CONDUÇÃO SEM HABILITAÇÃO LEGAL
ERRO SOBRE AS CIRCUNSTÂNCIAS DE FACTO
ERRO SOBRE A ILICITUDE
Sumário

I) É do conhecimento geral que todos os veículos a motor para circularem na via pública necessitam que quem os conduz tenha carta ou licença de condução.
II) In casu, é de manter a absolvição do arguido, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal uma vez que, apesar de se ter dado como provado que o recorrente conduzia um motocultivador sem matrícula e sem estar habilitado para tal, fê-lo convencido de que não precisava da respetiva licença de condução.
III) Todavia, e ao contrário do decidido na 1ª instância, não estamos perante um erro sobre as circunstâncias de facto, nos termos do artº 16º do C. Penal, mas antes diante de uma situação prevenida nos termos do artº 17º, do referido CP.

Texto Integral

Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Guimarães:

No 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Viana do Castelo, nos autos supra referidos, foi proferida decisão que absolveu o arguido Joaquim C..., da imputação de um crime da prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3º, nº 1 do DL 02/98, de 03/01, por referência aos arts. 121º, n.º 1, 122º, n.º 2, al. b) e 124º do C. Estrada.
Inconformado com tal absolvição, o Ministério Público recorreu para esta Relação, formulando as seguintes conclusões (transcrição):
1. O desconhecimento da necessidade de licença ou carta de condução para conduzir o motocultivador na via pública não constitui um erro sobre o tipo, do art. 16º do C. Penal.
2. Quando muito pode ser um erro sobre a consciência da ilicitude, nos termos do art. 17º do C. Penal.
3. É censurável o desconhecimento da necessidade de licença de condução, pois resulta do conhecimento geral que qualquer veículo a motor para ser conduzido na via pública necessita de licença ou carta de condução, estando-se perante um arguido de 38 anos, pelo que nem beneficia de uma avançada idade que permitisse atenuar a sua conduta nem qualquer outra situação de debilidade foi alegada.
4. Seria diferente se fosse preciso carta e o arguido pensasse que bastava a licença.
5. A douta sentença recorrida, ao absolver o arguido por aplicação do art. 16º do C. Penal, violou os arts. 16º e 17º do C. Penal e os arts 121º, nº 1, 122º, n.º 2, al. b) e 124º do C. Estrada.

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O Exmo Procurador–Geral Adjunto nesta Relação emitiu parecer, no qual entende que o recurso deve proceder.
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Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

Da audição da gravação da sentença oral resulta ser a seguinte a matéria de facto fixada e por todos aceite:
Provado que
- O arguido no dia 11-11-11 pelas 15 horas na rua Adega da Cooperativa em Mujães, Viana do Castelo, conduzia o veículo agrícola, uma moto cultivadora sem matrícula e sem ser portador de habilitação legal para tal.
- O arguido foi interveniente num acidente de viação do qual só resultaram danos materiais.
- Estava convencido de que para conduzir esta moto cultivadora não precisava de licença de condução.
- Não tem antecedentes criminais, é casado, tem um filho menor a seu cargo, está desempregado há cerca de 2 meses e tem o 6º ano de escolaridade.
- Mora em casa pertença dos pais e atualmente dedica-se a ajudar aqueles na agricultura e desta forma se vai sustentando.
- Não resultou provado que o arguido tenha agido livre deliberada e conscientemente, sabendo que não era portador de carta ou licença de condução ou outro titulo que o habilitasse a conduzir veículos com motor, não se inibindo de conduzir nas circunstâncias descritas e que soubesse ser a sua conduta proibida e punida por lei.

Mais resulta da mesma audição que a decisão (e a absolvição) se fundou, além do teor da prova documental, nas afirmações do arguido e nas declarações do agente que confirmou que o arguido disse logo que não tinha carta e mostrou surpresa pela mesma ser necessária para depois se decidir singelamente que ,… o artigo 16 nº 1 do CP configura um erro sobre as circunstâncias e os elementos de facto integradores deste tipo de crime e em rigor, falta de consciência da sua ilicitude o que exclui o dolo e portanto o tribunal de harmonia com esta disposição legal decide absorver o arguido.

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A Exmª recorrente recorre apenas de direito, suscitando, nas suas próprias palavras, a seguinte questão:
A falta de conhecimento pelo arguido da necessidade de carta de condução ou de qualquer outro título para conduzir um moto cultivador na via pública, constitui um erro sobre as circunstâncias do facto, nos termos do art. 16º do C. Penal, e, portanto, exclui o dolo, tal como decidiu a douta sentença recorrida; ou, pelo contrário, constitui um erro sobre a ilicitude, nos termos do art. 17º do C. Penal, tendo que se averiguar se lhe é ou não censurável.
Se não for censurável não é punido, a não ser que o tipo preveja a punição por negligência; se for censurável o agente é punido com a pena aplicável ao crime doloso, que pode ser especialmente atenuada, sendo esta última a posição propugnada pelo Ministério Público em 1ª instância...
A única questão a decidir é, no fundo, e não estando em causa a matéria de facto, a de se saber se, face ao direito vigente, a conduta do arguido é ou não passível de censura penal.
E, adiantando desde já, há que dar razão à Exmª recorrente.
Como acabado de relatar, o tribunal a quo de forma ultra sintética (o que a forma sumária e a oralidade da decisão permite e até aconselha) subsumiu a conduta do arguido ao erro sobre a proibição cujo conhecimento era razoavelmente indispensável para o agente tomar consciência da ilicitude.
O Ministério Público , por seu turno, alega que a situação de facto (tal como foi fixada na decisão recorrida) se enquadra no art. 17º do CPenal, o qual regula o erro sobre a consciência da ilicitude.
Premente se torna assim delimitar o campo de aplicação dos artigos 16º, nº1 e 17º, nº2 do CPenal, já que ambos se referem ao erro sobre a falta de consciência da ilicitude.
No direito penal português actual existem duas espécies de erro jurídico-penalmente relevante, com duas formas de relevância e diferentes efeitos sobre a responsabilidade do agente: uma exclui o dolo, ficando ressalvada a negligência nos termos gerais (artigo 16.º, do Código Penal); a outra, exclui a culpa, se for não censurável, constituindo causa de exclusão da culpa, mantendo-se a punição a título de dolo se for censurável, embora com pena especialmente atenuada (artigo 17.º, do Código Penal).
Ou seja, segundo o nosso Código Penal, há três situações em que o erro pode excluir o dolo: quando verse sobre elementos de facto ou de direito, de um tipo de crime; quando verse sobre os pressupostos de uma causa de justificação ou de exclusão da culpa; ou quando verse sobre proibições cujo conhecimento seria razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência do ilícito.
Segundo Figueiredo Dias (in “Direito Penal - Parte Geral” Tomo I, pág. 503), :”o erro excluirá o dolo (a nível do tipo) sempre que determine uma falta do conhecimento necessário a uma correcta orientação da consciência ética do agente para o desvalor do ilícito; diversamente, o erro fundamentará o dolo (da culpa) sempre que, detendo embora o agente todo o conhecimento razoavelmente indispensável àquela orientação, actua todavia em estado de erro sobre o carácter ilícito do facto.
Neste último caso o erro não radica ao nível da consciência psicológica (ou consciência-intencional), mas ao nível da própria consciência ética (ou consciência dos valores), revelando a falta de sintonia com a ordem dos valores ou dos bens jurídicos que ao direito penal cumpre proteger.
Por outras palavras: no primeiro caso estamos perante uma deficiência da consciência psicológica, imputável a uma falta de informação ou de esclarecimento e que por isso, quando censurável, revela uma atitude interna de específico da culpa negligente.
Diferentemente, no segundo caso estamos perante uma deficiência da própria consciência ética do agente, que lhe não permite apreender correctamente os valores jurídico-penais e que por isso, quando censurável, revela uma atitude de contrariedade ou indiferença perante o dever-ser jurídico-penal e conforma paradigmaticamente o tipo específico da culpa dolosa.
É esta a concepção básica sobre o dolo do tipo, a consciência do ilícito e a culpa dolosa que está mesmo na base do regime constante dos artigos 16.º e 17.º”.
Há pois que compatibilizar o que dispõe o art. 16º, n.º 1 do C. Penal com o que vem estatuído no art. 17º, n.º 2 do mesmo diploma”. É que enquanto o n.º 1 do art. 16º refere que o “erro sobre (…) proibições cujo conhecimento seja razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência da ilicitude do facto exclui o dolo”, já o n.º 2 do art. 17º diz que se o erro sobre a ilicitude for censurável ao agente, “este será punido com a pena aplicável ao crime doloso respectivo, a qual pode ser especialmente atenuada”. E, de novo na esteira de Figueiredo Dias (Pressupostos da Punição, pág. 73): “No primeiro deles estamos ainda – tal como no caso de erro sobre elementos do tipo – perante uma falta de conhecimento que deve ser imputada a uma falta de informação ou de esclarecimento e que por isso, quando censurável, conforma o específico tipo de censura da negligência. Pelo contrário, no segundo caso, estamos perante uma deficiência da própria consciência ético-jurídica do agente, que não permite apreender correctamente os valores jurídico-penais, e que por isso, quando censurável, conforma específico tipo de censura do dolo”
Entendemos que o âmbito de aplicação do artigo 16º, 1 do C.Penal se refere a proibições equiparadas a elementos do tipo.
De facto, a lei refere-se a “proibições cujo conhecimento seja razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência da ilicitude…”. Como refere TAIPA DE CARVALHO, Direito Penal, Parte Geral, II, pág. 330, “Das duas, uma: ou a conduta em causa é suficientemente grave, de modo que, para a consciência da sua ilicitude, é irrelevante o conhecimento da proibição legal, ou não é, e então o conhecimento da proibição legal é relevante para que o agente tome consciência da ilicitude do facto que pratica.”. em linguagem mais simples , existem proibições que todos devem conhecer: não matarás, não roubarás, não ferirás, enfim, a generalidade das infracções. O conhecimento destas proibições configura a “consciência da ilicitude”, cujo erro vem regulado no art. 17º do C. Penal. E existem, a seu lado, outras proibições, cujo conhecimento é razoavelmente indispensável para haver consciência da ilicitude e que exigem, como refere Figueiredo Dias, uma especial falta de informação ou esclarecimento, sem o qual a consciência jurídica comum não as terá como proibições penais. Daí a sua equiparação ao regime dos demais elementos do tipo, relativamente aos quais o erro, ainda que censurável, afasta o dolo.
O conhecimento destas proibições configura a “consciência da ilicitude”, cujo erro vem regulado no art. 16º, 1 do C. Penal.
O erro previsto no art. 16º, 1 e no art. 17º do C. Penal releva assim de modo completamente diferente,
- nos casos previstos no art. 16º, 1 (erro sobre a proibição cujo conhecimento for razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência da ilicitude), o erro afasta o dolo, mesmo que censurável;
(ii) - nos casos previstos no art. 17º, o erro não censurável afasta a culpa, tendo o efeito de uma causa de exclusão da culpa (TAIPA DE CARVALHO, ob. cit. pág. 329); se o erro for censurável, há culpa (culpa dolosa) e o agente é punido com a pena aplicável ao crime doloso (TAIPA DE CARVALHO, ob. cit. pág. 329).
Subsumindo agora o caso sub judice ao que temos vindo a discorrer, e sendo de conhecimento geral que todos os veículos a motor para circularem na via pública necessitam que quem os conduz tenha carta ou licença de condução, forçoso é concluir que ao contrário do decidido, não estamos perante um erro sobre as circunstâncias do facto, nos termos do art. 16º do C. Penal, e, portanto, não há exclusão de dolo mas, pelo contrário, o arguido na sua actuação agiu com erro sobre a ilicitude, nos termos do art. 17º do C. Penal, e dado os elementos de facto já disponíveis,(idade e habilitações literárias, nomeadamente) esse erro é-lhe é censurável.

DECISÃO:
Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se julgar o recurso procedente, e em conformidade, ordena-se a remessa dos autos à 1ª instância a fim de pelo mesmo julgador ser proferida nova decisão (após reabertura de audiência se o tiver por necessário) no pressuposto que a conduta do arguido lhe é penalmente censurável nos termos acima expostos.
Sem custas.
Guimarães, 24 de Setembro de 2012