VENDA DE VEÍCULO AUTOMÓVEL
DIRECTIVAS EUROPEIAS
GARANTIAS
Sumário

I.- A garantia comercial vincula juridicamente o seu autor nas condições constantes da sua declaração e da publicidade correspondente.
II.- Conquanto a garantia deva ser reduzida a escrito ou “em qualquer outro suporte duradouro” a que o consumidor tenha acesso, a não redução a escrito não afecta a sua validade.
III.- Não se provando o prazo da garantia deve entender-se que ele é de dois anos, por ser aquele em que o comprador pode exercer os seus direitos, nos termos do nº. 1 do artº. 5º., do Dec.-Lei 67/2003.
IV.- Cabendo ao vendedor e dono da oficina a obrigação de reparar o veículo, a obrigação da sua guarda é uma obrigação acessória daquela de proceder à reparação com o que não é devido qualquer pagamento pelo seu aparcamento na oficina, enquanto se mantiver a obrigação de reparação.

Texto Integral

- ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES -
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A) RELATÓRIO
I.- M… intentou a presente acção, com processo comum, sumário, contra “A… – Stand”, pedindo a condenação deste a proceder, no prazo de 30 dias, à reparação da viatura que lhe comprou; ou, caso a reparação não se efectue naquele prazo, a entregar-lha para a mandar reparar numa oficina à sua escolha, e no pagamento do valor que ela, Autora, tiver de suportar naquela reparação, a liquidar em decisão ulterior; e ainda a pagar-lhe o valor correspondente às prestações do empréstimo que contraiu correspondentes ao período em que não pôde usufruir do veículo; e a indemnizá-la de outros prejuízos e danos decorrentes da impossibilidade de utilizar aquela viatura.
Contestou o Réu e deduziu reconvenção, pedindo a condenação da Autora a pagar-lhe a importância de € 6.720,00 pela utilização abusiva e indevida de um veículo automóvel que inicialmente lhe cedeu, para o usar enquanto a viatura supra mencionada não estivesse reparada, e na convicção que a reparação se faria na sua oficina, e ainda pelo aparcamento desta viatura na sua oficina, que passou a ser injustificado desde que a Autora decidiu não pagar a reparação.
Tendo o Réu requerido a intervenção do cônjuge da Autora, A…, foi essa intervenção admitida.
O processo seguiu os seus termos, havendo-se procedido ao julgamento, na sequência do qual foi proferida douta sentença a julgar a acção parcialmente procedente, condenando o Réu a reparar o veículo automóvel de matrícula …NV no prazo de 30 dias, ou, caso não efectue a reparação no prazo referido, a entregar o veículo aos Autores, sendo condenado no pagamento do valor que estes tiverem de despender com a reparação, numa oficina à sua escolha, quantia a liquidar em execução de sentença.
Mais se decidiu absolver o Réu dos demais pedidos formulados.
Decidiu-se ainda julgar improcedente a reconvenção e absolver os Autores –reconvindos do pedido reconvencional formulado.
Inconformado com esta decisão, traz o Réu/Reconvinte o presente recurso, pretendendo que, revogado o decidido, seja absolvido dos pedidos em que foi condenado e seja julgada procedente a reconvenção, condenando-se os Reconvindos a pagarem-lhe a quantia de € 1.725,00 a título de compensação por lhes haver disponibilizado uma viatura, e a pagarem-lhe a quantia de € 5 por dia, desde 06/06/2008 até à data em que os Reconvindos retirem da sua oficina o veículo, pelo depósito indevido dele na sua oficina.
Contra-alegou a Autora propugnando pela negação do provimento ao recurso, mantendo-se a decisão impugnada.
O recurso foi recebido como de apelação, com efeito devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre decidir.
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II.- O Apelante assenta o seu recurso nas seguintes conclusões:
1.- O D.L. 67/2003 de 8 de Abril, não pode ser interpretado num sentido que permita considerar que qualquer avaria que surja num automóvel, no prazo de dois anos, a contar da sua venda, gere automática e imediatamente os direitos previstos no n.º 4 desse diploma e a consequente responsabilidade do vendedor, já que para que exista tal responsabilidade é preciso que se considere que a desconformidade que o automóvel possua, exista já no momento da venda, sem prejuízo do lesado beneficiar da presunção dessa existência se a mesma se revelar no prazo de 2 anos a contar da data da aquisição do automóvel.
2.- Se acaso se fizer prova da inexistência desse defeito/desconformidade aquando da venda do bem, o vendedor já não terá de responder perante o comprador, pois o regime do D.L. 67/2003 de 8 de Abril, mormente o nele preceituado nos artº.s 1 a 5, não pretende consagrar um regime de garantia de 2 anos para o bem/automóvel vendido, tenha ou não defeitos no momento da venda.
3.- Há, desde logo uma diferença evidente entre o regime da garantia de funcionamento - seja por dois anos ou mais - e o regime da responsabilidade que impende sobre o vendedor profissional ao abrigo do D.L 67/2003, nos termos dos seus art.ºs 1 a 5: É que no regime da garantia, o vendedor responde mesmo sobre defeitos inexistentes; No regime do D.L. 67/2003, o vendedor só responde sobre defeitos e desconformidades que existam no momento da venda (sendo que, nos dois anos seguintes à venda, na falta de prova contrária se presume que tais defeitos existiam).
4.- Estando provado que a venda do veículo NV foi feita em l4 de Fevereiro de 2007; Que desde essa data e até finais (Maio) de 2008, os recorridos utilizaram quotidianamente o NV sem que o mesmo apresentasse qualquer problema de funcionamento, designadamente de motor; Que a avaria da viatura em Maio de 2008 prendeu-se com o facto de se ter partido uma biela do seu motor, ruptura que danificou o próprio bloco do motor; Que quando qualquer motor de um automóvel tem um tipo de avaria como a que o NV teve em Maio/Junho de 2008 (biela partida) o motor deixa de trabalhar; Que tal avaria impede que o motor entre em funcionamento; Que na data em que o veículo foi vendido à Autora e ao Chamado, funcionava, haverá que concluir que o defeito que o automóvel dos recorridos apresenta não existia no momento da venda.
5.- Atentando nos factos acima dados como provados, mais do que feita a prova de que o defeito não existia no momento da venda, resulta até ser impossível que tal defeito pudesse existir pois se o tipo de avaria, quando exista, faz com que qualquer carro deixe de trabalhar e impede que o motor entre em funcionamento não será possível que essa avaria pudesse existir no momento da venda – Fevereiro de 2007 – se foi dado como provado que na data em que o veículo foi vendido à Autora o mesmo funcionava e que ela o utilizou, quotidianamente, durante mais de um ano. É que se o utilizou, o carro teve de trabalhar. E se trabalhou, não podia ter o defeito aqui em causa! Trata-se de uma questão de ser impossível que o defeito pudesse sequer existir no momento da venda do carro.
6.- Concluindo-se pela inexistência da avaria no momento da venda, não há desconformidade do bem vendido e não existe, consequentemente, por parte do vendedor, a obrigação de reparar a avaria surgida.
7.- Para além do que seria necessário, resultando provado que é o mau uso do motor por parte de quem conduz o veículo, traduzido numa sobrecarga momentânea do esforço do motor (excesso de rotação) que leva à quebra da biela e consequente ruptura do bloco do motor e que o motor do NV não apresentava outros sinais de desgaste para além do facto de ter a biela partida, haverá que concluir de tal factualidade que a deficiência surge depois do bem vendido, se apurou a causa do sucedido, e que tal deve ser imputada ao uso dado pelos recorridos ao automóvel.
8.- Concluindo-se agora que o recorrente não tinha obrigação de reparar o veículo em causa, o custo do seu depósito indevido nas oficinas do recorrente deverá ser obviamente ressarcido.
9.- Resultando da matéria provada que desde o dia 6 de Junho de 2008, os Recorridos têm o seu veículo NV nas oficinas do Recorrente, data desde a qual o Recorrente tem de guardar o veículo, mantendo-o nas suas instalações, ocupando com ele uma área que podia ser utilizada para arranjar outros veículos; Sabendo-se ainda que a oficina do Recorrente cobra, diariamente, 5 euros pela guarda e aparcamento de veículos. Estando o NV aparcado indevidamente nas oficinas do recorrente, deverá o recorrente ser indemnizado no valor correspondente ao valor do serviço de depósito e guarda que tem vindo a prestar, no valor de 5 euros diários, contados desde a data de 6 de Junho de 2008, inclusive, até que os recorridos de lá retirem o veículo.
10.- Sabendo-se que o recorrente emprestou um veículo automóvel para ser usado pelos recorridos e que o carro foi "devolvido" pelos recorridos, não por qualquer acto de boa vontade destes, mas só no dia 28 de Novembro de 2008, data em que o mesmo teria de ser apresentado à inspecção e deixaria de poder circular legalmente, não deverá constituir impedimento à atribuição de uma indemnização pelo uso abusivo do automóvel o facto do recorrente não ter conseguido fazer prova da data exacta em que exigiu a devolução do veículo, se o Tribunal pode socorrer-se de outros factos que lhe permitam fazer uso das presunções judiciais para colmatar tal questão.
11.- Se aos factos referidos na conclusão anterior, se juntar a prova de que depois do recorrente ter informado os recorridos que o valor da reparação era de 1.000 euros (facto aa)), estes não mais apareceram na sua oficina (facto bb)) e que em 21 de Setembro de 2008, mandaram uma carta a solicitar a reparação no prazo de 15 dias, será certamente seguro poder tirar-se a ilação de que o recorrente, depois de intimado por carta para reparar o NV, pelo menos desde aquela data já não pretenderia continuar a ceder, por acto de cortesia, o seu veículo, já que tal havia sido feito numa perspectiva de arranjo do NV, sendo assim legítimo ao Tribunal lançar mão da presunção judicial de que, apesar de não haver prova da data exacta em que o recorrente exigiu a devolução do veículo, pelo menos desde a data de 21 de Setembro de 2008, a utilização do mesmo por parte dos recorridos foi feita de forma abusiva.
12.- Na procedência das conclusões 10 e 12, sabendo-se que o valor diário de utilização daquele automóvel é de 25 euros, deve o recorrente ser ressarcido pelo valor dos 69 dias compreendidos entre o dia 21 de Setembro de 2008 e 28 de Novembro de 2008, ambos inclusive, num total de 1.725 euros.
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III.- A recorrida M… conclui nos seguintes termos:
1.- Como é óbvio, ao contrário do que quer fazer crer o recorrente, o facto de o veículo funcionar à data da compra, conforme se deu como provado, não quer dizer que o mesmo não tivesse defeitos.
2. - Existia uma avaria, "avaria correspondente ou decorrente de vício, ainda que oculto, de que o comprador não se apercebeu, nem poderia aperceber, usando da diligência do homem médio (. . .)".
3. - Como o próprio recorrente assume, não logrou provar, como decorre dos factos assentes, que a avaria concreta do veículo NV é imputável aos autores, ora recorridos, razão pela qual se conclui que os factos dados como assentes em nada estão em contradição com a decisão de direito proferida pelo Tribunal a quo.
4.- Assim sendo, e como consequência óbvia, não assiste qualquer razão ao recorrente quanto às questões de discordância quanto à improcedência da reconvenção.
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Como resulta do disposto nos artº.s 684º., nº. 3; 685º.-A, nº.s 1 e 3, e 685º.-C, nº. 2, alínea b), todos do C.P.Civil, as conclusões definem e delimitam o objecto do recurso, sem prejuízo da apreciação das questões de que o Tribunal deva conhecer ex officio.
Assim, as questões a decidir são:
- Se o Apelante tem ou não o dever de reparar o veículo que vendeu.
- Se são devidos os pagamentos reclamados: de utilização da viatura cedida pelo Apelante à Apelada e marido; e de aparcamento do veículo vendido.
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B) FUNDAMENTAÇÃO
IV.- Não foi impugnada a matéria de facto pelo se tem por provado que:
a) O Réu possui um estabelecimento de venda de automóveis designado “Stand…”.
b) No dia 14 de Fevereiro de 2007, a Autora e o Chamado adquiriram ao Réu um veículo ligeiro de passageiros, com a matrícula …NV, marca … modelo…, de cor vermelha.
c) A referida viatura encontrava-se à venda no Stand…, possuindo o certificado de matrícula n°…desde 29-07-1999, tendo sido adquirida como viatura usada.
d) Para pagamento da viatura, a Autora, juntamente com o chamado, celebraram um contrato de financiamento para aquisição de bens de consumo duradouros com o BPN - Instituição Financeira de Crédito, S.A., no valor de € 10.000,00 (dez mil euros), responsabilizando-se pelo pagamento de sessenta prestações mensais, iguais e sucessivas de € 268,04 (duzentos e sessenta e oito euros e quatro cêntimos).
e) O contrato referido em d) destinava-se à aquisição da viatura.
f) Em consequência do contrato de financiamento ficou a viatura onerada com reserva de propriedade a favor da referida instituição de crédito, até integral pagamento.
g) Em data não concretamente apurada do mês de Maio de 2008, quando circulava na A 28, no sentido Esposende - Porto, próximo da saída para Estela, o veículo com a matricula …NV foi "abaixo", não tendo sido possível voltar a colocar o veículo a trabalhar.
h) O chamado contactou telefonicamente a oficina de reparação de automóveis, Apuliauto, para que fosse retirada a viatura da auto-estrada.
i) A referida Apuliauto foi buscar a viatura que fez chegar às suas instalações onde ficou aparcada e aí permaneceu cerca de quinze dias.
j) A referida viatura foi, depois, levada para a oficina do Réu.
k) Uma vez que a viatura não podia transitar, em resultado da avaria, o seu transporte foi efectuado no reboque de Auto Chapinhas, com sede na Estrada Nacional 13, freguesia de Fão, concelho de Esposende.
1) No dia 6 de Junho de 2008, o veículo …NV foi entregue na oficina do Réu e pelo próprio recepcionado.
m) O Réu facultou ao chamado uma outra viatura.
n) A Autora passou a deslocar-se na viatura cedida pelo Réu.
o) O Réu informou o chamado da necessidade de substituir o motor, informando-o, ainda, do respectivo custo, no valor de € 1000 (mil euros).
p) Em 21 de Setembro de 2008, a Autora, por meio de carta registada com aviso de recepção, solicitou a reparação da viatura, no prazo de quinze dias.
q) Em Novembro de 2008, a referida viatura continuava por reparar.
r) A viatura cedida foi entregue ao Réu, em 28 de Novembro de 2008, quando necessitava de ser sujeita a inspecção técnica periódica.
s) Sem a inspecção a viatura não poderia circular e a Autora entregou-a ao Réu.
t) O chamado recorreu ao apoio da Associação Portuguesa para Defesa do Consumidor (DECO).
u) Mostra-se junta aos autos uma missiva dirigida à DECO, datada de 28 de Novembro de 2008, assinada por A…, a fls. 19 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido (através da qual este comunica àquela Entidade não sentir na obrigação de reparar a viatura vendida à Autora “por outra pessoa ter mexido” nela sem o seu conhecimento; por “o prazo de garantia ter expirado”; e por “ter verificado o uso incorrecto da viatura”.
v) Mostra-se junto aos autos um documento - fls. 29 - cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido (é a apólice do seguro de responsabilidade civil automóvel relativa ao veículo …NV, supra referido).
w) No início do mês de Junho de 2008, o chamado contactou a oficina do Réu, referindo que a viatura aqui em causa tinha tido uma avaria na A 28, estava na Apuliauto, mas pretendia levá-la para a oficina do Réu, para que este a pudesse arranjar, pedido que foi acedido.
x) No momento em que chegou à oficina do Réu, o veículo …NV já tinha sido intervencionado, a nível mecânico, por terceiros, apresentando já o cárter e o motor desmontados, e com peças de motor na bagageira.
y) O chamado referiu que a viatura estava avariada e tinha o motor estragado.
z) O Autor pediu então ao Réu que fizesse um orçamento para a reparação do NV, pedindo-lhe para averiguar o custo de colocar um motor usado.
aa) O Réu informou o chamado que o custo de aquisição e colocação de um motor (usado) era de € 1.000,00 (mil euros).
bb) A Autora e o seu marido (chamado) nada mais disseram ao Réu, deixando o veículo na sua oficina e continuando a usar o veículo que lhes foi emprestado.
cc) O Réu emprestou à Autora e ao chamado uma viatura sua, de marca….
dd) A avaria da viatura em Maio de 2008 prende-se com o facto de se ter partido a biela do seu motor, ruptura que danificou o próprio bloco do motor.
ee) Tal avaria impede que o motor entre em funcionamento.
ff) Quando qualquer motor de um automóvel tem um tipo de avaria como a que o NV teve em Maio/Julho de 2008 (biela partida), o motor deixa de trabalhar.
gg) O mau uso do motor por quem conduz o veículo, traduzido numa sobrecarga momentânea do esforço do motor (excesso de rotação) leva à quebra da biela e consequente ruptura do bloco do motor.
hh) No dia em que a viatura deu entrada na oficina do Réu, apresentava óleo (vestígios) no seu motor.
ii) O motor do NV, em Julho de 2008, como hoje, não apresentava e não apresenta outros sinais de desgaste, para além do facto de ter partido a biela.
jj) Na data em que o veículo foi vendido à Autora e ao chamado funcionava.
kk) Desde essa data (14 de Fevereiro de 2007) e até finais de 2008, a Autora e o seu marido utilizaram quotidianamente o veículo NV sem que o mesmo apresentasse qualquer problema de funcionamento, designadamente no motor.
ll) Desde o dia 14 de Fevereiro de 2007 e até aos inícios do mês de Junho de 2008, a Autora e o chamado nunca informaram o Réu que o veículo aqui em causa tivesse tido qualquer problema de funcionamento, concretamente de motor.
mm) No dia 6 de Junho de 2008 o Réu emprestou um veículo automóvel, para ser usado pela Autora e pelo chamado, tendo o mesmo sido entregue ao Réu no dia 28 de Novembro de 2008.
nn) O custo do aluguer de um veículo, de características semelhantes ao usado pela Autora e seu marido, na gama média, é, aproximadamente, de € 25, por dia.
oo) Desde o dia 6 de Junho de 2008 que a Autora e o chamado têm a sua viatura na oficina do Réu.
pp) Desde a referida data que o Réu guarda o veículo, mantendo-o nas suas instalações, ocupando uma área que poderia ser utilizada para arranjar outros veículos.
qq) No mês de Julho de 2008, o Réu informou o chamado do custo da reparação do veículo.
rr) A oficina do Réu cobra, diariamente, € 5 pela guarda e aparcamento de veículos.
ss) Mostram-se junto aos autos documentos - fls. 64 e 65 - cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido (respectivamente, a “Guia de Circulação” passada e assinada pelo vendedor A… e a carta verde relativa ao veículo automóvel de matrícula …HM, ambos os documentos em nome da Autora M…).
tt) A viatura emprestada só foi entregue em 28 de Novembro de 2008.
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IV.- Transcrita a facticidade provada, vejamos o direito aplicável à situação sub judicio.
Rege nesta matéria o Dec.-Lei nº. 67/2003, de 8 de Abril, que transpôs para a ordem jurídica interna a Directiva nº. 1999/44/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio (publicada no J.O. L 171/12, de 7/07/1999), que consagrou normas e princípios com vista à uniformização das legislações dos Estados-Membros, relativos à “venda de bens de consumo (“qualquer bem móvel corpóreo”) e das garantias a ela relativas”, pretendendo-se obter um nível mais elevado de defesa dos consumidores.
Com efeito, de acordo com o artº. 153º., nº. 1 do Tratado (actual 169º. do TFUE (Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia), a União (antes Comunidade) deve promover os interesses dos consumidores, e assegurar um elevado nível de defesa dos seus interesses, sendo, precisamente na prossecução deste objectivo que surge aquela Directiva.
Atento o princípio do primado do Direito da União Europeia sobre o Direito Nacional (cfr. Alessandra Silveira, in Princípios do Direito da União Europeia, “Quid Juris”, págs. 95 e sgs., maxime 95 e 96, e o desenvolvimento do princípio do primado do Direito da União, à luz dos Acórdãos do TJUE a fls. 115 e sgs., maxime 120 e 121) e porque aquela Directiva contém normas de direito positivo, incondicionais e precisas, que impõem deveres aos particulares e lhes conferem direitos, podem eles invocá-las perante os tribunais nacionais, mesmo nas suas relações com outros particulares - aplicabilidade directa horizontal (cfr. JOÃO MOTA DE CAMPOS, in “Manual de Direito Comunitário”, ed. Fundação Calouste Gulbemkian, 200, págs. 357 a 365).
Assim, a mencionada Directiva aplica-se directamente à situação sub judicio em tudo o que o Dec.-Lei nº. 67/2003 a contradiga, seja omisso relativamente a qualquer das matérias abrangidas por ela, ou estabeleça um âmbito mais estreito que o que ela define para os direitos que consagra.
Reconhecendo que as principais dificuldades com que os consumidores se deparam, e é “a principal fonte de conflitos com os vendedores”, a não conformidade dos bens com o que foi contratado, visando facilitar a aplicação do princípio da conformidade do bem com o contrato, a Directiva criou presunções de conformidade/desconformidade e estabeleceu o prazo de dois anos, a contar da entrega do bem, em que o vendedor fica responsável perante o comprador por qualquer falta de conformidade que se manifestar – cfr. nº.s 6 a 8 do preâmbulo, e artº.s 2º. e 5º..
Em relação aos bens em segunda mão, foi dada aos Estados Membros a possibilidade de, na aplicação do princípio da liberdade contratual, deixar aberto ao vendedor e ao consumidor o acordo sobre um prazo mais curto, que, porém, nunca poderá ser inferior a um ano – cfr. artº. 7º., nº. 1, segundo parágrafo.
Estas presunções e princípios foram transpostos para a legislação interna pelos artº.s 2º. e 3º., do Dec.-Lei nº. 67/2003 (Diploma que foi alterado pelo Dec.-Lei nº. 84/2008, de 21 de Maio, entrado em vigor em 20 de Junho de 2008).
E nos termos do artº. 5º., (dispositivo legal que sofreu uma alteração com o Dec.-Lei 84/2008, mantendo-se, porém, intacta a redacção da parte que ora nos interessa) o comprador pode exercer os direitos previstos no artº. 4º. quando a falta de conformidade se manifestar no prazo de dois anos a contar da entrega, em se tratando de bem móvel, sem prejuízo de, se este for usado, tal prazo poder ser reduzido a um ano por acordo das partes.
No que se refere à “Garantia”, que a alínea e) do artº. 1º., da Directiva define como “qualquer compromisso assumido por um vendedor ou um produtor perante o consumidor, sem encargos adicionais para este, de reembolsar o preço pago, substituir, reparar ou ocupar-se de qualquer modo de um bem de consumo, no caso de este não corresponder às condições enumeradas na declaração de garantia ou na respectiva publicidade”, diz o ponto 21 do preâmbulo que ela “estimula a concorrência” - e daí a sua importância – mas, alerta, não deve “induzir os consumidores em erro”. E é para assegurar este objectivo que a garantia deve conter expressamente as informações que constam do artº. 6º., designadamente, o seu conteúdo, isto é, o que abrange e o que exclui, e a sua duração.
Por sua vez, o artº. 9º., do Dec.-Lei 67/2003 estabelece, expressamente, que “a declaração pela qual o vendedor … promete reembolsar o preço pago, substituir, reparar ou ocupar-se de qualquer modo da coisa defeituosa vincula o seu autor nas condições constantes dela e da correspondente publicidade”.
Com base neste preceito legal, refere Calvão da Silva “Correntemente oferecida contra qualquer defeito que possa manifestar-se durante determinado prazo (…) a garantia comercial vincula juridicamente o seu autor nas condições constantes da sua declaração e da publicidade correspondente (…) (in “Venda de Bens de Consumo”, 4ª. edição, pág. 150).
Conquanto a garantia deva ser reduzida a escrito ou “em qualquer outro suporte duradouro” a que o consumidor tenha acesso, e deva ter o conteúdo determinado pelo nº. 3 do artº. 9º., a violação destes preceitos não afecta a sua validade, nos termos do nº. 5, do mesmo artigo.
Não se provando o prazo da garantia deve entender-se que ele é de dois anos, por ser aquele em que o comprador pode exercer os seus direitos, nos termos do nº. 1 do artº. 5º., do Dec.-Lei 67/2003.
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V.- Ora, na situação sub judicio, ainda que o Apelante tenha alegado ter acordado com a Autora a redução para um ano da garantia do bom funcionamento do veículo NV, não conseguiu fazer a prova desta redução pelo que o prazo a considerar é o supletivo, de dois anos.
Nos termos que acima se deixaram referidos, ainda que a garantia não tenha sido reduzida a escrito, a falta de forma não constitui nulidade, pelo que o comprador – neste caso, a Autora – pode continuar a invocá-la e a exigir a sua aplicação.
Assim, tendo a entrega do veículo NV à Autora ocorrido no dia 14/02/2007, e tendo-se verificado a avaria em 03/06/2008, ainda não tinham decorrido os dois anos da garantia.
Mantém-se, por isso, a correspondência entre este prazo e o previsto no nº. 2 do artº. 3º., do Dec.-Lei 67/2003 que, partindo do pressuposto de que o vendedor tem o dever de entregar ao comprador um bem que esteja conforme com o contrato, estabeleceu a presunção de que as faltas de conformidade que se manifestarem num prazo de dois anos existiam à data em que o bem foi entregue.
E, como refere Nuno Manuel Pinto Oliveira, aquele dispositivo legal “impõe a responsabilidade do vendedor por qualquer falta de conformidade existente no momento da entrega da coisa – independentemente
Na situação sub judicio ficou provado que a avaria consistiu na ruptura da biela do motor, que quebrou, danificando o próprio bloco do motor.
Mais se provou que, verificando-se este tipo de avaria, o motor deixa de funcionar.
Posto que tal avaria ocorreu ainda dentro dos dois anos posteriores à entrega, sabendo-se que a ruptura da biela do motor é normalmente provocada pela fadiga, que, nos termos provados, pode resultar de uma sobrecarga do esforço do motor, tem de se presumir que quando o veículo foi entregue à Autora aquela peça já tinha, pelo menos, entrado num processo de fadiga, que tem de se considerar anormal em relação às demais peças que constituem o motor já que, como foi provado, ele não apresentava outros sinais de desgaste (cfr. alínea ii)).
Ao Apelante cabia elidir esta presunção, ou seja, cabia-lhe fazer a prova de que a referida biela, em 14/02/2007 se encontrava, tal como as demais peças do motor, em boas condições, sem sinais de fadiga ou desgaste.
Posto que ainda decorria o prazo de garantia, como se decidiu no Ac. da Relação de Coimbra 14/12/2004, (citado na douta sentença impugnada e também nas doutas alegações), à Autora apenas cabia provar a ocorrência da anomalia – e conseguiu-o -, cabendo ao Apelante a prova de que o mau comportamento daquela peça resultou do (mau) comportamento do comprador ou de causa estranha ao seu funcionamento.
Ora, o que se provou – cfr. alínea gg) – foi que “o mau uso do motor por quem conduz o veículo, traduzido numa sobrecarga momentânea do esforço do motor (excesso de rotação) leva à quebra da biela e consequente ruptura do bloco do motor”.
Mas o que aqui se diz é que aquela é, em abstracto, uma das causas (possíveis) da ruptura da biela, a considerar a par de outras, como o defeito de origem, por exemplo.
Não se provou que tenha sido aquela a causa verificada em concreto.
Tinha de se provar que, naquela situação, naquela concreta viagem, o condutor do veículo NV levou o motor a uma situação de excesso de rotação, e foi este excesso de rotação que provocou a ruptura da biela, ou seja, tinha que se provar que aconteceu o referido mau comportamento do condutor do NV e o nexo de causalidade entre este comportamento e a avaria verificada.
Nexo de causalidade que se não pode, tampouco, extrair do facto de o veículo estar a funcionar na data em que foi entregue à Autora, já que o processo de desgaste daquela peça podia ter-se iniciado anteriormente mas ainda não ter atingido aquele estado de debilidade que levou à ruptura.
Cabendo, pois, ao Apelante a alegação e prova daqueles factos, como o não fez, mantém-se a presunção da desconformidade do bem com o contrato, o que o responsabiliza pela reparação do veículo NV.
Improcedem, pois, as conclusões 5 a 8.
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VI.- Relativamente aos pedidos reconvencionais, e começando pelo aparcamento do NV nas oficinas do Apelante, tendo ficado decidido que cabe ao Apelante a obrigação de reparar o veículo NV, a obrigação da sua guarda é uma obrigação acessória daquela de proceder à sua reparação (cfr., v. g., o Ac. da Rel. do Porto, de 6/04/2000, in C.J., ano XXV, tomo II – 2000, pág. 218).
Mantendo-se a obrigação do Apelante reparar a viatura, não ganhou autonomia o contrato de depósito, que é o contrato pelo qual uma das partes entrega à outra uma coisa, para que a guarde e restitua quando exigida – cfr. artº. 1185º..
Sem embargo de se presumir a onerosidade do contrato quanto tenha por objecto a guarda de coisas recebidas no âmbito do exercício da profissão do depositário, nos termos do disposto na 2ª. parte do nº. 1, do artº. 1158º., ex vi do artº. 1186º., cabendo ao depositante pagar ao depositário a retribuição devida, a reembolsá-lo das despesas indispensáveis para a conservação da coisa, e indemnizá-lo do prejuízo sofrido em consequência do depósito – cfr. artº. 1199º., o certo é que, como acima se afirmou, mantendo-se a obrigação principal, que é a da reparação do veículo, não é devido qualquer pagamento pelo seu aparcamento.
Improcedem, por isso, as conclusões nº.s 8 e 9.
E no que se refere ao veículo que o Apelante disponibilizou para uso da Autora e do marido, ficou por provar se essa disponibilização foi um acto de mera cortesia ou foi antes o meio adoptado para minimizar ou compensar os prejuízos e incómodos, para a Autora e marido, resultantes da impossibilidade de utilizarem o veículo que compraram ao Apelante.
Quer tenha sido acto de mera cortesia quer meio de minimização ou compensação, o Apelante tinha de provar que manifestou à Autora e/ou ao marido, de modo inequívoco, a vontade de lhe por termo, sem que seja lícito ao Tribunal presumir essa vontade dos desenvolvimentos que a situação conheceu, designadamente, como se pretende, da carta enviada pela Autora ao Apelante, que infra se referirá.
Com efeito, as presunções judiciais são, nos termos do artº. 349º., do Cód. Civil, ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido.
Como escreveu Vaz Serra “ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência, ou de uma prova de primeira aparência” (in B.M.J. nº. 112º., pág. 190).
Ou seja, o juiz, provado um facto e valendo-se das regras da experiência, conclui que esse facto revela a existência de outro facto.
Ora, como dissemos no acórdão de 06/03/2012, “não podem ser usadas as regras da experiência comum se os factos que resultam da prova não apontam inequivocamente para os que é comum verificarem-se quando aqueles se verificam, ou seja, quando os factos provados tanto podem revelar a existência de outro facto com determinado sentido como de sentido diverso” (Rec. de Apelação nº. 260/09.1TBBCL.G1).
Certo que se pode presumir que, pelo seu teor, a carta de fls. 20, enviada pelo marido da Autora ao Apelante em 20/09/2008, a exigir-se a reparação do veículo “no prazo máximo de 15 dias”, tenha provocado neste pelo menos mau estar, se não aborrecimento.
Não provocou, porém, ruptura das relações como se pode deduzir do facto de o Apelante não ter respondido a essa carta.
Ora, quando muito, seria dessa ruptura de relações que se poderia presumir a vontade do Apelante por termo ao acto de cortesia.
Simplesmente, não se provou que a disponibilização do veículo fosse um mero acto de cortesia, nem tal se pode retirar dos factos transcritos sob a alínea mm), onde se diz, apenas: “No dia 6 de Junho de 2008 o Réu emprestou um veículo automóvel, para ser usado pela Autora e pelo chamado, tendo o mesmo sido entregue ao Réu no dia 28 de Novembro de 2008”.
Por outro lado, se com a disponibilização do veículo se pretendeu minimizar os incómodos e prejuízos resultantes da impossibilidade de utilização do NV (comprado ao Apelante) certo que essa impossibilidade se mantém até ao presente.
Assim sendo, forçoso é concluir não ter o Apelante direito a receber da Autora e/ou do marido qualquer importância como compensação da disponibilização do veículo, com o que improcedem as conclusões 10 e 11.
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De tudo quanto vem de expor-se se conclui ser de julgar improcedente o recurso, por improcederem as conclusões em que se baseava.
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C) DECISÃO
Assim, e considerado o que acima se expõe, acordam os Juízes desta Relação em negar provimento ao presente recurso de apelação, e, consequentemente, confirmar, na íntegra, a douta decisão impugnada.
Custas pelo Recorrente.
Guimarães, 08/Maio/2012