REJEIÇÃO
ACUSAÇÃO
BURLA
ELEMENTOS ESSENCIAIS DO CRIME
Sumário

I) Resulta do preceituado no artigo 217.º, n.º 1 do C. Penal, para além do mais, que através do erro ou engano se de­termine outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial, que se pode traduzir na lesão de qualquer bem, interesse ou direito, pessoal ou real, mobiliário ou imobiliário.
II) No desenho acusatório, aparece de uma forma clara a intenção de enriquecimento ilegítimo, claramente definida e demonstrada em relação à arguida Ana R... já que se propunha obter, como obteve, um enriqueci­mento com base no directo empobrecimento da sua irmã Elisabete da Conceição, sem causa justificativa.
III) Assim sendo, e dado que o quadro acusatório imputa à arguida todos os factos constitutivos do crime de burla, nenhuma razão existe para não submeter a arguida a julgamento e, consequentemente, impõe-se a revogação do despacho recorrido que rejeitou a acusação.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório
Nestes autos de processo comum com intervenção do tribunal singular n.º 471/08.7GAVVD, a correr termos no 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Braga, por despacho de fls. 294 a 299, foi rejeitada a acusação pública deduzida contra a arguida Ana R... pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de burla qualificada previsto e punido pelo n.º 1 do artigo 218.º do Código Penal.
Inconformado com tal decisão, o Ministério Público dela interpôs recurso, retirando da sua motivação as seguintes conclusões (transcrição):
“1- Inexiste fundamento válido para a rejeição da acusação sub judice.
2- No nº 3 do artº 311º do Código de Processo Penal são elencados casos extremos em que a acusação é insusceptível de correcção sem prejuízo do direito de defesa fundamental que a falta dos elementos aí mencionados traria. Nele se prevêem nulidades da acusação sui generis, insuperáveis e insanáveis, que permitem ao Juiz do julgamento uma intromissão na estrutura acusatória do processo que de outro modo não seria admissível. No caso da alínea d) da mencionada norma prevê-se uma dessas situações limites - a falta de objecto legal. Este apenas poderá ser verificado quando a factualidade descrita não configura a prática de qualquer crime.
3- A acusação rejeitada contém os factos integradores do tipo de ilícito em questão, o crime de burla qualificada.
4- Aliás, toda a narração dos factos se desenvolve em tomo do “esquema” empregue pela arguida para obter um crédito a que não teria, não fosse ele, acesso. Toda a estrutura da acusação é de molde a tomar perceptível que a arguida desenvolveu uma conduta astuciosa que provocou um engano que determinou à concessão do crédito, mediante a narração dos factos naturalísticos, omitindo conclusões.
5- A acusação rejeitada tem, por conseguinte, condições de viabilidade e é fundamento bastante da realização de julgamento.
6- O douto despacho recorrido violou o disposto nos artºs 218º, nº 1, do Código Penal e 311º, nº 2, al. a) e nº 3, al. d), do Código de Processo Penal.
Pelo exposto, somos do parecer que o despacho recorrido deve ser revogado por outro que receba a acusação sub judice, seguindo-se os ulteriores termos processuais.
Assim julgando, farão V. Ex.ªs inteira JUSTIÇA!”.
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A arguida não respondeu ao recurso.
Nesta instância o Exmo. Procurador Geral-Adjunto, na intervenção a que alude o artigo 416.º do Código de Processo Penal, emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
No âmbito do disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, a arguida nada disse.
Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.
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II - Fundamentação
1. O despacho recorrido (por transcrição):
“O tribunal é o competente.
O Ministério Público está dotado de legitimidade para o exercício da acção penal.
Inexistem quaisquer nulidades e outras questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.

***
De harmonia com o disposto no artigo 311º, nº 2, alínea a) do Código de Processo Penal, quando o processo é remetido para julgamento sem ter havido instrução, a acusação pode ser rejeita, se for considerada manifestamente infundada, o que, nos termos do nº 3 do referido artigo, acontecerá quando:
a) Não contenha a identificação do arguido;
b) Não contenha a narração dos factos;
c) Não indique as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam;
d) Os factos não constituam crime;
Nos presentes autos o Ministério Público deduziu acusação contra Ana R... imputando-lhe a prática de um crime de burla qualificada, p.p. pelo artigo 218º, nº 1 do Código Penal.
Decorre do disposto no nº 1 do artigo 217º do Código Penal, que “quem, com intenção de obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa”.
Por sua vez, o nº 1 do artigo 218º do Código Penal dispõe que “Quem praticar o facto previsto no nº 1 do artigo anterior é punido, se o prejuízo patrimonial for de valor elevado, com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias”.
Com este tipo legal de crime visa-se a protecção do património, entendido numa acepção jurídico-económica e, neste sentido, coincidente com um conjunto de utilidades económicas cuja disponibilidade e fruição o ordenamento jurídico tutela ou, pelo menos, não desaprova.
A protecção ao património coloca-se no momento em que evento danoso ocorre, em que o prejuízo patrimonial se verifica - sob a forma de dano emergente ou de lucro cessante -, sendo esse, justamente, o momento da consumação do crime.
Ora, os elementos do crime de burla são os seguintes:
a) A “astúcia” empregue pelo agente;
b) O “erro ou engano” da vítima devido ao emprego da astúcia;
c) A “prática de actos” pela vítima em consequência do erro ou engano em que foi induzida;
d) O “prejuízo patrimonial” – da vítima ou de terceiro – resultante da prática dos referidos actos;
e) Nexo causal: é necessário que entre os elementos acima descritos existam sucessivas relações de causa e efeito, nomeadamente que: da astúcia resulte o erro ou engano; do erro ou engano resulte a prática de actos pela vítima; da prática desses actos resulte o prejuízo patrimonial;
f) Intenção do agente de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo: é necessário que se verifique a existência de dolo.

Quanto à conduta do agente, o artigo 217º nº 1 do Código Penal determina que o erro do sujeito passivo tem de ser provocado astuciosamente.
“É usada astúcia quando os factos invocados dão a uma falsidade a aparência de verdade, ou são referidos pelo burlão factos falsos ou este altere ou dissimule factos verdadeiros, e actuando com destreza pretende enganar e surpreender a boa fé do burlado, de forma a convencê-lo a praticar actos em prejuízo do seu património ou de terceiro” (Ac. do STJ de 20/03/2003, processo nº 03P241 disponível em www.dgsi.pt).
Por sua vez, o erro deve ser considerado como a falsa ou nenhuma representação da realidade concreta, que funcione como vício do consentimento da vítima.
Já no caso do engano, “o burlão terá que ter cometido a mentira adequada a lograr o burlado” (Marques Borges, citado in Código Penal Anotado, Leal-Henriques e Simas Santos, Editorial Rei dos Livros, Vol. II, pág. 839).
No entanto, não basta qualquer erro ou engano; é ainda necessário que ele tenha sido provocado ou aproveitado astuciosamente, nos termos supra referidos.
Sendo certo que o erro pode ser provocado pelo agente quando este descreve a outrem, por palavras ou declarações expressas, sob a forma oral ou escrita, uma falsa representação da realidade.
“A burla por palavras ou declarações expressas pode ocorrer, conforme se assinalou, sob a forma oral ou escrita; (…) Na modalidade de execução em apreço incluem-se, também, a apresentação de documento falso ou de documento que, não sendo falso, não fundamenta (ou não fundamenta ainda) determinada pretensão 1), a solicitação de subsídios ou comparticipações para despesas não efectuadas 2) ou o acto de invocar meios de prova falsos, desde que se observem os restantes pressupostos do delito 3)” (Almeida Costa, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Coimbra Editora, Tomo II, pág. 302).
Além disso, a vítima tem que praticar actos em consequência do erro ou engano em que foi induzida. Os actos de disposição são o elemento do tipo que em pertinente relação causal estão em contacto, dum lado, com o elemento intelectual que é o erro ou engano de quem os pratica; do outro, com a consequência exterior — patrimonial — da burla, que é o prejuízo do enganado ou de terceiro.
O desenho da burla, que é crime de relação, envolve dois comportamentos, mas só se pune o do burlão. A figura da vítima é certamente imprescindível no iter criminis da burla mas nunca se assume como punível. A própria actividade do enganado não se segue de modo necessário à actividade do burlão: este pode ter praticado todos os actos tendentes ao fim em vista, sem que rigorosamente se possa afirmar que vai ter lugar o acto de disposição pretendido, ou que este vai gerar, de forma inelutável, um prejuízo patrimonial.
Quanto ao prejuízo patrimonial, enquanto requisito da consumação do delito, adoptado pela opinião dominante na actualidade consiste num conceito objectivo-individual de dano patrimonial e de acordo com o qual “o prejuízo deverá determinar-se através da aplicação de critérios objectivos de natureza económica à concreta situação patrimonial da vítima, concluindo-se pela existência de um dano sempre que se observe uma diminuição do valor económico por referência à posição em que o lesado se encontraria se o agente não houvesse realizado a sua conduta” (cfr. Almeida Costa, in ob. cit. pág. 284/285). Daqui decorre que o crime de burla é um crime de dano.
Saliente-se que nem sempre a pessoa que foi induzida em erro ou engano é a mesma que foi lesada (titular do património lesado), pois, “ Sujeito passivo, portanto, é o que vem a sofrer, realmente o prejuízo. Se o enganado é titular de direito real sobre a res captada, o sujeito passivo tanto será ele quanto o titular da propriedade” (in Código Penal Anotado, Leal-Henriques e Simas Santos, Ed. Rei dos Livros, 2º Volume, pág. 838, citando Nelson Hungria).
Como já se referiu, é necessário que em consequência da astúcia resulte o erro ou engano; do erro ou engano resulte a prática de acto(s) pela vítima; da prática de acto(s) resulte, finalmente, o prejuízo patrimonial. Em sede de imputação objectiva do evento à conduta do agente, a burla é, assim, um crime complexo, que comporta um triplo nexo de causalidade.
É precisamente por isso que o crime de burla constitui um crime material ou de resultado, pois a sua consumação verifica-se com a saída dos bens ou valores da esfera do legítimo detentor dos mesmos ao tempo da infracção, sendo que para a sua consumação é necessário a verificação de um duplo nexo de imputação objectiva:
1) Entre a conduta enganosa do agente e a prática, pelo burlado, de actos tendentes a uma diminuição do património próprio ou alheio;
2) Entre os actos tendentes a uma diminuição do património próprio ou alheio e a efectiva verificação do prejuízo patrimonial.
Trata-se de um delito de execução vinculada, pois é em consequência de uma específica forma de comportamento que ocorre a lesão do bem jurídico.
No que concerne ao tipo subjectivo, para o preenchimento do crime de burla, é necessário que a conduta do agente seja dolosa. O dolo tem de ser específico, pois “Para que se verifique o preenchimento do tipo subjectivo não basta, contudo, o dolo de causar um prejuízo patrimonial ao sujeito passivo ou a terceiro, exigindo-se, de outra parte, que o agente tenha a “intenção” de conseguir, através da conduta, um enriquecimento ilegítimo próprio ou alheio. A burla consubstancia, portanto, um delito de intenção (Absichtsdelikt) – categoria que exprime, do lado do tipo subjectivo, a mesma ideia que, no plano do tipo objectivo, preside à sua qualificação como um “crime de resultado parcial” ou “cortado” (kupiertes Erfolgsdelikt): não obstante se requeira que o sujeito actue com aquela intenção de enriquecimento, a consumação do crime não depende da efectivação do último, verificando-se logo que ocorra o prejuízo patrimonial da vítima” (cfr. Almeida Costa, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Ed., Tomo II, pág. 309).
O enriquecimento ilegítimo deve ser entendido como enriquecimento ilícito, ou seja, ao qual não corresponde, objectiva ou subjectivamente, qualquer direito, pois só este é relevante como elemento constitutivo do crime aqui em causa.
Revertendo agora ao caso dos autos, da leitura da acusação pública que foi deduzida contra a arguida não se retiram todos os elementos necessários à imputação de um crime de burla, nem é possível dela retirar a prática pela arguida de qualquer outro tipo legal de crime.
Na verdade, não se retira dos factos descritos na acusação o erro ou engano provocado astuciosamente pela arguida, nem tão pouco esse elemento consta do elemento subjectivo, ou seja, da intenção que presidiu a essa mesma conduta. Aliás, o elemento subjectivo do crime que consta da acusação é tão só o seguinte: “a arguida agiu de forma livre, consciente e voluntariamente, no propósito concretizado de obter para si o veículo supra referido que de outra forma não poderia adquirir e bem sabendo que com a sua conduta causava um prejuízo à sua irmã Elisabete, o que representou”. Ora, este facto não é suficiente para que se possa concluir que a arguida praticou um crime de burla, sendo necessário que dele também resultasse a astúcia que levou ao erro ou engano, até porque o dolo do crime de burla é um dolo específico, residindo essa especificidade precisamente na astúcia que preside à conduta do agente e que leva à produção do erro ou engano.
Da acusação pública nada se retira quanto a esse elemento o que leva a que a mesma deva ser rejeitada pois os factos como vêm descritos não constituem crime atenta a falta de preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos para imputar à arguida a prática de um crime de burla qualificada, p.p. pelos artigos 217º e 218º do Código Penal.
Nestes termos, ao abrigo do disposto no artigo 311º, nº 3 alínea a) e nº 3 alínea d) do Código de Processo Penal, rejeito a acusação pública deduzida contra a arguida Ana R....
Notifique.”
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2. Apreciando.
Dispõe o artigo 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal( - Diploma a que se referem os demais preceitos legais citados sem menção de origem.) que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Por isso é entendimento unânime que as conclusões da motivação constituem o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso( - Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, volume III, 2ª edição, 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 7ª edição, 107; Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 17/09/1997 e de 24/03/1999, in CJ, ACSTJ, Anos V, tomo III, pág. 173 e VII, tomo I, pág. 247 respectivamente.), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso( - Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado no Diário da República, Série I-A, de 28/12/1995.).
Assim, de harmonia com as conclusões apresentadas, a questão a apreciar e decidir consiste em saber se os factos descritos na acusação são susceptíveis de integrar o tipo legal de crime de burla qualificada imputado à arguida.
A fase preliminar do julgamento inicia-se com o saneamento do processo, nos termos do disposto no artigo 311.º do Código Processo Penal, que tanto pode incidir sobre aspectos adjectivos, como relativamente a aspectos substantivos.
Os primeiros tanto podem consistir em questões incidentais ou prévias, como em nulidades, com destaque para aquelas que podem afectar a acusação e que sejam de conhecimento oficioso – nºs 1 e 2, a).
Nestas destacam-se as circunstâncias de rejeição da acusação por vícios processuais respeitantes à falta de identificação do arguido, à narração dos factos, de indicação das disposições legais aplicáveis ou das provas que a fundamentam [n.º 3, al. a), b), c)].
Nestes aspectos processuais susceptíveis de saneamento, também encontramos aqueles que representam uma alteração substancial dos factos, tanto da acusação particular, como pública, enunciado no artigo 311.º, n.º 2, b).
Os aspectos substantivos, que respeitam ao mérito da causa, tanto podem incidir sobre questões prévias ou incidentais, como sucede, por exemplo, com a extinção do procedimento criminal, como podem representar um julgamento antecipado da causa, mas que se restringirá à rejeição da acusação em virtude dos factos narrados nesta não constituírem crime – artigo 311.º, nºs 2, a) e 3, d) do Código de Processo Penal.
Deste modo, obsta-se à realização de julgamentos inúteis, em virtude da existência, por um lado, de excepções processuais que afectam a acusação, em termos meramente dilatórios ou então de forma irremediável, ou, por outro lado, por falta de tipicidade criminal da conduta descrita.
Como resulta do citado artigo, recebidos os autos no tribunal, sem que tenha havido lugar a instrução, depois de se apreciar de nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação de mérito, o juiz deverá rejeitar a acusação se a considerar manifestamente infundada – nºs 1 e 2, a).
O n.º 3 do citado artigo 311.º enuncia os casos em que se deve considerar manifestamente infundada a acusação deduzida, sendo um desses casos, a circunstância de os factos não constituírem crime – alínea d).
É consabido que a acusação assume uma importância decisiva no subsequente desenrolar do processo, cujo objecto define e fixa, delimitando os poderes de cognição do tribunal (a chamada vinculação temática do tribunal, a qual implica a inalterabilidade, fora dos limites apertados das disposições dos artigos 358.º e 359.º, do objecto do processo) e as inerentes implicações com as garantias de defesa do arguido – uma das quais é, justamente, a de lhe ser possibilitado o conhecimento antecipado, em toda a sua extensão, dos factos que lhe são imputados e da respectiva incriminação de forma a poder organizar de forma adequada a sua defesa e exercer o direito do contraditório – pressupostas por um processo equitativo que o processo criminal deve assegurar (nºs 1 e 5 do artigo 32º. da CRP).
O despacho recorrido rejeitou a acusação pública deduzida contra a arguida porque «os factos como vêm descritos não constituem crime atenta a falta de preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos (…) de um crime de burla qualificada p. e p. pelos artigos 217.º e 218.º do Código Penal».
Estatui o artigo 217.º, n.º 1 do Código Penal:
“Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos, que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial, é punido com prisão até 3 anos ou com pena de multa”.
Por sua vez, o artigo 218.º, n.º 1 do citado diploma estabelece:
“Quem praticar o facto previsto no n.º 1 do artigo anterior é punido, se o prejuízo patrimonial for de valor elevado, com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias».
O artigo 202.º, alínea a) do mesmo Código define como «valor elevado», aquele que exceder 50 unidades de conta avaliadas no momento da prática do facto( - Uma vez que, em 2004, o valor da unidade de conta foi de € 89,00, valor elevado era aquele que excedesse a importância de € 4.450,00 – artigos 5.º, nºs 1 e 2 e 6.º do DL n.º 212/89, de 30 de Junho.).
Assim, o primeiro elemento a apreciar é a in­tenção de obtenção de enri­quecimento ilegítimo, e em relação a ele começaremos por afirmar que entendemos que esta intenção integra um elemento subjectivo do tipo em análise, consistente em a acção do agente ter em vista um enriquecimento ilegítimo( - Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16/1/1990, in C. J., 1990, tomo 1, pág. 6.), ou se preferir­mos mais se não haverá de considerar que uma “característica especial da ilicitude”( - Veja-se Figueiredo Dias, O Problema da Consciência da Ilicitude em Direito Penal, págs.447 a 450 e notas 27 a 29.).
Passando ao plano objectivo importa referir que o primeiro elemento deste tipo legal de crime é constituído pelo erro ou engano sobre factos, através do qual se determi­nam terceiros à prática dos actos lesivos, que infra melhor expli­citaremos.
Julgamos que a distinção entre o erro e o engano radica na atitude psico­ló­gica do agente passivo, que na primeira hipótese decide de harmonia com o juízo que formu­lou, mas partindo de pressupostos que estão viciados pelo engano e na segunda iden­tifica-se uma desconformidade entre a vontade real e a declarada determinada pelo artifício usado pelo su­jeito activo, e assim, quer o erro, quer o engano, podem consubstanciar-se em simula­ções ou dissimulações, na inveraci­dade do que se diz ou faz crer, na afirmação de factos falsos ou na desfiguração de verdadeiros( - Cf. Antón Oneca, Nueva En­ciclopédia Jurídica, IX, pág. 61.), resultando a sua integração numa ou na outra categoria da forma como actua sobre o agente passivo.
Além disto, é mister, que se trate de um erro ou engano sobre factos, que o agente astuciosamente provocou, funcionando este requisito em termos limitativos da já refe­rida intenção de enriquecimento ilegítimo( - Cfr. Acórdão da Relação de Coimbra de 1/6/1983, in C. J., 1983, tomo 3, pág. 97.).
A propósito da “configuração material” que o crime de burla pode assumir refere Almeida Costa que se distinguem três modalidades: “a primeira, que se afigura como a mais evidente, ocorre quando o agente provoca o erro de outrem descrevendo-lhe, por palavras ou declarações expressas (sob a forma oral ou escrita), uma falsa representação da realidade; a segunda observa-se na hipótese de o erro ser ocasionado, não expressis verbis, mas através de actos concludentes, isto é, de condutas que não consubstanciam, em si mesmas, qualquer declaração, mas, a um critério objectivo – a saber, de acordo com as regras de experiência e os parâmetros ético-sociais vigentes no sector da actividade – se mostram adequadas a criar uma falsa convicção sobre certo facto passado, presente ou futuro; em terceiro lugar, refere-se a burla por omissão: ao contrário do que sucede nas situações anteriores, o agente não provoca, agora, o engano do sujeito passivo, limitando-se a aproveitar o estado de erro em que ele já se encontra”( - Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, página 301.).
A idoneidade defraudatória dos actos concludentes não suscitará quaisquer dúvidas, assim como a sua equivalência às declarações expressas, desde que seja inequívoco o sentido ou significado dos aludidos actos concludentes no contexto específico em que são praticados (aliás, a qualificação como “concludentes” traduz precisamente essa ideia).
Entre os actos concludentes inclui o referido autor a realização de um contrato: “A assunção de uma obrigação contratual comporta, de forma concludente, o significado adicional de que o indivíduo se encontra na disposição de cumpri-la, pelo que, faltando esta última, se depara com um crime de burla.”( - Almeida Costa, loc. cit., pág. 305.).
E mais precisamente: “Assim, na órbita da conclusão de um contrato, se uma das artes se abstiver de declarar que não se encontra em condições de o cumprir, comete burla por actos concludentes, uma vez que a celebração de um negócio leva implicada a afirmação de que qualquer dos intervenientes tem a possibilidade de satisfazer as obrigações dele emergentes.”( - Almeida Costa, loc. cit., pág. 304.).
Também o Supremo Tribunal de Justiça já se pronunciou sobre este elemento de forma pacífica em diversos arestos, admitindo que o crime de burla pode ser praticado não só por acção, como também por omissão, nos termos gerais previstos no artigo 10.º do CP, relevando, na parte activa, não só as declarações expressas como também os actos concludentes e dentro destes podem enquadrar-se as condutas praticadas no domínio da negociação e da contratação que, violando as regras da boa-fé negocial, ocultem a (real) vontade, por parte do agente, de não cumprir a obrigação assumida( - Cfr., entre outros, Acórdãos de 22/5/2002 e de 18/6/2008, na CJ, ACSTJ, Anos X e XVI, tomo II, páginas 206 e 255 respectivamente.).
No acórdão de 25/10/2006, admitindo-se a burla através de actos concludentes, escreveu-se a esse propósito:
“As regras da experiência e o princípio da boa-fé em sentido objectivo constituem elementos primordiais para avaliar a relevância de um determinado comportamento no contexto da tipicidade e ilicitude na execução vinculada do crime de burla. Nesta perspectiva, a deslealdade tida por inadmissível no comércio jurídico, o «domínio do erro» que viole os ditames da boa-fé consubstancia o desvalor característico do ilícito da burla. A actuação do agente tem de consistir em condutas adequadas a criar a falsa convicção sobre certo facto, e que criem ou assegurem o engano da vítima: estão neste caso as situações em que o agente se abstém de declarar que se não encontra em situação de cumprir, ou quando assume uma obrigação que sabe não poder cumprir, actuando com reserva mental dolosa.”( - Proc. 2667/06-3ª Secção.).
Passando ao objecto do crime, começar-se-á por apreciar o conceito de enri­quecimento ilegítimo, para referir que o mesmo se há-de integrar por recurso ao con­ceito civilístico de enriquecimento sem causa, contido no artigo 473.º, n.º 1 do Código Ci­vil, que assenta nos seguintes pressupostos: o en­riquecimento, o empobrecimento, o nexo causal entre um e outro e a falta de causa justificativa da deslocação patrimonial( - Cfr. Acórdãos da Relação de Coimbra de 19/2/1986 e 25/11/1987, in C. J., anos 1986 e 1987, tomos 1 e 5, págs. 63 e 87, respectivamente.).
Mais se torna necessário face ao preceituado no citado artigo 217.º, n.º 1 que através do erro ou engano se de­termine outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial, que se pode traduzir na lesão de qualquer bem, interesse ou direito, pessoal ou real, mobiliário ou imobiliário.
Assim, aquele enriquecimento ilegítimo tem como correspectivo este preju­ízo.
Por último, o elemento intelectual do tipo, o dolo, que, “para além da sua estrutura de conhecimento e vontade de realização de um ilícito-típico, há-de constituir expressão de uma atitude pessoal contrária ou indiferente ao dever-ser jurídico-penal”( - Figueiredo Dias, Liber­dade\Culpa\Direito Penal, pág. 248.) – confronte-se o artigo 14.º –, bastando para a verificação deste elemento da infrac­ção em epí­grafe, o preenchimento dos requisitos gerais do dolo que vimos de indicar( - Neste sentido, o citado Acórdão do Supremo Tri­bunal de Justiça.).
Aplicando, agora, as noções vindas de enunciar ao caso vertente, dir-se-á que, no desenho acusatório, aparece de uma forma clara a intenção de enriquecimento ilegítimo, claramente definida e demonstrada em relação à arguida Ana R... já que se propunha obter, como obteve, um enriqueci­mento com base no directo empobrecimento da sua irmã Elisabete da Conceição, sem causa justificativa.
Na concretização dessa sua intenção, sabendo que só podia obter crédito para aquisição do veículo automóvel se conseguisse fiador, fez crer a Luís Filipe Cardoso Pereira, vendedor do Stand Barrosos e Ana Maria, que a sua irmã Elisabete da Conceição de Sousa Ramos havia acedido em assumir a qualidade de fiadora no contrato de financiamento para aquisição do veículo quando bem sabia que tal não correspondia à verdade posto que, sem o conhecimento e consentimento da sua irmã Elisabete, se apoderou, momentaneamente, dos recibos de vencimento, número fiscal e declaração de rendimentos daquela de que tirou cópias que entregou aquele efeitos de celebração do contrato de financiamento para aquisição do veículo, atingindo a arguida, por este meio, o seu desiderato, constituindo a entrega de tais documentos o elemento sem o qual não haveria a aprovação do crédito, envolvendo necessariamente o erro sobre os factos astuciosamente provocados, a que alude o artigo 217.º, n.º 1, sendo este resultado a consequência daquela actividade.
Com efeito, aquele Luís Filipe Cardoso Pereira, uma vez na posse de tais documentos, encaminhou o processo para a mediadora de créditos “Silva Alves & Viana, Lda.” na sequência do que veio a ser aprovado o contrato de mútuo em que figura como fiadora a irmã da arguida, Elisabete da Conceição de Sousa Ramos.
Em tudo isto se traduz o erro sobre factos, que foram astuciosamente pro­vo­cados, tanto quanto é certo que a arguida nunca deu a entender que a sua irmã não tinha acedido em se constituir como fiadora no contrato de mútuo celebrado no dia 30 de Março de 2004, no qual a arguida fez constar a assinatura daquela como sua fiadora.
Causou um prejuízo à ofendida equivalente ao montante do crédito concedido já que esta foi constituída fiadora no contrato, tornando-se, assim, devedora de montante de valor elevado.
Por outro lado, a arguida praticou todos os actos vindos de referir com conhecimento e consci­ência da ilicitude das suas condutas e com o propósito conseguido de, assim, obter um benefício ilegí­timo em detrimento da sua irmã Elisabete.
Deste modo, conclui-se que os factos descritos na acusação são idóneos para submeter a arguida a julgamento de forma a esperar que da discussão em julgamento poderá decorrer a condenação da arguida por aqueles factos e com o enquadramento constante da acusação.
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III - Dispositivo
Nestes termos, acordam os juízes desta Relação em conceder provimento ao recurso e, consequentemente, revogar o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que receba a acusação relativamente ao crime de burla qualificada imputado à arguida, seguindo-se os ulteriores termos processuais.
*
Sem tributação.
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Guimarães, 23 de Janeiro de 2012