INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
PEDIDO
CAUSA DE PEDIR
Sumário

1 - A petição inicial é inepta por ininteligibilidade quando os factos e a conclusão são nela expostos em termos de tal modo confusos, obscuros ou ambíguos que não possa apreender-se qual é o pedido ou a causa de pedir.
2 - Não há contradição entre a causa de pedir e o pedido quando exista nexo lógico entre ambos, podendo apenas ocorrer uma situação de improcedência, por a causa de pedir não ser bastante para alicerçar o pedido.

Texto Integral

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I - RELATÓRIO
A… intentou a presente acção declarativa com processo comum sob a forma sumária contra S…Lda. e G..Lda., pedindo a resolução do contrato de compra e venda do veículo automóvel Seat, modelo Leon 1.4 Sport, de cor preto, com a matrícula …, celebrado entre a autora e a 2.ª ré em 29/09/2008 e que as rés sejam solidariamente condenadas a indemnizar a autora por danos não patrimoniais sofridos, no valor de 7000,00€, com juros de mora vencidos e vincendos.
As rés devidamente citadas contestaram:
- A ré G… Lda. excepcionou a sua ilegitimidade passiva, alegando que, como decorre da P.I. não vendeu qualquer veículo automóvel à autora e, cautelarmente impugnou a matéria alegada na p.i..
- A ré S… excepcionou igualmente a sua ilegitimidade, no tocante ao pedido de resolução do contrato de compra e venda, por nele não ser parte. Mais alegou, no tocante ao pedido de indemnização, que a sua responsabilidade está excluída por força do disposto na al. b) do artº 5º do Dec. Lei 383/89 e da al. c) do nº 2 do artº 6º do Decreto-lei 67/2003, na redacção do Decreto-Lei 84/2008. Cautelarmente impugnou parte do alegado na P.I.
A autora respondeu à matéria das excepções.
Findos os articulados foi proferido despacho saneador no qual se julgou inepta a petição inicial e em consequência anulou todo o processado, absolvendo-se os réus da instância.
Inconformada, a autora interpôs o presente recurso, que instruiu com as pertinentes alegações em que formula as seguintes conclusões:
1 – Não se conforma a Apelante com a douta sentença proferida que julgou inepta a petição inicial, por força do preceituado no artigo 193.º n.º 2 al. a) e b) do C.P.C.
2 – Entende a Apelante não se verificar qualquer dos fundamentos das aludidas alíneas, designadamente de falta ou ininteligibilidade do pedido ou da causa de pedir e, bem assim, de contradição entre o pedido e a causa de pedir.
3 - A falta de pedido ou causa de pedir, consistindo, ao fim e ao cabo, o objecto do processo, constitui nulidade de todo ele, o mesmo acontecendo quando, embora aparentemente existente, o pedido e a causa de pedir é formulado de modo tão obscuro que não se entende qual seja ou a causa de pedir é referida em termos tão genéricos que não constituem alegação de factos concretos).
4 – Não ocorre na presente acção, contrariamente ao alegado e fundamentado na douta decisão recorrida falta ou ininteligibilidade do pedido ou causa de pedir.
5 - O tribunal recorrido conseguiu precisar, concretizar, entender qual o facto concreto alegado pela Apelante na acção, isto é, quais os factos constitutivos da situação material que em concreto pretendia fazer crer.
6 - Esses factos, que constam da sentença, derivam da celebração de contrato de compra e venda do veículo automóvel melhor identificado nos autos e da existência de avarias e defeitos no mesmo desde a data da sua aquisição.
7 - Esta é, pois, a situação material que, na opinião da autora, constitui uma situação juridicamente tutelada e que a mesma pretende fazer valer.
8 - Por sua vez, são concretos os pedidos formulados pela A. contra as Rés, supra citadas, quer de resolução do contrato, quer de condenação solidária no pagamento dos danos não patrimoniais sofridos, pelos factos concretizados naquele articulado, que quantificou em 7.000,00€, quer, ainda, na condenação no pagamento de custas e condigna procuradoria.
9 - Ocorre contradição entre o pedido e a causa de pedir quando é alegada uma causa de pedir da qual não se pode tirar, por não preenchimento da previsão normativa, o efeito jurídico pretendido, constituindo causa de improcedência da acção.
10 - A contradição entre o pedido e a causa de pedir pressupõe, ao fim e ao cabo, que não seja perceptível ao Réu, nem ao tribunal, quanto ao que devem ater-se, pois um contradiz o outro: trata-se de uma contradição intrínseca e insanável que implica que se torne de todo incompreensível o articulado da petição inicial.
11 – A invocação da excepção de ilegitimidade, por qualquer das Rés, e o chamamento de terceiro à acção, por meio da intervenção provocada, não consubstancia contradição entre o pedido e a causa de pedir.
12 - Confunde, o tribunal recorrido na douta sentença proferida, de que se recorre, a questão da ilegitimidade processual com a questão da ineptidão da petição inicial, porquanto, contrariamente a esta última a primeira não conduz à nulidade de todo o processo e à consequente extinção da instância.
13 - Suscitada a questão da ilegitimidade da 1.ª Ré, invocou, a Apelante, o disposto no artigo 6.º do DL 67/2003 de 8 de Abril, alterado pelo DL 84/2008 de 21 de Maio, por força do qual, se confere ao lesado o direito de poder exigir do produtor a sua responsabilização directa, mesmo que ele nunca tivesse estado em relação directa com a Apelante. E a responsabilização do produtor, perante o lesado, verifica-se quer esta tenha adquirido o produto por um contrato, quer seja um simples utilizador.
14 – Já quanto à ilegitimidade da 2.ª Ré, G…LDA., procedeu a Apelante ao chamamento de terceiro, S…LDA., ao abrigo do preceituado no artigo 25.º e seguintes do C.P.C.
15 - O chamamento para intervenção principal com vista a sanar a ilegitimidade plural pode ocorrer mesmo depois de a decisão de absolvição da instância do Réu, com base nesse vício haver transitado em julgado. In casu, o chamamento ocorreu em sede de resposta às excepções dilatórias.
16 – Incumbia ao tribunal a quo apreciar das invocadas ilegitimidade e, bem assim, acerca do chamamento de S…LDA..
17 – É nula a sentença, nos termos ao abrigo do preceituado no artigo 668.º al. d) do C.P.C., atenta a falta de apreciação das focadas questões.
18 – Apesar da breve referência da sentença recorrida à incompatibilidade de pedidos, no entendimento da A. incompatibilidade dos pedidos formulados.
19 - “Serão incompatíveis os pedidos que mutuamente se excluam ou que assentem em causas de pedir inconciliáveis (cfr. Antunes Varela, Manuel de Processo Civil, pág. 246)
20 – “Pedidos incompatíveis, tem o significado de não poderem ser ambos acolhidos sem admitir uma contradição interna na ordem jurídica. Ou seja, quando os efeitos jurídicos que com eles se pretende obter estão, entre si numa relação de oposição ou contrariedade, de tal modo que o reconhecimento de um é a negação dos demais (Rodrigues Bastos, Notas ao Código de processo Civil, Vol. I, pág. 388).”
21 – “Saber se juridicamente, o A. tem ou não os direitos a que se arroga nos pedidos cumulados e qual a extensão do seu eventual direito de indemnização relativamente a cada uma das R.R. demandadas, são questões de fundo, ou seja, de procedência ou improcedência dos pedidos correspondentes, as quais transcendem o âmbito do vício da cumulação de pedidos.”, Ac. da Relação do Porto de 12/10/1998, publicado no site da internet do TRP (http//www.trp.pt).
22 - Não subsiste, no entendimento da A., sequer, incompatibilidade de pedidos.
23 - Ainda que assim, se entendesse, o tribunal a quo, apesar da breve referência efectuada no trecho supra transcrito, não fundamentou a sua decisão com base nesse fundamento, pelo que, também por aqui, se conclui pela nulidade da sentença nos termos do disposto no artigo 668.º al. d) do C.P.C.
SEM PRESCINDIR
24 - O que não se concede, mas por mera hipótese de trabalho se admite, entendendo-se existir incompatibilidade de pedidos, evidente será que, tal incompatibilidade, não é substancial, nos termos do disposto no artigo 193.º n.º 2 al. c) do C.P.C., pelo que, por força do princípio do dispositivo, deveria, nesse caso, ser a A. convidada a esclarecer o petitório.
25 – É pois nula a sentença, por violação do preceituado no artigo 668.º al. d) do C.P.C., bem como por violação do disposto nos artigos 193.º n.º 2 al. a) e b), 494.º al. e), 27.º e 325.º, todos do C.P.C..
TERMOS EM QUE:
Deve a sentença proferida ser revogada, prosseguindo os autos os seus ulteriores trâmites.
*
As rés contra-alegaram.
O recurso foi admitido como apelação a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
Os autos foram remetidos a este Tribunal da Relação, onde o recurso foi admitido nos mesmos termos.
II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO E QUESTÕES A DECIDIR.
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente, tal como decorre das disposições legais dos artºs 684º nº3 e 690º do CPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões “salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras” (artº 660º nº2 do CPC). E, de entre estas questões, excepto no tocante àquelas que o tribunal conhece ex officio, o tribunal de 2ª instância apenas poderá tomar conhecimento das questões já trazidas aos autos pelas partes, nos termos dos artºs 664º e 264º do CPC, não podendo a parte nas alegações de recurso e respectivas conclusões vir suscitar e requerer a apreciação de questões ou excepções novas.
Face às conclusões da apelação, cumpre decidir se ocorre ou não o vício de ineptidão da petição inicial
III - FUNDAMENTOS DE FACTO
Para a apreciação deste recurso interessa apenas o teor da P.I., que ora se reproduz parcialmente:
A)
1º A 1ª ré é uma sociedade (…) que se dedica, com intuito lucrativo, à produção e comercialização de veículos automóveis.
2º Por sua vez a 2ª Ré é uma sociedade (…) que se dedica, com intuito lucrativo, à comercialização de veículos da marca da 1ª Ré e bem assim à prestação de serviços no pós venda.
3º Na prossecução do seu escopo social, a 2ª ré, na qualidade de representante da 1ª Ré, vendeu à autora, em Setembro de 2008, pelo preço de 20.200,00€, o veículo automóvel de marca Seat, modelo Leon 1.4 Sport, de cor preto.
4º A título de retoma a A. entregou à 2ª Ré em 2.9.2008, pelo valor de 3.500,00€ o veículo automóvel de marca Peugeot, modelo 206 1.1 do ano de 2000 (…).
5º Ainda a título de sinal, a A. entregou à 2ª ré, na data da proposta de compra do sobredito veículo automóvel, ou seja em 02/09/2008, a quantia de 1000,00€ (…).
7º A quantia remanescente (…) foi entregue à 2ª ré em 29/9/2008.
8º O mencionado veículo automóvel tem como prazo de garantia dois anos.
9º Desde a data da sua aquisição que a A. tem vindo a ser confrontada com inúmeros e sucessivos problemas no aludido veículo, tendo-se visto forçada a recorrer aos serviços pós venda prestados pela 2ª Ré.
10º Em 27/10/2008, ou seja volvido cerca de um mês (…) a A. teve que se deslocar à 2ª Ré onde esta procedeu à substituição da unidade da rede de bordo.
11º Em 15/01/2009, por motivo que a A. desconhece, o seu veículo começou a apresentar dificuldades em pegar, principalmente quando se encontrava ao sol.
13º Em 03/11/2009, mais uma vez a A. deparou-se com problemas no seu veículo, pelo que novamente, deslocou-se à 2ª Ré onde comunicou as seguintes avarias: a) a viatura custa a pegar quando está quente; b) avaria no elevador do lado direito; c) retrovisores não funcionam.
14º Em 27/10/2010 deslocou-se novamente à 2ª Ré em virtude do veículo não pegar quando apanhava sol.
16º Em 01/02/2011 a A. teve que se deslocar novamente à 2ª Ré onde viu ser substituída a válvula de pressão de óleo.
17º - Desde 27/10/2008 até à presente data o veículo automóvel supra referido vem apresentando, como se descreveu, inúmeras avarias, as quais nunca foram definitivamente solucionadas, em especial, a dificuldade de o veículo pegar, principalmente quando está ao sol.
18º A A. através do mandatário judicial comunicou tais sucessivas avarias à 1ª Ré, pelo menos desde 13 de Agosto de 2010.
25º Pelo que, em causa está a venda de bem defeituoso, contrato de aquisição celebrado entre profissionais (1ª e 2ª Ré) e o consumidor (A.) e consequentemente abrangido pelo regime de vendas ao consumidor (…).
26º Por força do invocado regime legal assiste à aqui A. o direito, por falta de conformidade do bem com o contrato celebrado, à substituição do bem (…)
28º Por força do preceituado no artº 4º nº 2 do DL 84/2008 de 21 de Maio, impõe-se a substituição do veículo num prazo máximo de trinta dias.
29º Tal prazo encontra-se largamente ultrapassado, motivo por que entende a A. lhe assiste, portanto, o direito a invocar a resolução do contrato.
B)
Nos artºs 30º a 45º a autora aduz as razões de direito em que funda a responsabilidade da 1ª ré (?) e nos artºs 46º a 56º relativamente à 2ª ré (?).
C)
Nos artºs 57º e segs. a autora alega os danos sofridos (privação do uso do veículo nas suas deslocações profissionais e pessoais; vergonha quando tentava accionar o veículo na via pública e este não pegava; impedida de chegar atempadamente a compromissos inadiáveis…; etc.) e as razões de direito em que funda o seu pedido de indemnização.
D)
A autora conclui pedindo que as rés sejam condenadas na resolução do contrato de compra e venda do veículo automóvel e, solidariamente, no pagamento da quantia de €7.000, a título de indemnização dos danos não patrimoniais sofridos.
IV- FUNDAMENTOS DE DIREITO
A Mmª Juiz a quo entendeu existir contradição entre o pedido e a causa de pedir, o que origina a ineptidão da petição inicial, nos termos do artigo 193º, nº2 a) e b) do Código de Processo Civil.
Nesse sentido refere: «Tendo em conta que os pedidos são de resolução e de indemnização era contra o vendedor que o autor teria de intentar a presente acção, já que o direito que pretende fazer valer se inscreve no domínio do contrato de compra e venda, mais concretamente, na venda de coisa defeituosa».
E ainda, entre o mais:
Se estivesse em causa a garantia das reparações efectuadas tinha sentido que fosse demandada quem as efectuou, ou seja a 2º ré. Mas não, o que o autor pretende é a resolução do contrato de compra e venda e uma indemnização. Fácil é de ver pelo alegado que a segunda ré, á luz do pedido, nunca podia ser condenada, muito menos, solidariamente com a primeira. Também a primeira ré não será a vendedora, como se vê do documento que o autor junta a fls. 21, denominado “proposta de compra”. Terá sido com a identidade ai identificada, que o autor celebrou o contrato que pretende resolver, como afirma. È grande a confusão do autor. Confusão que se adensa, quando deduz o incidente de intervenção provocada da S…, S.A., mantendo contudo as iniciais rés. E mantém a primeira ré, atenta, também a qualidade de produtora. Seria na qualidade de produtora que a primeira ré seria demandada, já que a além de vendedora foi também produtora do carro em questão. Quanto á indemnização, cumulativamente peticionada. Em casos como o presente o autor teria de optar ou pela resolução do contrato com a possível indemnização do interesse contratual negativo, ou pela manutenção dele, com direito, nesta hipótese à indemnização do interesse contratual positivo.»
Cumpre apreciar
No artº 3ª da P.I. a autora alega que “a 2ª Ré, na qualidade de representante da 1ª Ré vendeu à autora …”.
Em primeiro lugar há que distinguir claramente entre os factos articulados (causa de pedir) e os meios de prova, mormente o documento que titula o contrato de compra e venda. Não é em função da prova apresentada que se conclui pela ineptidão da petição inicial.
A autora também alega que entregou um veículo de retoma à 2ª ré, bem como quantias, a título de sinal e remanescente do preço, não esclarecendo se o fez por esta ser representante da 1ª ré.
Mas a confusão adensa-se nos artºs 30º a 45º que intitulou “da responsabilidade passiva da segunda Ré” onde aduz os fundamentos de direito respeitantes à venda de coisa defeituosa, para concluir, no artº 45º, que a 1ª ré está obrigada a indemnizá-la (o que se compreende se for esta a vendedora). Contudo, de seguida, repetindo o título anterior (“da responsabilidade passiva da segunda Ré”), alega os fundamentos de direito da responsabilidade do produtor, para concluir que a 2ª Ré está obrigada a indemnizá-la.
Ainda que possa ter ocorrido lapso e se quisesse dizer a 1ª ré e não a 2ª ré, pois notoriamente o veículo não foi fabricado pela G… e certamente não foi isso que pretendeu alegar, fica sempre por explicar que factos imputa à 2º ré , donde decorra a obrigação desta a indemnizar, se apenas actuou em representação da 1ª ré?
Ou será que efectivamente se quis alegar que o contrato foi celebrado com a G…, que, na linguagem comum é “representante” (concessionária) da marca Seat e não em representação da Seat Portugal, o que, em termos jurídicos é algo totalmente distinto?
Efectivamente a petição tem algumas incongruências, resta agora decidir se estas integram o vício de ineptidão.
Sobre a questão dispõe o artigo 193º do Código Processo Civil:
2 – Diz-se inepta a petição:
a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;
b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;
c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.
3 – Se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, não se julgará procedente a arguição quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial.
Analisada a P.I. verificamos que, no caso em apreço, existe causa de pedir e pedido, sendo que, como refere Anselmo de Castro in Direito Processual Civil Declaratório, vol.II, pág. 221, “para que a ineptidão seja afastada, requer-se, assim, tão só, que se indiquem factos suficientes para individualizar o facto jurídico gerador da causa de pedir e o objecto imediato e mediato da acção. Com efeito, a lei – art. 193º, n.º 2 al. a) – só declara inepta a petição quando falta ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir, o que logo inculca ideia da desnecessidade de uma formulação completa e exaustiva de um e outro elemento.”
Quanto à ininteligibilidade, escreve Rodrigues Bastos in Notas ao Código Processo Civil”, vol. I, pág. 253, “é necessário, porém, ter sempre presente que não é a obscuridade, a imperfeição ou equivocidade da indicação do pedido ou da causa de pedir que aquele preceito (al. a) do artigo 193º) contempla, como bem se vê da redacção do n.º 3 do mesmo artigo”.
Este entendimento já era o defendido por Alberto dos Reis, in Comentário ao C.P.C., Vol. 2º, pág. 364, que, devidamente adaptado à actual redacção do artigo 193º, conduz a que se considere inepta a petição por ininteligibilidade quando os factos e a conclusão são nela expostos em termos de tal modo confusos, obscuros ou ambíguos que não possa apreender-se qual é o pedido ou a causa de pedir.
Assim, a petição será inepta por ininteligibilidade quando não seja possível saber-se qual é o pedido ou a causa de pedir, o que manifestamente não é o nosso caso.
No tocante à contradição entre pedido e causa de pedir, esta tem de se evidenciar entre o pedido, enquanto concreta pretensão jurídica formulada pelo autora, e a causa de pedir, enquanto facto ou factos jurídicos que se invocam para sustentar o efeito jurídico ou pedido, deduzido – artº 498º, nº 3 e 4, do Cód. Proc. Civil.
De acordo com a tese da substanciação, que o actual Código de Processo Civil acolhe, a causa de pedir é formada por factos sem qualificação jurídica, ainda que com relevância jurídica – vide, "Sobre a teoria do Processo Declarativo " de Miguel Teixeira de Sousa, 1980, págs. 158). No que respeita ao direito e, por conseguinte, à qualificação jurídica, o juiz tem plena liberdade, no sentido de que não está sujeito a quanto a esse respeito aleguem as partes – artº 664º do Cód. Proc. Civil.
Como se refere no Ac. do TRP de 27.5.2010, in proc. 5623/09.0TBVNG.P1., é por referência aos factos, independentemente da qualificação jurídica que deles hajam feito as partes, que haverá de indagar-se da concordância prática entre tais factos, enquanto causa de pedir, e a concreta pretensão jurídica formulada. E a este respeito, como refere A. Varela in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 121º, nº3769, págs. 121, é no sentido da incompatibilidade lógica entre o facto real, concreto, individual, invocado pelo autor como base da sua pretensão (causa de pedir) e o efeito jurídico, por ele requerido (pedido) através da acção judicial, que a doutrina e a jurisprudência justificadamente interpretam, aplicam a contradição prevista (e regulada) na alínea b) do n.º 2 do artigo 193.º do Código de Processo Civil.
“Assim, porque a contradição do pedido com a causa de pedir representa uma contradição intrínseca ou substancial insanável, por não existir entre eles o mesmo nexo lógico que entre as premissas de um silogismo e a sua conclusão, não gera a ineptidão da petição inicial a circunstância de a alegada causa de pedir, conexionada logicamente com o pedido, não ser bastante para alicerçar este, pois o que então se coloca é um problema de improcedência (cfr. Acs. do S.T.J de 7/7/88 in BMJ 379º-592 e de 14/3/90 in A.J. 2º.-90 e Ac. da R.E. de 7/4/83 in BMJ 328º.-656)” - Ac do TCAS de 24-2-2005, proc 06656/02, in www.dgsi.pt.
Ora, no caso em apreço há nexo lógico entre os pedidos e a causa de pedir invocada pela recorrente. O que pode ocorrer é uma situação de improcedência e não uma situação de oposição entre o pedido e a causa de pedir.
Por último, quanto à incompatibilidade entre os pedidos, como ensinam A. Varela e outros, Manual de Processo Civil, 2º ed., p.246, nota 4, “devem considerar-se incompatíveis não só os pedidos que mutuamente se excluem, mas também os que assentam em causas de pedir inconciliáveis”. E indicam como exemplo o caso em que o autor, depois de arguir a anulabilidade do contrato, pede a anulação deste e, ao mesmo tempo, a condenação do réu na principal prestação nascida do contrato (como se este permanecesse válido).
Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, I, 2ª ed, p. 131, escreve (citando Rodrigues Bastos, “Notas ao CPC”, vol. I, pág.388) que a expressão “pedidos incompatíveis” tem o significado de não poderem ser ambos acolhidos sem admitir uma contradição interna na ordem jurídica.
Sucede que, embora os manuais de direito ensinassem que no caso de resolução do contrato, apenas se poderia exigir indemnização pelo dano contratual negativo – entendimento correspondente à posição clássica, é a posição mais comum, adoptada, entre outros, por Almeida Costa, Direito das Obrigações, 6.ª ed. 918, A. Varela, Das Obrigações em Geral, II, 109, Menezes Leitão, Direito das Obrigações, II, 259 e Mota Pinto, Cessão da Posição Contratual, 412, nota de rodapé) – há também quem admita a cumulação, sem restrições, pois, por um lado o artigo 801º do Código Civil não o impede e, por outro, o artigo 325º do BGB a partir de 1-1-2002 passou a admiti-la. Acresce que várias normas da Convenção de Viena sobre Compra e Venda Internacional de Mercadorias de 1981, dos Princípios relativos aos Contratos de Compra e Venda Internacionais publicados pelo Instituto UNIDROIT em 1994 e ainda dos Princípios do Direito Europeu dos Contratos, da Comissão Lando, o permitem.
Entre outros, estes argumentos são aduzidos por Pedro Romano Martinez in “Da Cessação do Contrato”, pag. 208. Por seu turno Brandão Proença defende uma flexibilização da jurisprudência com admissão da indemnização pelos danos positivos "quando assim for exigido pelos interesses em presença" in “A Resolução do Contrato no Direito Civil, 196” e Galvão Teles afirma que se concebe todavia "que o julgador, além dos danos negativos, atenda também aos positivos se, no caso concreto, essa solução se afigurar mais equitativa segundo as circunstâncias”, in Direito das Obrigações, 7.ª ed., 463, nota de rodapé – cfr. Ac. do S.T.J. de 12-2-09, processo nº 08B4052, in dgsi.pt. Ver também o Ac. do TRP de 4.1.2010, proc. nº 1285/07.7TJVNF.P1.
Igualmente decorre do art.º 12.º nº 1 da LDC (Lei n.º 24/96, de 31 de Julho, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril), que o consumidor tem direito à indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de bens ou prestações de serviços defeituosos – Ver recente Ac do TRL de 1.3.2012, proc 777/09.8TBALQ.L1-6.
Pedro Soares Martinez, in “Direito das Obrigações, Parte Especial, Contrato, pág. 141, ensina que o direito à indemnização pelos danos concedido ao comprador, “cumula-se com qualquer das pretensões com vista a cobrir os danos não ressarcíveis por estes meios” (reparação da coisa, substituição, redução do preço ou resolução do contrato).
Face a tais posições da doutrina e da jurisprudência e atento o disposto no artº 12.º nº 1 da LDC, não se pode concluir que, in casu, se cumularam pedidos substancialmente incompatíveis.
Pelo exposto entendemos que a P.I. não é inepta.
V - DELIBERAÇÃO
Nestes termos, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação, revogando a decisão recorrida e determinando o prosseguimento dos autos.
Custas pelas recorridas.
Guimarães, 24.4.2012
Eva Almeida
Catarina Gonçalves
Figueiredo de Almeida