FRAUDE FISCAL
PUNIÇÃO
LIMITE QUANTITATIVO
Sumário

O estatuído no nº 2 do artº 103º do RGIT, não é aplicável aos crimes de fraude qualificada, previstos pelo artº 104º, do mesmo diploma legal.

Texto Integral

Acordam os juízes, em conferência, na Secção Penal da Relação de Guimarães

I – RELATÓRIO

O MINISTÉRIO PÚBLICO veio interpor recurso da decisão instrutória da Mmª Juiz de Instrução Criminal, na parte em que não pronunciou o arguido ANTÓNIO F... pelos factos concernentes à utilização de facturas falsas que determinaram valores de IVA em falta, referentes às declarações de Novembro e Dezembro de 2001, Fevereiro e Março de 2002, integrantes do crime de fraude qualificada, p. e p. pelos artºs 103º, nº1, al. c), e 104º, nº2, do RGIT.
O Ministério Público expressa as seguintes conclusões:
1. Para que o crime de fraude fiscal se considere consumado não se exige que o agente represente, com exactidão, o montante da vantagem ou benefício patrimonial indevido. Será bastante a representação genérica da consequência da diminuição da receita fiscal e do benefício indevido correspectivo que visa alcançar.
2. Este crime é classificado doutrinalmente “.....como um crime de resultado cortado ou de tendência interna transcendente, o mesmo consuma-se ainda que nenhum dano ou vantagem patrimonial indevida venha a ocorrer efectivamente, bastando-se a lei com a circunstância de as condutas ilegítimas tipificadas visem ou sejam preordenadas à obtenção de vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias. Isto é, será suficiente que a conduta seja preordenada a tal fim, sendo a eventual verificação do resultado lesivo apenas relevante em sede de aplicação concreta e medida da pena” - vide in Regime Geral das Infracções Tributárias, pág. 313, de Tolda Pinto e Reis Bravo.
3. Assim sendo, uma vez o crime de fraude fiscal se consuma ainda que nenhum dano ou vantagem patrimonial indevida venha a ocorrer efectivamente, como, aliás, resulta da redacção do preceito, “…que visem a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação …”, então o limite quantitativo estabelecido no art. 103°, nº 2 do RGIT, não é um elemento do tipo mas uma condição objectiva de punibilidade, um elemento externo ao crime que cumpre uma função de selecção das condutas penalmente puníveis.
4. E como tal a punição da fraude fiscal qualificada não depende da vantagem patrimonial ilegítima ser de valor igual ou superior ao limite quantitativo previsto no nº 2 do artº103º do RGIT.
5. Por outro, de acordo com a redacção do nº 2, artº 103º, do RGIT, desde que a vantagem patrimonial ilegítima seja inferior a 15.000€ não são puníveis os factos previstos nos números anteriores, referindo-se, naturalmente, aos factos previstos nas alíneas do nº 1.
6. Não havendo argumentos de ordem literal ou interpretativa que permitam concluir que tal limite deve abranger, também, os factos previstos nos artigos seguintes.
7. Tal como foi o entendimento desse Venerando Tribunal no Processo nº 352/02.8IDBRG.G1, de 18/05/2009, in www.dgsi.pt: “ O limite de € 15.000,00 do art. 103 nº 3 do RGIT, abaixo do qual os factos que integram o crime de fraude fiscal não são puníveis, não é aplicável à fraude fiscal qualificada, prevista no art. 104 do mesmo RGIT, nomeadamente quando o agente utiliza facturas ou documentos equivalentes na execução do crime”.
8. “Uma coisa é a fraude consistir unicamente na comunicação da existência de um negócio simulado. Outra, bem mais grave, é forjar documentos para convencer que o negócio efectivamente existiu, tornando mais difícil a descoberta do crime. Foi apenas o primeiro comportamento que o legislador pretendeu beneficiar com a norma do art. 103 nº 2 do RGIT”.
9. A punição da fraude fiscal qualificada – artigo 104º, nº 2 do RGIT, não depende, como na fraude fiscal simples, da verificação de vantagem patrimonial ilegítima de valor igual ou superior ao limite quantitativo previsto no nº 2 do artigo 103º do RGIT.
O arguido defendeu a confirmação do despacho de não pronúncia.
Nesta instância, a Srª. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de que ao recurso deve ser concedido provimento.

II - FUNDAMENTOS
1. O OBJECTO DO RECURSO.
A questão suscitada: a aplicabilidade do estatuído no nº2 do artº 103º aos crimes de fraude qualificada, previstos pelo artº 104º, ambos do RGIT.

2. O DESPACHO RECORRIDO.
Apresenta o seguinte conteúdo (no que ora releva) Tendo em conta o restrito objecto do presente recurso, versando exclusivamente a questão de direito enunciada em II.1.:
Visto isto, cumpre aferir se os factos indiciados nos autos integram, em abstracto, a prática, pelo arguido, dos crimes de fraude qualificada de que vem acusado.
Resulta da matéria indiciada que a sociedade “C... & F..., Lda.”, com o n.º de identificação fiscal 502690..., com sede na Avenida das F..., 4820-119, Fafe, anteriormente designada “T..., Lda.” encontra-se colectada no serviço de Finanças de Fafe, pela actividade de “Comércio de Pescas e Acessórios para veículos automóveis”, CAE 050300, sendo, por isso, sujeito passivo de IRC no regime geral e para efeitos de IVA, no regime normal mensal.
O arguido ANTÓNIO F... é sócio gerente desta sociedade sendo quem, efectivamente, desde a data da sua constituição, gere e administra aquela empresa e, em nome e no interesse da mesma, decidia de facto da afectação dos meios financeiros ao cumprimento das respectivas obrigações correntes, designadamente, do pagamento dos respectivos impostos sobre os rendimentos obtidos e do valor sobre os produtos alcançado e acrescentado e, ainda, pelo preenchimento e entrega das respectivas Declarações de Rendimentos (Modelo DC - 22) no Serviço de Finanças de Fafe.
A sociedade “V... - E..., Lda.”, contribuinte n.º 504.964.... com sede em Lugar da I..., Goães, Vila Verde, encontra-se registada em IRC tendo como competente o Serviço de Finanças de Vila Verde, cujo objecto social consiste em extracção de saibros e pedra, fabrico e comércio de britas e areias - CAE 014210.
No dia 24 de Outubro de 2001 foi efectuada uma cessão de quotas pelos anteriores sócios, Álvaro F..., Vítor M... e Carlos M..., todas a favor de Ana S..., actual única sócia e gerente da empresa “V... - E..., Lda.”.
Entre Novembro de 2001 e Março de 2002, foram importadas pela Sociedade “C... & F..., Lda.”, mediante a interposição da sociedade “V... - E..., Lda.”, as seguintes viaturas:
Marca Chassis Data de aquisição Valor de aquisição Imposto Automóvel Matrícula
Audi WAUZZZ8LZYA027871 09-11-2001 12.373,26 5.538,08 05-97-SR
Mercedes WDB2030061 fOO0272 12-11-2001 25.542,01 7.646,08 63-61-ST
Audi WAUZZZ8DZXA238816 14-11-2001 12.935,68 5.538,08 63-60-ST
BMW WBAAL71000KE23149 28-11-2001 15.338,76 5.252,02 01-46-SU
Audi WAUZZZ8LZXA029718 14-12-2001 9.714,55 5.094,14 50-99-SZ
BMW WBAAL71080KE04848 04-01-2002 14.725,21 5.693,45 91-10-TH
Audi WAUZZZ8LZXA022313 09-01-2002 11.640,00 5.399,28 50-97-SZ
BMW WBAAL710XOCA41284 11-01-2002 15.186,00 5.693,45 65-21-TF
Audi WAUZZZ8DZYA055675 21-01-2002 13.549,24 6.034,49 50-98-SZ
BMW WBAAL71090KE15857 30-01-2002 14.137,93 5.094,14 67-57-TH
Audi WAUZZZ8DZXA017225 01-02-2002 10.353,66 5.399,28 39-16- TC
Audi WAUZZZ8LMA 104503 20-02-2002 12.050,00 5.094,14 12-59-TG
Não obstante a sociedade “V... - E..., Lda.” se apresentar como o importador formal das viaturas em causa, o real adquirente das mesmas foi a sociedade “C... & F..., Lda.”, anteriormente designada “T..., Lda.”.
De facto, a sociedade “V... - E..., Lda.” não dispunha de quaisquer instalações comerciais ou industriais, stand, depósito ou exposição de venda de viaturas, não sendo conhecida a exercer a actividade de comércio de automóveis no local que expressamente indicou como sendo a sede social da sua empresa.
Atento o numero de viaturas e valores movimentados melhor descritos no quadro supra referido, a sociedade “V... - E..., Lda.” não tinha capacidade económica e financeira necessária para desenvolver o exercício da actividade de comércio de automóveis, consubstanciado na grande dimensão de transmissões de veículos automóveis que supra se relacionaram e que se efectuaram sob a sua denominação social.
De forma a encobrir o verdadeiro importador/adquirente das identificadas viaturas, a sociedade “C... & F..., Lda.” utilizou e contabilizou facturas emitidas em nome da “V... - E..., Lda.”, emitidas em datas situadas entre 22 de Janeiro de 2002 e 30 de Abril de 2003, que sabia não corresponderem a reais transacções económicas entre si e a sociedade emitente das facturas, a “V... - E..., Lda.”, designadamente as seguintes:
Facturas emitidas pela “V... - E..., Lda.” à “T..., Lda”.
Matrícula Documento Data Valor
05-97-... VD16 22-01-2002 20 949,51 euros
63-61-... VD18 22-01-2002 39 902,83 euros
63-60-... VD17 22-01-2002 22 944,70 euros
01-46-... VD40 22-01-2002 25 000,00 euros
50-99-... VD41 28-01-2002 20 000,00 euros
91-10-... VD119 30-04-2002 24 000,00 euros
50-97-... VD42 28-01-2002 20 000,00 euros
65-21-... VD120 30-04-2002 25 000,00 euros
50-98-... VD43 28-01-2002 22 000,00 euros
67-57-... VD118 30-04-2002 24 000,00 euros
39-16-... VD122 30-04-2002 19 000,00 euros
12-59-... VD121 30-04-2002 20 000,00 euros
As facturas acima indicadas, não correspondem a operações reais, mas antes a operações inexistentes, correspondendo às vulgo facturas falsas e que foram utilizadas para dar aparência formal às transmissões das viaturas importadas.
Com efeito, as viaturas foram formalmente adquiridas através da utilização do número de identificação fiscal da “V... – E..., Lda.” não tendo sido aplicado no país de origem, o regime especial de tributação da margem aí vigente.
Sendo as viaturas legalizadas em Portugal em nome da “V... – E..., Lda.”
Através do que se tem vindo de referir, a empresa C... & F..., Lda., verdadeiro importador das viaturas já referenciadas, obteve para si, uma vantagem patrimonial ilegítima, de natureza fiscal, traduzida na não liquidação e consequente não entrega do IVA que seria legalmente devido.
A vantagem patrimonial ilegítima assim obtida corresponde ao IVA que deixou de ser entregue nos Cofres do Estado e corresponde aos valores mensais sintetizados no seguinte quadro:

BASE TRIBUTÁVEL
Período Aquis.Intracomunit. Imposto automóvel Taxa IVA IVA em falta
Novembro 2001 65.189 71 18 722,24 17% 14 265,03
Dezembro 2001 9 714,55 5 252,02 17% 2 544,32
Janeiro 2002 69 238,38 21 880,32 17% 15 490,18
Fevereiro 2002 22 40366 16 527,91 17% 6 618,37
Março 2002 0,00 5 094,14 17% 866,00
Total 166 546,30 67 476,63 17% 39.783,90
À data dos factos supra descritos, a sociedade “C... & F..., Lda.” tinha como sócio e gerente o arguido ANTÓNIO F....
O arguido ANTÓNIO F... agiu por si, no seu interesse próprio e no interesse da sociedade “C... & F..., Lda.”, na qualidade de seu legal representante, actuando em nome e no interesse colectivo daquela e ao não liquidar e, consequentemente, não entregar o IVA que seria legalmente devido, fê-lo com o propósito conseguido de se furtar ao pagamento integral de tais impostos o que quis e, de facto, conseguiu e com o intuito de obter para si e para a supra referenciada sociedade arguida uma vantagem patrimonial indevida, o que fez, aproveitando-se da ausência de fiscalização por parte da administração fiscal.
Ao actuar da forma descrita, o arguido quis utilizar facturas correspondentes a operações inexistentes, visando a não liquidação e consequente não entrega do IVA que seria legalmente devido a título de imposto à Fazenda Nacional pelas aquisições intracomunitárias de viaturas, pelo que, causou diminuição das receitas tributárias da Fazenda nacional, o que efectivamente quis e conseguiu.
O arguido sabia que a sua conduta era punida por Lei.
*
Antes de mais, analisemos tal factualidade à luz do direito penal fiscal vigente para apurar se assiste razão ao arguido ANTÓNIO F... quando suscita a questão da desqualificação do crime que lhe é imputado.
Sobre esta matéria, preceitua o artigo 103.º, n.º 1, do Regime Jurídico das Infracções Tributárias “1. Constituem fraude fiscal, punível com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias, as condutas ilegítimas tipificadas no presente artigo que visem a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária (...) susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias. A fraude fiscal pode ter lugar por:
a) Ocultação ou alteração de factos ou valores que devam constar dos livros de contabilidade ou escrituração, ou das declarações apresentadas ou prestadas a fim de que a administração fiscal especificamente fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria colectável;
b) Ocultação de factos ou valores não declarados e que devam ser revelados à administração tributária.
c) Celebração de negócio simulado, quer quanto ao valor, quer quanto à natureza, quer por interposição, omissão ou substituição de pessoas.”
O bem jurídico protegido neste tipo legal consiste no atentado à verdade ou transparência e na segurança e fiabilidade do tráfico jurídico com documentos do domínio fiscal, em ordem à tutela da integridade do património fiscal.
Como se refere Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 04.05.2011, in www.dgsi.pt, o crime de fraude fiscal é um crime comum, na medida em que pode ser praticado por qualquer pessoa e é um crime de perigo em que o bem jurídico protegido é a ofensa à Conta do Estado na rubrica que inclui as receitas fiscais destinadas à realização de fins públicos de natureza financeira, económica ou social.
O nosso sistema fiscal encontra-se assente no princípio da auto-responsabilização do contribuinte no cumprimento das suas obrigações fiscais, pois, é a partir da declaração prestada por este à administração fiscal que o Fisco apura a matéria colectável e, consequentemente, o montante do imposto devido.
Impõe-se, assim, ao sujeito passivo um verdadeiro dever de verdade tributária e boa fé nas declarações a apresentar, cuja ressonância ético-jurídica criminalizante, visa a realização dos princípios de igualdade e justiça tributária, consagrados constitucionalmente – artigo 106.º da Constituição da República Portuguesa.
A fraude fiscal abrange todas as condutas ilegítimas que tenham em vista a não liquidação, entrega ou pagamento do imposto ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causar a diminuição das receitas tributárias. Cfr. Sara Marques “A Fraude Fiscal e a Simulação”, Curso de pós graduação em Direito Fiscal, FDUP.
A fraude fiscal pode ter lugar por uma de três vias:
– Ocultação ou alteração de factos ou valores que devam constar dos livros de contabilidade ou escrituração, ou das declarações apresentadas ou prestadas a fim de que a administração fiscal especificamente fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria colectável;
– Ocultação de factos ou valores não declarados e que devam ser revelados á administração tributária;
– Celebração de negócio simulado, quer quanto ao valor, quer quanto à natureza, quer por interposição, omissão ou substituição de pessoas.
Em caso de simulação de negócio jurídico, a tributação recai sobre o negócio jurídico real e não sobre o negócio jurídico simulado.
A conduta típica consiste na ocultação ou alteração de factos ou valores fiscalmente relevantes ou, então, na celebração de um negócio simulado.
Compreende a ocultação o encobrimento fáctico de dados ou situações de forma a dificultar a sua comprovação por parte da administração fiscal, traduzindo-se em não revelar, não informar ou não dar a conhecer as correspondentes declarações de impostos.
A alteração ocorre quando se deturpam os referidos dados e informações, de molde a modificar a realidade tributária, infringindo o correspondente dever de probidade fiscal.
Quanto à simulação, como referem Figueiredo Dias e Costa Andrade, in O Crime de Fraude Fiscal no Novo Direito Penal Tributário Português, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, nº 6, 1996, pág. 100, “ (...) é a divergência intencional entre vontade negocial declarada e a vontade real – divergência essa proveniente de um acordo (o pactum simulatoris) feito com o intuito de enganar terceiros. Para haver simulação torna-se, portanto, necessário que as partes declarem uma coisa e queiram efectivamente outra. Ora, em geral, não é manifestamente outro o sentido e alcance das chamadas facturas falsas. Na verdade, e por acordo com os fornecedores ou com terceiros, os agentes económicos simulam a celebração de contratos que não têm qualquer correspondência na realidade. E fazem-no com o propósito de enganar e prejudicar o Estado-Fisco.”
Devem estas acções típicas ser adequadas à obtenção das pretendidas vantagens patrimoniais e à subsequente diminuição das receitas tributárias.
A vantagem patrimonial indevida ou ilegítima é o montante do imposto que o sujeito passivo pretendeu deixar de pagar ou, então, o valor com que se locupletou, por consequência da declaração defraudada ou da omissão da respectiva declaração tributária.
No que diz respeito à consumação do crime, refira-se que a regra é a de que aquela se verifica no momento da liquidação, sendo realizada pela administração financeira ou, tratando-se de autoliquidação, quando o contribuinte entrega a declaração na Repartição de Finanças, ou na data da sua omissão.
Em caso de simulação, o momento da consumação do crime é o da data da celebração do negócio simulado, pelo que o momento a partir do qual começa a contar o prazo de prescrição é o momento da acção delituosa, com vista ao não pagamento da prestação tributária.
E, tratando-se de crime continuado, para efeitos de prescrição do procedimento criminal, o momento que releva é o da prática do último acto de execução.
Quanto ao elemento subjectivo, exige-se que o agente vise obter vantagem patrimonial ilegítima, actuando com a intenção defraudatória dirigida à obtenção dessas vantagens, através da diminuição das receitas tributárias.
Não se exigindo, para que o crime de fraude fiscal se considere consumado, que o agente represente com exactidão o montante da vantagem ou benefício patrimonial indevido, bastando a representação genérica da consequência da diminuição da receita fiscal. (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 09.05.2007, in www.dgsi.pt).
Porém, atento o disposto no n.º 2 do referido artigo 103.º do Regime Geral de Infracções Tributárias, na redacção introduzida pela Lei n.º 60-A/2005, de 30 de Dezembro, para se qualificar uma conduta como fraude fiscal é necessário que a vantagem patrimonial ilegítima seja superior a 15 000,00 (quinze mil) euros. Caso esse valor seja inferior, haverá mera contra-ordenação fiscal.
E, nos termos do n.º 3 deste normativo, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.
Por sua vez, dispõe o artigo 104.º, n.º 1, do Regime Geral de Infracções Tributárias, “Os factos previstos no artigo anterior são puníveis com prisão de um a cinco anos para as pessoas singulares e multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas quando se verificar a acumulação de mais de uma das seguintes circunstâncias:
a) O agente se tiver conluiado com terceiros que estejam sujeitos a obrigações acessórias para efeitos de fiscalização tributária;
b) O agente for funcionário público e tiver abusado gravemente das suas funções;
c) O agente se tiver socorrido do auxílio do funcionário público com grave abuso das suas funções;
d) O agente falsificar ou viciar, ocultar, destruir, inutilizar ou recusar entregar, exibir ou apresentar livros, programas ou ficheiros informáticos e quaisquer outros documentos ou elementos probatórios exigidos pela lei tributária;
e) O agente usar os livros ou quaisquer outros elementos referidos no número anterior sabendo-os falsificados ou viciados por terceiro;
f) Tiver sido utilizada a interposição de pessoas singulares ou colectivas residentes fora do território português e aí submetidas a um regime fiscal claramente mais favorável;
g) O agente se tiver conluiado com terceiros com os quais esteja em situação de relações especiais.
Acrescentando o n.º 2 desta norma que “A mesma pena é aplicável quando a fraude tiver lugar mediante a utilização de facturas ou documentos equivalentes por operações inexistentes ou por valores diferentes ou ainda com a intervenção de pessoas ou entidades diversas das da operação subjacente.”
Na acusação pública imputa-se ao arguido a prática de um crime de fraude qualificada, punível pelos artigos 103.º, n.º 1, alínea c) e 104.º, n.º 2, ambos do Regime Geral de Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, na redação dada pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro e Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro.
Ora, da análise da factualidade em causa, desde logo se suscita a questão controvertida de saber se a alteração do art. 103.º, n.º 2, do Regime Geral de Infracções Tributárias, descriminalizando as condutas cuja vantagem patrimonial ilegítima seja inferior a 15 000 euros, se aplica (também) aos crimes de fraude qualificada ou apenas aos crimes de fraude simples.
Na acusação pública o Ministério Público parece sufragar a tese, também defendida no douto Acórdão da Tribunal da Relação de Guimarães de 18.5.2009, publicado em www.dgsi.pt, de que o valor da vantagem patrimonial previsto no n.º 2 do citado artigo 103.º, do Regime Geral de Infracções Tributárias, não é aplicável ao crime de fraude qualificado previsto no artigo 104.º, tendo sido essa a incriminação efectuada.
Porém e salvo melhor opinião, cremos tratar-se de uma posição isolada, quer na doutrina, quer na jurisprudência e, assim, nesta parte, cremos que assiste razão ao arguido ANTÓNIO F..., pelo que, também defendemos que o limite de 15 000 euros previsto no n.º 2 do artigo 103.º se aplica às situações tipificadas no artigo 104.º, do Regime Geral de Infracções Tributárias.
Com efeito, como vem sendo defendido na jurisprudência mais recente, designadamente no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 19.01.2011, publicado em www.dgsi.pt, que sobre esta matéria cita diversa e profícua doutrina, para tipificar o crime de fraude qualificada o corpo do n.º 1, do artigo 104.º remete para “os factos previstos no artigo anterior” e não apenas para os factos previstos no n.º 1 do artigo 103.º, do Regime Geral de Infracções Tributárias. Ora, os factos previstos no artigo 103.º não são apenas os elementos típicos previstos no seu n.º 1 mas, também, a condição objectiva de punibilidade prevista no n.º 2 do citado artigo.
Assim, facto punível criminalmente não é só a conduta ilegítima que vise a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias, mediante ocultação ou alteração de factos ou valores que devem constar dos livros de contabilidade ou de escrituração ou das declarações apresentadas ou prestadas a fim de que a administração fiscal especificamente fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria colectável ou mediante ocultação de factos ou valores não declarados e que devam ser revelados à administração tributária, mas, é também necessário que a vantagem patrimonial ilegítima seja de valor igual ou superior a 15 000 euros.
No mesmo sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 23.03.2011, também publicado in www.dgrs.pt, defende que “existem alguns aspectos literais a impor tal leitura, como seja a referência, no art. 104º, aos “factos previstos no artigo anterior”. Um dos factos previstos no artigo anterior é precisamente o previsto no n.º 2, segundo o qual não há punibilidade quando o montante da vantagem patrimonial ilegítima for “inferior a 15.000 €”. Se tivesse havido intenção de punir a fraude qualificada, independentemente do valor da vantagem ilegítima, a remissão deveria ter excluído o n.º 2.”
Acrescentando que o n.º 2 do artigo 104.º “Ao falar em fraude, está certamente a referir-se a uma fraude punível, ou seja, que tenha causado uma diminuição de receitas de valor superior a 15.000 €, já que abaixo desse valor o comportamento é punível e qualificado apenas como contra-ordenação e não como “fraude” fiscal (art. 118º do RGIT).”
Defendendo, ainda que “A técnica legislativa de agravar a moldura penal dos crimes, através de circunstâncias qualificativas, traduz sempre uma remissão para o crime simples (género), destacando um especial modo de realização (espécie). O crime qualificado é assim, por definição, aquele que contém todos os elementos do crime simples, com a particularidade de ser cometido em determinadas circunstâncias.”
Por último, como ali se defende, “A existência de um determinado valor do prejuízo fiscal (vantagem patrimonial ilegítima), a demarcar o crime da contra-ordenação, significa que o legislador entende que os prejuízos mais pequenos não devem ser criminalizados, qualquer que seja a obrigação acessória que tenha sido frustrada e qualquer que seja o meio utilizado para tal. Atenta a finalidade da punição (visando sempre o cumprimento de obrigações pecuniárias), não faria sentido que o prejuízo fiscal fosse irrelevante para criminalizar a conduta, mas já fosse bastante para recortar o tipo de crime qualificado pelo meio utilizado. Se fosse essa a intenção do legislador, teria criminalizado com total autonomia a conduta em causa, o que não fez neste caso. Ou seja, as razões que levaram o legislador a estabelecer, no n.º 2 do art. 103º, um limiar da punibilidade como crime, tanto se verificam quando o crime seja cometido através da utilização de facturas falsas, como quando seja cometido através da celebração de um negócio jurídico simulado, pois está sempre em causa evitar comportamentos que visem obter vantagens patrimoniais fiscalmente ilícitas.”
Aplicando agora tais ensinamentos ao caso em apreço, nos autos mostra-se indiciado que a Sociedade “C... & F..., Lda.”, no exercício da sua actividade, entre Novembro de 2001 e Março de 2002, importou diversas viaturas automóveis, mediante a interposição da sociedade “V... - E..., Lda.”, porém, não obstante esta sociedade se apresentar como o importador formal das viaturas em causa, o real adquirente das mesmas foi a sociedade “C... & F..., Lda.”, anteriormente designada “T..., Lda.”.
De forma a encobrir o verdadeiro importador/adquirente das identificadas viaturas, a sociedade “C... & F..., Lda.” utilizou e contabilizou facturas emitidas em nome da “V... - E..., Lda.”, emitidas em datas situadas entre 22 de Janeiro de 2002 e 30 de Abril de 2002, que sabia não corresponderem a reais transacções económicas entre si e a sociedade emitente das facturas, a “V... - E..., Lda.”
Ou seja, tais facturas não correspondem a operações reais, mas antes a operações inexistentes, correspondendo às vulgo facturas falsas e que foram utilizadas para dar aparência formal às transmissões das viaturas importadas. Com efeito, as viaturas foram formalmente adquiridas através da utilização do número de identificação fiscal da “V... – E..., Lda.” não tendo sido aplicado no país de origem, o regime especial de tributação da margem aí vigente. Sendo as viaturas legalizadas em Portugal em nome da “V... – E..., Lda.”
Com tal expediente, a empresa “C... & F..., Lda.”, verdadeiro importador das viaturas já referenciadas, obteve para si, uma vantagem patrimonial ilegítima, de natureza fiscal, traduzida na não liquidação e consequente não entrega do IVA que seria legalmente devido.
A vantagem patrimonial ilegítima assim obtida corresponde ao IVA que deixou de ser entregue nos Cofres do Estado e corresponde aos seguintes valores mensais: em Novembro de 2001 o valor de 14 265,03 euros de IVA em falta, em Dezembro de 2001 o valor de 2 544,32 euros de IVA em falta, em Janeiro de 2002 o valor de 15 490,18 euros de IVA em falta, em Fevereiro de 2002 o valor de 6 618,37 euros de IVA em falta e em Março de 2002 o valor de 866,00 euros de IVA em falta.
À data dos factos supra descritos, a sociedade “C... & F..., Lda.” tinha como sócio e gerente o arguido ANTÓNIO F....
O arguido ANTÓNIO F... agiu por si, no seu interesse próprio e no interesse da sociedade “C... & F..., Lda.”, na qualidade de seu legal representante, actuando em nome e no interesse colectivo daquela e ao não liquidar e, consequentemente, não entregar o IVA que seria legalmente devido, fê-lo com o propósito conseguido de se furtar ao pagamento integral de tais impostos o que quis e, de facto, conseguiu e com o intuito de obter para si e para a supra referenciada sociedade arguida uma vantagem patrimonial indevida, o que fez, aproveitando-se da ausência de fiscalização por parte da administração fiscal.
Ao actuar da forma descrita, o arguido quis utilizar facturas correspondentes a operações inexistentes, visando a não liquidação e consequente não entrega do IVA que seria legalmente devido a título de imposto à Fazenda Nacional pelas aquisições intracomunitárias de viaturas, pelo que, causou diminuição das receitas tributárias da Fazenda nacional, o que efectivamente quis e conseguiu.
O arguido sabia que a sua conduta era punida por Lei.
Ora, da factualidade indiciada resulta que o valor do IVA em falta referente à declaração mensal apresentada no mês de Janeiro de 2002 pela sociedade “C... & F..., Lda.” foi superior a 15 000 euros, pois que, ascendeu ao montante de 15 490,18 euros, conforme resulta da liquidação efectuada.
Todavia, quanto aos valores referentes a cada uma das Declarações mensais apresentadas nos meses de Novembro e Dezembro de 2001 e nos meses de Fevereiro e Março de 2002, o valor de IVA em falta foi sempre inferior a 15 000 euros, pois que, em cada um desses meses os valores em causa foram, respectivamente, em Novembro de 2001, no montante de 14 265,03 euros, em Dezembro de 2001, no montante de 2 544,32 euros, em Fevereiro de 2002, no montante de 6 618,37 euros e em Março de 2002, no montante de
866,00 euros.
Assim, no que toca à conduta do arguido haverá que atender ao limite previsto no n.º 2, do artigo 103.º, do Regime Jurídico das Infracções Tributárias, na redacção introduzida pela Lei n.º 60-A/2005, de 30 de Dezembro, que refere que “os factos não são puníveis se a vantagem patrimonial ilegítima for inferior a 15 000 euros” para se apurar se a sua conduta está ou não tipificadas como crime de fraude fiscal.
Do acima exposto resulta que apenas é punível criminalmente a conduta do arguido na parte relativa à utilização das facturas falsas que determinaram que o valor do IVA em falta referente à declaração mensal apresentada no mês de Janeiro de 2002 pela sociedade “C... & F..., Lda.” ascendesse ao valor de 15 490,18 euros, assim, apenas por tal factualidade será pronunciado o arguido ANTÓNIO F....
Quanto à emissão e utilização das restantes facturas que determinaram valores de IVA em falta, referentes a cada uma das Declarações mensais apresentadas nos meses de Novembro e Dezembro de 2001 e Fevereiro e Março do ano de 2002 pela sociedade arguida C... & F..., Lda.”, por serem todos inferiores ao montante de 15 000 euros, não são penalmente punidos tais factos e, por isso, no que respeita a tal factualidade, o arguido ANTÓNIO F... não será pronunciado.

3. APRECIAÇÃO DO MÉRITO.
No que ora interessa, o Tribunal a quo considerou suficientemente indiciado que o arguido utilizou facturas por operações inexistentes para não declarar e entregar montantes de IVA, que, nos meses de Novembro e Dezembro de 2001, Fevereiro e Março de 2002, se cifraram em montantes inferiores a €15.000.
Semelhante factualidade, assim sinteticamente narrada, é susceptível de integrar o cometimento de um crime de fraude fiscal “qualificada”, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artºs 103º, nº1, al. c), e 104º, nº2, do RGIT.
A – única - questão controvertida é a de saber se o limite mínimo de €15.000, previsto no nº2 do artº 103º do RGIT, é também aplicável à fraude qualificada.
Ciente embora de que será uma posição “isolada” Assim a qualifica e fundamenta a Mmª JIC; o arguido menciona, igualmente, na resposta ao recurso, opiniões doutrinárias e jurisprudenciais contrárias., é precisamente a tese já sustentada por esta Relação que nos parece, sem sombra de dúvida, acertada Recentemente, também já obteve eco no ac. da RC de 07/03/2012, relatado pela Desembargadora Maria José Nogueira no proc. 720/08.1TACBR.C1, www.dgsi.pt..
A técnica legislativa é bem clara. Os recorrentes não praticaram apenas factos previstos em “números anteriores” do art. 103 nº 2. Praticaram esses e mais outros, que qualificam o crime (utilizaram facturas falsas – art. 104 nº 2). Os factos não puníveis são apenas os previstos nos “números anteriores”, não existindo nenhuma razão, literal ou outra, para suspeitar que o legislador quis também abranger os factos previstos nos «artigos seguintes».
São realidades de gravidades distintas. Uma coisa é a fraude consistir unicamente na comunicação da existência de um negócio simulado. Outra, bem mais grave, é forjar documentos para convencer que o negócio efectivamente existiu, tornando mais difícil a descoberta do crime. Foi apenas o primeiro comportamento que o legislador pretendeu beneficiar com a norma do art. 103 nº 2 do RGIT.” Ac. da RG de 18/05/2009, relatado pelo Desembargador Fernando Monterroso no proc. 352/02.8IDBRG.G1, www.dgsi.pt.
Também a nós, a letra da lei se afigura límpida: o limite estabelecido no nº2 do artº 103º do RGIT é aplicável aos “factos previstos nos números anteriores” e estes são os que integram o crime de fraude “simples”; e quanto à remissão operada no nº1 do artº 104º do mesmo diploma – “os factos previstos no artigo anterior são puníveis (…)” -, significa a evidentemente necessária referência aos elementos do respectivo tipo criminal “simples” (não há fraude “qualificada” sem a verificação da pressuposição factual do tipo-base) e nada mais, não se vendo motivo para o acolhimento também, através da dita remissão, daquela condição de punibilidade.
O texto das duas apontadas disposições legais não oferece dúvidas, pelo que se não vislumbra razão para proceder a uma sua interpretação correctiva, lançando mão de outros elementos que a respectiva letra não consente.
Tanto mais que, “na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” (artº 9º, nº3, do CC).
Logo, assiste razão ao Digno Recorrente, impondo-se a pronúncia do arguido também pela factualidade concernente aos montantes do IVA em falta dos meses de Novembro/2001, Dezembro/2001, Fevereiro/2002 e Março/2002.

Em conclusão: o limite do nº 2 do artº 103º do RGIT não se aplica à fraude qualificada; e o arguido deve ser pronunciado pela totalidade dos factos da acusação considerados suficientemente indiciados, independentemente da verificação daquele limite (artº 308º, nº1, do CPP).

III - DECISÃO
1. Concede-se provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e em consequência, revoga-se a decisão instrutória na parte da não pronúncia do arguido ANTÓNIO F... e determina-se a substituição por outra que o pronuncie pela prática, igualmente, dos factos supra-apontados.
2. Sem tributação.

28 de Maio de 2012