A constituição de arguido e o efeito interruptivo da prescrição dela decorrente não é inutilizada pela posterior verificação de uma alteração substancial dos factos da acusação ou da pronúncia.
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I- Relatório
A assistente Maria F... requereu a abertura de instrução contra o arguido Joaquim A... a quem imputou, no respectivo requerimento, a prática de, pelo menos, onze crimes de Abuso Sexual de Criança, p. e p. pelo artigo 172.º do CP então em vigor e actualmente p. e p. pelo art. 171.º do CP.
Aquando da decisão instrutória foi proferido despacho a declarar extinto o procedimento criminal por prescrição.
Inconformada recorre a assistente, rematando a respectiva motivação com as seguintes conclusões:
1- Não ocorreu a prescrição do procedimento criminal, tal como, de forma errada, se concluiu na decisão recorrida.
2- Não obstante a, alegada, alteração substancial dos factos, suscitada no processo 25/03.4 TACBC, veio depois a constatar-se que o arguido acabou por ser acusado nestes autos pelos mesmo factos e pelo mesmo crime de que já era acusado no anterior processo, com prolongamento do período de actuação criminosa até fins de Agosto de 1997, o que, por si só, não configura alteração substancial.
3- Sendo os mesmos os factos nestes autos, verifica-se que no outro processo (25/03.4 TACBC), ocorreram dois factos processuais que interromperam o prazo de prescrição, a saber, a constituição de arguido em 03.07.2006 e a notificação da acusação em 23.03.2007.
4- Ainda que existam dois processos distintos, salvo melhor opinião, não pode nunca entender-se que os factos são também diferentes, porque na realidade não o são.
5- Nem são diferentes os factos nem é diferente o tipo legal de crime, pois como supra se referiu, e não obstante a alegada alteração substancial dos factos, estes vieram a ser exactamente os mesmos, tal como o tipo legal de crime – abuso sexual de crianças.
6- O prazo de prescrição conta-se a partir da prática dos factos e, sendo estes os mesmos num e noutro processo, início da contagem ocorre em finais de Agosto de 1997.
7- Se os factos são os mesmos, e se o mesma pessoa é constituída arguida e notificada da acusação pela prática desses mesmos factos, ainda que no processo anterior, que deu origem ao actual, tais actos processuais têm que necessariamente provocar a interrupção da prescrição.
8- Ao decidir pela procedência da prescrição do procedimento criminal, a decisão recorrida interpretou e aplicou de forma errada o disposto no art. 121º do CP, pois não considerou, novamente mal, a existência de dois actos processuais que determinam a interrupção da prescrição, nomeadamente a constituição como arguido (artº 121 a) e b) do CP).
Termina pedindo a revogação do despacho recorrido.
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O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela respectiva improcedência.
Admitido o recurso e remetidos os autos a esta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido da procedência do mesmo, invocando, entre o mais, o seguinte:
“… A questão a decidir no presente recurso é a de saber se o procedimento criminal está efectivamente prescrito, tal como se entendeu na decisão recorrida e defendeu o Ministério Público na primeira instância.
Como decorre da motivação do recurso da assistente, a controvérsia surge quanto à relevância dos factos interruptivos ou suspensivos da prescrição, ocorridos num processo onde se verificou uma “alteração substancial de factos”.
O despacho recorrido sustenta que a alteração substancial dos factos descritos na acusação dá início a um novo processo e, portanto, os factos interruptivos ou suspensivos da prescrição até aí verificados deixam de ter qualquer relevância, enquanto a assistente defende o contrário…
… A decisão recorrida, partindo do entendimento de que a comunicação da alteração substancial valia como “denúncia”, concluiu que os presentes autos constituem um novo processo para todos os efeitos legais, designadamente para afastar qualquer efeito interruptivo ou suspensivo às ocorrências processuais até então ocorridas.
A este propósito diga-se, desde já, que não se entende que assim tenha concluído, pois que o mesmo entendimento não foi sufragado quando se tratou de indeferir as diligências de instrução requeridas pela assistente, aí tendo a decisão judicial, na guarida da tese também defendida pelo Ministério Público e com suporte na doutrina e na jurisprudência, proclamado que “todos os actos e despachos praticados no Processo n.º 23/03.4TACBC até ao despacho que ordenou a separação, mantêm a sua validade nos presentes autos” (Cfr. fls. 841 e fls. 856)…
… Anotadas as incongruências, diremos, em convicção, que outra não poderá ser a decisão que não seja a de afirmar a efectiva validade de todos os actos praticados no processo n.º 23/03.4TACBC, designadamente no que concerne aos efeitos interruptivos da prescrição que derivaram da constituição de arguido em 03.07.2006.
É este o sentido uniforme e reiterado da jurisprudência conhecida, neste âmbito se evidenciando a jurisprudência ditada pelo Ac. T.R.Porto de 18.06.2008 (Processo n.º 0811771, Rel. Élia São Pedro, in http://www.dgsi.pt/jtrp), pelo Ac. STJ de 05/02/2003 (in http://portal.codigodaestrada.net) e pelo Ac. T.R.Coimbra de 28.10.2008 (Processo n.º 560/07.5TACBR.C1, Rel. Jorge Dias, in http://www.dgsi.pt/jtrc)...
... À luz daqueles ensinamentos, impõe-se pois saber se, nestes autos e tendo em conta essa interrupção, ocorreu ou não a prescrição do procedimento criminal.
O crime em apreço, Abuso Sexual de Crianças, independentemente do regime penal aplicável – artigo 172.º, n.º 1, na versão de 1995 do Código Penal e artigo 171.º, n.º 1 do Código Penal vigente – é punido com pena de prisão de um a oito anos.
O prazo de prescrição do procedimento criminal é de dez anos (alínea b) do artigo 118.º do C. Penal).
Estamos perante um crime continuado, e, como tal a prescrição do procedimento criminal só corre desde a data da prática do último acto (art.º 119.º n.º 2, al. b) do C.Penal) – No caso, em Agosto de 1997 ou em Agosto de 1998.
No âmbito do processo n.º 25/03.4TACBC, Joaquim A... foi constituído arguido em 03.07.2006 (Cfr. fls. 228 e segts.)
A constituição de arguido interrompeu a prescrição do procedimento criminal, inutilizando todo o tempo até então decorrido e começando a correr novo prazo a partir daí (art.º 121º, n.º 1, a) e n.º 2 do C. Penal).
Porém, a prescrição do procedimento criminal não poderá remontar até 03.07.2016, pois que a prescrição tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade (art.º 121.º, n.º 3 do C.Penal).
Não havendo causa de suspensão, a prescrição, mesmo considerando que a data da prática do último acto se situou em Agosto de 1997, apenas ocorrerá em Agosto de 2012 (1997+15anos), mantendo-se, por isso, ainda válido o procedimento criminal.
Ora face ao exposto, é manifesto que a prescrição não ocorreu ainda.
Em consequência, na procedência do recurso, deverá ser revogada a decisão que declarou extinto por prescrição o procedimento criminal…”
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Foi cumprido o disposto no art. 417º., nº.2 CPP, não sendo apresentada resposta.
Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
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II- Fundamentação
Teor do despacho recorrido
“A assistente Maria F..., melhor identificada nos autos, requereu a abertura de instrução requerendo que a final venha a ser pronunciado o arguido Joaquim A..., pela prática em autoria material e na forma consumada de onze crimes de Abuso Sexual de Criança, previsto e punido pelo artigo 172.º, do Código Penal, na redacção vigente à data da prática dos factos e, actualmente, pelo artigo 171.º, do Código Penal, já que, contrariamente ao que consta do Despacho de arquivamento, dos autos resultam indícios suficientes da prática de tais crimes pelo arguido.
DILIGÊNCIAS EFECTUADAS
Foi realizada perícia psicológica à ofendida, cujo Relatório Pericial consta de fls. 891 e seguintes.
Inexistindo outras diligências instrutórias a efectuar, foi realizado debate instrutório, cumprindo-se as formalidades legalmente previstas.
DECISÃO COMPROVANDA
Despacho de Arquivamento constante de fls. 731 a 740, no qual se concluiu pela inexistência de indícios suficientes da prática pelo arguido do crime de abuso Sexual denunciado e, consequentemente, se entendeu não dever o arguido ser submetido a julgamento pela factualidade denunciada.
PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
O Tribunal é competente.
O Ministério Público tem legitimidade para exercer a acção penal.
A) DA PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL
Porque tal questão foi suscitada pelo arguido em sede de Debate Instrutório, previamente, impõe-se apreciar e decidir da eventual prescrição dos crimes de Abuso Sexual de Criança que no Requerimento de abertura de Instrução são imputados ao arguido.
Compulsados os presentes autos, constata-se que os mesmos tiveram origem na certidão remetida do processo 25/03.4TACBR, junta a fls. 1 e seguintes, por decisão ali proferida no Despacho datado de 20.11.2007, tendo a referida certidão dado origem ao Inquérito autuado em 10 de Janeiro de 2008, com o número 2/08.9TACBR.
No âmbito daquele processo n.º 25/03.4TACBR foram denunciados factos alegadamente praticados no período compreendido entre os anos de 1987 e Agosto de 1997, susceptíveis de integrarem a prática pelo arguido de crimes de abuso sexual de criança, sendo que, quanto à ofendida, a aqui assistente, Maria F..., os factos teriam sido praticados desde os seus 3 anos de idade e até ao Verão em que completou 11 anos de idade, assim, porque nasceu em 31 de Março de 1984, o último facto teria sido praticado antes de 21 de Setembro de 1995, e, quanto à ofendida Patrícia Gonçalves Faria, os factos teriam ocorrido em Agosto de 1997.
Naquele processo o Joaquim A... foi constituído arguido em 3 de Julho de 2006, conforme resulta de fls. 228 e seguintes, e deduzida acusação contra o arguido, em 15 de Março de 2007, a qual viria a ser notificada ao arguido por via postal simples com prova de depósito, em 23.03.2007, tendo ali sido acusado da prática de 5 crimes continuados de abuso sexual de criança (estes perpetrados sobre a aqui assistente Maria F...) e um crime de abuso sexual de menor (este perpetrado sobre a Patrícia Gonçalves Faria).
Em acta de audiência de julgamento, realizada em 29 de Novembro de 2007, constante de fls. 401 e seguintes, foi proferido Despacho onde se decidiu, face à prova produzida em julgamento, que se verificava uma alteração substancial dos factos descritos na acusação já que se apurou que os factos praticados pelo arguido na pessoa da ofendida Maria F... ocorreram até ao mês de Agosto de 1997, ano em que a assistente fez 13 anos de idade, pelo que, se entendeu que o arguido teria praticado, um crime de atentado ao pudor, previsto e punido pelo artigo 205.º, n.º 2, da versão de 1982 do Código Penal, e não o crime de abuso sexual de crianças previsto e punido pelo artigo 172.º, n.º 1, na versão de 1995 do Código Penal, e, ainda, um crime de abuso sexual de crianças previsto e punido pelo artigo 172.º, n.º 1, na versão de 1995 do Código Penal, assim, após comunicação ao arguido, tendo-se este oposto à continuação do julgamento pelos novos factos, determinou-se a extracção de certidão e a sua remessa ao Ministério Público para ser deduzida acusação contra o arguido de acordo com o novo facto apurado em julgamento.
Assim, na sequência da extracção de tal certidão e da autuação dos presentes autos, viria a ser deduzida acusação a fls. 595 e seguintes contra o arguido imputando-se ao arguido a prática de um crime de Abuso Sexual de Crianças, previsto e punido pelo artigo 172.º, n.º 1, do Código Penal, por factos perpetrados na pessoa da assistente Maria F..., desde os 3 anos da ofendida até ao Verão de 1997, ano em que completou 13 anos de idade.
Esta acusação viria a ser notificada ao arguido por via postal simples com prova de depósito, em 17 de Março de 2008, tendo o arguido requerido a abertura de instrução em que requereu fosse declarada a prescrição do procedimento criminal e, subsidiariamente, declarada a nulidade insanável do inquérito, por ausência de qualquer acto ou diligência de investigação e, ainda, subsidiariamente, declarada a nulidade decorrente da insuficiência do inquérito e da omissão de diligências e actos prescritos na lei como obrigatórios.
A fls. 638 e 639 foi proferida Decisão onde se considerou que o suspeito Joaquim A... nunca foi constituído arguido apenas tendo assumido esta qualidade com a dedução de acusação pelo Ministério Público e que, sendo obrigatória a realização de inquérito essa realização não se basta com a autuação da queixa apresentada e imediata dedução de acusação pública sem que tivesse ocorrido qualquer diligência de inquérito, designadamente, a constituição de arguido. Assim, concluiu-se ali julgar verificada a nulidade de falta de inquérito e, como tal, foi declarado nulo todo o processado em inquérito, tendo-se ordenado que os autos baixassem aos serviços do Ministério Público.
Nesta sequência, nos presentes autos, veio Joaquim A... a ser constituído arguido e como tal interrogado, em 09 de Março de 2010, cfr. Fls. 692 e seguintes.
Por Despacho proferido a fls. 731 e seguintes, o Ministério Público decidiu arquivar os autos, por insuficiência de indícios da prática do crime pelo arguido.
Cumpre apreciar.
Como acima deixamos dito a assistente pretende que o arguido seja pronunciado pela prática em autoria material e na forma consumada de onze crimes de Abuso Sexual de Criança, previsto e punido pelo artigo 172.º, do Código Penal, na redacção vigente à data da prática dos factos e, actualmente, pelo artigo 171.º, do Código Penal
O crime de Abuso Sexual de Criança previsto no artigo 171.º, n.º 1, é punível com pena de prisão de um a oito anos e nos termos do n.º 2 de tal norma é punível com pena de prisão de três a dez anos.
Ora, nos termos do disposto no artigo 118.º, do Código Penal “o procedimento criminal extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sobre a prática do crime tiverem decorrido os seguintes prazos:
a) Quinze anos, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for superior a dez anos;
b) Dez anos, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for igual ou superior a cinco anos, mas que não exceda dez anos;
c) Cinco anos, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for igual ou superior a um ano, mas inferior a cinco anos;
d) Dois anos, nos casos restantes.
Quanto ao início do prazo dispõe o artigo 119.º, n.º 1, do mesmo Diploma Legal, que “o prazo de prescrição do procedimento criminal corre desde o dia em que o facto se tiver consumado.”
Por sua vez, o artigo 121.º, do Código Penal, fixa as situações em que ocorre Interrupção da prescrição, estabelecendo que “a prescrição do procedimento criminal interrompe-se:
a) Com a constituição de arguido;
b) Com a notificação da acusação ou, não tendo esta sido deduzida, com a notificação da decisão instrutória que pronunciar o arguido ou com a notificação do requerimento para aplicação da sanção em processo sumaríssimo;
c) Com a declaração de contumácia;
d) Com a notificação do despacho que designa dia para audiência na ausência do arguido.”
Assim, fazendo a subsunção destas normas ao caso concreto, temos que, o crime imputado no Requerimento de abertura de Instrução ao arguido é o crime de Abuso Sexual, punível com uma pena de prisão cujo limite máximo é igual ou superior a cinco anos, mas que não excede dez anos, logo o prazo de prescrição é de 10 anos.
Por outro lado, in casu, não ocorreu qualquer causa de interrupção do prazo de prescrição antes de este prazo se ter completado.
Com efeito, tendo os factos imputados ao arguido sido praticados desde a idade de três anos da assistente, que nasceu em 31 de Março de 1984 (vide certidão de nascimento junta a fls. 299) até aos seus treze ou catorze anos de idade, sendo que a partir dos sete anos os factos ocorreram durante o Verão quando a assistente se deslocava de férias a Portugal, conforme se imputa no Requerimento de abertura de instrução, o que sempre nos levaria até ao Verão de 1998 (altura em que a assistente teria 14 anos de idade), o prazo de 10 anos de prescrição completou-se em 21 de Setembro de 2008, ou seja, 10 anos após o termo do Verão em que a assistente tinha 14 anos de idade, já que o denunciado não foi constituído arguido até essa altura (1.ª possibilidade legalmente prevista para ocorrer a interrupção da prescrição), sendo-o apenas em 09 de Março de 2010.
Cabendo aqui referir que as razões aduzidas pela assistente em sede de Debate Instrutório para que não tivesse ocorrido a prescrição não são contempladas na lei penal como causas de interrupção da prescrição e, assim, não podem relevar para o efeito pretendido.
Por outro lado, não podemos deixar aqui de referir que os factos pelos quais o arguido poderia vir a ser pronunciado apenas seriam os que, efectivamente, foram denunciados, ora, a denuncia apenas imputa factos praticados na pessoa da assistente até ao Verão de 1997, altura em que a assistente teria 13 anos de idade, surgindo apenas a idade de 14 anos no requerimento de abertura de Instrução, quiçá, porque a assistente terá tomado consciência que, quando foi remetida a certidão judicial que deu origem ao presente processo já havia ocorrido a prescrição do procedimento criminal, logo, há muito que deveria ter sido declarada tal prescrição, designadamente, no primeiro despacho proferido nos autos pelo Ministério Público, o que teria evitado o protelar do processo até este momento.
Assim, impõe-se que seja declarada tal prescrição e, consequentemente, declarada a extinção do procedimento criminal contra o arguido Joaquim A....
DECISÃO
Face ao exposto, nos termos de facto e de direito acima expressos decide-se:
a) Não pronunciar o arguido Joaquim A... pela prática em autoria material de um crime de Abuso Sexual de Criança, porquanto, ocorreu a prescrição dos factos denunciados e que lhe são imputados no Requerimento de Abertura de Instrução, o que se declara;
b) Em consequência, declara-se extinto o procedimento criminal, por tal crime, contra o arguido Joaquim A...; e
c) Determina-se o oportuno arquivamento dos autos”.
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Apreciando
A questão a decidir no presente recurso é a de saber se o procedimento criminal está efectivamente prescrito, tal como se entendeu na decisão recorrida e defende o Ministério Público na primeira instância, ou contrariamente se tal prescrição não se verifica como propugna a recorrente e defende o Exº PGA no seu douto parecer.
A recorrente censura o despacho recorrido por entender que o procedimento criminal não está prescrito, argumentando que se os factos são os mesmos, e se a mesma pessoa é constituída arguida e notificada da acusação pela prática desses mesmos factos, ainda que no processo anterior, que deu origem ao actual, tais actos processuais têm que necessariamente provocar a interrupção da prescrição.
Trata-se, em suma, de aferir da relevância dos factos interruptivos ou suspensivos da prescrição, maxime da constituição de arguido e da notificação da acusação, ocorridos num processo onde se verificou uma “alteração substancial de factos”, tendo o despacho recorrido entendido que tal alteração substancial dos factos dá início a um novo processo, ou seja, que a comunicação da alteração substancial valia como “denúncia”, concluindo que os presentes autos constituem um novo processo para todos os efeitos legais, designadamente para afastar qualquer efeito interruptivo ou suspensivo às ocorrências processuais até então ocorridas.
Face aos dados do problema entende-se ter inteira razão o Exmº Procurador-Geral Adjunto no respectivo parecer, acompanhando-se na íntegra a jurisprudência no mesmo citada que elucida amplamente os termos da questão: o Ac. STJ de 5-2-2003 (pr. 02P2776, rel. Lourenço Martins), o Ac. Rel. Coimbra de 28-10-2008 (pr. 560/07.5 TACBR.C1, rel. Jorge Dias) e o Ac. Rel. Porto de 18-6-2008 (pr. 0811771, rel. Élia São Pedro), todos disponíveis em www.dgsi.pt.
Este último, aliás, parcialmente reproduzido no parecer em causa debruça-se sobre situação muito semelhante à dos presentes autos, ali se escrevendo, a nosso ver, com inteiro acerto:
“… O artigo 359.º, 1 do CPP apenas nos diz que a alteração substancial dos factos não pode ser tomada em conta para o efeito de condenação, mas nada nos diz sobre a validade e efeitos jurídicos das diligências processuais ocorridas até aí. O que o preceito não permite (literalmente) é a condenação do arguido por aqueles factos novos, sem que o mesmo possa organizar uma nova defesa, se assim o entender. Não há na lei o menor indício de que devam inutilizar-se os efeitos jurídicos dos actos processuais validamente efectuados até então.
Assim, quando a lei nos diz que a comunicação da alteração vale como “denúncia” para que o MP proceda pelos novos factos, isso não significa necessariamente que os efeitos interruptivos e suspensivos da prescrição, entretanto verificados, não possam aproveitar-se.
A resposta a esta questão há-de resolver-se através da interpretação dos artigos 120º e 121º do C. Penal, relativos à suspensão e interrupção da prescrição. Na verdade, o que importa é saber se os factos suspensivos e interruptivos da prescrição ali previstos se mantêm, nos casos em que, a dado passo, ocorre uma alteração substancial dos factos da acusação.
Esta questão não tem (como vamos ver) uma só resposta.
Há efeitos suspensivos e interruptivos da prescrição do procedimento criminal que ocorrem num momento processual em que pode não ser ainda possível determinar qual o concreto crime praticado pelo arguido. É o caso da constituição de arguido que, nos termos da al. a) do n.º 1 do art. 121º do C. Penal interrompe a prescrição.
Este efeito interruptivo subsiste, como é óbvio, qualquer que venha a ser a acusação do MP, pois a constituição de arguido não impede que venha a ser deduzida acusação por factos que ainda não estavam indiciados naquele momento. E, não estando a acusação vinculada aos factos indiciados no momento da constituição de arguido, a alteração substancial dos factos, ocorrida entre o momento da constituição de arguido e a dedução da acusação, é irrelevante. É o que decorre do disposto nos artigos 309º e 359º do CPP, só considerando relevante a alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.
Se o efeito interruptivo causado pela constituição de arguido subsiste qualquer que seja a acusação, então o mesmo deve subsistir ainda que a acusação venha a ser declarada nula, ou venha a ocorrer uma alteração substancial dos factos – neste sentido, podemos ver o acórdão desta Relação, de 1-11-2007, proferido no processo 0742796, com o argumento de que “ (…) ao constituir-se um processo com base numa certidão extraída de outro, ele incorpora todos os actos e valências documentados na certidão.
É isso que acontece, por exemplo, nos apensos remetidos ao Tribunal da Relação para apreciação de recurso em separado (artigo 414.º, n.º 6, do Código de Processo Penal), nos casos de separação de processos (artigo 30.º, do Código de Processo Penal) e sempre que se junta certidão de um acto processual realizado em outro processo”.
Deste modo, julgamos que a constituição de arguido e o efeito interruptivo da prescrição dela decorrente não é inutilizada pela posterior verificação de uma alteração substancial dos factos da acusação ou da pronúncia. Do mesmo modo, entendemos que não resulta da lei a inutilização das diligências de prova até então validamente produzidas no inquérito, o que mostra não existir a nulidade insanável de “falta de inquérito”, referida pelo arguido na resposta à motivação do MP.
Contudo, quer a notificação da acusação, quer a pendência do processo a partir daí, não podem desligar-se dos factos e crimes concretamente imputados ao arguido. O que a partir da acusação se persegue criminalmente são já factos ilícitos recortados com precisão, havendo desde aí uma vinculação temática, limitando o objecto da decisão jurisdicional e constituindo uma garantia de defesa do arguido (a partir da acusação este não pode ser surpreendido por novos factos ou novas perspectivas dos mesmos factos, para os quais não estruturou a defesa). Por isso, a acusação deve conter, sob pena de nulidade, a narração dos factos e a indicação das normas legais – art. 283º, 3, b) e c) do CPP – e qualquer alteração substancial desses factos não pode (salvo acordo do arguido) ser atendida na condenação (art. 359º do CPP). Com a dedução da acusação o objecto do processo fica delimitado, vinculando o Tribunal a julgar apenas aqueles factos e a proferir decisão sobre a verificação (ou não) daqueles crimes.
Nos termos do artigo 359.º, 1 do C.P.P. os novos factos não podem ser atendidos para “o efeito de condenação” e, por isso, para que os novos factos ou o novo crime sejam atendidos, é necessário que seja deduzida uma nova acusação. Daí que o efeito interruptivo da notificação da acusação e o efeito suspensivo da pendência do processo se reportem apenas ao procedimento criminal relativo aos concretos crimes constantes da (nova) acusação. Não faria sentido a notificação da anterior acusação não valer “para o efeito de condenação” pelos novos factos (porque não lhes fez adequada referência) e, no entanto, valer para efeitos de interrupção e suspensão da prescrição do procedimento criminal respeitante aos factos ou ao crime que não incluiu.
Assim, a questão de saber se a alteração substancial dos factos descritos na acusação (art. 359º, 1 do CPP) inutiliza todos os factos suspensivos e interruptivos até então ocorridos, não tem uma resposta única:
i) O efeito interruptivo da constituição de arguido mantém-se;
ii) O efeito interruptivo da notificação da acusação (art. 121º do CP) e o efeito suspensivo da pendência do processo, até um máximo de três anos (art. 120º, 1, al. b) 2), apenas produzem efeitos relativamente aos (novos) factos e crimes constantes da (nova) acusação, deduzida depois de verificada a alteração substancial dos factos.
Deste modo, a decisão recorrida está correcta quando não reconhece à anterior acusação dos arguidos qualquer efeito suspensivo ou interruptivo da prescrição.
Porém, se é verdade que a anterior acusação não tem qualquer valor no “novo” processo onde vieram a ser “denunciados” factos novos, o mesmo não acontece com a constituição de arguido e o seu efeito interruptivo...”.
Aplicando tal jurisprudência ao presente caso forçoso será concluir da sem razão da recorrente relativamente aos efeitos a extrair da notificação da primitiva acusação (sendo manifesto que os factos são diversos e por isso mesmo se procedeu à alteração substancial dos ditos) mas, também, da sua inteira razão no tocante aos efeitos interruptivos da prescrição a retirar da constituição de arguido, ocorrida a 3-7-2006, no primitivo processo.
Daí que se subscrevam as conclusões retiradas pelo Exº PGA no seu parecer no sentido de que pelo menos até Agosto de 2012, face aos elementos que por ora nos fornecem os autos, o procedimento não se encontra prescrito, ou seja, “… o crime em apreço, Abuso Sexual de Crianças, independentemente do regime penal aplicável - artigo 172.º, n.º 1, na versão de 1995 do Código Penal e artigo 171.º, n.º 1 do Código Penal vigente - é punido com pena de prisão de um a oito anos.
O prazo de prescrição do procedimento criminal é de dez anos (alínea b) do artigo 118.º do C. Penal).
Estamos perante um crime continuado, e, como tal a prescrição do procedimento criminal só corre desde a data da prática do último acto (art.º 119.º n.º 2, al. b) do C.Penal) – No caso, em Agosto de 1997 ou em Agosto de 1998.
No âmbito do processo n.º 25/03.4TACBC, Joaquim A... foi constituído arguido em 03.07.2006 (Cfr. fls. 228 e segts.)
A constituição de arguido interrompeu a prescrição do procedimento criminal, inutilizando todo o tempo até então decorrido e começando a correr novo prazo a partir daí (art.º 121º, n.º 1, a) e n.º 2 do C. Penal).
Porém, a prescrição do procedimento criminal não poderá remontar até 03.07.2016, pois que a prescrição tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade (art.º 121.º, n.º 3 do C. Penal).
Não havendo causa de suspensão, a prescrição, mesmo considerando que a data da prática do último acto se situou em Agosto de 1997, apenas ocorrerá em Agosto de 2012 (1997+15anos), mantendo-se, por isso, ainda válido o procedimento criminal…”.
Face ao exposto, não se encontrando prescrito o procedimento criminal, impõe-se revogar o despacho recorrido e determinar que seja proferido competente despacho de pronúncia ou de não pronúncia.
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III- Decisão
Termos em que se concede provimento ao recurso, revogando-se o despacho que declarou extinto por prescrição o procedimento criminal, baixando os autos à 1ª. instância para que seja proferido competente despacho de pronúncia ou não pronúncia.
Sem custas.