessoalmente da data e local da audiência.
Acresce que o requerido António F... interpôs recurso, o qual já foi decidido, tendo sido confirmada a sentença de primeira instância. Não há recurso da decisão da segunda instância (cfr. fls. 321).
Também por esta razão (a possibilidade de interpor recurso, que, aliás, foi exercida) está satisfeito o referido patamar mínimo de garantias exigíveis quando os julgamentos forem feitos na ausência dos arguidos.
2 – O controlo da dupla incriminação
Alega o requerido que “o crime que lhe é imputado não cabe no âmbito do nº 2 do art. 2 da Lei 65/2003 de 23-8, havendo causa de recusa facultativa de execução do mandado de detenção europeu – art. 12 nº 1 al. a) da mencionada Lei 65/2003”.
Porém:
É certo que os factos pelos quais o requerido foi condenado em Espanha não são enquadráveis na previsão de nenhuma das alíneas do nº 2 do art. 2 da Lei 65/03. Porém, o que resulta deste nº 2 é que, quando ocorre algum dos casos nele previstos, a extradição é concedida “sem controlo da dupla incriminação do facto”, se a infracção for punível no Estado membro da emissão com pena ou medida de segurança privativas da liberdade de duração máxima não inferior a 3 anos.
Nos demais casos “… só é admissível a entrega da pessoa reclamada se os factos que justificam a emissão do mandado de detenção europeu constituírem infracção punível pela lei portuguesa, independentemente dos seus elementos constitutivos ou da sua qualificação” – nº 3 do art. 2 da Lei 65/03.
É com esta norma que se conjuga a invocada causa de recusa facultativa do art. 12 nº 1 al. a) – “a execução do mandado de detenção europeu pode ser recusada quando o facto que motiva a emissão do mandado não constituir infracção punível de acordo com a lei portuguesa”.
Ou seja, o tribunal português poderá recusar a entrega do quando, em Portugal, não constituírem «crime» os factos pelos quais o requerido foi, ou vai, ser julgado.
Para este efeito são apenas relevantes a imagem e a valoração global do comportamento em causa. O tribunal português não pode controlar a coincidência, entre os dois sistemas penais em confronto, quanto aos elementos típicos do crime, ou quanto aos chamados elementos subjectivos do crime. É este o alcance do segmento da norma do art. 2 nº 3 acima sublinhado – “… independentemente dos seus elementos constitutivos ou da sua qualificação”.
Pois bem, são de duas ordens os factos por que o requerido foi condenado, a saber:
Por um lado, violou uma medida cautelar que lhe foi imposta, que consistia na proibição de se aproximar da sua mulher Blanca Estrella Tardío Martinez e das suas duas filhas Leandra e Anuska Lacerda Tardío. É um comportamento que em abstracto também constitui crime para a lei portuguesa – v. art. 391 do Código de Processo Civil – “Incorre na pena do crime de desobediência qualificada todo aquele que infrinja a providência cautelar decretada, sem prejuízo das medidas adequadas à sua execução coerciva”.
Por outro, anunciou às suas mulher e filhas que no futuro lhes infligiria alguns males, nomeadamente a morte, se tivessem determinados comportamentos. Por exemplo: “diga a tua mãe que se acontecer de ir viver nessa casa um filho da puta qualquer queimo todos aí dentro”. Este comportamento é enquadrável no crime de ameaça do artigo 153 do Código Penal.
Improcede, pois, a invocada causa de recusa facultativa prevista no art. 12 nº 1 al. a) da Lei 65/03.
3 – A causa de recusa facultativa prevista no art. 12 nº 1 al. g) da Lei 65/03
O artº 12º da lei 65/2003, na al. g) do seu nº 1, prevê a possibilidade de recusa facultativa de execução de M D E, quando “a pessoa procurada se encontrar em território nacional, tiver nacionalidade portuguesa ou residir em Portugal, desde que o mandado de detenção tenha sido emitido para cumprimento de uma pena ou medida de segurança e o Estado Português se comprometa a executar aquela pena ou medida de segurança, de acordo com a lei portuguesa".
No caso destes autos verificam-se os dois primeiros requisitos: o requerido António F... é português e reside em Portugal e o mandado destina-se ao cumprimento de pena de prisão.
Resta decidir sobre as vantagens do cumprimento da pena em Portugal. A execução do mandado de detenção europeu deverá ser recusada se puder ser formulado o juízo de que será maior a eficácia das finalidades da pena se esta for executada no nosso país. Relevam aqui, essencialmente, razões de reintegração do agente na sociedade, que deverão ser aferidas em função da ligação deste ao seu país, da residência e das condições da sua vida inteiramente adstritas à sociedade nacional.
É o caso do requerido António F.... Resulta dos depoimentos de fls. 29 e ss que, sendo português, vive em Portugal, pelo menos, desde 2006, tendo centrada na zona de Viana do Castelo toda a sua vida pessoal e profissional. Determinar agora o cumprimento da pena em Espanha seria comprometer as perspectivas de reintegração social do requerido de que o Direito nunca deve desistir.
Deve, pois, ser recusada a execução do mandado.
Posto isto, a recusa da execução do mandado com este fundamento implica o compromisso de Estado Português de executar a pena em território nacional de acordo com a lei portuguesa.
Transcreve-se do sumário do ac. STJ de 22-6-2011, proferido no Proc. 89/11.7 YRCBR.S1, disponível no sítio do ITIJ daquele tribunal:
6 - A “lei portuguesa ” de acordo com a qual o Estado Português se compromete a executar a pena aplicada, em Portugal, é a lei interna de execução das penas, e não a lei que regulamenta o processo de revisão e confirmação de sentença estrangeira, ou qualquer tratado que vincule o Estado Português.
7 - Os Tribunais da Relação são as entidades competentes para assumir em nome do Estado Português o compromisso de execução da pena em Portugal, nos termos da al. g) do nº 1 do art. 12º da Lei 65/2003 de 23 de Agosto.
8 - O tribunal de primeira instância competente para acompanhar a execução da pena é o tribunal da área da residência actual do condenado, quer por aplicação subsidiária do art. 370º do C P P (relativo à execução de penas aplicadas em primeira instância pelas Relações ou pelo S T J), por força do art. 34º da Lei 65/2003 de 23 de Agosto, quer por aplicação analógica do art. 103º da Lei 144/99 de 31 de Agosto (relativo à execução de sentenças penais estrangeiras revistas e confirmadas)”.
4 – A suspensão da execução da pena
De tudo o exposto decorre a improcedência desta pretensão. O MDE é um instrumento específico para a execução de penas no espaço da União Europeia, que não comporta a possibilidade de no seu âmbito ser formulado qualquer juízo sobre a adequação ou justeza da pena que se executa. Ou seja, o Estado da execução deve aceitar a condenação nos seus precisos termos, embora tenha o direito de executar a pena ou a medida de segurança de acordo com a lei nacional. O art. 12 nº 1 al. g) da Lei 65/03 estabelece só uma reserva de soberania quanto à execução da pena, e não também quanto à determinação da medida ou espécie da pena.
DECISÃO
Os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães acordam em recusar a execução do Mandado de Detenção Europeu identificado, ordenando que a pena que a ele respeita seja executada pelo tribunal de primeira instância português da área da residência actual do condenado - Viana do Castelo.
Transitado, cumpra-se o disposto no art. 28 da Lei 65/03.
Honorários da Exma. Defensora: os legais, a suportar pelo Cofre do Tribunal.
Guimarães, 26-9-2011