FUNDO DE GARANTIA SALARIAL
INSOLVÊNCIA
CRÉDITO LABORAL
PRIVILÉGIO CREDITÓRIO
Sumário

I.- Se o Fundo de Garantia Salarial não paga aos trabalhadores a totalidade dos créditos, o remanescente, que permanece na titularidade deles, continua a beneficiar dos privilégios creditórios que antes beneficiava, restringindo-se o âmbito destes privilégios, no que ao Fundo respeita, à “medida dos pagamentos efectuados”, como se diz no artº. 322º., da Lei 35/2004.
II.- Uma vez que o remanescente dos créditos dos trabalhadores e o crédito do Fundo beneficiam dos mesmos privilégios creditórios então, na fase dos pagamentos, devem ser colocados no mesmo patamar, isto é, devem ambos ser pagos em primeiro lugar.
III.- Assim, se os dinheiros disponíveis não chegarem para liquidar os créditos dos trabalhadores e o do Fundo de Garantia Salarial, proceder-se-á a rateio entre aqueles e este, de acordo com o disposto no artº. 175º., do CIRE.

Texto Integral

- ACORDAM EM CONFERÊNCIA DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES –
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A) RELATÓRIO
I.- Nos autos de verificação de créditos que correm por apenso ao processo especial de insolvência de “A…, Ldª.” foram graduados em primeiro lugar os créditos dos ex-trabalhadores.
Estes requereram ao Fundo de Garantia Salarial o pagamento dos créditos salariais devidos pela Insolvente, tendo-lhes este pago as quantias constantes do mapa de fls. 45 destes autos, que representam parte do crédito que cada um dos ex-trabalhadores tinha sobre a Insolvente.
Pagos os créditos referidos, o Fundo de Garantia Salarial foi ao processo de insolvência requerer que fosse admitida a sua sub-rogação nos direitos e garantias, nomeadamente privilégios creditórios, daqueles ex-trabalhadores da Insolvente, na medida dos pagamentos que efectuou, o que lhe foi deferido.
Chegada a fase dos pagamentos procedeu-se ao rateio do saldo disponível na conta da Massa Insolvente, que foi atribuído na totalidade ao Fundo de Garantia Salarial.
Reclamaram os ex-trabalhadores pretendendo que o Fundo só receba depois de eles próprios terem recebido a totalidade dos seus créditos ou, pelo menos, já que este, ao sub-rogar-se, passou a ocupar a posição que cabia a cada um deles, beneficiando dos mesmos privilégios creditórios especiais de que os seus créditos beneficiavam, que sejam considerados todos em igualdade de circunstâncias, fazendo-se rateio entre eles.
Apreciado este requerimento, foi proferida douta decisão que entendeu que ao subrogar-se, parcialmente, nos direitos de crédito dos trabalhadores o Fundo ocupa a posição jurídica destes, e, considerando o pagamento que lhes efectuou como um adiantamento do pagamento dos seus créditos laborais, entendeu que o Fundo devia ser pago em primeiro lugar.
Inconformados com esta decisão, trazem os referidos ex-trabalhadores A… e Outros o presente recurso, pretendendo vê-la revogada e substituída por outra que mande proceder ao pagamento da totalidade dos seus créditos em primeiro lugar e da quantia remanescente, se a houver, se dê pagamento ao crédito do Fundo de Garantia Salarial.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre decidir.
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II.- Os Apelantes fundamentam o recurso nas seguintes conclusões:
1.- Vem o presente recurso de Apelação interposto do, aliás, douto despacho que fixou o mapa de rateio, em que a Meritíssima Juiz a quo ordenou que o produto da liquidação do activo seja distribuído em primeiro lugar pelo Fundo de Garantia Salarial, e apenas a quantia remanescente é que é distribuída, rateadamente, pelos trabalhadores/credores.
2.- Entendem os ora reclamantes que o mapa de rateio assim ordenado não obedece à própria sentença de verificação e graduação de créditos, nem tão-pouco às normas legais vigentes.
3.- Com efeito, na sentença de verificação e graduação de créditos foram graduados os créditos da seguinte forma: em primeiro lugar os créditos dos trabalhadores; e depois os restantes créditos.
4.- Resulta, assim, em cumprimento da sentença de graduação de créditos que os trabalhadores/credores devem, com preferência sobre o Fundo de Garantia Salarial, receber o valor que resulta da diferença entre o valor dos seus créditos reconhecidos por sentença, e o valor liquidado pelo Fundo de Garantia Salarial (FGS).
5.- Com efeito, resulta claramente do Dec. Lei n. 219/99, de 15/06 - aplicável ao caso dos autos - que, no caso de insolvência da entidade empregadora, o FGS suporta o pagamento dos créditos do trabalhador, ficando aquele sub-rogado nos direitos de crédito e garantias deste, na medida dos pagamentos efectuados.
6.- Por sua vez, nos termos do art. 593º, n° 2 do Código Civil, o legislador expressamente refere que “no caso de satisfação parcial, a sub-rogação não prejudica os direitos do credor ou do seu cessionário, quando outra coisa não for estipulada”.
7.- A regulamentação desta matéria, constante da Lei 35/2004, dispõe de igual modo.
8.- Ou seja, o legislador continua a manter a preferência do credor primitivo quanto ao pagamento do resto da dívida, tal como consta naquele Dec. Lei n. 219/99, de 15/6, que previa que os créditos do FGS decorrentes da sub-rogação seriam graduados após os créditos dos trabalhadores.
9.- Ao não entender assim, estar-se-ia a aplicar um regime mais desfavorável ao trabalhador sub-rogado do que é estipulado para qualquer credor comum, o que não é de todo admissível.
10.- Assim, nos presentes autos, não obstante o FGS ter assegurado o pagamento parcial dos créditos dos trabalhadores; certo é que os créditos reclamados são superiores aos pagamentos efectuados, devendo os créditos laborais remanescentes manter a prioridade que lhes foi reconhecida pela sentença de verificação e graduação de créditos.
11.- Devem, pois, os créditos do FGS serem satisfeitos após o pagamento dos créditos ainda em dívida dos trabalhadores.
12.- O despacho recorrido viola as disposições legais constantes dos artigos 333º e 326º do Código do Trabalho, e os artigos 319º da Lei 35/2004.
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Como resulta do disposto nos artº.s 684º., nº. 3; 685º.-A, nº.s 1 e 3, e 685º.-C, nº. 2, alínea b), todos do C.P.Civil, sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.
O thema decidenduum é, pois, o de saber se o Fundo de Garantia Salarial, sub-rogado nos direitos dos ex-trabalhadores, deve ser pago com preferência em relação a estes.
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B) FUNDAMENTAÇÃO
III.- A situação sub judicio tem a configuração acima descrita em I.
Nos termos do artº. 336º., do Cód. do Trabalho (na versão da Lei 7/2009), “o pagamento de créditos de trabalhador emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação, que não possam ser pagos pelo empregador por motivo de insolvência ou de situação económica difícil, é assegurado pelo Fundo de Garantia Salarial, nos termos previstos em legislação específica”.
O artº. 380º., do mesmo Código, na versão anterior dispunha que “A garantia do pagamento dos créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, pertencentes ao trabalhador que não possam ser pagos pelo empregador por motivo de insolvência ou de situação económica difícil é assumida e suportada pelo Fundo de Garantia Salarial nos termos previstos em legislação especial”.
A regulamentação prevista foi feita pelos artº.s 317º. a 323º., da Lei 35/2004, de 29 de Julho, que ainda se mantém em vigor (cfr. alínea o) do nº. 6, do artº. 12º., da Lei 7/2009).
Assim, nos casos de declaração de insolvência o Fundo de Garantia Salarial assegura o pagamento dos créditos do trabalhador.
Mas não na totalidade – apenas os que se tenham vencido nos seis meses que antecedem a data da propositura da acção (cfr. nº. 1 do artº. 319º.).
O artº. 322º., consagra o direito de sub-rogação do Fundo de Garantia Salarial nos direitos de crédito e respectivas garantias, nomeadamente privilégios creditórios, dos trabalhadores, na medida dos pagamentos efectuados acrescidos dos juros de mora vincendos.
Os créditos do trabalhador têm privilégio mobiliário geral e privilégio imobiliário especial sobre o bem imóvel do empregador no qual o trabalhador presta a sua actividade – cfr. artº. 333º.,do Cód. Trab., versão de 2009.
A sub-rogação é uma forma de transmissão de créditos, definindo-se, segundo o ensinamento de ANTUNES VARELA, como “a substituição do credor, na titularidade do direito a uma prestação fungível, pelo terceiro que cumpre em lugar do devedor ou que faculta a este os meios necessários ao cumprimento” (in “Das Obrigações em Geral”, vol. II, 4ª. edição, pág. 324).
O sub-rogado adquire, na medida da satisfação dada ao direito do credor, os poderes que a este competiam – nº. 1 do artº. 593º., do Cód. Civil.
Assim, não tendo o Fundo de Garantia Salarial pago a totalidade dos créditos dos trabalhadores a parte remanescente continua na esfera jurídica destes, com o mesmo âmbito e beneficiando dos mesmos privilégios creditórios.
As divergências que se têm verificado são de interpretação dos nº.s 2 e 3 daquele artº. 593º., entendendo uns que não prejudicando a sub-rogação os direitos do credor, no caso de satisfação parcial do crédito, o remanescente deve ser pago em primeiro lugar, de acordo com o que dispõe o referido nº. 2 – cfr., v.g. Ac. da Rel. do Porto de 14/07/2010 (in www.dgsi.pt, nº. convencional JTRP000, Des. Maria de Deus Correia); outros, entendendo que tendo o legislador consagrado um sistema jurídico em que o Fundo entra no lugar do trabalhador, sendo transferidos para aquele todos os direitos que este tinha, na medida em que os tenha satisfeito, deve o Fundo ser pago em primeiro lugar - cfr., v. g. Ac. da Rel. do Porto de 17/02/2009 (in www.dgsi.pt, nº. convencional JTRP00042246, Des. Cândido Lemos); e uma terceira posição que, digamo-lo desde já, parece-nos dever ser seguida, que defende uma posição paritária dos créditos do Fundo e do remanescente dos créditos dos trabalhadores não pago por aquele – cfr., v. g., Ac. do S.T.J. de 20/10/2011 (in www.dgsi.pt, Procº. 703/07.9TYVNGP1.S1, Consº. Silva Gonçalves), Ac. desta Rel. de Guimarães de 27/02/2012 (in www.dgsi.pt, Procº. 1264/05.9TBFLG-AG.G1, Des. Rosa Tching); e Ac. da Rel. de Coimbra de 22/03/2011 (in www.dgsi.pt, Procº. 480/08.6TBCTB-E.C1, Des. Falcão de Magalhães).
Refere-se no penúltimo e antepenúltimo dos acórdãos acima referidos, que “o crédito (parcial) dos trabalhadores e o crédito advindo ao FGS (sub-rogado), apesar da sua fragmentação continuam a manter a sua natural interligação, isto é, completam-se mutuamente; e esta sua unitária configuração há-de ser sempre tomada em consideração em todos os momentos jurídico-processuais em que esta especificada circunstância venha a ter relevância jurídico-positiva”. Esta complementaridade entre ambos os créditos faz com que não possa ser exercido o crédito do trabalhador contra o crédito do Fundo, mas também que o crédito deste não possa assumir a preferência sobre o daquele na concretização do seu pagamento.
Com efeito, se o Fundo de Garantia Salarial não paga aos trabalhadores a totalidade dos créditos, o remanescente, que permanece na titularidade deles, continua a beneficiar dos privilégios creditórios que antes beneficiava, restringindo-se o âmbito destes privilégios, no que ao Fundo respeita, à “medida dos pagamentos efectuados”, como se diz no artº. 322º., da Lei 35/2004.
E uma vez que o remanescente dos créditos dos trabalhadores e o crédito do Fundo beneficiam dos mesmos privilégios creditórios então, na fase dos pagamentos, devem ser colocados no mesmo patamar, isto é, devem ambos ser pagos em primeiro lugar.
Se os dinheiros disponíveis não chegarem para liquidar os créditos dos trabalhadores e o do Fundo de Garantia Salarial, proceder-se-á a rateio entre aqueles e este, de acordo com o disposto no artº. 175º., do CIRE.
Assim, na situação sub judicio a quantia disponível - € 91.220,24 – deve ser rateada entre os Apelantes e o Fundo de Garantia Salarial, dividindo-se entre todos na proporção do respectivo crédito.
Não colhe, pois, in totum a pretensão dos Apelantes ainda que se lhes reconheça o direito ao recebimento da parte que lhes venha a caber em resultado da operação de divisão acima referida.
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C) DECISÃO
Considerando tudo quanto vem de expor-se, acordam os Juízes desta Relação em conceder parcial provimento ao presente recurso de apelação e, revogando-se, embora, a douta decisão impugnada, determina-se que se proceda ao rateio, da quantia disponível, entre os Apelantes e o Fundo de Garantia Salarial, recebendo cada um na proporção do seu crédito.
Custas pelos Apelantes, na proporção de uma terça parte do que for devido.
Guimarães, 29/Maio/2012
Fernando F. Freitas – relator
Purificação Carvalho – Adjunta
Eduardo José Oliveira Azevedo – Adjunto