BANCO
DEPÓSITO BANCÁRIO
DIREITO BANCÁRIO
PROVA DA CULPA
RISCO NAS OBRIGAÇÕES
Sumário

I – Por força das disposições conjugadas dos artigos 1144º, 1206º e 796º, nº 1, do Código Civil, em um contrato de depósito bancário, o risco de perda do montante depositado corre por conta do banco depositário.
II - A prova de não culpa do devedor, nos termos previstos no artigo 799º, nº 1, do Código Civil, não tem a virtualidade de afastar o risco que impende sobre o adquirente, conforme ao referido artigo 796º, nº 1.
III - O banco depositário é responsável perante os depositantes pelos montantes que foram transferidos da conta destes nesse banco, por ordem de alguém que fraudulentamente se fez passar pelos titulares da conta, mesmo que demonstre que tomou todas as precauções que lhe eram exigíveis para a segurança das ditas operações.

Texto Integral

Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Guimarães

I
RELATÓRIO
J… e A… intentaram a presente acção declarativa de condenação, sob a forma ordinária, contra Banco …, SA, pedindo a condenação da ré a pagar-lhes o montante de 116.660,65 €, em que 13.568,60 € correspondem a juros de mora vencidos, a que devem acrescer juros de lei.
Fundamentaram o seu pedido, em suma, em contrato de depósito bancário, mais concretamente em prejuízo decorrente de actos de disposição de dinheiro seu existente em conta de depósito no banco da ré, sem a sua anuência.
A ré contestou, defendendo terem os seus funcionários agido sempre com o zelo e diligência exigíveis, não lhe podendo ser assacada nenhuma responsabilidade pelo pagamento do dinheiro depositado, a título de incumprimento culposo do contrato que a vinculava aos autores.
Após saneamento, condensação e instrução do processo, efectuou-se o julgamento, tendo sido proferida sentença, que julgou a acção parcialmente procedente.
Inconformados com a decisão, vieram os autores interpor o presente recurso, pedindo que a acção seja julgada procedente na sua totalidade. A ré, por sua vez, interpôs recurso subordinado, defendendo que a acção deva ser julgada totalmente improcedente. Ambos os recursos foram admitidos como sendo de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.

II
FUNDAMENTAÇÃO
1. PEÇAS PROCESSUAIS RELEVANTES
Factos provados
A) Em 9 de Setembro de 2004, e mercê de contrato há vários anos celebrado, os autores eram titulares da conta de depósitos à ordem nº 0-8510440-000-002, junto da agência da Apúlia do banco réu.
B) Nessa data, o saldo existente na referida conta dos autores ascendia a 103.196,91 (cento e três mil cento e noventa e seis euros e noventa e um cêntimos).
C) Nesse mesmo dia, o banco réu debitou a referida conta pelo montante de 60.000 (sessenta mil euros), que transferiu para uma conta da "INTERTECK, LP" junto do Banco Wachovia Bank, NA, domiciliado nos Estados Unidos da América.
D) O autor marido possuía uma aplicação financeira associada à conta referenciada em A), denominada BPI REFORMA SEGURA PPR/E, constituída por 4.350,7237 unidades de participação num fundo de investimento, subscrito junto do banco réu que, à data de 13 de Outubro de 2004, tinha um valor correspondente a 55.721,89 (cinquenta e cinco mil setecentos e vinte e um euros e oitenta e nove cêntimos).
E) Com data de 24 de Janeiro de 2005, o banco réu remeteu ao autor marido uma missiva com o seguinte teor:
"( ... )
Transferência de USD 72.780,00 e 54.243,00
Exmo Senhor,
Reportamo-nos à reclamação telefónica apresentada por V. Exa, junto da Agência deste Banco, sita em Apúlia, sobre as transferências de 72.780,00 e 54.243,00, efectuadas em 09/09/2004 e 08/11/2004, a favor de INTERTECK, LP.
Concluídas as averiguações a que procedemos, constatámos que o Banco procedeu de acordo com as instruções recebidas, conferindo as assinaturas das mesmas, por semelhança, com o espécime existente nos nossos arquivos.
Ainda no que concerne à 2ª transferência, e porque a assinatura suscitou algumas dúvidas, foram enviadas duas cartas registadas com aviso de recepção para a morada que consta nos ficheiros deste Banco. Tal transferência somente veio a ser efectuada após ter sido recepcionada uma carta com assinatura reconhecida notarialmente, carta de que remetemos fotocópia.
Face ao exposto, compreenderá V. Exa que este Banco não atende a reclamação apresentada. ( ... )".
F) Os débitos e transferências mencionados em C) não emanaram de quaisquer instruções dos autores, nem por eles foram autorizados.
G) O banco réu debitou ainda na conta referida em A), sem autorização dos autores, a quantia de 59,80 (cinquenta e nove euros e oitenta cêntimos), correspondente a comissões, despesas de portes e telecomunicações e imposto de selo, relativa ao débito e transferência mencionado em C).
H) Sem autorização de qualquer dos autores, o banco réu procedeu, em 27 de Outubro de 2004, ao resgate da totalidade daquelas unidades de participação.
I) Aproveitando o saldo gerado pelo produto daquele resgate, que foi creditado na conta de depósitos à ordem dos autores, o banco réu, em 8 de Novembro 2004, debitou a conta dos autores no montante de 42.000 Euros e transferiu novamente para a conta da "INTERTECK, LP" junto do Banco Wachovia Bank, NA.
J) Os débitos e transferências mencionados não emanaram de quaisquer instruções dos autores, nem por eles foram autorizados.
L) O banco réu debitou ainda aos autores, sem autorização destes, as quantias de 59,80 (cinquenta e nove euros e oitenta cêntimos), correspondente a comissões, despesas de portes e telecomunicações e imposto de selo, e de 972,45 (novecentos e setenta e dois euros e quarenta e cinco cêntimos), correspondente a uma diferença cambial, relativa ao débito e transferência mencionado em 4).
M) A transferência referida em C) foi executada pelo banco réu na sequência da recepção de carta datada de 30 de Agosto de 2004, cuja cópia se encontra junto a fls. 26 dos autos.
N) Tal carta foi recebida no banco réu, via fax, na data que dela consta, mas não pôde ser executada de imediato, pois tal tipo de operação não pode ser ordenada por fax, carecendo de ser conferidas as instruções e assinatura do cliente por confronto com o documento original.
O) O original daquela carta foi remetido pelo correio ao banco réu, após o que a gerência do balcão da Apúlia conferiu a assinatura daquele por semelhança com a existente na respectiva ficha de assinatura de abertura de conta depositada nos seus arquivos e executou a ordem.
P) Em 13 de Outubro de 2004, o banco réu recebeu uma comunicação com o seguinte teor:
“São Paulo, 13 de Outubro de 2004
Ao Banco… Apúlia
ATT: José Filipe Vieira / Gerência
Solicito que providenciem nesta data o resgate total do meu BPI Reforma Segura PPR, com o valor aproximado de EUR 55.717,36 (cinquenta e cinco mil setecentos e dezassete euros e trinta e seis cêntimos), existente na minha conta n? 0-8510440.
Solicito que seja feito uma transferência no valor de EUR 42.000 (quarenta dois mil euros) de acordo com as instruções abaixo. Solicito que esta transferência seja feita em dólares norte americanos.
WACHOVIA BANK
ADRESS 109 E. NINE MILE ROAD - HIGHLAND SPRINGS - VA 23075
ACCOUNT NUMBER - 2.079.010.908.367
790.109.083.6 ABA NUMBER - 051 400 549
SWIFT - PNBPUS 33
BENEF - INTERTECK, LP
ADRESS - 309 E. WILLlAMSBURG ROAD - SANDSTON, VA 23150
USA. Solicito que a confirmação desta operação seja enviada ao meu fax 551146175282 ou por email jgmoreira@hotmail.com. ( ...).
Q) O Banco Réu respondeu, em 18 de Outubro de 2004, por carta registada com aviso de recepção, com seguinte teor:
"( ... )
Desmobilização integral de PPR
Transferência para os E.U.A.
Exmo Senhor,
Acusamos a recepção da mensagem remetida por V. Exa em 13/10/2004, em resposta, aliás, à N/ mensagem da véspera.
Considerando porém que V. Exa aproveita para solicitar a transferência de 42.000 (quarenta e dois mil euros) para os E.U.A., renovamos a nossa anterior informação de que as n/ normas internas de segurança não nos permitem a execução de transferências para o exterior, a não ser em presença de instruções expressas e com a assinatura original do ordenador.
(…)
Assim, e a fim de procedermos em conformidade com as instruções de V. Exª solicitamos que subscreva e nos devolva o texto anexo com as instruções para o efeito, que tivermos a oportunidade de transcrever do fax recebido.
Ficamos desde já disponíveis para qualquer esclarecimento adicional, através do telefone n? 253982501, desta Agência. ( ... )".
R) O banco réu, em 4 de Novembro de 2004, remeteu nova carta registada com aviso de recepção ao autor marido com o seguinte teor:
Assunto : Transferência para os EUA
Exmo Senhor,
Confirmando o teor do n/ fax de 28/10, ao qual não obtivemos, até ao momento, qualquer resposta, e não dispondo ainda do contacto telefónico de V. Exª no estrangeiro, informamos que, pretendendo efectuar a transferência de 42.000 (quarenta e dois mil euros) solicitada por V. Exª, foi considerado que a assinatura constante na respectiva carta / pedido não está conforme a existente nos nossos ficheiros (há diferenças bem visíveis entre ambas).
Assim, e por razões de segurança, solicitamos que, por correio (expresso, se entender conveniente) nos devolva carta minutada que lhe remetemos em 18/10/04, subscrita igualmente pela esposa de V. Ex.ª. Em alternativa, e prevenindo até eventuais dúvidas que possam subsistir, sugerimos o reconhecimento notarial da(s) assinatura(s). ( ... ).
S) Por carta datada de 2 de Novembro de 2004, o banco recebeu o seguinte:
"São Paulo, 2 de Novembro de 2004
Ao Banco … Apúlia
Att: M… / Gerência
Solicito que providenciem nesta data o resgate total do meu … Reforma Segura PPR, com o valor aproximado de EUR 55.717,36 (cinquenta e cinco mil setecentos e dezassete euros e trinta e seis cêntimos), existente na minha conta nº. 0-8510440.
Solicito que seja feito uma transferência no valor de EUR 42.000 (quarenta e dois mil euros) de acordo com as instruções abaixo. Solicito que esta transferência seja feita em dólares norte americanos.
WACHOVIA BANK
ADRESS 109 E. NINE MILE ROAD - HIGHLAND SPRINGS - VA 23075
ACCOUNT NUMBER - 2.079.010.908.367
790.109.083.6 ABA NUMBER - 051 400 549
SWIFT - PNBPUS 33
BENEF - INTERTECK, LP
ADRESS - 309 E. WILLlAMSBURG ROAD - SANDSTON, VA 23150 USA.
USA. FOR FINAL CEDIT: JOAO GOMES MOREIRA, meu telefone pessoal é 5511-99984464.
Solicito que a confirmação desta operação seja enviada ao meu fax 551146175282 ou por email jgmoreira@hotmail.com. ( ... )".
T) O banco réu procedeu ao controle da assinatura mencionada em 15), mediante o confronto da assinatura daquele por semelhança com a existente na respectiva ficha de assinatura de abertura de conta.
U) O banco réu, em 22 de Novembro de 2004, remeteu uma carta registada com aviso recepção ao Autor marido com o seguinte teor:
"Assunto: Transferência de USD.53.159,40 para os EUA
Exmo Senhor,
Em carta datada de 13/10/04, solicitava-nos o resgate total do PPR – … Reforma Segura (conta nº -8510440), e, imediatamente após, a transferência de USO equivalentes a 42.000 para os EUA, a favor de INTERTECK, LP.
Assim, com o montante de PPR disponível na conta 0.0. em 27/10/04, providenciámos, no dia seguinte (28), através da n/ Sala de Mercados, a compra, com câmbio negociado (1,2657), dos dólares à transferência solicitada.
Porém, quando pretendemos concretizar a transferência para o exterior, concluiu-se, na conferência obrigatória da assinatura do ordenador, que esta não correspondia à existente nos n/ ficheiros, pelo que, conforme prevêem as normas de segurança, se impunha que a operação ficasse suspensa até que V. Exª nos fizesse chegar idênticas instruções com assinatura conforme. Nesse sentido, contactamos V. Exª via fax e, em confirmação, via carta registada, ao que V. Exª correspondeu com carta datada de 02/11/04, com assinatura reconhecida em cartório notarial.
Ultrapassado, assim, o problema da conferência da assinatura do ordenador, providenciamos, em 08/11/04, a transferência solicitada. Todavia, por lapso, no cálculo do contravalor dos USD a transferir, considerámos o câmbio do próprio dia (1,2957), quando o câmbio a considerar correctamente era aquele (1,2657) a que tínhamos comprado os USD em 28/10, conforme atrás referimos. Do lapso, resultou uma diferença de 972,45 euros, importância esta que tomamos a liberdade de debitar na conta D.O. de V. Exª, por forma a fazer o acerto correspondente. ( ... )".
V) Após a recepção da missiva referida em U), o autor marido apresentou reclamação telefónica ao banco réu, suscitando a questão da inexistência de ordens para as transferência supra mencionadas, ao que aquele respondeu pela carta referida em E).
Conclusões das alegações de recurso dos autores
1. O contrato de depósito bancário pode ser qualificado como contrato de mútuo ou como contrato de depósito irregular, mas são-lhe sempre aplicáveis as regras do contrato de mútuo, designadamente a do artigo 1144º do Código Civil.
2. A acção de que emerge o recurso é uma acção de cumprimento tal como prevista no artigo 817º do Código Civil, pois a pretensão dos Autores é a restituição do montante que entregaram ao Réu ao abrigo do contrato de depósito bancário.
3. A obrigação cujo cumprimento os Autores exigem tem as particularidades de emergir da entrega do seu dinheiro ao Banco Réu e de ser uma obrigação genérica, na modalidade de uma obrigação pecuniária.
4. Com a entrega do dinheiro pelos Autores ao Banco Réu, transferiu-se para este o risco da perda da importância pecuniária, de acordo com o disposto no artigo 796º do Código Civil. Por outro lado,
5. Face ao preceituado no artigo 540º do Código Civil para as obrigações genéricas, o Banco não fica exonerado por ter perdido a quantia que imputara à conta dos Autores e com que, na ausência de imponderáveis, cumpriria a sua obrigação de restituição.
6. A simples observância pelo Banco de padrões de diligência, por mais elevados que sejam, não é susceptível de afastar a obrigação de restituir os montantes entregues pelo cliente.
7. Só a demonstração de que tais montantes se perderam por causa imputável ao cliente o seria, e essa o Banco Réu não o logrou – nem intentou.
8. Daí que tendo os Autores logrado provar a causa de pedir invocada – o contrato de depósito – a acção devesse ter sido julgada inteiramente procedente.
9. A douta decisão recorrida violou o disposto nos artigos 540º, 796º, nº 1, 1142º e 1144º do Código Civil.
Conclusões das alegações de recurso da ré
1. Os procedimentos adoptados pelos colaboradores do recorrente na 1ª transferência, foram, da mesma forma, que na 2ª das verificadas transferências, rigorosos e profissionais.
2. A diferença de tratamento no processamento da 2ª transferência prende-se exclusivamente com uma evidência, que da 1ª transferência não colhia, qual era a existência de divergência da assinatura do A. marido constante do fax em questão, em relação à ficha de assinatura ao dispor do Banco recorrente.
3. Ou seja, situações diferentes mereceram diferente tratamento e diferentes exigências, mas... o mesmo grau de rigor quanto ao cumprimento dos deveres profissionais por parte dos colaboradores do Banco recorrente.
4. A similitude da assinatura conferida quanto à 1ª transferência não pode ser considerada como “arrancada a olho”...
5. Aos funcionários bancários não pode ser exigível a destreza caligráfica de um perito forense, nem, como é público e notório, a conferência de assinaturas se faz, no mercado e giro bancário, com o grau de detalhe, exigível a um Laboratório Pericial.
6. Conduziu-se pois o Banco ora recorrente, através dos seus colaboradores, com estritos critérios de diligência e profissionalismo, tal como exigível a um banqueiro.
7. Sendo, de forma clara, a sua conduta de molde a considerar como ilidida a presunção legalmente estabelecida, quanto à 1ª das transferências em causa.
8. A decisão recorrida, no segmento em recurso, violou, por errada interpretação e aplicação as normas constantes dos artigos 73º a 75º do RGICSF e arts. 762º, 798º e 799º do CC.
***
2. DISCUSSÃO
2.1. Os autores vieram pedir nesta acção que o banco réu fosse condenado a repor-lhes os montantes retirados de uma conta da qual eram titulares, através de duas transferências para uma conta sedeada em um banco nos USA, por ordem de alguém que fraudulentamente se fez passar pelo autor marido. Circunstancialismo que se apurou. E que, aliás, as partes não põem em crise no presente recurso.
A sentença recorrida começa por classificar o contrato de depósito bancário como um contrato de mútuo concluindo, por força do regime previsto nos artigos 1144º e 796º, nº 1, do Código Civil, que o risco de perda do montante depositado corre por conta do banco depositário. No entanto, frisando que a conduta do banco “se situa no campo da responsabilidade contratual, na posição de devedor”, podendo ele elidir a presunção de culpa que, nos termos do artigo 799º daquele código, sobre si impende, mais conclui ter o banco réu cumprido este ónus relativamente a uma das transferências em causa, pelo que o absolve do pedido nessa parte, apenas o condenando a pagar aos autores o montante relativo à outra transferência.
Os autores recorrem, sustentando que o banco é responsável pela totalidade dos montantes que foram indevidamente retirados da sua conta, por força do preceito do nº 1 do referido artigo 796º. Por sua vez, o banco réu vem defender no seu recurso subordinado que o pedido deve ser julgado totalmente improcedente, porquanto dos factos apurados resulta que a presunção de culpa estabelecida no artigo 799º foi elidida, relativamente às duas transferências efectuadas, que não apenas relativamente à segunda.
2.2. Equacionemos os termos da questão, aliás bem apresentada na sentença recorrida, em um primeiro momento.
A figura do depósito bancário não é definida legalmente, embora se lhe refira expressamente o artigo 407º do Código Comercial, podendo adiantar-se a noção enxuta formulada no acórdão do STJ de 17.06.86 (Alcides de Almeida), BMJ nº 365, pág. 567. de que “consiste, fundamentalmente, na entrega de certa quantia a um banco para que ele o guarde e restitua mais tarde, podendo, entretanto, o banco, utilizar o montante entregue”. Vide Fernando de Araújo Barros, in Operações Bancárias, Maiajurídica, Ano I, nº 1, pág. 69.
Por referência aos artigos 406º do Código Comercial e 1205º do Código Civil, os contratos de depósito bancário vêm sendo comummente qualificados como depósitos irregulares (que têm por objecto coisas fungíveis), aplicando-se-lhes, conforme ao preceituado no artigo 1206º deste último, “na medida do possível, as normas relativas ao contrato de mútuo”. Assim também Meneses Cordeiro, Manual de Direito Bancário, págs. 518 e sgs. que conclui ser de manter “o depósito bancário como figura unitária, típica, autónoma e próxima, historicamente, do depósito irregular”. Ibidem, págs. 524 a 526.
Esta classificação reveste interesse in casu porquanto, aplicando-se ao contrato de depósito a disciplina do mútuo, por força da remissão do artigo 1206º do Código Civil, as quantias depositadas tornam-se propriedade do banco pelo facto da entrega, como previsto no artigo 1144º do mesmo código. Ora, preceituando o artigo 796º, nº 1 que «nos contratos que importem a transferência do domínio sobre certa coisa ou que constituam ou transfiram um direito real sobre ela, o perecimento ou deterioração da coisa por causa não imputável ao alienante corre por conta do adquirente», o risco decorrente de um terceiro se apoderar indevidamente de tais quantias deverá ser suportado pelo banco depositário.
Importa, porém, ir um pouco mais longe, indagando das razões da disciplina daquele artigo 796º.
Consagra-se nele o princípio res perit domino, segundo o qual, potenciando-se a relação de ingerência existente entre a coisa e aquele que sobre ela exerce poderes de facto, se faz impender sobre este a responsabilidade pelo perecimento ou deterioração dessa coisa. Acontece que, em ordenamentos jurídicos como o nosso, onde se adoptou o, pela primeira vez consagrado no Código de Napoleão, princípio da consensualidade (artigo 408º, nº 1, do Código Civil - «a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato»), tornou-se especialmente difícil lidar com aqueloutro princípio, na medida em que o titular do direito real passou a não ser necessariamente aquele que exerce tais poderes de facto. Daí uma certa ambiguidade do nº 1 do artigo 796º do Código Civil ao enunciar, como factor de transmissão do risco de perecimento da coisa, em alternativa à transferência do direito real sobre a mesma, uma anómala “transferência do domínio”. Como se o dominus não fosse o titular do direito. Ou, ainda mais impressivamente, nos nºs 2 e 3 do mesmo preceito, ao excepcionar casos em que a coisa tenha continuado em poder do alienante. É esse o alcance que se colhe da afirmação de Miguel Nuno Pedrosa Machado, Sobre Cláusulas Contratuais e Conceito de Risco, BFDUL, págs. 146 e 147, de que “o artigo 796º do Código Civil está redigido às avessas: ele não se mostraria sequer necessário se o princípio geral que se destinasse a afirmar fosse o da aplicação da regra res suo domino perit, porque isso já resultava da eficácia real dos contratos; a sua necessidade e a sua utilidade provêm daquilo que, na letra da lei, surge formalmente como excepção, e que é a introdução no nosso ordenamento do segundo sistema de distribuição do risco contratual – o da transferência deste de acordo com a detenção da coisa”.
2.3. Após esta breve incursão sobre a etiologia do preceito do artigo 796º do Código Civil, ressalta com evidência o equívoco em que a sentença proferida no tribunal a quo incorre.
Como é consabido e faz parte dos princípios gerais da responsabilidade civil, o risco exclui a culpa. E, na verdade, in casu, o risco que se transfere para o adquirente nada tem a ver com a culpa, mas antes com o domínio sobre a coisa. Daí que, coerentemente, se excepcionem os casos em que a coisa continuou em poder do alienante. Desse modo, será desajustado pretender excluir a responsabilidade que desse risco decorre afastando a culpa, nos termos do preceituado no artigo 799º. Efectivamente, não é possível elidir o que não é sequer pressuposto.
Aliás, muito significativamente, embora estejam integrados ambos na secção do Código Civil relativa ao não cumprimento das obrigações, o artigo 796º figura na subsecção relativa à “impossibilidade do cumprimento e mora não imputáveis ao devedor” e o artigo 799º na subsecção que concerne à “falta de cumprimento e mora imputáveis ao devedor”.
Extraindo as necessárias consequências do que supra se expende, forçoso será concluir que a maior ou menor diligência com que os funcionários do banco réu actuaram na efectivação das transferências dos montantes que saíram da conta dos autores é questão irrelevante para a solução do presente dissídio. Como bem se compreende, só se a perda do montante depositado fosse imputável aos autores, como previsto na parte final do nº 1 do artigo 796º, é que tal risco deixaria de correr por conta do banco réu que, como depositário, sobre ele exercia com carácter de exclusividade poderes de domínio. Sendo que, fossem quais fossem os cuidados que o banco tomasse para tentar evitar tal risco, nunca poderiam eles consubstanciar causa de exclusão da sua responsabilidade perante os depositantes.

III
DISPOSITIVO
Pelo exposto, na procedência do recurso dos autores e na improcedência do recurso subordinado da ré, revoga-se a sentença recorrida, condenando-se a ré a pagar aos autores a quantia 103.092,05 €, acrescida de juros vencidos desde 24.01.2005, à taxa legal de 4%, no montante que ora se liquida de 27.612,00 €, e de juros vincendos até efectivo e integral pagamento.

Custas pela ré – artigo 446º do Código de Processo Civil.

Notifique.

Guimarães, 4 de Outubro de 2011