ACIDENTE DE VIAÇÃO
INCAPACIDADE PERMANENTE
INCAPACIDADE PERMANENTE PARCIAL
TABELA APLICÁVEL
Sumário

1 – No âmbito do Direito Civil a avaliação do dano corporal incide sobre a incapacidade permanente geral, isto é a incapacidade para os actos e gestos correntes do dia a dia, enquanto no campo do Direito do Trabalho, está em causa a avaliação da incapacidade de trabalho resultante do acidente ou doença que determina perda da capacidade de ganho.
2 – Invocando-se na acção uma incapacidade permanente parcial para o trabalho, os peritos, ainda que a perícia seja requisitada no âmbito de processo de natureza cível, não podem escudar-se a responder aos pertinentes quesitos e a socorrer-se da tabela respectivamente aplicável.

Texto Integral

Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

G…COMPANHIA DE SEGUROS, S.P.A., interpôs recurso da sentença final.
Pede a alteração da mesma no que tange ao montante da indemnização.
Assenta nas seguintes conclusões:
I. Nos autos não ficou provada qualquer incapacidade parcial permanente para o trabalho, mas apenas um défice funcional permanente da integridade físico psíquica do autor, com uma repercussão na vida profissional deste de esforços suplementares não quantificados.
II. São distintos os conceitos de incapacidade parcial permanente para o trabalho e o de incapacidade parcial permanente geral ou défice funcional.
Aquele, partindo da pessoa e da profissão concretas do lesado, fixa o grau de diminuição da capacidade de trabalho deste para o exercício daquela, e, nessa medida, a diminuição da sua capacidade de ganho. Este – o défice – parte da avaliação do ser humano em geral e fixa a diminuição da capacidade deste (e não concretamente do lesado), por causa das sequelas de que ficou afectado para o uso do seu corpo para os normais afazeres do quotidiano (ou seja, qualquer ser humano afectado daquela sequela terá aqueles determinados pontos de desvalorização).
III. A pontuação usada para fixar o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica não pode ser usada para a quantificação dos esforços suplementares do rebate profissional sofrido pelo autor.
IV. O tribunal indemnizou o dano resultante do défice funcional permanente, maxime na sua repercussão profissional, como se fora um dano de perda de capacidade de ganho resultante duma incapacidade para o trabalho, quantificando-o, para o efeito, com base na pontuação que lhe foi atribuída.
V. Ao fazê-lo confundiu, salvo o devido respeito, os conceitos de incapacidade parcial permanente para o trabalho e de incapacidade parcial permanente geral/défice funcional permanente respectivamente previstos e regulados no artº 2º do DL. 352/07, de 23 de Outubro. E usou depois indevidamente a quantificação usada para esta última – numa pontuação de 1 a 100 – para quantificar a repercussão profissional do dito défice funcional.
VI. Aquele tribunal violou, pois, salvo o devido respeito, o previsto no artº 2º do DL. 352/07, de 23 de Outubro, e nos Artºs 562º, 563º, 564º e 566º do Código Civil, devendo, como tal, a indemnização em apreço ser diminuída de € 39.000,00, como foi arbitrada, para não mais de € 20.000,00.
R…, contra-alegou concluindo que:
1ª- O invocado “défice funcional permanente da integridade físico psíquica” é mais abrangente que a IPP laboral, incluindo esta, que resulta daquela em linha directa e necessária.
2ª- O resto são meras mudanças de nome, que começaram, já há muitos anos.
3ª- A Ré procura extrair algum proveito da inovação, através de uma teorização manifestamente forçada, que não pode valer como lei.
4ª- O que vale como lei é o juízo de valor legal. O resto são maquinações teoréticas, sabe-se lá feitas com que intenções…
5ª- A sentença recorrida procurou dar às soluções que buscou um mínimo de objectividade, a fim de evitar cair no arbítrio.
6ª- Só que esse mínimo de objectividade assentou num critério minimalista, em que uma IPP de mais de 50% pode acabar em 17 pontos dos novos critérios.
7ª- A R. não quis reparar, porém (mas deve o Tribunal fazê-lo) que a Tabela do âmbito do direito civil é meramente indicativa, pelo que a inerente indemnização tanto pode subir, como descer, em relação à IPP laboral.
8ª- A opinião dos senhores peritos sobre tal matéria é inteiramente irrelevante. Bom será que estudem o DL 352/2007 e as respectivas tabelas, porque disso bem precisam, mas sem descuidar o respectivo preâmbulo, que, não sendo propriamente luminoso, permite, ainda assim, chegar a mais alguma luz do que as simples tabelas.
9ª- Pretender que um Jurista de formação e, mais do que isso, um Magistrado Judicial se submeta às interpretações de quem não dispõe da menor preparação técnica para tanto parece um claro exagero.
10ª- A consequência da argumentação da R., se ela fosse fundada, teria de ser outra, não essa: A sentença deveria ser anulada e o processo deveria voltar ao Gabinete Médico-Legal para o invocado art.º 33º da B.I. obter a resposta a que tem direito, como matéria alegada pelo A.
11ª- A sentença recorrida não violou, em prejuízo da R., nenhum dos preceitos legais enumerados na conclusão VI.
12ª- As conclusões formuladas pela mesma R. devem, todas, ser julgadas improcedentes.
R… também interpôs recurso da sentença, peticionando a condenação da R. no pagamento da quantia de 175.639,15€ e juros, à taxa legal, a contar da data da citação.
Após alegar, formula as seguintes conclusões:
1ª- À pergunta do A. sobre a percentagem da IPP [do A.], determinada de acordo com a Tabela I (Âmbito laboral) aprovada pelo DL 352/2007, os peritos intervenientes no exame responderam, com o “non sense” “Em virtude do acidente o autor não ficou a padecer de uma Incapacidade Parcial Permanente para o Trabalho de 19,53%”.
2ª- O A. acabou por não ter resposta a nenhum dos seus quesitos apresentados ao GML.
3ª- O disposto no DL 352/2007, de 23-10, deverá ocorrer em acumulação dos valores determinados no âmbito laboral e no âmbito do direito civil.
4ª- As lesões emergentes de um acidente podem ser:
a) Do âmbito exclusivo do direito civil, se o lesado não é laboralmente activo nem tem possibilidades de vir a sê-lo;
b) Do âmbito acumulado do direito civil e do direito do trabalho, se o lesado for laboralmente activo ou se, não o sendo no momento da lesão, tem expectativas jurídicas de vir a sê-lo mais tarde.
5ª- É facto incontrovertível que não existem lesões relevantes em direito laboral que não o sejam, também, em direito civil.
6ª- No relatório preliminar do DL n.º 352/2007, lê-se a fls. 7715 - 2ª col.ª – 1º §:
“No direito laboral, por exemplo, está em causa a avaliação da incapacidade de trabalho resultante de acidente de trabalho ou doença profissional que determina perda da capacidade de ganho, enquanto que no âmbito do direito civil e face ao princípio da reparação integral do dano nele vigente, se deve valorizar percentualmente a incapacidade para os actos e gestos correntes do dia-a-dia, assinalando depois e suplementarmente o seu reflexo em termos da actividade profissional específica do examinado.” (Sublinhado do signatário).
7ª- E logo a seguir, no penúltimo parágrafo:
“Por isso mesmo opta o presente decreto-lei pela publicação de duas tabelas de avaliação de incapacidades, uma destinada a proteger os trabalhadores no domínio particular da sua actividade como tal, isto é, no âmbito do direito laboral, e outra direccionada para a reparação do dano em direito civil.”
8ª- Deve começar por valorizar-se a incapacidade para os actos e gestos correntes do dia-a-dia, “assinalando depois e suplementarmente o seu reflexo em termos da actividade profissional específica do examinado.”
9ª- O termo “suplementarmente” não permite dúvidas sobre a necessidade de utilizar as duas tabelas e de fazer acumular as indemnizações apuradas relativamente à valorização de cada tabela.
10ª- O exame pericial não passa de mais um elemento, a considerar, em conjunto com outros, no cômputo numérico da indemnização a fixar.
11ª- Nem podia deixar de ser assim, uma vez que a responsabilidade civil emergente de actos ilícitos praticados por mera culpa está sujeita a juízos de equidade e que a força probatória dos relatórios periciais é fixada livremente pelo Tribunal.
12ª- As conclusões do relatório médico-legal têm um alcance meramente indicativo, não só por terem sido estabelecidas a partir de uma Tabela com carácter meramente indicativo, mas também porque o seu valor probatório é o que lhe for atribuído livremente pelo Tribunal, no contexto das demais provas produzidas.
13ª- O comportamento dos peritos intervenientes não é no sentido da sua credibilização, não só por terem pretendido corrigir o Tribunal em área estritamente jurídica, mas também por terem recusado uma resposta leal aos quesitos formulados pelo A., ao mesmo tempo que respondiam aos pedidos de esclarecimento apresentados pela R.
14ª- O A. estava, com está, convencido que ambas as Tabelas são aplicáveis ao caso destes autos, considerando:
 Que o A. é laboralmente activo;
 Que o acidente teve consequências negativas na sua capacidade laboral;
 Que o acidente não pode ser submetido à apreciação do Tribunal de Trabalho, por não ser qualificável como acidente de trabalho.
15ª- Das lesões sofridas pelo A. resultaram as seguintes sequelas:
 limitação da mobilidade do polegar direito, que não faz a extensão;
 flexão dolorosa palmar do punho direito;
 cervicalgias residuais;
 cicatriz arredondada com 10 centímetros de diâmetro, na face anterior do hemitorax esquerdo, resultante de abrasão.
16ª- O exercício profissional do A. como tractorista de monte envolve também o trabalho intercalar com a motosserra e o empilhamento de madeiras (como preparação da sua carga no atrelado do tractor).
17ª- Ao tractorista de monte compete-lhe ajudar a traçar e a esgalhar os troncos, depois de abatidos, juntar os rolos em local espaçoso para a carga e, depois, carregá-los no atrelado, a fim de transportá-los para um “cais” acessível aos camiões.
18ª- O tractorista tem de conduzir o conjunto de tractor-atrelado através de terrenos irregulares, frequentemente com declives muito acentuados, que obrigam a constantes manobras de emergência e à permanente observação, olhando para trás, do terreno que vai sendo pisado pelo atrelado, e tudo isto em meio de solavancos e de ressaltos em pedras, que nem sempre podem ser evitadas.
19ª- Toda a agilidade de movimentos que é requerida a um tractorista de monte, é anulada pela dor sempre presente nas movimentações do pescoço e dos braços.
20ª- Igualmente, o trabalho com a motosserra e o machado fica impossibilitado, pelo peso destes instrumentos e pela vibração e choque da sua utilização, associados à dor e imobilidade do dedo polegar e do punho direitos.
21ª- O A. indicou cinco testemunhas, todas com razão de ciência certa e que foram inteiramente esclarecedoras sobre a questão de saber se o A., depois do acidente, ficou ou não sem capacidade física para exercer as funções de tractorista.
22ª- Perante a prova testemunhal produzida e acima transcrita, o A. não dispõe de condições psico-físicas para o desempenho da sua profissão e só não foi, ainda, despedido, porque trabalha para o seu próprio pai, que procura assegurar-lhe um mínimo de rendimento que lhe permita subsistir, com o seu agregado familiar.
23ª- A resposta ao quesito 37º da B.I. deverá ser alterada para: Provado que, depois do acidente, o A. ficou sem capacidade física para exercer as funções de tractorista.
24ª- Os senhores peritos não são juízes, não estão autorizados a emitir juízos de equidade, não tiveram acesso a outros elementos de prova, além dos que estão nos autos sob a forma de relatórios médicos e de registos clínicos e … repetem monotonamente, em todos os relatórios, a referência à compatibilidade com o exercício da profissão anterior.
25ª- Os senhores peritos não especificaram, nem explicam, até onde chega, ou se tolera, o esforço suplementar.
26ª- Obviamente, porém, tal esforço suplementar tem um limite, para além do qual nada é possível.
27ª- Esse limite compõe-se de duas partes: a dor e a abnegação humanamente atingível.
28ª- Consideradas as características da operosidade e de energia física do A. anteriores à lesão, que foram provadas, não podem restar dúvidas de que já ultrapassou esses limites.
29ª- A fixação da indemnização pela perda da capacidade de ganho futuro do A. deverá recorrer a critérios equitativos, sem perder de vista os cálculos financeiros possíveis, de acordo com as condições do mercado.
30ª- Procedendo a uma redução equitativa deste pedido parcelar por IPP, o A. reformula-o e redu-lo para a quantia de €150.000,00.
31ª- Os danos não patrimoniais sofridos pelo A. são muitos, extensos e graves.
32ª- Esteve prolongadamente doente, temeu vir a morrer, sofreu e fez sofrer pessoas que estima particularmente, ficou a sofrer de consequências permanentes relevantes, que virão a prolongar-se por toda a sua vida, por um período expectável de 50 anos após o acidente.
33ª- Tem desgosto por ter ficado fisicamente deficiente e por sofrer incapacidade para o exercício da condução de tractores em matas.
34ª- A compensação pelos danos patrimoniais passados e futuros não deverá ser inferior aos €25.000,00 pedidos inicialmente.
35ª- As verbas de indemnização e compensação pedidas são as seguintes:
Danos não patrimoniais passados e futuros € 25.000,00
Incapacidade funcional como tractorista de monte €150.000,00
Despesas várias € 639,15
Total €175.639,15
36ª- A esta quantia devem acrescer juros moratórios, à taxa legal de 4%, a contar da data da citação e até embolso total (C. Civil, 805º-3 e 806º-1 e 2).
37ª- Decidindo em sentido diverso do aqui peticionado, a sentença recorrida violou o disposto nos Artºs 483º, 496º, 562º, 564º e 566º do Código Civil, por ter avaliado deficientemente a extensão e a gravidade dos danos suportados pelo A. e as quantias necessárias à sua compensação pelo que deve ser revogada e substituída por acórdão deste Tribunal da Relação, que condene a R. a pagar ao A. a quantia de €175.639,15 e juros, à taxa legal, a contar da data da citação.
A aqui Recrdª contra-alegou pugnando pela manutenção do decidido, alegando que as sequelas avaliadas permitem concluir por uma incapacidade parcial permanente geral implicando esforços complementares para o exercício da actividade profissional.
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Exara-se, agora, uma breve resenha dos autos para melhor compreensão.
R… e L… vieram propor contra G…Companhia de Seguros, S.P.A. a presente acção ordinária, pedindo a sua condenação a pagar, a título de indemnização por acidente de viação, € 213.895,89 ao Autor e € 1.814,88 à Autora, tudo acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.
A requerimento da Ré, foi admitida a intervenção acessória de J…, residente no lugar…..
Realizada audiência de discussão e julgamento, veio a ser proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente por provada e, em consequência, condenou a Ré a pagar: ao Autor, a quantia de € 49.639,15 (quarenta e nove mil seiscentos e trinta e nove euros e quinze cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, desde a citação sobre € 39.639,15 e desde a presente data sobre o restante, até integral pagamento; à Autora, quantia de € 91,60 (noventa e um euros e sessenta cêntimos), acrescida de juros de mora, à mesma taxa, desde a citação até integral pagamento.
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Das conclusões que exarámos acima extraem-se as seguintes questões a decidir:
A) No recurso da R.: deve diminuir-se a indemnização pelo défice funcional?
B) No recurso do A.:
1 – O disposto no DL 352/2007, de 23-10, deverá ocorrer em acumulação dos valores determinados no âmbito laboral e no âmbito do direito civil?
2 – O tribunal errou no julgamento da matéria de facto?
3 – A indemnização pela perda de capacidade de ganho deve fixar-se em 150.000.00€?
4 – Os danos não patrimoniais devem ser indemnizados com a quantia de 25.000,00€?
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Iniciemos a discussão pelo invocado erro de julgamento da matéria de facto.
Em causa a resposta ao quesito 37º e a prova pericial realizada, conjugada com os depoimentos proferidos por diversas testemunhas.
Indagava-se no quesito 37º:
Depois do acidente o A. ficou sem capacidade física para exercer as funções de tractorista?
Este quesito mereceu do Tribunal recorrido resposta de provado apenas o que consta da resposta ao quesito 33º, ou seja, provado apenas que tais sequelas determinam, para o A., um défice funcional da integridade física de 11 pontos, compatível com o exercício da actividade profissional habitual, mas implicando esforços suplementares.
No quesito 33º, por sua vez, indagava-se se em virtude do acidente o A. ficou ainda a padecer de uma incapacidade parcial permanente para o trabalho de 19,53% (determinada de acordo com o DL 352/2007).
Pretende o Recrte. que o quesito 37º obtenha resposta de provado.
A fundamentar as respostas a estes quesitos o Tribunal recorrido exarou que: “Quanto às consequências do acidente para o Autor, avultam os elementos clínicos de fls. 50 a 64 e a perícia colegial médico-legal de fls. 192 a 195 (que obviamente se sobrepõe ao relatório médico de fls. 65, elaborado por ortopedista que interveio naquela perícia), complementada com os esclarecimentos de fls. 214 e 224. Foram ainda úteis os depoimentos de pessoas que conhecem bem o Autor: seus pais A… e R…, sua irmã S… e suas primas B… e C….
Pese embora os depoimentos relativos à afectação da capacidade de trabalho do Autor – de seu pai, de seu colega de trabalho D…, de J… (que tem negócios com o pai do Autor), de E…(vigilante da floresta que por vezes assiste à actividade de corte e transporte de madeiras), de V…e de F… (amigos do Autor) – é evidente que não foram suficientes para contrariar a citada perícia, que passa por um exame objectivo e de carácter técnico, despido da subjectividade natural daquelas testemunhas.”
Começamos por salientar que a fls. 65 consta um parecer de ortopedia segundo o qual, e no que para aqui releva, às sequelas das lesões sofridas deve atribuir-se, segundo a TNI do DL 352/2007, uma IPP de 19,53%.
Por outro lado, salienta-se também que, em presença da perícia colegial médico-legal o A. efectuou duas reclamações, suscitando a questão de os quesitos que apresentara não terem sido respondidos, o que motivou o Tribunal recorrido a ordenar que fossem prestados os esclarecimentos em falta.
Entre esses quesitos avultava um que pretendia saber dos peritos qual a percentagem da IPP determinada de acordo com a Tabela I (âmbito laboral) aprovada pelo DL 352/2007 (25).
Vieram os peritos a responder que “em virtude do acidente o autor não ficou a padecer de uma incapacidade parcial permanente para o trabalho de 19,53%. O autor ficou a padecer de uma incapacidade permanente da integridade físico-psíquica de 11 pontos, com base no Anexo II do DL 352/2007 de 23/10, dado tratar-se de uma avaliação do âmbito do Direito Civil, não se aplicando neste caso uma avaliação percentual que é utilizada nas avaliações do Direito do Trabalho”.
O Recrte. insurge-se, afirmando que acabou por não ter resposta a nenhum dos seus quesitos.
E, na verdade, de um conjunto de 26 quesitos apresentados logo na audiência preliminar, não vemos que a perícia colegial se tenha debruçado sobre algum deles.
Ora, sobre a perícia, o Tribunal proferiu um despacho concretizando que a mesma teria por objectivo os quesitos apresentados em sede de audiência preliminar e, bem assim, a matéria que consta dos Artº 22º, 26º, 27º, 29º, 30º a 34º e 37º da base instrutória, também eles não especificamente respondidos.
Aqui chegados, é importante que nos detenhamos sobre a avaliação propriamente dita.
O DL 352/2007 de 23/10 alterou, de forma drástica, o panorama nacional no que concerne ao modo de avaliação do dano corporal, tido como alterações na integridade psico-física.
É assim que, para além de uma revisão da tabela nacional de incapacidades já existente para o Direito Laboral, se instituiu uma tabela tendo em vista a avaliação do dano em Direito Civil.
Não nos parece, contudo, que uma seja excludente da outra, ou, melhor dizendo, que sempre que se suscite uma perícia em direito civil se não possa/deva, se assim for reclamado pelo caso concreto, deitar-se mão daquela.
O que ocorre é que no âmbito do Direito Civil a avaliação, tal como ali se consignou, incide sobre a incapacidade permanente geral, isto é “a incapacidade para os actos e gestos correntes do dia a dia”, enquanto no campo do Direito do Trabalho, está em causa a avaliação da incapacidade de trabalho resultante do acidente ou doença que determina perda da capacidade de ganho. Daí que uma e outra obedeçam a diferentes parâmetros.
Por isso, no decreto preambular daquele diploma se diz que na avaliação em Direito Civil se assinala, suplementarmente, o reflexo da incapacidade permanente geral em termos de actividade profissional específica do examinando.
Obviamente que a pontuação global obtida para a incapacidade permanente geral não é equivalente a um percentual de incapacidade permanente para o trabalho.
Mas, se o não é – como claramente resulta do diploma – então é importante que se saiba exactamente em que medida as sequelas resultantes das lesões sofridas no acidente se repercutem nesta. Até porque, como é sabido, o cálculo da indemnização pelo dano futuro, parte do valor da incapacidade para o trabalho. E, nessa medida, a avaliação com base na tabela respectiva é um imperativo.
Parece-nos, assim, que os peritos, sendo-lhes perguntado, não se podem escudar a responder, como ocorreu no caso presente, afirmando que, por se tratar de avaliação no âmbito do Direito Civil, as sequelas não são avaliadas nem quantificadas na vertente do Direito do Trabalho, dado que o que é determinante é a matéria em avaliação.
Sendo, embora, verdade, que, a tabela introduzida no sistema legal em 2007 “não constitui um manual de patologia sequelar nem um manual de avaliação”, tendo sido “concebida para utilização exclusiva por verdadeiros peritos” (intróito ao Anexo II), também é verdade que a avaliação pericial é sindicável pelo juiz que não fica proibido de apreciar livremente o juízo pericial.
Por isso é que a fixação do grau de incapacidade continua, do nosso ponto de vista, a compreender um juízo de facto que reclama conhecimentos científicos – maxime, definição de sequelas –, e um juízo de direito traduzido na indagação e aplicação da tabela. Para tanto é essencial que se conheça o quadro clínico considerado na perícia, o que, no caso concreto, falha.
Para além disso, se bem atentarmos no relatório pericial, escreveu-se ali que o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica se refere “á afectação da integridade física e/ou psíquica da pessoa, com repercussão nas actividades da vida diária, incluindo familiares e sociais, e sendo independente das actividades profissionais”, “corresponde ao dano que vinha sendo tradicionalmente designado por incapacidade permanente geral... e referido na Portaria nº 337/2008 de 26/05, como dano biológico ”. E, mais adiante diz-se, quanto á repercussão das sequelas na actividade profissional – que não vemos exaradas em parte alguma –, que as mesmas “são compatíveis com o exercício da actividade habitual, mas implicam esforços complementares”, expressão que, aliás, começa a ser um habitual nas várias perícias com que nos deparamos.
Ora, da perícia realizada, não conseguimos aferir que sequelas se valorizaram e como valorizaram no que respeita à eventual perda de capacidade para o trabalho, parecendo-nos mesmo que esta não foi, em face do esclarecimento acima enunciado, equacionada.
Nem dos esclarecimentos prestados pelos peritos que, á pergunta se o défice funcional permanente é ou não revelador de um dano de perda de capacidade de ganho, responderam que a repercussão das sequelas no âmbito do Direito Civil é quantificada como rebate profissional, isto é, o examinando tem dificuldades acrescidas no desempenho da sua actividade habitual, tendo, ao mesmo tempo, esclarecido que o défice funcional é fixado considerando a repercussão na capacidade de ganho e que a pontuação não pode ser usada para quantificar os referidos esforços suplementares.
Donde nos fica a ideia de que a efectiva incapacidade para o trabalho ficou por indagar. E constituía objecto da perícia!
Regressando à resposta ao quesito 37º, em face dos esclarecimentos acabados de reproduzir, não nos parece que o mesmo possa ser respondido por remissão para o quesito 33º. Na medida em que a resposta que este obteve, não se reporta à pergunta que o mesmo continha. Na verdade, vai para além dela.
Note-se que ao quesito 33º foi dada uma resposta aparentemente restritiva, quando, afinal, a incapacidade permanente geral é muito mais ampla do que a incapacidade para o trabalho – comportando o chamado dano biológico, ou seja, ofensa á integridade física e psíquica –, que era, afinal do que ali se indagava.
Parece-nos, assim, que a perícia colegial realizada ficou aquém do pretendido e ordenado, não nos possibilitando uma decisão conscienciosa, sendo que as falhas, por envolverem conhecimentos de cariz científico, não podem ser colmatadas pelo recurso á prova testemunhal.
Dessa falha resulta a deficiência na resposta, quer ao quesito 37º, quer ao quesito 33º, quesitos que contém matéria absolutamente relevante na decisão das subsequentes questões colocadas no recurso.
Donde, não constando no processo todos os elementos probatórios relevantes, se entende dever anular o julgamento de forma a que os quesitos em referência possam vir a ser respondidos após realização da perícia ordenada com resposta aos quesitos pertinentes que definiram o respectivo objecto e que, neste momento, e não se registando qualquer discussão acerca das lesões e sequelas apuradas, se deverá cingir ao quesito formulado pelo A. sob o nº 25 e aos quesitos 33º e 37º da base instrutória.
A repetição do julgamento não abrange a parte da decisão que não esteja viciada, podendo, no entanto, o tribunal ampliar o julgamento de modo a apreciar outros pontos da matéria de facto, com o fim exclusivo de evitar contradições na decisão (Artº 712º/4 do CPC).
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Fica, assim, prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas em ambos os recursos.
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Em conformidade com o exposto, acorda-se em anular o julgamento relativamente aos concretos pontos da matéria de facto supra assinalados (quesitos 33º e 37º) e ordenar a respectiva repetição com vista ao apuramento de tal, podendo o tribunal ampliar o julgamento de modo a apreciar outros pontos da matéria de facto com o fim exclusivo de evitar contradições na decisão.
Custas pela parte vencida a final.
Notifique.
Manuela Fialho
Edgar Valente
António Beça Pereira