RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA
EXTINÇÃO
ACORDO
PAGAMENTO
RESPONSABILIDADE CRIMINAL
Sumário

O facto gerador da responsabilidade tributária é autónomo da responsabilidade criminal. Por isso, as causas de extinção duma e de outra são distintas.

Texto Integral

Acordam em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães


No Processo Comum Singular n°267/10.6IDBRG, do 1° Juízo Criminal de Barcelos, o M°P° deduziu acusação contra os arguidos:
1. O... -COMÉRCIO, LDA;
2. Luís M...;
3. João O..., imputando a cada um deles a prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelos art°s6°, n°1, 70, n°1 e 3 e 1050, todos do Dec-Lei n°15/2001, de 05/06.
Recebida a acusação, foi designado dia para julgamento. A fls.281 foi proferido o seguinte despacho:
Fls. 698 a 704:

Vieram os arguidos "Omos - Comércio ..., Ida", João O... e Luís M... alegar a irregularidade das notificações que lhes foram efectuadas em cumprimento do disposto no art. 105°, n° 4, al. b) do RGIT, pelas razões aduzidas a fls. 698 e segs..

O Ministério Público pronunciou-se, nos termos constantes a fls. 281, alegando que o pagamento da última prestação, que foi efectuado já em sede de reversão, por ter sido ultrapassado o prazo que lhes foi concedido, só poderá ser apreciado em sede de julgamento.
Cumpre decidir.

Analisada a documentação constantes dos autos, bem como as informações prestadas pela Repartição de Finanças de Barcelos, verifica-se que Administração Fiscal, no âmbito do processo de execução fiscal n° 035320100101014463, e no exercício de poderes que lhe são próprios, concedeu aos arguidos, por estes lhe terem solicitado em Abril de 2010, um prazo adicional para efectuar o pagamento das quantias em dívida, pagamento esse que autorizou faseadamente, em 12 (doze) prestações mensais e sucessivas, no dia 12 de Maio de 2010 (cfr. fls. 58 a 62 e 200 a 209 e 279).
E, em face de tal concessão, resulta, neste momento, provado que o pagamento da dívida e acréscimos legais foi efectuado, cfr. fls. 279.

Compulsados os autos, verifica-se que tal requerimento (de pagamento em prestações) foi efectuado antes da notificação a que alude o art. 105°, n° 4, al. b) do RGIT, na redacção introduzida a tal normativo pela Lei n° 53-A/2006, de 29/12, no qual se introduziu uma nova condição de punibilidade do crime de abuso de confiança fiscal, o que foi deferido por despacho proferido - cfr. fls. 53 a 56 e 200, 201, 279.

E com tal notificação, tal como se escreveu, aliás, no Acórdão de Fixação de Jurisprudência n° 6/2008 de 9/4/2008, pretendeu o legislador "conceder uma última possibilidade de o agente evitar a punição da sua conduta omissiva". E para que tal notificação se possa considerar perfectibilizada, nos termos que constam do aludido normativo deverá ser comunicado ao agente de que dispõe de 30 dias para proceder ao pagamento da prestação tributária em falta, dos respectivos juros e do valor da coima aplicável.

Ora, constata-se que a Divisão de Justiça Tributária do Núcleo de Investigação Criminal da Direcção de Finanças de Braga notificou os arguidos em 10 de Setembro de 2010, no sentido de estes procederem ao pagamento do IVA referente ao período de Novembro de 2009, no valor global de € 22.331,28 e respectiva coima no valor de € 5.169,70, nos termos e para os efeitos previstos no art. 105°, no 4, al. b) do RGIT - cfr. se colhe de fls. 53 a 56.

Contudo, decorre de fls. 60 a 62 e 201 a que aquando de tal notificação, já os arguidos haviam procedido ao pagamento de três prestações mensais (nos dias 30/06/2010, 30/07/20190 e 31/08/2010), em conformidade com o acordado no processo de execução tributária que foi determinado pelos Serviços de Finanças de Barcelos.

Isto posto, verifica-se, no caso, que aquando do recebimento da acusação, o tribunal desconhecia em absoluto tal situação, pois que, se assim não fosse, tê-la-ia desde logo rejeitado.

Na verdade, entendemos, salvo melhor opinião, que a mencionada notificação - que em si encerra uma condição de punibilidade, tal como atrás se referiu - carece de legitimidade e admissibilidade legal, violando até os mais elementares princípios da boa fé a que o Estado, como qualquer outra pessoa, está obviamente sujeito.
De facto, tendo a Administração Fiscal, nos termos supra referidos, concedido aos arguidos um prazo suplementar de pagamento, prazo esse de um ano, com vista à entrega faseada dos montantes em dívida, acrescidos dos respectivos juros, neles criando a legítima expectativa de que disporiam de tal prazo para sanar a sua falta e ademais vindo os arguidos a liquidarem integralmente a dívida, não se compreende que aquela mesma Administração Fiscal tivesse lançado entretanto mão da notificação prevista na aI. b) do n° 4 do art. 105.° do RGIT.
Diferente seria a situação, caso os arguidos deixassem de pagar alguma das prestações em causa, situação essa que implicaria o vencimento das restantes, a legitimar já, e então, a notificação em causa e pelo valor em dívida naquele preciso momento.
É certo que a última prestação não foi paga no prazo que lhes foi fixado; porém, tal não invalida o que se disse, porquanto todos o processado anteriores e que se manteve inalterado (já que não houve uma nova notificação com a importância concretamente em dívida), mostra-se ab initio inquinado.
Acresce ainda que, se atentarmos ao teor das notificações em referência - cada uma delas se reportando ao período tributário em causa - verificamos que as mesmas não consideram os pagamentos parciais já efectuados (três prestações como vimos supra), o que as torna substancialmente inválidas por não retratarem devidamente a realidade.
De facto, no que concerne ao valor da prestação tributária em dívida, afigura-se nos como certo que o agente tem de ter o concreto conhecimento do seu valor, para em função disso poder tomar a decisão de proceder ou não ao seu pagamento, sendo que tal conhecimento é absolutamente indispensável à tomada da correspondente decisão (neste sentido, veja-se o Acórdão da Relação do
Porto de 03/11/2010, referente ao processo n° 61/05.6IDPRT-B.P1, disponível no sítio www.dgsi.pt/jtrp).
Assim sendo, considerando ilegítimas as notificações entretanto efectuadas pela Administração Fiscal nos termos e para os efeitos do disposto na al. b) do n° 4 do art. 105° do R.G.I.T., pelas razões supra expostas, entendemos por não verificada a condição de punibilidade ali prevista, motivo pelo qual, sem necessidade de maiores explanações, não nos resta senão que concluir pela extinção da responsabilidade criminal dos arguidos "Omos Comércio de Electrodomésticos e Material Eléctrico, Lda", João O... e Luís M....
Notifique.
*
Após trânsito em julgado, comunique à Direcção-Geral dos Impostos de forma a evitar a
repetição de situações idênticas.
*
Face ao teor do despacho que antecede, dou sem efeito as datas de julgamento anteriormente designadas.
Desconvoque e demais d.n..
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Oportunamente, arquive.

*****







Inconformado, recorreu o M°P°, terminando a motivação com conclusões das quais se retira ser a seguinte a questão a decidir:
Saber a responsabilidade criminal dos arguidos se mostra extinta em virtude de acordo de pagamento efectuado com a administração fiscal.



Ao recurso responderam os arguidos, concluindo pela sua improcedência.



O Exmª Procuradora-Geral Adjunto nesta Relação emitiu parecer louvando-se na resposta apresentada pelo M°P° e concluindo pela sua procedência.

Foi cumprido o disposto no art°417° n°2 do C.P.P..

Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos, cumpre decidir:



Questão única:
Em causa está, pois, saber se com o acordo de pagamento celebrado com a
administração tributária a responsabilidade criminal dos arguidos se extinguiu ou não.
Antes de mais, é necessário começar por distinguir a responsabilidade tributária da responsabilidade criminal.
Enquanto a responsabilidade tributária resulta do incumprimento das obrigações tributárias e existe independentemente da prática de qualquer crime,
isto é, o crime não é o facto gerador da dívida de imposto, a responsabilidade criminal resulta da prática de crime tributário.
Nos termos do artigo 22.0 n.o 1 da Lei Geral Tributária a responsabilidade
tributária abrange a totalidade da dívida tributária, respectivos juros e demais encargos legais.
A prática do crime, por seu lado, gera responsabilidade penal e responsabilidade civil pelos danos emergentes, pelos quais são responsáveis os agentes do facto ilícito típico, nos termos da lei penal e civil Germano Marques da Silva – Direito Penal Tributário – Universidade Católica – 2009, pág.113..
A responsabilidade tributária é aplicável a legislação tributária, nomeadamente, a Lei Geral Tríbutária O regime de responsabilidade previsto nos referidos artigos da Lei Geral Tributária é específico do direito tributário e refere-se às dívidas das prestações tributárias em que o devedor directo é o ente colectivo – Acórdão desta Relação, de 23/11/2009 – http://www.dgsi.pt/jtrg., enquanto à responsabilidade emergente do crime, quer por força por força do disposto no arto3º do RGIT, quer por força do disposto no artigo 8o do C.P, é aplicável o disposto nos artos483° a 498° do Código Civil, por remissão do art°129° do Código Penal.
Por outro lado, os responsáveis por uma e outra indemnização podem não ser os mesmos.
Citando, uma vez mais, Germano Marques da Silva Obra citada, pág. 114., Pela responsabilidade da dívida de imposto é responsável o sujeito passivo do imposto ou o seu substituto: o sujeito passivo da relação tributária de imposto. A Lei Geral Tributária estabelece também a responsabilidade de terceiros, solidária ou subsidiária, pelo pagamento do imposto, mas esta responsabilidade nada tem a ver com a responsabilidade pelos danos emergentes do crime tributário. Também no Acórdão desta Relação, de 23/11/2009 http://www.dgsi.pt/jtrg, se escreve: O regime de responsabilidade previsto nos referidos artigos da Lei Geral Tributária é específico do direito tributário e refere-se às dívidas das prestações tributárias em que o devedor directo é o ente colectivo.
Já pelo direito à indemnização emergente da prática de crime tributário são responsáveis os agentes do crime que respondem, não nos termos da Lei Geral Tributária, mas nos termos da lei civil Acórdão desta Relação acima citado..
Assim, neste processo todos os arguidos respondem, solidariamente, pelos prejuízos causados pelo crime, enquanto no processo instaurado pela administração fiscal os arguidos João O... e Luís M..., na qualidade de gerentes da arguida Omos Comércio de Electrodomésticos e Material Eléctrico, Lda respondem a título subsidiário pelo pagamento do imposto nos termos da Lei Geral Tributária. Note-se, porém, que não respondem duas vezes, porque o prejuízo é só um; respondem por diversos títulos mas o dano a indemnizar é só um Autor e obra citada, pág. 125, Nota 62.

Isto posto, passemos à análise da questão central destes autos, sendo os seguintes os factos com interesse para a sua decisão:
- A Administração Fiscal, no âmbito do processo de execução fiscal n0035320100101014463, instaurado para pagamento da prestação tributária em causa nestes autos, acordou com os executados o pagamento das quantias em dívida em doze prestações mensais e sucessivas (fls. 58 a 62 e 200 a 209 e 279);
- Nestes autos (fis.53/56) foram os arguidos notificados nos termos da al.d) do n04 do art°105° do RGIT para, no prazo de 30 dias, procederem ao pagamento da prestação tributária (IVA), acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, o que não fizeram;
- Aquando desta notificação já tinham sido pagas três das prestações acordadas - em 30/06/2010, 30/07/20190 e 31/08/2010).
- Já foi4Rfectuado o pagamento integral da prestação e dos acréscimos legais
(fls. 279).
Como já acima se afirmou o facto gerador da responsabilidade tributária é autónomo da responsabilidade criminal. Por isso, as causas de extinção duma e de outra são distintas.
Uma das causas de extinção da execução fiscal é o pagamento da quantia
exequenda e do acrescido (altos 1760, no 1, alínea a) do CPPT e 2640, no 1 do CPPT).
Também nos crimes de abuso de confiança fiscal uma das causas de extinção da responsabilidade penal tributária é o pagamento da prestação tributária em dívida nos prazos estipulados nos artigos 1050 do RGIT «… Quer por força do disposto no artº 8º do Código Penal, quer por força do disposto no artº 3º do RGIT, são aplicáveis aos crimes tributários as normas da parte geral do Código Penal…». Assim, «As causas de extinção de responsabilidade penal tributária são as comuns, estabelecidas no nº 2 do artº 2º, artºs 57º, 64º, 118º, 122º, 127º do Código Penal. Acresce nos crimes de abuso de confiança fiscal e de abuso contra a segurança social o pagamento da prestação tributária em dívida nos prazos estipulados nos artigos 105º e 107º». Germano Marques da Silva, pág. 322 e 1427143, respectivamente._
Porém, se o pagamento efectuado nos autos de execução fiscal extinguiu a responsabilidade tributária, já o mesmo não acontece com a responsabilidade criminal, pois o pagamento não ocorreu no prazo fixado na al.d) do n04 do art°1050 do RGIT, para cujo efeito os arguidos foram devidamente notificados. O pagamento da totalidade da quantia em dívida foi feito já após o decurso do prazo de 30 dias.
Não ficou, pois, arredada a condição objectiva de punibilidade.
Como escreve Germano Marques da Silva Pág.129. Satisfeita a pretensão tributária, mantém-se a pretensão penal. É eu se o pagamento constituísse condição automática de (...) extinção da responsabilidade constituiria um modelo perverso, impondo as agruras do Direito Penal apenas àqueles que não podem suportar o ónus da dívida tributária. Para os senhores do crime haveria sempre o perdão ao alcance do talão de cheques. Isso seria uma invasão do direito penal pelo direito tributário, usando promiscuamente o direito penal ao serviço do direito tributário, mostrando que a conduta do agente só é reprovável socialmente até ao momento do pagamento do crédito tributário.
Assim e para concluir, o acordo de pagamento celebrado com a administração tributária não extingue automaticamente a responsabilidade criminal dos arguidos.
De resto, já no Processo nº1143/2006, deste Tribunal Relatado pela Exmª Des. Nazaré Saraiva e em que a aqui relatora interveio como adjunta., em que esta
questão se colocava, se escreveu: O recorrente não questiona a ausência do pagamento, no prazo de 30 dias após a notificação que lhe foi feita, do pagamento integral das quantias a que se refere o art° 105°, n° 4, ai. b) do RGIT, nem o podia fazer, uma vez que tal ausência de pagamento ocorreu.
Assim sendo, bem andou o despacho recorrido ao considerar que estavam verificados no crime todos os pressupostos indispensáveis para que a punição pudesse desencadear-se.
Acresce que nunca podia o recorrente, através do acordo efectuado com a administração fiscal, criar expectativas fundadas de, que por via desse acordo, a sua situação tributária estava regularizada «nos termos e para os efeitos do artigo 105°, n° 4, aí b)». Assim, para além desse acordo de pagamento ter necessariamente ocorrido antes da notificação que lhe foi efectuada pelo tribunal, nos termos e para os efeitos a que alude o art° 105°, n° 4, al. b), do RGIT, como o demonstra inequivocamente os documentos que juntou, a verdade é que a aludida notificação, feita na sua pessoa e na do seu ilustre mandatário (cfr. fls 501 e 502), não deixa margem para dúvidas relativamente ao que devia ser papo (prestações tributárias em falta, respectivos juros e valor da coima aplicável) e ao prazo (30 dias a contar da notificação) em que esse pagamento teria de ser efectuado, para ser afastada a condição objectiva de punibilidade prevista no art° 105°, n° 4, al. b), do RGIT. Por isso, mal se compreende, as invocadas «expectativas jurídicas do arguido» e muito menos que fale em «expectativa que lhe foi criada», e, consequentemente, a invocada violação do art° 2° da CRP..
Ora, como é bom de ver, a declaração constante do preâmbulo da Lei do Orçamento não pode ser invocada para, só por si, despenalizar qualquer conduta. A despenalização há-de ocorrer por força da lei e nos termos que aí forem estabelecidos.
Não havendo qualquer lei em vigor que despenalize a conduta dos agentes que, em processo de insolvência, façam um acordo para regularizar as dívidas, a argumentação do arguido, neste sentido, é manifestamente inconcludente.
Por outro lado, não existe qualquer incompatibilidade entre a vontade de regularizar a dívida da sociedade e a existência de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, cometido também pelo arguido (seu sócio-gerente).
Face ao exposto, procede o recurso interposto pelo M°P° devendo, consequentemente, o despacho recorrido ser substituído por outro que ordene o prosseguimento dos autos.



DECISÃO:
Pelo exposto e em conclusão, acordam os Juízes desta Secção Crime em julgar procedente o recurso devendo, consequentemente, o despacho recorrido ser substituído por outro que ordene o prosseguimento dos autos.
Sem tributação.



Guimarães, 15/02/2012