COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
ESTRADAS
ÁGUAS
RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
Sumário

1- É dos Tribunais Administrativos e Fiscais a competência em razão da matéria para a resolução de um litígio que opõe um particular à EP – Estradas de Portugal, S.A. e à V..- Empresa de Água e Saneamento de.., EIM S.A. por causa de um acidente de viação pelo qual o autor conduziu o seu veículo sobre um buraco existente numa estrada nacional vigiada pela primeira e aberto pela segunda ou por terceiro sob adjudicação de obra.
2- Fundamental para a definição da competência em razão da matéria dos Tribunais Administrativos e Fiscais, nos termos do actual ETAF (art.ºs 1º e 4º), é que os litígios emirjam de relações jurídicas administrativas e fiscais, independentemente do estatuto de direito público ou de direito privado do agente, contanto que este prossiga finalidades de ordem pública sob um regime próprio da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público, em quadro de imputação à mesma de facto gerador de um dano, independentemente do direito substantivo aplicável.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
I.
D.., casado, residente no Bairro..– Ponte da Barca, instaurou acção declarativa, sob a forma de processo sumário, contra V..Empresa de Água e Saneamento.., EIM S.A, com sede na Rua.., Guimarães; EP – Estradas de Portugal S.A, ..,Braga, e Companhia de Seguros.., S.A., Rua .., Lisboa, alegando, aqui em sínteses, que no dia 15 de Maio de 2011, ao conduzir o seu veículo com matrícula .. na E.N. 101 em Serzedelo, Guimarães, pela meia faixa direita, destinada à sua circulação, com toda a atenção e cuidado, caiu repentinamente num buraco aberto no pavimento da via, de onde resultaram vários danos no veículo cuja reparação orça em € 4.106,86.
O buraco fora aberto na faixa de rodagem pelos serviços da R. V.. para reparar o rebentamento de uma conduta de água que subterraneamente atravessa aquela estrada, desconhecendo-se se tinha autorização da R. Estradas de Portugal, S.A. para o efeito, e o acidente ocorreu depois da reparação da conduta, mas antes de taparem o buraco, sem que deixassem qualquer tipo de sinalização ou informação sobre a sua existência. Nenhum condutor de veículos automóveis ou outros que circulasse naquela estrada, com a atenção devida, poderia aperceber-se da cratera do buraco existente no asfalto.
Demanda a R. Companhia de Seguros.., S.A. por ter informação de que a V.. celebrou com ela um contrato de seguro que, porventura, cobrirá os riscos dos trabalhos efectuados pela mesma nas vias públicas.
Propõe a acção contra a Estradas de Portugal, S.A., porque lhe cabe, por direito de exploração, a obrigação de vigilância e cuidado de manter a Estrada Nacional 101 com a possibilidade de circulação segura e cómoda dos utentes dessa mesma estrada, sem a existência de crateras e buracos imprevistos e imprevisíveis, que podem ocasionar sinistros como o dos autos ou de consequências mais gravosas, não tendo dado cumprimento a esse dever de diligência e vigilância.
Por causa dos danos, o A. teve despesas e ficou temporariamente privado do uso do veículo, o que também dá origem à obrigação de indemnizar.
Termina com o seguinte pedido:
«Nestes termos e nos melhor de direito, deve a presente acção ser julgada procedente por provada, e por via dela os R.R. condenados solidariamente, a pagar ao A. a quantia já liquidada de 4.128,86 euros, acrescida de juros legais a partir da data de citação até efectivo e real pagamento e ainda a quantia de trinta euros diários, acrescida de juros legais, tudo contado a partir da data de citação e até que os R.R. dêem ordem de reparação da viatura sinistrada, e esta seja efectivamente reparada e entregue ao A., bem como custas e todas as despesas do processo» (sic)
Citada, a R. V.. Empresa de Águas e Saneamento de.., E.I.M., S.A. ofereceu contestação, abrindo incidente de intervenção de terceiros principal provocada de C..,S.A.
Começou por invocar a excepção da incompetência do tribunal em razão da matéria alegando que, sendo a contestante uma empresa intermunicipal de capitais públicos, cujo objecto principal se relaciona com a gestão e exploração dos sistemas públicos de captação, tratamento e distribuição de água para consumo publico e de drenagem e tratamento de águas residuais na área dos municípios de.., é uma pessoa colectiva de direito público, pelo que, com base na sua alegada responsabilidade civil extracontratual, a acção deve ser tramitada na jurisdição administrativa, conforme decorre do art. 4°, n.º l, al. g), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF).
Ainda que dando a 1ª R. a execução de uma obra na rede de abastecimento de água e saneamento, de empreitada a uma empresa privada, actuou no âmbito da gestão pública da rede pública de saneamento, o que configura um acto de gestão pública de bens essenciais de natureza pública e interesse comum. Atendendo às funções da R., à sua natureza jurídica, ao carácter público da via em causa nestes autos, entre outros factores, é evidente que o facto danoso cuja prática se imputa à R. foi praticado (ainda que através de terceiros) no exercício de uma actividade de gestão pública, por delegação de poderes públicos que têm origem nas Autarquias Locais, e não como um qualquer particular.
Com efeito, entende que é competente para apreciar o litígio o tribunal Administrativo e Fiscal, onde, na sua perspectiva, a acção deve ser intentada, devendo a contestante ser absolvida da instância, ao abrigo dos art.ºs 493º, nº 2 e 494º, al. a), do Código de Processo Civil.
Para além desta excepção dilatória, invocou ainda a sua ilegitimidade, alegando, além do mais, que todos os factos passíveis de vir a permitir concluir pela efectivação de responsabilidade civil extra-contratual, apenas podem ser imputados ao empreiteiro, C.., S.A., porquanto a primeira R. não teve qualquer intervenção directa no local em causa nestes autos, sendo que qualquer defeito na execução das obras que tenha permitido a subsistência ou surgimento de um buraco na estrada, é da responsabilidade do empreiteiro. Além disso, a obra estava ainda dentro do prazo de garantia a que estava obrigado o empreiteiro pela boa execução dos trabalhos.
Perspectiva assim a sua absolvição da instância por ilegitimidade passiva, requerendo a intervenção principal do referido empreiteiro.
Passou depois a contestante a impugnar grande parte dos factos articulados pelo A., fazendo ainda notar que, pelo objecto das suas atribuições nunca será seu o dever de vigilância das vias rodoviárias, mas do Município ou da Estadas de Portugal, S.A.
Em todo o caso, ainda qua alguma responsabilidade houvesse da parte da R. contestante, sempre a sua responsabilidade civil estaria transferida para a R. Companhia de Seguros.., S.A. até ao montante de € 5.000.000,00 por força de apólice de seguro entre elas existente.
Terminou assim:
«Termos em que deve:
a) na procedência da excepção de incompetência, julgar-se o tribunal incompetente em razão da matéria para conhecer da presente acção;
b) julgar-se a primeira R. parte ilegítima na presente acção e, em consequência, absolvê-la da instância; ou quando assim não se entenda,
c) julgar-se a acção totalmente improcedente por não provada e, em consequência, a R. ser absolvida do pedido, isto com as consequências legais;
d) ser admitida a intervenção principal requerida, nos termos do art. 325° e seguintes do Código de Processo Civil, sendo a empresa C.., S.A., com sede na Av.., Porto, NIPC 500 326 002, chamada a intervir por meio de citação para contestar, seguindo-se os ulteriores termos legais.

A EP - Estradas de Portugal, S.A. também contestou a acção, começando por suscitar a incompetência material do tribunal comum, alegando que a contestante é uma pessoa colectiva de direito público e que o acto (omissão de vigilância e sinalização) pelo qual se pretende responsabilizá-la foi praticado no âmbito de uma actividade de gestão pública. Para o desenvolvimento da sua actividade, a R. assume a posição do Estado, mas por questões de oportunidade, eficiência, agilidade e transparência adopta a forma de sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos (cf. artigo 3.° do Decreto Lei n.º 558/99 de 17 de Dezembro, alterado e republicado pelo Decreto-lei nº n.º 300/2007, de 23/8). O facto de ser uma sociedade anónima não é suficiente para a qualificar como uma entidade privada e não afecta a natureza do regime jurídico (administrativo) pelo qual a R. rege a sua actividade, como sejam a contratação de serviços de terceiros (código de contratos públicos), fiscalização da estrada (contra-ordenações e intimações), aprovações, autorizações e licenciamentos de obras dentro ou fora da zona da estrada (código de procedimento administrativo), liquidação e cobrança de taxas (código de procedimento e processo tributário e lei geral tributária), pelo que deve ser qualificada como pessoa colectiva de direito público.
Acrescenta que a situação dos autos integra a al. g) do nº 1 do art.º 4º do ETAF.
Por outro lado, a conservação de uma estrada, mais precisamente da EN 101 (local do acidente), insere-se no âmbito do desempenho das atribuições da R. (cf. n.º 1, do art.º 4°, nº 1, do art.º 10º, ambos do Decreto-lei nº 374/2007), com vista à realização dos seus fins, pelo que tais actos, considerando esses fins, são necessariamente de direito público, sejam eles de construção, de conservação, sinalização ou de mera fiscalização. Por isso a R. não está despida do seu jus imperii, actuando, por isso, fora de uma posição de paridade com os particulares, do seu regime e condições, e na prossecução de um fim público com vista à realização de uma finalidade colectiva. Neste aspecto trata-se de um acto de gestão pública. Caso se classificasse a R. como entidade privada (o que não se aceita), sempre seria competente para conhecer do presente pedido o tribunal administrativo por integração dos requisitos previstos na al. i), do n.º 1, do artigo 4.° do novo ETAF.
Ainda por outra via, se compete aos tribunais administrativos e fiscais apreciar os litígios que tenham por objecto a responsabilidade civil extracontratual do Estado nos domínios de gestão pública, então caberá aos mesmo tribunais, por força de norma especial (al. h), do n.º 2, do artigo 10.° do Decreto-lei nº 374/2007), apreciar litígios cujo objecto seja a responsabilidade civil extracontratual da R.
Concluiu, quanto a este ponto, que o Tribunal Judicial de Guimarães é manifestamente incompetente em razão da matéria para apreciar o presente pedido relativamente à R., sendo a incompetência conhecida e declarada oficiosamente pelo tribunal ou a pedido de qualquer das partes (artigo 102.° do Código de Processo Civil).
Passou a impugnar parcialmente os factos e culminou assim o seu articulado:
«Deve ser julgada procedente a exceção deduzida e, em consequência, a aqui R. absolvida da Instância, desde já se manifestando o desacordo no aproveitamento dos articulados deduzidos.
Caso assim não se entenda, deve ser julgado improcedente, por não provado, o pedido do A.»
Após citação, ofereceu contestação também a R. Companhia de Seguros.., S.A. Além de argumentar no sentido de não poder ser responsabilizada pelas consequências do sinistro, também defende que o tribunal comum não tem competência para dirimir o litígio por tal competência estar atribuída aos Tribunais Administrativos, pelo que todas as R.R. devem ser absolvidas da instância.
Também impugnou facto alegados e culminou assim o seu articulado:
«A) Deve a R. ser declarada parte ilegítima (passiva) e consequentemente absolvida da instância por não terem sido invocados factos pelo A., consubstanciados em qualquer facto e/ou omissão que justifique o seu chamamento aos presentes autos;
B) Deve a aqui contestante ser Absolvida do Pedido tendo em conta que a apólice em análise e nesta acção accionada foi subscrita pela V.. junto da aqui R. seguradora, empresa que não é parte nesta acção, cujo âmbito se inscreve no instituto de R C Geral Extracontratual – Factos Ilícitos, só havendo lugar a qualquer transferência depois do seu segurado ser condenado a pagar ao A. qualquer quantia a título de indemnização, sendo esse o momento em que poderá, então, ser accionada a presente apólice de seguro, por força da transferência do risco do exercício da sua actividade profissional através da competente acção de Direito de Regresso contra a sua seguradora, aqui contestante, Art.s 330º e segs. Do C.P.C.;
C) Devem ser aplicadas ao caso sub iudice as cláusulas quer de exclusão, quer do próprio âmbito de aplicação da apólice de seguro em análise, supra invocadas e, consequentemente, determinar-se a absolvição da R. do pedido, por verificada a impossibilidade da sua aplicação aos factos e danos apresentados na p.i.;
D) Deve a excepção da incompetência do presente Tribunal ser decretada, com a consequente Absolvição das Rés da Instância;
E) Deverá, em todo o caso, a acção improceder, por não provada e consequentemente determinar-se a absolvição das Rés do Pedido.» (sic)

O A. respondeu, além do mais, à excepção da incompetência material do Tribunal Judicial de Guimarães, alegada pelas várias R.R., defendendo que o litígio aqui em causa nada tem a ver com questões públicas, sendo uma decisão de direito privado, com base em responsabilidade extracontratual e aplicação de direito privado. A Estradas de Portugal, S.A. é uma empresa de direito privado de capitais públicos, tal como decorre do seu estatuto legal, acrescenta.
E termina assim:
«Termos em que:
Deve o Tribunal julgar improcedente a excepção de incompetência material deste tribunal, julgando-se competente para o julgamento deste litígio, pelos motivos alegados;
Deve julgar improcedente a excepção de ilegitimidade alegada pela R. V.. S.A., nos termos e pelos motivos alegados.» (sic)
Terminados os articulados, foi proferida decisão que culminou com o seguinte dispositivo:
«Declaro pois este tribunal materialmente incompetente para conhecer do pedido formulado pelo autor e absolvo as rés da instância – arts. 493°, ns. 1 e 2 e 494°, al. a), todos do Código de Processo Civil.» (sic)

Inconformado, o A. apelou da decisão, formulando alegações com as seguintes CONCLUSÕES:
«A- Os sujeitos processuais nesta acção, todos eles são pessoas de direito privado. O A. é um sujeito privado;
As RR. demandadas também o são.
A V..Empresa da Água e Saneamento de.., EIM S.A, é uma sociedade anónima intermunicipal, com capitais Municipais, regulada pelo sector empresarial local, sujeita às disciplinas do direito comercial privado, e que só subsidiariamente se rege pelo regime jurídico do sector público do Estado;
A EP — Estradas de Portugal S.A. sociedade Anónima de Capitais Públicos, é uma pessoa colectiva de direito privado.
A C. de Seguros .. S.A, é uma sociedade anónima de direito e capitais privados;
B- A causa de pedir desta acção resulta e consubstancia-se em factos concretos de cariz privado e reguladas pelo direito privado.
Está em causa um acidente de viação, ocorrido nas condições de tempo e lugar alegados na p.i.
O pedido formulado é efectuado no âmbito da responsabilidade civil extracontratual, nos termos dos arts. 483 e sgs. do C. Civil.
C- É com base na forma como o autor configura a acção — pedido e causa de pedir — que se afere do tribunal materialmente competente para dela conhecer.
In casu, e nos termos expostos nas alíneas anteriores, a acção é configurada e delimitada em termos de aplicação de direito privado, e devem ser os Tribunais Comuns a dela conhecer.
D- A EP - Estradas de Portugal S.A. e a V..EIM S.A. são pessoas colectivas e direito privado, nos termos do que alegámos.
E assim sendo, o Tribunal comum é o materialmente competente para conhecer dos pedidos de indemnização, por responsabilidade civil extracontratual contra eles efectuado.
E- A sentença em recurso, entre outros, violou os arts. 483 e sgs. do C. Civil e o art.º 18 nº1 de LOFTJ e fez errada interpretação do art.º 4 do ETAF.
Termos em que a sentença impugnada deve ser revogada e substituída por outra que julgue o Tribunal a quo o materialmente competente para julgar a presente acção.» (sic)
*
Apenas a EP - Estradas de Portugal ofereceu contra-alegações, com as seguintes CONCLUSÕES:
«I- O presente recurso vem interposto da douta sentença proferida pelo Tribunal Judicial de Guimarães que julgou procedente a exceção dilatória da incompetência do tribunal em razão da matéria deduzida pela Recorrida.
II- A ora Recorrida concorda com o teor da sentença.
III- A Recorrida foi criada pelo Estado, além disso, não existe norma que a qualifique como entidade de direito privado e foram-lhe atribuídos poderes de autoridade para o desenvolvimento da sua atividade.
IV- Por isso, a Recorrida deve ser classificada como pessoa coletiva de direito público, dado que as normas de direito privado a que se encontra sujeita dizem respeito à organização daquela (contabilidade e recursos humanos).
V- As normas de direito privado (código das sociedades comerciais e código do trabalho) aplicadas à Recorrida são instrumentais e não essenciais para a concretização do escopo para a qual aquela foi criada.
VI- Para efeitos de determinação da jurisdição aplicável, a Recorrida é uma pessoa colectiva de direito público, caindo, por isso, o presente litígio na previsão da norma contida na alínea g) do nº 1 do artigo 4º do ETAF.
VII- Sem prescindir , a Recorrida é equiparada a entidade administrativa nos termos do disposto no artigo 18º do Decreto-lei nº 558/99, de 17 de Dezembro, uma vez que lhe foram concedidos poderes de autoridade ao abrigo do constante no artigo 14º do mesmo Decreto-lei nº e nº 2, do artigo 10º do Decreto-lei nº 374/2007 de 7 de Novembro.
VIII- A conservação da estrada integra atos de gestão pública, tanto mais que para prossecução dos mesmos foi atribuído o poder de autoridade à recorrida .
IX- Também sem prescindir, a competência para apreciar a questão dos autos cabe aos tribunais da jurisdição administrativa, porquanto a apreciação da conduta da Recorrida está submetida, por disposição legal, ao regime da responsabilidade extracontratual do estado e demais entidades de direito público.
X- Nos termos da leitura conjugada do n.º 5 do artigo 1º da Lei 67/2007 e da alínea i) do nº 1 do artigo 4º do ETAF, as questões que se prendam com a responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados passam a estar sujeitas à apreciação da jurisdição administrativa.
XI- Pelo que, a competência material para julgar a questão sub judice é da Jurisdição Administrativa.
XII- A competência material para julgar a questão sub judice é dos Tribunais Administrativos, razão pela qual a Recorrida entende que deverá ser mantida a decisão proferida pelo Tribunal Judicial de Guimarães, por ter observado o disposto na al. g), do nº 1, do artigo 4º do ETAF, ou, no caso de se entender que a recorrida é uma pessoa colectiva de direito privado (o que não se admite), por ter observado também o disposto na alínea i), do nº 1, do artigo 4º do ETAF, no artigo 18º do Decreto-lei nº 558/99 e na alínea h), do nº 2, do artigo 10º do Decreto-lei nº 374/2007.» (sic)
Culmina a sua resposta no sentido de que seja mantida a decisão recorrida.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II.
O objecto do recurso está delimitado pelas conclusões da apelação, acima transcritas, sendo que se apreciam apenas as questões invocadas e relacionadas com o conteúdo do acto recorrido e não sobre matéria nova, excepção feita para o que for do conhecimento oficioso (cf. art.ºs 660º, nº 2, 684º e 685º-A, do Código de Processo Civil (1) , na redacção introduzida pelo Decreto-lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, aqui aplicável).
Com efeito, está para apreciar e decidir apenas se os tribunais comuns, mais concretamente o Tribunal Judicial de Guimarães, são competentes, em razão da matéria, para conhecer de um pedido pelo qual o A., D.., pretende a condenação da V.. – Empresa de Água e Saneamento de.., EIM S.A., da EP - Estradas de Portugal, S.A. e da Companhia de Seguros.. S.A. pelos danos emergentes de um acidente de viação provocado pela existência de um buraco em plena faixa de rodagem, onde caiu o veículo do A., sob a sua condução.
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III.
A matéria de facto relevante para a decisão da questão está sintetizada no relatório que antecede.
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A competência é um pressuposto processual relativo ao tribunal (medida de jurisdição atribuída a cada tribunal).
Cabe às leis de orgânica judiciária definir a divisão jurisdicional do território português e estabelecer as linhas gerais da organização e da competência dos tribunais do Estado, em conformidade com os art.ºs 209º e seg.s da Constituição da República. As leis de processo surgem, neste tema, como complemento da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (2) (LOFTJ). Segundo o art.º 62º, nº 1, «a competência dos tribunais judiciais, no âmbito da jurisdição civil, é regulada conjuntamente pelo estabelecido nas leis de organização judiciária e pelas disposições deste Código» e o nº 2 acrescenta que «na ordem interna, a jurisdição reparte-se pelos diferentes tribunais segundo a matéria, a hierarquia judiciária, o valor da causa, a forma de processo aplicável e o território» (cf. ainda art.º 17º, nº 1, da LOFTJ).
Nos termos do art.º 67º, «as leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais judiciais dotados de competência especializada».
Está em causa a competência (absoluta) em razão da matéria para conhecer de uma questão determinada.
O art.º 18º, nº 1, da LOFTJ, determina, residualmente, que “são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.
Os Tribunais Administrativos e Fiscais pertencem a ordem diferente dos Tribunais Judiciais, são de categoria diferente, na expressão da Constituição da República, competindo-lhes julgar as acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais (cf. respectivos art.º 209º, nº 1, al. b) e 212º, nº 3, da Constituição).
A questão é saber se a causa, por força das regras da competência em razão da matéria, não deve permanecer nos Tribunais Judicias e comuns, por serem competentes para o seu julgamento os Tribunais Administrativos.
Ensina Manuel de Andrade (3) , citando Redenti, que a competência do tribunal afere-se pelo quid disputatum (quid decidendiun, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum); é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do autor.
Assim, vem sendo entendido na jurisprudência que, para a determinação do tribunal competente em razão da matéria, para o julgamento de uma acção --- e à semelhança da verificação dos demais pressupostos processuais --- deve atender-se ao pedido nela formulado, mas também à causa de pedir que lhe está subjacente, seja quanto aos seus elementos objectivos, seja quanto aos elementos subjectivos; os elementos identificadores da causa (pedido fundado na causa de pedir), tal como o A. a configura (4).
E havendo que ponderar uma questão de incompetência em razão da matéria, não entre tribunais judicias, mas tribunais de ordens jurisdicionais diferentes (tribunal comum/tribunal administrativo), maior é o grau de análise do fundamento que subjaz à acção.
Segundo Vital Moreira e Gomes Canotilho (5), “a competência dos tribunais administrativos e fiscais deixou de ser especial ou excepcional face aos tribunais judiciais, tradicionalmente considerados como tribunais ordinários ou comuns; aqueles são agora os tribunais ordinários da justiça administrativa”.
Importa sobretudo averiguar se estamos em face de uma relação jurídica de índole administrativa. É, essencialmente, uma relação com essas características que determina a competência dos tribunais administrativos, de acordo com as disposições conjugadas do art.º 212º, nº 3, da Constituição da República e do art.º 1º, nº 1, do ETAF, sendo de considerar que a enumeração efectuada no art.º 4º do ETAF não é taxativa (atente-se na expressão “nomeadamente”), mas tem em consideração a referida medida e limitação de competência.

Como se refere no acórdão da Relação do Porto de 21.1.2010 (6), o anterior Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (aprovado pelo Decreto-Lei nº 129/84 de 27 de Abril) dispunha, expressamente, no seu art.º 4º que estavam excluídas da jurisdição administrativa e fiscal as acções que tivessem por objecto questões de direito privado, ainda que qualquer das partes fosse pessoa de direito público.
Tal disposição foi eliminada no actual ETAF, tal como foi eliminada a referência aos actos de gestão pública que, no art.º 51º, nº 1, al. h), do anterior ETAF, determinavam a competência dos tribunais administrativos e fiscais no que toca a acções sobre responsabilidade civil do Estado, dos demais entes públicos e dos titulares dos seus órgãos e agentes por prejuízos decorrentes de actos pelos mesmos praticados.
Isso não significa, porém, que a competência dos tribunais administrativos e fiscais tenha passado a abranger toda e qualquer acção em que sejam partes pessoas de direito público, ainda que as questões abrangidas no litígio sejam questões de direito privado.
De facto, ainda que essas questões não tenham sido expressamente excluídas da jurisdição administrativa, no actual ETAF --- cfr. art.º 4º, nº 2 --- o certo é que, tal como se referiu e como decorre da Constituição e do art. 1º do ETAF, apenas são da competência dos tribunais administrativos e fiscais os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais e, por conseguinte, estão excluídos dessa jurisdição os litígios que, apesar de respeitarem a pessoas de direito público, não tenham na sua génese uma relação jurídica administrativa ou fiscal.
Segue sentido semelhante o acórdão proferido pelo Tribunal de Conflitos de 14.7.2009 (7) , onde se refere o seguinte:
“O critério material de distinção assenta, agora, em conceitos como relação jurídica administrativa e função administrativa – conjunto de relações onde a Administração é, típica e nuclearmente, dotada de poderes de autoridade para cumprimento das suas principais tarefas de realização do interesse público como referido no acórdão deste tribunal no processo nº 26/08, de 21/04/2009 (citando Vieira de Andrade, Justiça Administrativa, 9ª ed., 103.) E a relação jurídica administrativa pode, de um modo geral configurar-se como a definida pela seguinte ordem de critérios:
- a que se estabelece entre duas pessoas colectivas públicas ou entre dois órgãos administrativos, desde que ente ela não haja indícios da sua pertinência ao direito privado;
- aquela em que um dos sujeitos, pelo menos (seja ele público ou privado) actua no exercício de um poder de autoridade, com vista à realização de um interesse público legalmente definido (v Ac. do TC nº 794/96 de 29 de Maio)
- aquela em que este sujeito actua no cumprimento de deveres administrativos de autoridade pública, impostos por motivos de interesse público (v. Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, 2002, p. 137) (cfr. Cod. de Processo nos Tribunais Administrativos, Vol I, e ETAF Anotado de Manuel Esteves de Oliveira e outro, pp 25/26)”.
Como refere Albino Aroso de Almeida (8), citado no acórdão do Tribunal de Conflitos de 20.1.2010 (9), “as relações jurídico-administrativas não devem ser definidas segundo critério estatutário, reportado às entidades públicas, mas segundo um critério teológico, reportado ao escopo subjacente às normas aplicáveis”. Devem, assim, entender-se como relações jurídicas administrativas as derivadas de actuações materialmente administrativas, praticadas por órgãos da Administração Pública ou equiparados”.
Por outro lado, como refere ainda aquele aresto, os Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira (10) referem a respeito de tais relações que “esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras:
1- as acções e recursos que incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente) da administração;
2- as relações controvertidas são reguladas sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza privada ou jurídico civil. Em termos positivos, um litígio emergente da relações jurídico administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal”. No acórdão do STA de 3-11-04 (in www.dgsi.pt.jsta.nsf), invocando-se o Prof. Freitas do Amaral (Lições de Direito Administrativo, edição 1989, Vol. III, págs. 439, 440) definiu-se a relação jurídica administrativa como “aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à administração perante particulares, ou aquela que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a administração”.
Definindo o âmbito da jurisdição dos Tribunais Administrativos e Fiscais --- na sequência do respectivo art.º 1º que os identifica como órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais --- o art.º 4º, nº 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, com as alterações introduzidas pelo Decreto-lei nº 59/2008, de 11 de Setembro, determina, na parte que aqui mais pode relevar que “compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto:

g) Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa;

i) Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados, aos quais seja aplicável o regime especifico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público;
…».
Volvendo ao caso sub judice, não cremos que, pelos seus estatutos a EP- Estradas de Portugal, S.A. se possa enquadrar na referida al. g) do nº 1 do art.º 4º do ETAF.
O Decreto-lei nº 374/2007, de 7 de Novembro, transformou a EP – Estradas de Portugal, EPE, em sociedade anónima de capitais públicos, com a denominação de EP — Estradas de Portugal, S.A.
As empresas “EPE”, sendo já pessoas jurídicas com as correspondentes “capacidade” de gozo de direitos e “autonomia” [“administrativa” — entendível em sentido amplo, como capacidade para gerir patrimonialmente e praticar actos jurídicos —, “financeira” — com receitas próprias e direito de delas dispor segundo próprio orçamento —, e “patrimonial” — com património privativo, mobilizável (e só ele) para o cumprimento das obrigações das EPE] (11), eram pessoas colectivas de direito público.
Com a transformação em “S.A.” a empresa pública deixa de ser uma pessoa colectiva de direito público para passar a ser uma sociedade de direito privado, embora de capitais públicos (12) (ou maioritariamente públicos).
Como se refere no preâmbulo do referido Decreto-lei nº 374/2007, “com a publicação do Decreto-Lei n.º 239/2004, de 21 de Dezembro, deu-se um primeiro passo para conferir uma nova operacionalidade à administração rodoviária em Portugal. Com a conversão da administração rodoviária numa entidade de natureza empresarial, a EP — Estradas de Portugal, E.P.E. (EP, E.P.E.), visou-se o relançamento das suas actividades num novo quadro operacional que permitisse garantir melhores resultados e maior estabilidade dos seus recursos”. Mais adiante, referindo-se à nova transformação, em “S.A.”, a mesma nota preambular dispõe que “A EP — Estradas de Portugal, S.A., será, assim, dotada de uma estrutura societária mais compreensível pelo mercado financeiro nacional e internacional, vendo reforçado o princípio de que o Estado não garante ou avaliza, directa ou indirectamente, qualquer dívida ou obrigação desta sociedade, nem assume qualquer responsabilidade pelos seus passivos, seja qual for a sua natureza” e fala num “novo modelo de gestão e financiamento do sector das infra -estruturas rodoviárias, cujos princípios gerais se encontram plasmados na Resolução do Conselho de Ministros n.º 89/2007, de 11 de Julho, pretende-se reforçar e consolidar os conceitos base da solidariedade inter-geracional, da coesão territorial e, sobretudo, da transparência dos custos das funções do Estado e da auto-sustentabilidade do sector”.
A EP – Estradas de Portugal, S.A. é agora e desde a vigência daquele Decreto-lei nº 374/2007, uma sociedade anónima de capitais públicos (cf. respectivo art.º 1º, nº 1).
O mesmo acontece com as empresas intermunicipais que se constituíram ou transformaram sob a sigla “S.A.”, como é o caso da R. V..– Empresa de Águas e saneamento de.., EIM S.A., empresas locais dotadas de capitais maioritariamente públicos, mas que operam segundo um regime juridico-legal de direito privado.
Podemos, assim, afirmar com segurança que não sendo qualquer daquelas demandadas uma pessoa colectiva de direito público e pese embora esteja em causa a sua responsabilidade extracontratual, não é por aplicação da al. g) do nº 1 do art.º 4º do ETAF que se poderá atribuir a competência aos Tribunais Administrativos e Fiscais para conhecer do presente litígio.
Passemos à al. i) do mesmo normativo legal, segundo a qual “compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto a responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados, aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público”.
Interpretando a norma, parece-nos que a competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais inclui as questões atinentes à responsabilidade civil extracontratual de sujeitos privados desde que a eles deva ser aplicado o regime próprio da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.
Citando ainda o acórdão do tribunal de Conflitos de 20.1.2010, “existiu … por banda do legislador, o propósito de estender a competência dos tribunais administrativos e fiscais a áreas de jurisdição que antes não eram suas. Deixou de vigorar o art.º 4º al. f), norma restritiva da competência dos tribunais administrativos inserta no anterior ETAF (Dec-Lei 124/84 de 27 de Abril), segundo a qual estavam excluídos da jurisdição administrativa e fiscal os recursos e acções que tinham por objecto questões de direito privado, ainda que qualquer das partes fosse pessoa de direito público. O regime introduzido atribuiu competência aos tribunais administrativos e fiscais a todas as questões de responsabilidade civil envolvendo pessoas colectivas de direito público (vide al.s g) e h) do referido art. 4° nº 1), independentemente de se saber se as mesmas eram regidas por normas de direito público ou por normas de direito privado. Houve uma intenção evidente de alargar a jurisdição dos Tribunais Administrativos, de modo a abranger os privados, contanto que lhes deva ser aplicado o regime próprio da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.
Deixou de relevar a distinção que o anterior ETAF fazia entre actividade de gestão privada e actividade de gestão pública para então atribuir a competência aos Tribunais Administrativos apenas na última das situações. O facto relevante buscar-se-á agora no elemento teleológico da acção da pessoa colectiva; os Tribunais Administrativos deverão intervir, ainda que se trate de uma entidade privada, desde que a estas deva ser aplicado o regime próprio da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público, em quadro de imputação à mesma de facto gerador de um dano, independentemente do direito substantivo aplicável.
Segundo o art.º 1º, nº 5, da Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro --- diploma que aprovou o regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas --- “as disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas colectivas de direito privado e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam regulados por disposições ou princípios de direito administrativo”.
Continuando a seguir de perto o citado acórdão do Tribunal de Conflitos e Carlos Alberto Cadilha (13) , pondera-se que, “...tal como de resto sucede em relação a órgãos e serviços que integram a Administração Pública, o regime da responsabilidade administrativa é apenas aplicado no que se refere às acções ou omissões em que essas entidades tenham intervindo investidas de poderes de autoridade ou segundo um regime de direito administrativo, ficando excluídos os actos de gestão privada e, assim, todas as situações em que tenham agido no âmbito do seu estrito estatuto de pessoas colectivas privadas”.
A questão está agora em saber se a EP – Estradas de Portugal. S.A., mesmo que se entenda que não beneficia de prorrogativas de poderes de autoridade própria do Estado (14), tem a sua actividade regulada por disposições ou princípios de direito administrativo.
Independentemente da sua organização interna, do seu funcionamento como sociedade anónima de direito privado e dos critérios de gestão racional próprios deste tipo de sociedades, a EP – Estradas de Portugal. S.A. prossegue fins públicos, atribuições do Estado, a este pertencendo a totalidade do capital (cf. art.º 5º do Decreto-lei nº 374/2007, de 7 de Novembro). O art.º 3º daquele diploma legal, é claro ao referir que aquela sociedade “rege-se pelo presente decreto-lei, pelos seus estatutos, pelo regime jurídico do sector empresarial do Estado, consagrado no Decreto-Lei n.º 558/99, de 17 de Dezembro, pelos princípios de bom governo das empresas do sector empresarial do Estado constantes da Resolução do Conselho de Ministros n.º 49/2007, de 28 de Março, pelo Código das Sociedades Comerciais e pelos seus regulamentos internos, bem como pelas normas especiais que lhe sejam aplicáveis”. Do subsequente art.º 4º, nº 1, resulta que o objecto da sociedade é a concepção, projecto, construção, financiamento, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede rodoviária nacional, nos termos do contrato de concessão que com ela é celebrado pelo Estado. Nos termos dos art.ºs 8º e 10º, ainda do Decreto-lei nº 374/2007, “as infra-estruturas rodoviárias nacionais que integram o domínio público rodoviário do Estado e que estejam em regime de afectação ao trânsito público ficam nesse regime sob administração da EP - Estradas de Portugal, S.A.” e a ela compete, relativamente às infra-estruturas objecto da concessão, zelar pela sua manutenção e conservação permanente, permitindo a livre e segura circulação. Além disso, ao abrigo do nº 2 do mesmo art.º 10º, a mesma concessionária detém os poderes, prerrogativas e obrigações conferidos ao Estado pelas disposições legais e regulamentares aplicáveis no que respeita:
a) A processos de expropriação, nos termos previstos no respectivo código;
b) Ao embargo administrativo e demolição de construções efectuadas em zonas non aedificandi e zonas de protecção estabelecidas por lei;
c) À liquidação e cobrança, voluntária ou coerciva, de taxas e rendimentos provenientes das suas actividades;
d) À execução coerciva das demais decisões de autoridade;
e) Ao uso público dos serviços e à sua fiscalização;
f) À protecção das suas instalações e do seu pessoal;
g) À regulamentação e fiscalização dos serviços prestados no âmbito das suas actividades e à aplicação das correspondentes sanções, nos termos da lei;
h) À responsabilidade civil extracontratual, nos domínios dos actos de gestão pública;
i) À instrução e aplicação de sanções em processo contra-ordenacional.
Estão aqui, manifestamente, incluídos poderes de autoridade. O que se visou alterar foi apenas o modelo de gestão empresarial, mantendo-se intacta a responsabilidade extracontratual do Estado, uma responsabilidade pública de que o Estado não pode alhear-se.
Apesar da denominação adoptada e da organização empresarial privada, tais empresas obedecem a regras de direito público, tais como o princípio da transparência financeira, garantia de cumprimento de exigências comunitárias de concorrência e auxílios públicos, deveres de informação e esclarecimento, de obediência estratégica a orientações e recomendações do Estado e até sujeição a controlo pelo Tribunal de Contas (art.ºs 7º e seg.s do Decreto-lei nº 558/99, de 17 de Dezembro).
“A função administrativa compreende o conjunto de actos de execução de actos legislativos, traduzida na produção de bens e na prestação de serviços destinados a satisfazer as necessidades colectivas que, por virtude de prévia opção legislativa, se tenha entendido que incumbem ao poder do Estado – colectividade” (15) e que essa função é “desempenhada essencialmente por pessoas colectivas públicas, entre as quais o Estado – Administração, e, marginalmente, por pessoas colectivas privadas integradas na Administração Pública. As primeiras formam o cerne da Administração Pública e exercem a função administrativa do Estado – colectividade de forma imediata, necessária a por direito próprio, em obediência a opções prévias, que se traduziram no exercício da função legislativa daquele Estado, função principal ou primária. As segundas assumem uma posição secundária dentro da Administração Pública, exercendo a função administrativa por delegação daquelas. Assim, as pessoas colectivas privadas que se encontram nesta posição exercem a função administrativa do Estado por efeito de decisão prévia de uma pessoa colectiva pública, decisão essa que se insere no exercício da função administrativa por parte da pessoa delegante.” (16)
Os actos praticados por tais entidades enquanto elas estiverem integradas na administração indirecta do Estado e esses actos se direccionarem à satisfação do interesse público, devem ser qualificados como actos de gestão pública e, portanto, praticados a coberto de normas de direito administrativo. (17)
As estradas são do domínio público (art.º 84º da Constituição da República), são bens públicos, de afectação ao interesse público e colectivo.
A EP Estradas de Portugal, S.A. está concebida para a prossecução de um fim público, de interesse colectivo, para o desempenho de uma tarefa própria do Estado e de gestão pública, através de uma concessão administrativa. Integra o sector empresarial do Estado nos termos do art.º 3º do Decreto-lei nº 558/99, de 17 de Dezembro, que redefiniu o conceito de empresa pública. As acções e omissões daquela R. integram-se e são reguladas por disposições e princípios de direito administrativo. A sua actividade está integrada na função administrativa do Estado.
A demanda simultânea da V.. – Empresa de Água e Saneamento de.., EIM S.A., enquanto empresa intermunicipal, também constituída com denominação “S.A.”, sob concessão de municípios nela, pelo menos, maioritariamente comparticipantes, acarreta o mesmo entendimento, já que também essa empresa, embora funcionando sob um modelo de gestão privada, prossegue um fim público e colectivo próprio da competência dos Municípios --- a captação, exploração e distribuição de água às populações --- por concessão e sob a sua influência dominante.
Resulta do art.º 13º da Lei nº 159/99, de 14 de Setembro, que os municípios têm atribuições em vários domínios, designadamente na área do equipamento rural e urbano, ambiente, saneamento básico e urbanismo. É da competência dos órgãos municipais fazer a gestão e a realização de investimentos em vários domínios, entre eles, os sistemas municipal de abastecimento de água, de drenagem e tratamento de águas residuais urbanas e de limpeza pública e de recolha e tratamento de resíduos sólidos urbanos [art.º 26, nº 1, al.s a), b) e c) da mesma lei].
É ainda da competência dos órgãos municipais no domínio do apoio ao desenvolvimento local, além do mais, criar ou participar em empresas municipais e intermunicipais, sociedades e associações de desenvolvimento regional (al. b) do nº 1 do subsequente art.º 28º).
O art.º 179º, nº 1, do CPA prevê que os órgãos administrativos celebrem quaisquer contratos administrativos na prossecução das atribuições da pessoa colectiva em que se integram, fazendo parte daquela categoria de contratos os que se destinam à “prestação de serviços para fins de imediata utilidade pública” (al. h) do mesmo preceito legal).
Com a aprovação do Decreto-Lei n.º 372/93, de 29 de Outubro, que alterou o art.º 4º da Lei nº 46/77, de 8 de Julho, consagrou-se a possibilidade de participação de capitais privados, embora sob a forma de concessão, a empresas intervenientes no sector da captação, tratamento e distribuição da água para consumo público, recolha, tratamento e rejeição de efluentes e recolha e tratamento de resíduos sólidos, criando-se a distinção entre sistemas multimunicipais e sistemas municipais. Em todo o caso, a concessão, a outorgar pelo Estado, destina-se sempre a empresas que resultem da associação de entidades do sector público, designadamente autarquias locais, em posição obrigatoriamente maioritária no capital social da nova sociedade, com outras entidades privadas (art.º 4º, nº 3, daquele diploma legal).
O abastecimento de água às populações é um serviço de primeira necessidade, como é sabido, um serviço público essencial, tradicional e prioritário.
A causa de pedir da acção desenha-se pela prática de actos característicos da actividade administrativa, da competência do Estado e do Município; uma relação dirigida à satisfação do interesse público e das necessidades colectivas. Aquelas duas sociedade estão demandadas por responsabilidade extracontratual emergentes do incumprimento de deveres inerentes às funções do Estado e do Município para elas transferidas segundo regras de direito público.
O litígio retratado nestes autos decorre de actos praticados no cumprimento das finalidades prosseguidas pelas ditas concessionárias --- ainda que o possam ter sido através de um empreiteiro --- e, portanto, de actos de gestão pública, o que quer dizer que aquele litígio, também por esta razão, configura um litígio emergente das relações jurídicas administrativas.
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SUMÁRIO (art.º 713º, nº 7, do Código de Processo Civil):
1- É dos Tribunais Administrativos e Fiscais a competência em razão da matéria para a resolução de um litígio que opõe um particular à EP – Estradas de Portugal, S.A. e à V.. – Empresa de Água e Saneamento de.., EIM S.A. por causa de um acidente de viação pelo qual o autor conduziu o seu veículo sobre um buraco existente numa estrada nacional vigiada pela primeira e aberto pela segunda ou por terceiro sob adjudicação de obra.
2- Fundamental para a definição da competência em razão da matéria dos Tribunais Administrativos e Fiscais, nos termos do actual ETAF (art.ºs 1º e 4º), é que os litígios emirjam de relações jurídicas administrativas e fiscais, independentemente do estatuto de direito público ou de direito privado do agente, contanto que este prossiga finalidades de ordem pública sob um regime próprio da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público, em quadro de imputação à mesma de facto gerador de um dano, independentemente do direito substantivo aplicável.
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IV.
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação de Guimarães em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida, em cujos termos é de considerar o Tribunal Judicial de Guimarães incompetente em razão da matéria para conhecer do pedido da acção, sendo competentes os Tribunais Administrativos e Fiscais, ficando as R.R. absolvidas da instância.
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Custas da apelação pelo A.
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Guimarães, 25 de Setembro de 2012
Filipe Caroço
António Santos
Figueiredo de Almeida
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1) Diploma a que pertencem todas as disposições legais que se citarem sem menção de origem.
2) Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, com as alterações sucessivas.
3) Noções Elementares de Processo Civil, vol. I, pág. 88.
4) Cf. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 18.3.2004, proc. 04B873 e de 13.5.2004, proc. 04A1213 e de 10.4.2008, proc. 08B845, in www.dgsi.pt. Acórdão da Relação do de 07.11.2000, Colectânea de Jurisprudência, Tomo VI, pág. 184.
5) Constituição da república Portuguesa, anotada”, 3ª edição, Coimbra Editora, pág. 814, em anotação ao art.º 214º, actual art.º 212º.
6) Proferido no proc. nº 2861/09.9TJVNF.P1, in www.dgsi.pt.
7) Proc. 08/09, in www.dgsi.pt.
8) In Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 2005, pág. 57.
9) Proc. 025/09, in www.dgsi.pt.
10) In Constituição Anotada, 3ª edição, 815.
11) Coutinho de Abreu, in Curso de Direito Comercial, vol. I, 2011, 8ª edição, pág. 267.
12) No caso, com capitais exclusivamente públicos.
13) In Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, pág. 49.
14) O que não corresponde à realidade, designadamente atendendo ao disposto no art.º 14º do Decreto-lei nº 558/99, de 17 de Dezembro, alterado pelo Decreto-lei nº 300/2007, de 23 de Agosto.
15) M. Rebelo de Sousa, Lições de Direito Administrativo, 1999, pág. 12.
16) Idem, pág. 148.
17) Acórdão do tribunal de Conflitos de 2.10.2008, proc. 12708, in www.dgsi.pt, tirado a propósito de responsabilidade hospitalar, envolvendo um hospital que funciona sob a denominação societária “S.A.”.