PENHORA
SALÁRIO
RECLUSO
Sumário

I - Pode ser penhorada, a remuneração auferida por recluso, para pagamento da indemnização pelos danos a que deu causa o crime que cometeu, em termos de dar satisfação ao ofendido/exequente pelos bens do próprio causador do dano, desde que se verifiquem as condições plasmadas no artº 46, da Lei nº 115/2009, de 12 de Outubro.
II – Existindo norma especial, que dispõe sobre a situação em que o executado/recluso se encontra, artº 46, da Lei nº 115/2009, de 12 de Outubro, no valor a penhorar não há que atender à regra geral sobre a impenhorabilidade a que alude o artº 824, nº 1, al a) e nº2, do CPC.

Texto Integral

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I – RELATÓRIO
A exequente, B..., instaurou o presente processo de execução comum, para pagamento de quantia certa contra C..., requerendo a penhora de bens e direitos do executado suficientes para garantia do pagamento da dívida exequenda, juros vincendos e despesas, até à data no total de 37.103,24€.
Fundamenta o seu pedido, alegando que o executado por acórdão de 10 de Fevereiro de 2010, transitado em julgado, foi condenado a pagar-lhe a título de indemnização cível a quantia de 35.695,00€, acrescidos de juros de mora, à taxa legal, a partir da notificação do pedido e até integral pagamento.
Junto o relatório de fls. 25, a exequente apresentou o requerimento de fls. 27, onde requer a penhora do subsídio atribuído ao executado enquanto recluso, devendo para o efeito notificar-se a Direcção Geral dos Serviços Prisionais e EP de Santa Cruz do Bispo.
Foi solicitada ao Estabelecimento Prisional informação sobre a atribuição e montante de subsídio ao recluso e, informado o que consta a fls. 29, quanto ao valor do salário auferido de € 2,10, por cada dia útil de trabalho, veio a exequente a fls. 32, renovar o pedido de nomeação de bens à penhora, nos termos já efectuados a fls. 27.
Após a informação prestada pelo EP, a fls. 34, sobre o valor do salário mensal auferido, em média, pelo recluso, foi proferido despacho, nos termos que constam a fls. 35, do seguinte teor:
“Atento o valor mensal da retribuição auferida pelo executado, julga-se inadmissível a respectiva penhora, nos termos do disposto no artigo 824.º n.º 1 alínea a) e n.º 2 do Código Processo Civil, entendendo-se que a privação da liberdade não implica o afastamento dos pressupostos legais da impenhorabilidade, nem, por si só, justifica a redução do limite mínimo imposto no n.º 2 do aludido preceito legal.
Nestes termos, indefere-se o requerimento de 10-5-2012.
Notifique.”.
Inconformada com o mesmo, dele interpôs recurso a exequente terminando a sua alegação junta a fls. 36 e ss., com as seguintes CONCLUSÕES:
I - O Recorrido/Executado por douto acórdão de 10 de Fevereiro de 2010, foi condenado ao pagamento a titulo de indemnização cível que perfaz o total de € 37.103,24.
II - Foi requerido pela Recorrente/Exequente, a penhora de bens e direitos do Recorrido/Executado para a garantia do pagamento da divida exequenda, juros vincendos e despesas.
III - Foi indicado pelos serviços do Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo que o Recorrido aufere €2,10, por cada dia útil de trabalho na faxina do E.P.
IV - Nos termos do artigo 46° da L 115/2009, a Remuneração no E.P. destina-se à constituição de 4 Fundos
V - Um dos fundos destina-se ao pagamento de indemnizações multas, custas e obrigações emergentes da condenação (por esta ordem)
VI - Um dos Fundos destina-se ao cumprimento de obrigações de alimentos,
VII - O Recorrido não tem a seu cargo beneficiários de prestação de alimentos, vive com os pais pelo que este fundo deverá reverter a favor do fundo de indemnização, por força do n°2 do 46° da L 115/2009.
VIII - Deverá ser descontado 1/3 = €0,70 (Setenta Cêntimos) do salário do Recorrido, por cada dia de trabalho útil, a favor da Recorrente.
IX - Violou assim a douta decisão de que se recorre, o artigo 46° da Lei 115/2009, e o art. 824° do CPC.
Nestes termos e nos melhores de direito deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que ordene a penhora da remuneração auferida pelo executado no EP nos termos permitidos
Assim se decidindo, far-se-á como sempre, a costumada JUSTIÇA !!!

Por despacho de fls. 43, o recurso foi admitido, nos termos do nº4 do artº 691, do CPC e, ordenada a sua subida, após se ter procedido à extinção da execução nos termos do nº6, do artº 833-B, do CPC.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

O objecto do recurso está delimitado pelas conclusões das alegações (artºs 684, nº 3, e 685-A, nº 1, do CPC), salvo questões do conhecimento oficioso (artº 660, nº 2, in fine). Assim, a questão posta à consideração deste Tribunal, traduz-se em saber se o direito da exequente/ofendida em receber a indemnização em que foi condenado o executado prevalece sobre a impenhorabilidade estabelecida no artigo 824, nº1, al. a) e nº2, do CPC.

II – FUNDAMENTAÇÃO
Os factos a considerar são os que constam do relatório que antecede.

Insurge-se a recorrente/exequente contra o despacho proferido em 29.5.2012, sustentando a prevalência do seu direito sobre a impenhorabilidade estabelecida no artº 824 do CPC, invocando o que dispõe o artº 46 da Lei nº 115/2009.
Vejamos se lhe assiste razão.
Conforme resulta dos autos, o executado, detido no EP de Santa Cruz do Bispo foi condenado a pagar à exequente a título de indemnização cível, por acórdão transitado em julgado, a quantia reclamada nestes autos, requerendo a mesma, porque o executado se encontra detido a penhora do subsídio que lhe é atribuído enquanto recluso.
Como resulta do despacho recorrido, o Tribunal “a quo”, atento o valor da retribuição auferida pelo executado, nos termos do disposto no artº 824, nº1, al. a) e nº2, do CPC, julgou inadmissível a requerida penhora, defendendo que a privação da liberdade não implica o afastamento dos pressupostos legais da impenhorabilidade, nem o limite mínimo imposto naquele nº2.
A recorrente invoca a aplicação, ao caso do artº 46, da Lei nº115/2009 de 12 de Outubro que aprovou o Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade.
Este artº 46, sobre a epígrafe, “Destino e repartição da remuneração”, dispõe o seguinte:
1 — As remunerações e outras receitas são repartidas em quatro partes iguais, que são afectas à constituição de fundos com as seguintes finalidades:
a) Uso pessoal pelo recluso, designadamente em despesas da sua vida diária;
b) Apoio à reinserção social, a ser entregue ao recluso no momento da sua libertação e, excepcionalmente, apoio no gozo de licenças de saída;
c) Pagamento, por esta ordem, de indemnizações, multas, custas e outras obrigações emergentes da condenação;
d) Pagamento de obrigações de alimentos.
2 — No caso de o condenado não se encontrar sujeito às obrigações previstas nas alíneas c) ou d) do número anterior, o montante que lhes corresponde é repartido em partes iguais pelos restantes fundos.
3 — Atendendo a circunstâncias especiais, o director-geral dos Serviços Prisionais pode autorizar uma repartição diferente da prevista no presente artigo.
Ao analisarmos esta norma e, se bem a interpretamos, também ela, tal como o artº 824, do CPC, referido no despacho recorrido, estabelece uma impenhorabilidade relativa, na medida em que define as circunstâncias em que a remuneração do trabalho do recluso pode ser afectada ao pagamento de certas dívidas.
Não se suscitam dúvidas que a execução levada a cabo pela ofendida/exequente tem em vista o pagamento da indemnização em que o executado/arguido foi condenado a pagar-lhe a título de indemnização cível em processo crime em que foi condenado.
O pagamento desta indemnização encontra fundamento legal na previsão dos artigos 129º do CP e 483º, 496º, 562º a 564º, todos do Código Civil. A fonte da obrigação de indemnizar resulta dos prejuízos sofridos pela lesada por via da prática de crime praticado pelo arguido/executado. Quer parecer-nos que a lei, ao excepcionar a impenhorabilidade da remuneração do recluso aos prejuízos que dolosamente causou, está justamente a acautelar os prejuízos sofridos pelo lesado em virtude da prática de um crime cometido pelo recluso, em termos de dar uma satisfação aos ofendidos, através dos próprios bens do arguido que foi causador do dano sofrido.
Não pode ter-se em atenção, a razão que está subjacente à impenhorabilidade a que alude o nº2, do artº 824, do CPC. Sem dúvida esta tem a sua razão de ser na preservação da dignidade da pessoa humana, aplicada a situações do viver normal, no caso em que o executado se encontra a trabalhar e em liberdade, sendo o mínimo ali estabelecido, o valor que se considera não poderia deixar de auferir se estivesse a trabalhar.
O artº 824, do CPC, dispõe para as situações normais da vida, caso o executado se encontrasse a trabalhar e em liberdade, aí ele não poderia ser-lhe penhorado um valor superior ao mínimo ali salvaguardado, considerado o mínmo necessário à manutenção da sua dignidade.
No entanto, perante a existência de uma lei especial, que dispõe, sobre a especificidade da situação em que o executado se encontra, há que aplicar essa lei especial, exactamente, porque a mesma foi criada para acautelar a situação em que o executado se encontra, com respeito pela sua dignidade, enquanto pessoa, tendo em conta a situação em que se encontra e visando a sua reinserção na sociedade de onde se encontra momentâneamente afastado, cfr. dispõem os artºs 2º e 3º, da Lei nº 115/2009 referida.
Enquanto se mantiver a situação de reclusão do executado, independentemente, do valor da remuneração que o mesmo aufira mensalmente, não se tendo apurado que o recluso tenha obrigação de pagamento de alimentos, a lei dispõe que um terço, dos seus bens (remuneração e outras receitas) possam ser afectos ao pagamento da indemnização em que foi condenado a pagar à ofendida, de modo a ressarcir o que foi fixado ser-lhe devido, sendo o remanescente dividido em partes iguais pelas obrigações referidas nas als. a) e b), daquele artº 46 referido, as quais definem os limites mínimos de impenhorabilidade dos bens do executado, enquanto o mesmo se mantiver na situação em que se encontra.
Apesar do disposto no artº 824, do CPC que prevê uma impenhorabilidade que visa proteger os interesses do executado e da sua família, a verdade é que esta norma não estabelece para a situação em apreço. O equilíbrio entre o direito do credor à satisfação do seu crédito e o direito do devedor à garantia de um mínimo de subsistência dele próprio e do seu agregado familiar deve ser encontrado na referência ao salário mínimo nacional, estabelecido nos termos do artigo 59.º, 2, a) da Constituição da República, que consagra sobre os direitos dos trabalhadores, os quais não se encontrem privados da sua liberdade, devido a decisão legal.

Como referimos, nada emerge dos autos que permita concluir que o recluso tenha família a seu cargo e, obrigação de pagamento de alimentos e, tendo a ofendida requerido o pagamento da indemnização através da penhora de 1/3 do salário do recluso, entendemos que o disposto naquele artº 824, nº 2, não conflitua com o disposto no artº 46 da Lei nº 115/2009, na medida em que é esta última norma que regula a repartição da remuneração do recluso desde que se verifiquem as condições nela plasmadas.
O Código Processo Civil funciona como lei geral dando suporte legal de rectaguarda, emprestando os seus dispositivos naquilo em que a lei especial silencia, mas não sendo aplicável, quando existe lei especial que prevê a situação a resolver.
Sobre a licitude na afectação de uma parte da remuneração auferida pelo recluso para pagamento de indemnização, multas criminais e imposto de justiça, veja-se o Ac.RE de 5.2.1985, in CJ. Ano X, Tomo 1, pág. 331.

Impõe-se, assim, a procedência da apelação e a revogação do despacho recorrido.

Sumário - (artº 713, nº7, do CPC):
I - Pode ser penhorada, a remuneração auferida por recluso, para pagamento da indemnização pelos danos a que deu causa o crime que cometeu, em termos de dar satisfação ao ofendido/exequente pelos bens do próprio causador do dano, desde que se verifiquem as condições plasmadas no artº 46, da Lei nº 115/2009, de 12 de Outubro.
II – Existindo norma especial, que dispõe sobre a situação em que o executado/recluso se encontra, artº 46, da Lei nº 115/2009, de 12 de Outubro, no valor a penhorar não há que atender à regra geral sobre a impenhorabilidade a que alude o artº 824, nº 1, al a) e nº2, do CPC.

III - Decisão
Atento o exposto, acordam os Juízes desta secção em julgar procedente o recurso e, consequentemente, revoga-se o despacho recorrido que deve ser substituído por outro que ordene a penhora de 1/3 da remuneração auferida pelo executado C... e ulteriores termos da presente execução.

Sem custas.

Guimarães, 17 de Janeiro de 2013
Rita Romeira
Amilcar Andrade
Manso Rainho