DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
HABILITAÇÃO DE HERDEIROS
IMPULSO PROCESSUAL
Sumário


I - Embora o incidente de habilitação de herdeiros de parte ou comparte falecida na pendência da causa, possa ser promovido por qualquer das partes sobrevivas ou pelos herdeiros da parte falecida, é inequívoco, que, em princípio, na acção, o principal interessado no andamento dos autos é o autor, na reconvenção é o reconvinte e no recurso é o recorrente, aos quais (ou respectivos herdeiros), por isso, compete, em 1ª linha, impulsionar os autos, isto é, requerer a habilitação de herdeiros.

II - A partir do momento em que o Tribunal “a quo” suspendeu a instância por falecimento da ré (16.9.2016), as partes consideram-se notificadas para, querendo, requererem a habilitação dos herdeiros da parte ou comparte falecida, não constituindo justificação da inércia da autora o ter ficado a aguardar que o co-réu o fizesse, ainda que este tivesse melhores condições para tal, nomeadamente o conhecimento de quem seriam os herdeiros da falecida.

III – O princípio da auto-responsabilização das partes (estreitamente ligado ao princípio da preclusão), implica que, competindo às partes o ónus do impulso processual, não pode o Tribunal substituir-se às mesmas (ver nº 1 do art.º 6º do CPC: “…sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes…”) ou alertá-las das consequências do respectivo comportamento omissivo, que decorre directamente da Lei, especialmente num processo em que é obrigatória a constituição de mandatário judicial e em que se aguardou, com muita parcimónia, que a autora e o interveniente principal estivessem, novamente, devidamente representados por advogado.

Texto Integral


ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I – RELATÓRIO

Freguesia VN instaurou acção declarativa com processo comum, sob a forma sumária, contra A. A. e esposa M. A..
O réu A. A. faleceu na pendência da acção, tendo a ré viúva e o filho P. J., requerido a respectiva habilitação, como sucessores do falecido, o que foi deferido por sentença de 18.11.2007.
Em 28.10.2013 foi admitido a intervir nos autos “na qualidade de co-autor” o Conselho Directivo dos BC
Na pendência do processo faleceu também a ré, mais propriamente em 01-12-2015, o que levou a que fosse determinada a suspensão da instância em 16-09-2016.
O despacho que determinou a suspensão da instância foi notificado às partes em 22-09-2016.
Entretanto, nenhuma das partes requereu a habilitação de herdeiros da falecida ré.
Notificadas as partes para se pronunciarem sobre uma possível declaração de extinção da instância, por deserção, o réu pugnou pela declaração de deserção e a autora veio pugnar pela não declaração de deserção da instância, invocando, para o efeito, que não tem qualquer informação sobre os sucessores da ré e que cabia ao réu, no âmbito do dever de cooperação, fornecer tal informação à autora ou requerer a respectiva habilitação, terminando pedindo a notificação do réu, para vir indicar os elementos necessários para que a autora possa promover a habilitação dos sucessores da ré.
Foi proferida a seguinte decisão:

Pelo exposto, julgo a instância deserta, e, consequentemente, extinta – art. 281º, n º 4, do C.P.C.
Custas pela A. (quanto à acção) e pelos R.R. (quanto à reconvenção) – art. 527º, do C.P.C.

*
Inconformada a autora interpôs o presente recurso, que instruiu com as pertinentes alegações, em que formula as seguintes conclusões:

«1. Não houve negligência por parte dos autores, no presente processo, já que o impulso processual não dependia apenas deles.
2. O réu era e é o único, nos autos, que conhecia e conhece a identificação dos herdeiros da ré falecida
3. Era e é notório que os autores, órgãos institucionais públicos, sediados no concelho de Montalegre, distrito de Vila Real, não poderiam ter aquela informação sobre pessoas de longe.
4. Incumbia, pois, ao réu promover a habilitação dos herdeiros da ré falecida ou, pelo menos, vir, aos autos, identificá-los.
5. Em última análise, porém, precisamente para evitar a bomba atómica da deserção da instância, competia ao Mmo. Juiz, no âmbito do Princípio da Cooperação e do Dever de Gestão Processual, notificar atempadamente as partes dos demolidores efeitos previstos no art. 281º, n.º 1, do Código do Processo Civil, recentemente aprovado, que veio alterar drasticamente o regime da deserção da instância.
6. O despacho em crise violou, entre outros, o disposto nos artigos 6º, 7º e 281º do Código do Processo Civil.
Termos em que, nos melhores de Direito e sempre com o mui douto suprimento, deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e, consequentemente, anulado o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que ordene o prosseguimento dos autos»
*
Dos autos não constam contra-alegações.
*
O processo foi remetido a este Tribunal da Relação, onde o recurso foi admitido nos termos em que o fora na 1ª instância.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO E QUESTÕES A DECIDIR.

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da apelante, tal como decorre das disposições legais dos artºs 635º nº4 e 639º do CPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (art.º 608º nº2 do CPC).
As questões a apreciar são as constantes das conclusões que acima reproduzimos.

III - FUNDAMENTOS DE FACTO

Os factos, com interesse para a apreciação deste recurso, que resultam dos autos, são os seguintes:

A presente acção foi instaurada pela Freguesia VN contra A. A. e esposa M. A., em 2005.

O co-réu A. A. faleceu em 14.4.2007.

A co-ré M. A. e o filho de ambos, P. J., deduziram nos autos, fls. 146 e segs., a respectiva habilitação como herdeiros do falecido, juntando a pertinente certidão de habilitação notarial de herdeiros, a fls. 151 e segs. e como tal foram habilitados por sentença de 18.11.2007, a fls. 196 e 197.

A co-ré M. A., nascida em 1928, faleceu em 1.12.2015.

O co-réu (habilitado), seu filho, P. J., comunicou aos autos tal falecimento, juntando o pertinente certificado de óbito em 4.8.2016, notificando a autora (fls. 472 e 473).

Em 16.9.2016, face ao óbito da ré, foi proferido despacho suspendendo a instância.

As partes foram ouvidas sobre uma possível declaração extinção da instância, por deserção, conforme despacho de 24.3.2017

IV – FUNDAMENTOS DE DIREITO

Falecendo alguma das partes na pendência da causa e junto aos autos o documento comprovativo do óbito, a instância suspende-se nos termos do art.º 269º e 270º do CPC.
Recai sobre a parte ou comparte que tenha conhecimento do óbito o dever de comunicar ao processo, juntando o documento comprovativo do óbito (art.º 270º nº 2 do CPC).
Nos autos o co-réu, habilitado como sucessor do primitivo réu, cumpriu o seu dever, comunicando o falecimento da co-ré sua mãe, ocorrido em 1.12.2015, e juntando o pertinente certificado de óbito, a fls. 473.
A lei processual nada mais lhe impõe do que tal comunicação e junção do comprovativo.
A suspensão cessa quando for notificada a decisão que julgue habilitado o sucessor da pessoa falecida ou extinta (art.º 276º do CPC).
Contudo e como vem sendo entendido de forma praticamente unânime pela jurisprudência, o processo não fica “ad eternum” a aguardar a habilitação de herdeiros, aplicando-se também aqui o disposto no art.º 281º do CPC.
Embora o incidente de habilitação de herdeiros de parte ou comparte falecida na pendência da causa, possa ser promovido por qualquer das partes sobrevivas ou pelos herdeiros da parte falecida, é inequívoco, que, em princípio, na acção, o principal interessado no andamento dos autos é o autor, na reconvenção é o reconvinte e no recurso é o recorrente, aos quais, por isso, compete, em 1ª linha, impulsionar os autos, isto é, requerer a habilitação de herdeiros.
No caso nem a autora, nem o co-réu reconvinte, requereram a habilitação de herdeiros, encontrando-se o processo parado há mais de seis meses, por esse facto.
Defende a apelante que não houve negligência da sua parte, no presente processo, já que o impulso processual não dependia apenas dela.
Nesse sentido alega, que “o réu era e é o único, nos autos, que conhecia e conhece a identificação dos herdeiros da ré falecida” e que “é notório que os autores, órgãos institucionais públicos, sediados no concelho de Montalegre, distrito de Vila Real, não poderiam ter aquela informação sobre pessoas de longe”. Concluindo que incumbia ao réu promover a habilitação dos herdeiros da ré falecida ou, pelo menos, vir, aos autos, identificá-los.
Como vimos, qualquer das partes poderia ter impulsionado a habilitação de herdeiros, se bem que, o impulso, no tocante aos termos da acção e seu prosseguimento, compete em primeira linha a quem a propôs, isto é, à autora. O co-réu pode fazê-lo se quiser e nisso tiver interesse (como reconvinte), mas nenhuma norma processual lho impõe.
O desconhecimento de quem sejam os herdeiros da falecida ré também não aproveita à autora apelante.
Em primeiro lugar poderia ter requerido a notificação do réu sobrevivo para vir identificar os herdeiros de sua mãe, o que não fez.
Em segundo lugar conhecia um herdeiro da falecida, com grande probabilidade de ser o único, precisamente o co-réu, filho daquela e que já antes fora habilitado por morte do réu marido (a certidão da habilitação notarial está junta aos autos e dela resulta que também é filho da falecida ré).
Ainda que, teoricamente, existisse a possibilidade da falecida ré ter tido outros filhos fora da relação conjugal – após o óbito do marido e atenta a sua idade quando este faleceu (79 anos), em face do estado actual da ciência e da legislação então vigente, tal era impossível – sempre poderia a autora, aqui recorrente, deduzir o pertinente incidente, indicando este herdeiro, pois, vindo a ser indeferida, em razão da existência de outros, poderia nos mesmos autos e com aproveitamento do processado requerer nova habilitação (art.º 352º nº 3 do CPC) ou deduzi-la logo de início também contra desconhecidos (art.º 355º do CPC).
Improcede assim a argumentação da apelante no sentido de que a não dedução do pertinente incidente não lhe é imputável, ou de que deveria ser o réu a deduzi-la (concretamente a suportar as custas de um incidente, com vista ao prosseguimento de acção em que apenas a autora tem interesse, como decorre do presente recurso).
Defende ainda a apelante que “para evitar a bomba atómica da deserção da instância, competia ao Mm.º Juiz, no âmbito do Princípio da Cooperação e do Dever de Gestão Processual, notificar atempadamente as partes dos demolidores efeitos previstos no art. 281º, n.º 1, do Código do Processo Civil, recentemente aprovado, que veio alterar drasticamente o regime da deserção da instância”.
Ora, a partir do momento em que o Tribunal “a quo” suspendeu a instância (16.9.2016), as partes consideram-se notificadas para, querendo, requererem a habilitação dos herdeiros da parte ou comparte falecida.
Aliás, o comportamento negligente da autora e do interveniente principal perdura nos autos, pois já antes, notificados da renúncia do respectivo mandatário judicial, não constituíram novo mandatário, por isso a instância foi suspensa em 25.11.2015 ao abrigo do disposto no art.º 47º nº 3 do CPC (fls. 459) e só em 3.5.2016 a autora constituiu novo mandatário e, em resultado de nova notificação expressa para tanto, só em 30.5.2016 o interveniente assim procedeu.
Voltando ao tema do recurso, importa salientar que competindo às partes o ónus do impulso processual, não podia o Tribunal substituir-se às mesmas (ver nº 1 do art.º 6º do CPC: “…sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes…”) ou alertá-las das consequências do respectivo comportamento omissivo, que decorre directamente da Lei, especialmente num processo em que é obrigatória a constituição de mandatário judicial e em que se aguardou, com muita parcimónia, que a autora e o interveniente principal estivessem, novamente, devidamente representados por advogado.
Como refere Lebre de Freitas (Introdução ao Processo Civil, 3ª ed., pp. 157 e 158), “a partir da propositura da acção cabe ao juiz providenciar pelo andamento do processo, mas podem preceitos especiais impor às partes o ónus de impulso subsequente, mediante a prática de determinados actos cuja omissão impeça o prosseguimento da causa,” exemplificando precisamente com o caso da habilitação dos sucessores.
Ou como afirma António Júlio Cunha (Direito Processual Civil Declarativo, 2ª ed., p. 56), “Após a demanda cabe ao juiz, atento o seu poder de direcção (art.º 6º nº 1), providenciar pelo andamento regular e célere da ação, mas ainda assim importa ter em conta que determinados preceitos impõem às partes certos ónus de impulso subsequente como, por exemplo, o ónus de requerer a habilitação dos sucessores da parte falecida (…)”( (1)).
«(…) Contrariamente à ideia que a recorrente quer fazer passar, continua a vigorar no processo civil actual o princípio da autorresponsabilização das partes (estreitamente ligado ao princípio da preclusão). Como se diz no acórdão da Relação de Guimarães de 2 de fevereiro de 2015 (processo nº 990/14.6T8BRG.G1) em caso paralelo ao vertente, “Atribui-se (…) ao juiz o poder de direcção do processo, deferindo-lhe a competência para, em superação da omissão da parte, providenciar pelo suprimento dos pressuposto processuais susceptíveis de sanação e convidar as partes a praticar os actos necessários à modificação subjectiva da instância, quando isso se torne necessário, reforçando-se o princípio do dispositivo. Não obstante, nem por isso se eliminou o princípio da auto-responsabilidade das partes”.
A inércia processual das partes (seja por inépcia ou impreparação sua em termos técnico-processuais, seja intencionalmente em função de uma certa interpretação do direito aplicável) produz consequências negativas (desvantagens ou perda de vantagens) para elas, só havendo lugar à desvalorização do princípio da sua autorresponsabilização mediante a intervenção tutelar, assistencial ou correctiva do tribunal quando a lei o preveja, e não é o caso. E como nos diz ainda Lebre de Freitas (ob. cit., p. 183), em asserção em torno precisamente dos princípios da preclusão e da autorresponsabilidade das partes, a omissão continuada da actividade da parte, quando a esta cabe um ónus especial de impulso processual subsequente, tem efeitos cominatórios, que podem consistir, designadamente, na deserção da instância.
De igual forma, António Júlio Cunha (ob. cit., p. 89) aduz que “As partes, em regra, não se encontram obrigadas a adoptar certos comportamentos, mas se o não fizerem não obterão determinadas vantagens ou daí poderá decorrer um prejuízo. Mas se assim é (…) são as mesmas que respondem pelos resultados negativos (para os seus próprios interesses) da sua conduta”» (2).
Do exposto resulta que as partes – in casu e em primeira linha a autora, dado o seu interesse em agir – incumpriram o seu dever de promoção processual, sendo-lhes por isso imputáveis, e não ao tribunal, as respectivas consequências.
Nada há assim a apontar à decisão recorrida, perfeitamente estribada na lei processual civil vigente.

V - DELIBERAÇÃO

Nestes termos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela apelante.
Guimarães, 09-11-2017



1. Ac. do STJ de 20.9.2016 (processo nº 1742/09.0TBBNV-H.E1.S1) in dgsi.pt
2. Ibidem