Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
ACÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
EXAME HEMATOLÓGICO
RECUSA
INVERSÃO DO ÓNUS DA PROVA
Sumário
1 - A recusa do réu em se submeter a exames hematológicos nas acções de reconhecimento da paternidade é ilegítima porque viola o dever de colaboração das partes, já que a realização do exame hematológico é um acto necessário à descoberta da verdade e não se trata de acto vexatório, humilhante ou causador de grave dano. 2 - No que respeita à recusa da parte em se submeter a exame hematológico nas acções de reconhecimento de paternidade, há lugar à inversão do ónus da prova – artigo 344.º n.º 2 do CC - quando o exame for o único meio de provar a filiação biológica e a recusa implique a impossibilidade de o autor fazer essa prova, privando-o da prova directa, por meios científicos.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
I. RELATÓRIO
C… intentou acção declarativa para investigação de paternidade contra J…, alegando que é filha do réu, apesar de tal não constar no seu assento de nascimento e pedindo que seja reconhecida como filha do réu para todos os efeitos legais.
Contestou o réu para impugnar por falsos os factos alegados, designadamente, negando que alguma vez tenha mantido relações sexuais de cópula completa com a mãe da autora.
Replicou a autora para manter o já alegado na petição inicial.
Foi elaborado despacho saneador e definida a matéria de facto assente e a base instrutória.
Determinada a realização de prova pericial consubstanciada em testes de ADN à mãe da autora e ao réu, não foi possível efectuar a mesma em virtude de o réu ter alegado estar ausente de Portugal, na primeira marcação, ter fornecido uma morada inexistente, para a qual não foi possível efectuar a sua notificação, nas segunda e terceira marcações, ter alegado uma doença repentina que o obrigou a deslocar-se às Urgências do Hospital da Póvoa do Varzim, impedindo-o de comparecer na quarta marcação e, finalmente, não tendo comparecido na quinta marcação, nem justificado a falta.
Tendo-se considerado que o comportamento do réu determinava a inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no n.º 2 do artigo 344.º do Código Civil, determinou-se o aditamento à base instrutória de um quesito da sua alegação.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença que julgou procedente a acção e, consequentemente, reconheceu a autora como filha do réu.
Discordando da sentença, dela interpôs recurso o réu, tendo, nas suas alegações, formulado as seguintes
Conclusões:
1 - O presente recurso vem interposto da douta sentença proferida pelo Meritíssimo Juiz do Tribunal “a quo” que decidiu: “Julgar procedente a acção e, consequentemente, reconhecer a autora como filha do Réu”.
2 - O Meritíssimo Juiz delimitou a questão a decidir nesta sentença: “ de saber se a autora é filha do Réu, o que, para além da análise dos factos provados e do direito aplicável ao caso, co-envolverá a análise da questão de saber quem detém, à luz do direito aplicável, o ónus da prova da sua posição perante o litígio, os seja, se é a Autora que tem de provar que é filha do réu, ou se é o reu que tem de demonstrar que a Autora não é sua filha”
3 - Invocando o princípio da cooperação, destacando a vertente prevista no n.º 3 do artigo 266.º do C.P.C., que comete às partes a obrigação de comparecerem sempre que para isso forem notificadas (…), isto sem prejuízo, obviamente, dos impedimentos que as partes possam ter, e que por isso é que existem faltas justificadas e faltas injustificadas;
4 - Aludindo ainda: “que aqueles que recusem a colaboração devida serão condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercivos que forem possíveis, sendo o seu comportamento, em se tratando de parte no processo, apreciado livremente para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no n.º 2 do artigo 344.º do Código Civil, ou seja, quando a violação tenha, de forma culposa, tornando impossível a prova ao onerado”.
5 - Assim, entendeu o Meritíssimo juiz que: “ no caso em apreço, e em face dos factos provados, entende-se que o réu violou de forma ostensiva o dever de cooperação a que estava obrigado para a descoberta da verdade e que o fez de modo a que, nos termos do referido regime legal, se tenha invertido o ónus da prova a respeito do vinculo biológico que pretensamente o une à autora”
6 - Será exactamente assim? Com o devido e merecido respeito, que é muito, entendemos que não. Isto porque:
7 - Primo, o Réu nunca se recusou a fazer o referido exame.
8 - Secundo, apesar das cinco datas que o exame teve, ao contrário do que se pretende fazer passar, os mesmos não se realizaram, não por quaisquer faltas de colaboração e/ou cooperação do Réu, mas por razões constantes nos presentes autos, isto é, devidamente justificadas.
9 - O simples facto de o Réu ter faltado ao último exame injustificadamente (embora justificasse, pois agendou a data mal, pelo que a justificação não foi aceite pelo Meritíssimo Juiz, pelo que foi considerada falta injustificada), não dará imediatamente direito a concluir que com isso inviabilizou a realização do mesmo, que o Réu não colaborou, parece-nos uma decisão claramente precipitada do Meritíssimo juiz.
10 - Importa, desde de já, referir a matéria dada como provada e a matéria dada como não provada, que por razões de economia processual, para onde aqui se remete e se dá por reproduzida; onde nem sequer se provou quaisquer relacionamento entre a mãe da Ré e o Réu, salientando ainda os documentos juntos, relativos a um outro processo de averiguação oficiosa da paternidade (promovido pelo M.P. à cerca de 18 anos), em que, em momento algum se frisou o nome do aqui Réu.
11 - Como o próprio tribunal “a quo” concluiu: “ no caso em apreço, a autora não logrou provar o vínculo biológico direto, nem factos que constituam presunção de que o réu é seu pai.
12 - Relativamente ao previsto no n.º 2 do art. 519 do CPC, que remete para o n.º 2 do art. 344 do Código Civil, e que passamos a transcrever: “há também inversão do ónus da prova, quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado, sem prejuízo das sanções que a lei de processo mande especialmente aplicar à desobediência ou às falsas declarações”.
13 - Até se admite alguma negligência do Réu ao agendar mal a data do exame e ter faltado inconscientemente ao exame, agora culposamente é que não, tal como da sua parte tal exame não foi impossível, até que nunca se recusou como já se disse.
14 - Para que o recorrente fique sob a alçada dos artigos supra referidos não basta a violação do dever de cooperação, é necessário ainda que essa violação, pela recusa ao exame, seja culposa e ilegítima.
15 - Ora, no caso “sub Júdice”, para além de que o Réu, aqui Recorrente não se tenha recusado a submeter ao exame,
16 - Também não se demonstra que o exame não foi realizado por sua falta de colaboração, pois à excepção da última data, todas as outras foram devidamente dadas como justificadas pelo tribunal,
17 - Como também não se demonstra que se tenha tornado impossível a prova da A., se tal sucedeu, deve-se essencialmente à autora e à sua prova, pois, nem sequer conseguiu fazer prova do relacionamento amoroso (muito menos sexual) entre a mãe da
18 - Autora e o Réu aqui recorrente, como também nada conseguiram provar quantos aos factos que poderiam beneficiar da Presunção legal (artigo 1871.º C.C) e não pela alegada falta de colaboração do Réu,
19 - Pelo que, o tribunal está impedido de proceder à inversão do ónus da prova decorrente do n.º 2 do artigo 344 do CC, pois não estão reunidos pressupostos aí previstos.
20 - Apesar de toda a sua tentativa de fundamentação, tal não poderá acontecer, até que, não poderá usar do argumento de que é a quinta marcação, quando as quatro primeiras estão devidamente dadas por justificadas pelo tribunal, tentando-se fazer passar a ideia de que o aqui recorrente fez uma coisa (“esquivar-se) que na realidade nunca foi sua intenção.
21 - Independentemente do Meritíssimo Juiz poder estar convicto que tal possa ter acontecido, certo é, que a lei não prevê que a mera convicção do Juiz possa levar à inversão do ónus da prova.
22 - Pelo que, a douta decisão recorrida violou, por erro de interpretação, o disposto no artigo 519, n.º 2 do Código Processo Civil e o n.º 2 do artigo 344 do Código Civil.
23 - Assim sendo, e é mesmo, mal andou o Tribunal “a quo” ao decidir, como decidiu, ao graduar em 5 UCs a multa do Réu pela sua falta ao exame (do qual também se recorreu, estando tal recurso ainda pendente) e agora mal esteve ao decidir no sentido de proceder à inversão do ónus da prova decorrente do n.º 2 do artigo 344 do CC.
24 - Salvo o devido respeito por melhor opinião, não resultaram dos autos, nem da Lei, elementos onde se possa fundamentar a douta decisão de que ora se recorre, mas sim que levaria a decisão bem diferente, ora, sempre com o devido respeito, e salvo melhor opinião, mal esteve o Tribunal “a quo” ao decidir como decidiu.
25 - Termos em que a sentença ora questionada deve ser revogada e, em consequência, substituída por uma outra que decida em função da matéria dada como provada e não provada, sem a inversão do ónus da prova, o que originará a improcedência da acção da Autora e consequente procedência da Contestação do réu.
A autora contra alegou, pugnando pela manutenção da sentença recorrida.
O recurso foi admitido, como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo.
Foram colhidos os vistos legais.
A única questão a resolver traduz-se em saber se, no caso dos autos, a opção pela inversão do ónus da prova quanto à questão da paternidade, foi correcta.
II. FUNDAMENTAÇÃO
Na sentença foram considerados provados os seguintes factos:
1.- No dia 21 de Abril de 1991, na freguesia de…, concelho de Guimarães, nasceu a autora C…, constando do seu assento de nascimento apenas o facto de ser filha de Maria… e neta de J… e M… (al. A dos factos assentes).
2.- A mãe da autora trabalhou como operária na fábrica de calçado…, em … Vizela, onde o réu, que era o filho do patrão, trabalhava no escritório (resposta ao quesito 2.º).
3.- A Maria… engravidou da autora, que nasceu na sequência da respetiva gravidez (resposta ao quesito 4.º).
4.- A Maria… era e é tida por todos quantos a conhecem como mulher séria, honesta e respeitável (resposta ao quesito 6.º).
.- Na decisão a proferir cumpre, ainda, ter presentes os seguintes factos resultantes dos autos e aqui passíveis de conhecimento (art.º 514.º, n.º 2 do Código de Processo Civil):
5.- Por despacho proferido nestes autos a 22 de Junho de 2010 foi ordenada a realização de uma perícia, consubstanciada em testes de ADN à autora, à mãe da autora e ao réu, tendo como objecto o quesito 4.º da base instrutória de fls. 52 e 53 e o proposto para essa prova pericial pela autora a fls. 57 (v. fls. 65).
6.- Em cumprimento de tal despacho solicitou-se ao Instituto Nacional de Medicina Legal - IP a realização de tal exame, tendo tal entidade designado para o efeito o dia 13 de Setembro de 2010, pelas 09h00 (v. fls. 66).
7.- O réu, notificado do agendamento na morada em que fora citado (v. fls. 19 e 66-B), veio, na sequência dessa notificação, dar conta do facto de que, na data designada, estaria ausente do país e que, por esse motivo, não podia comparecer para a realização do exame, mais requerendo que as notificações ulteriores lhe fossem feitas em nova morada (v. fls. 66-D).
8.- Na sequência de tal requerimento, foi, por despacho de 08 de Setembro de 2010, ordenado se solicitasse o agendamento de nova data para a realização do exame, o que foi feito pela entidade competente para o dia 14 de Outubro de 2010, pelas 09h00 (v. fls. 68).
9.- Notificado o réu de tal designação na morada que o mesmo indicara para o efeito por via do requerimento a que se alude em 7, veio a carta correspondente devolvida, frustrando-se, deste modo, a notificação pretendida (v. fls. 69) e, depois, a realização do exame (v. fls. 70).
10.- Solicitado, por despacho de 22-10-10, novo agendamento do exame à entidade competente e a subsequente notificação do réu por oficial de justiça, foi tal exame agendado para o dia 15 de Dezembro de 2010, pelas 09h00 (v. fls. 71).
11.- Na sequência de tal agendamento, e em cumprimento do despacho referido em 8, tentou-se a notificação do réu por oficial de justiça, a qual, apesar de dirigida à morada que o próprio réu informou no processo, acabou por não se concretizar, em virtude, além do mais, de “ser desconhecida” a rua indicada e de se não ter logrado encontrar o réu, “que não estava recenseado” na freguesia em causa e de ser desconhecido na junta de freguesia correspondente (v. fls. 75).
12.- O exame em causa voltou, assim, a não ser realizado (v. fls. 75 e 76).
13.- Solicitado novo agendamento à mesma entidade, por esta foi novamente agendado o exame para o dia 14 de Fevereiro de 2011, pelas 09h00.
13.- Tal designação foi notificada pessoalmente ao réu por intermédio de oficial de justiça (v. fls. 82), o que foi feito, não na morada que o mesmo indicara na pendência dos autos, mas na morada constante da petição inicial (v. fls. 82).
14.- O exame, contudo, acabou por não se realizar, pelo facto de o réu não ter
comparecido ao mesmo (v. fls. 88), em virtude de, na mesma data do exame, ter sido acometido de doença que o impediu de comparecer para a sua realização (v. fls. 82-B, 82-C), facto que motivou que se considerasse justificada a falta do mesmo, em face da documentação de fls. 89 a 94, depois da junção do requerimento de fls. 85, cujo teor se dá aqui por reproduzido.
15.- Solicitado novo agendamento do exame, pela entidade competente foi designado o dia 11 de Abril de 2011, pelas 09h00 (v. fls. 95), não tendo o réu, contudo, pessoalmente notificado para o fazer - mais uma vez na morada indicada na petição inicial (v. fls. 98) -, comparecido ao mesmo (v. fls. 99), sem que tivesse apresentado qualquer justificação para a sua falta.
16.- Quer a autora, quer a sua mãe, compareceram para a realização do exame nas datas designadas para o efeito, nos dias 14 de Outubro de 2010 (v. fls. 70), 15 de Dezembro de 2010 (v. fls. 76), 14 de Fevereiro de 2011 (v. fls. 88) e 11 de Abril de 2011 (v. fls. 99).
Na sentença sob recurso entendeu-se que a autora não logrou provar o vínculo biológico directo nem factos que constituam presunção de que o réu é seu pai. Contudo, tendo-se considerado que o réu violou de forma ostensiva o dever de cooperação a que estava obrigado para a descoberta da verdade e que o fez de modo a que, nos termos do disposto no artigo 344.º, n.º 2 do Código Civil, se tenha invertido o ónus da prova a respeito do vínculo biológico que pretensamente o une à autora, foi a acção julgada procedente, atendendo a que o réu não fez prova de que não é o pai da autora.
A questão que o apelante traz a este tribunal é a de saber se foi correcta a decisão pela inversão do ónus da prova.
Antes de mais importa esclarecer que não é verdade que o réu nunca se tenha recusado a fazer o referido exame e que este não se tenha realizado por qualquer falta de colaboração ou cooperação do réu, conforme o réu pretende dizer nas suas alegações.
O que se provou foi exactamente o contrário, não se tratando de uma “mera convicção do juiz”, mas sim de uma verdadeira falta de colaboração da parte – que passou, para além da falta injustificada, na indicação, nos autos e através do seu mandatário, de morada inexistente que conduziu à sua não notificação para comparência ao exame por duas vezes, para além de uma outra em que simplesmente se alegou ausência no estrangeiro e, ainda, uma outra com uma passagem pelo Hospital, em episódio de urgência por uma situação de bronquite – que inviabilizou a realização do exame e que conduziu à condenação do réu na multa de 5 UC’s por falta injustificada.
Esta condenação, aliás, já foi confirmada pelo Tribunal da Relação, em Acórdão proferido no passado dia 27 de Fevereiro, de onde se extrai esta passagem:
“Na situação sub judicio, o Recorrente, por vontade própria, colocou-se na situação de tornar impossível a sua notificação pessoal para as datas de 14 de Outubro e 15 de Dezembro de 2010, ao indicar nos autos uma morada inexistente, obstaculizando, assim, ao cumprimento da formalidade imposta pelo nº. 2 do artº. 253º., do C.P.Civil.
Este comportamento, visto à luz das regras da experiência comum, do normal do acontecer, permite deduzir ter ele intenção de evitar a realização do exame.
Pelos diversos adiamentos do exame, e pelas diligências a que teve de proceder-se sempre que foi necessária a marcação de nova data, é óbvio o reflexo negativo no normal andamento dos autos, que apenas decorre da atitude de não colaboração do Recorrente. Pela certeza científica que é conferida aos resultados do exame torna-se ele um meio de prova essencial para o estabelecimento da filiação biológica. A sua não realização pode inviabilizar a concretização daquele objectivo, para mais numa situação como esta em que a Autora já é de maioridade (frequenta o ensino universitário), e, por isso, a prova testemunhal se torna mais difícil pela erosão dos factos que o decurso do tempo provoca na memória.
Da situação económica do Recorrente e da repercussão da condenação no seu património o único elemento que podemos retirar dos autos é o de que a bondade da sua situação económica não lhe permitiu beneficiar do apoio judiciário (cfr. a guia de pagamento da taxa de justiça de fls. 14).
Face ao exposto, considerada a relevância dos interesses pessoais em causa e o elevado grau de violação do dever de cooperação para a descoberta da verdade, manifestado pelo comportamento, ao menos esquivo, do Recorrente, justifica-se perfeitamente o montante da multa que lhe foi cominada, pelo que o recurso terá de improceder”.
Não há aqui, portanto, qualquer “mera convicção do juiz”, há uma verdadeira falta de colaboração do reú que inviabilizou a realização do exame e conduziu à sua condenação em multa (no montante máximo previsto – artigo 27.º, n.ºs 1 e 3 do Reg. das Custas Processuais), já confirmada por este Tribunal da Relação.
No caso dos autos não foi, portanto, possível a realização de exames hematológicos face à recusa do réu em sujeitar-se aos mesmos, sendo por demais evidente o interesse que reveste o exame em causa, pelo grau de quase absoluta certeza que tal meio de prova revela neste tipo de acções, estando o mesmo expressamente admitido no art. 1801º, do Código Civil.
Dispõe o artigo 519.º n.º 1 do CPC que todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade e, nos termos do n.º 2 desse artigo, se aquele que recusa a colaboração for parte, o tribunal apreciará livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova, decorrente do preceituado no n.º 2 do artigo 344.º do Código Civil.
A jurisprudência tem-se pronunciado tendencialmente no sentido de que a recusa do réu em se submeter a exames hematológicos nas acções de reconhecimento da paternidade é ilegítima porque viola o dever de colaboração das partes, já que a realização do exame hematológico é um acto necessário à descoberta da verdade e não se trata de acto vexatório, humilhante ou causador de grave dano. Tem-se pronunciado, também, no entanto, que a coacção da parte a submeter-se ao exame é ilícita porque viola a sua integridade física e é atentatória da sua dignidade – veja-se resenha jurisprudencial e doutrinal neste sentido constante do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27/04/2006, in http://www.dgsi.pt/jtrp.
Importa, então, definir se, em face da ilegitimidade da recusa e da impossibilidade de o tribunal usar meios coercivos para a realização do exame, há lugar à inversão do ónus da prova ou, simplesmente, á sua livre valoração em termos de prova.
O artigo 344.º n.º 2 do Código Civil estabelece que há inversão do ónus da prova quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado.
Ou seja, no que respeita à recusa da parte em se submeter a exame hematológico nas acções de reconhecimento de paternidade, só há lugar à inversão do ónus da prova quando o exame for o único meio de provar a filiação biológica e a recusa implique a impossibilidade de o autor fazer essa prova.
A questão é, portanto, a de saber se, numa acção de investigação da paternidade, o investigando impedir, culposamente, a recolha de material biológico, impossibilitando, assim, a realização dos testes de ADN, ocorre a aquela inversão do ónus.
Tal questão foi tratada, de forma muito clara, no Acórdão da Relação do Porto de 27/04/2006 – já supra citado – cujas partes essenciais vêm transcritas no Acórdão do STJ de 23/02/2012 in www.dgsi.pt, do seguinte modo:
«O citado artº 344º, nº 2 estabelece que há inversão do ónus da prova quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado.
Lebre de Freitas [“Código de Processo Civil Anotado”, vol. II, pág. 409] entende que se verifica o condicionalismo daquele normativo quando a conduta do recusante impossibilita a prova do facto a provar, a cargo da contraparte, por não ser possível consegui-la com outros meios de prova, já por a lei o impedir (exs.: artº 313º, nº 1 e artº 365º do), já por concretamente não bastarem para tanto os outros meios produzidos. Se outra prova dos factos em causa não existir ou, existindo, for insuficiente, a recusa pode dar lugar à inversão do ónus da prova, que ficará a cargo da parte não cooperante.
No mesmo sentido, Rui Rangel [“O Ónus da Prova no Processo Civil”, pág. 301] entende que o regime previsto no nº 2 do artº 344º não pressupõe que o único meio de prova idóneo para a demonstração de determinado facto seja o inviabilizado pela conduta culposa da parte. Basta que se trate de meio de prova de especial relevância, isto é, que só por si fosse idóneo para garantir a procedência da acção.
No que respeita à recusa da parte em se submeter a exame hematológico nas acções de reconhecimento de paternidade, entendem aqueles autores que há lugar à inversão do ónus da prova quando o exame for o único meio de provar a filiação biológica e a recusa implique a impossibilidade de o autor fazer essa prova, privando-o da prova directa, por meios científicos [Lebre de Freitas, obra e lugar citados na nota 7 e ainda “A Acção Declarativa Comum”, pág, 185; e Rui Rangel, obra e lugar citados na nota anterior.].
Também Lopes do Rego [“Comentários do Código de Processo Civil”, pág. 361.] refere que se o exame se configurar como absolutamente essencial à determinação da filiação biológica – implicando consequentemente a recusa do pretenso pai verdadeira impossibilidade de o autor fazer prova da invocada filiação biológica – deverá aplicar-se o preceituado no nº 2 do artº 334º, presumindo-se a paternidade.
Já Alberto dos Reis [“Código de Processo Civil Anotado”, III vol., 3ª ed., pág. 326.] defendia que se a parte não se submete a inspecção tendente a verificar certo facto, se deve ter esse facto por provado.
A jurisprudência tem-se mostrado dividida quanto a esta questão, propendendo alguns arestos para a posição doutrinária acima exposta [Cfr. os Acs. do STJ de 28.05.02, e desta Relação de 21.09.99, e de 16.10.00 e 15.01.04,] e entendendo outros que, para além da multa prevista na 1ª parte do nº 2 do artº 519º do CPC, a sanção de ordem probatória da recusa só pode ser a sua livre apreciação pelo tribunal nos termos da 2ª parte do mesmo normativo [Damos como exemplo o Ac. do STJ de 04.10.94,].
Concordamos com a primeira das posições acima expressas:
A recusa ilegítima da parte em se submeter a exame constitui violação do dever de colaboração consagrado no artº 519º, nº 1 do CPC, não podendo aquela conduta deixar de se considerar culposa. E se a prova produzida nos autos for insuficiente para determinar a procedência da acção, existe impossibilidade de prova imputável àquela conduta da parte.
Acresce que a conduta culposa da parte pode ser omissiva, pelo que é de atribuir à falta injustificada ao exame os mesmos efeitos que à recusa expressa em se submeter a exame: a parte que falta injustificada e, por vezes, reiteradamente, aos exames marcados, inviabiliza a prova exactamente da mesma forma que a parte que declara não querer submeter-se ao exame [Neste sentido, ver o Ac. do STJ de 28.05.02].
Ora, os exames hematológicos (…) permitiriam determinar com segurança a filiação biológica, (…)
Foi assim apenas a conduta culposa dos réus e do interveniente que inviabilizou a prova da presente acção, pelo que a mesma terá de ser sancionada com a inversão do ónus da prova, nos termos do artº 344º, nº 2».
Concordamos com a posição assumida no acórdão citado.
Tendo em conta que os testes de ADN são como que uma prova plena do ponto de vista científico, ou seja, do ponto de vista da realidade factual, manifesto é que aquele que culposamente impede a realização desses exames está a preencher a previsão do nº 2 do art.º 344º, quando determina, nessa hipótese, a inversão do ónus da prova. E isto, porque, perante a ausência de outra prova, está a tornar impossível a prova ao onerado, sendo certo, também, que essa prova se configura como integralmente possível. Caso contrário, o infractor seria compensado pela sua falta de colaboração com o tribunal, com o “risco mínimo” da livre apreciação da sua conduta pelo tribunal. O que é irrelevante, pois, na falta de outra prova objectiva, não se vê como é que o tribunal iria decidir desfavoravelmente a esse infractor, como base unicamente no seu juízo sobre a conduta deste – neste sentido o referido Acórdão do STJ de 23/02/2012, onde o caso é paralelo ao destes autos, com cinco marcações de exame, tendo o réu faltado a todas, duas de forma injustificada e três que justificou, de forma a acabar por concluir-se que pretendia inviabilizar a realização do exame.
Esta inversão do ónus da prova, dada a redacção do nº 2 do art.º 344º do C. Civil, tem de ser considerada como sancionatória de uma menor lisura na litigância, nomeadamente, uma infracção ao princípio da cooperação do art.º 519º do mesmo código, quando esta infracção vai ao ponto de tornar impossível a produção de prova por parte daquele que tem de provar. Daqui que não baste a mera negligência e seja de exigir a intencionalidade da falta de cooperação.
Ora, no caso dos autos, como já vimos e decorre, também, da fundamentação do despacho que condenou o réu em multa e que foi confirmado neste Tribunal da Relação, nos termos supra expostos, o réu faltou por diversas vezes aos exames, sendo que numa delas, não tentou sequer justificar a falta e em outras duas vezes foi impossível a sua notificação em virtude de o mesmo ter fornecido ao tribunal, através de requerimento subscrito pelo seu mandatário, uma morada inexistente (quando se veio a verificar, depois, que nunca tinha deixado de estar na morada onde antes havia sido citado e notificado).
Deste modo, há que concluir que a falta de cooperação por parte do réu em submeter-se aos testes de ADN foi intencional, implicando, portanto, uma inversão do ónus da prova.
Veja-se, ainda, que, face ao comportamento processual do réu, foi proferido despacho no sentido de este ser notificado para a comparência no INML com a cominação de multa e de que “o seu comportamento será tido em conta oportunamente para efeitos de repartição do ónus da prova dos factos em apreço nestes autos”, o que foi cumprido, conforme decorre da certidão de notificação de fls. 82, o que conduz à conclusão de que o réu não podia deixar de estar consciente do resultado da sua actuação, sendo certo, ainda, que estava representado por mandatário judicial.
Pelo que, nos termos expostos, se terá que concluir pela improcedência das conclusões do recurso do apelante e pela consequente manutenção da sentença recorrida.
Sumário:
1 - A recusa do réu em se submeter a exames hematológicos nas acções de reconhecimento da paternidade é ilegítima porque viola o dever de colaboração das partes, já que a realização do exame hematológico é um acto necessário à descoberta da verdade e não se trata de acto vexatório, humilhante ou causador de grave dano.
2 - No que respeita à recusa da parte em se submeter a exame hematológico nas acções de reconhecimento de paternidade, há lugar à inversão do ónus da prova – artigo 344.º n.º 2 do CC - quando o exame for o único meio de provar a filiação biológica e a recusa implique a impossibilidade de o autor fazer essa prova, privando-o da prova directa, por meios científicos.
III. DECISÃO
Em face do exposto, decide-se julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelo apelante.
***
Guimarães, 13 de Março de 2012
Ana Cristina Duarte
Fernando Fernandes Freitas
Maria da Purificação Carvalho