RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
CAUSA DE PEDIR
INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
Sumário

I - No domínio da responsabilidade contratual a ilicitude de um facto danoso resulta da desconformidade entre o comportamento devido pelo seu autor (a prestação debitória) e o comportamento observado.
II - Não basta invocar um contrato e um dano para se concluir pela obrigação de indemnizar.
III - A causa de pedir tem de ser concretizada ou determinada, consistindo em factos ou circunstâncias concretas e individualizadas; não podendo apresentar-se como manifestamente irrelevante ou contraditória com o pedido.
IV - É sobre o autor, que invoca a titularidade de um direito, que cabe fazer a alegação dos factos de cuja prova seja possível concluir pela existência do direito – art.º 264º, nº1 do CPC.
V - Não tendo a Autora, alegado factos concretos que possam integrar a causa de pedir, verifica-se a falta desta e, consequentemente, a ineptidão da petição inicial, o que acarreta a nulidade de todo o processo ( artº 193º, nºs 1 e 2 a)),
VI - A nulidade de todo o processo constitui excepção dilatória que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância (artºs 493º, nºs 1 e2 e 494º b), do CPC), sendo de conhecimento oficioso do tribunal (artº 495º).
VII - Quando falta a causa de pedir, não há lugar a convite à parte para suprir a nulidade, nos termos do artº 508º CPC, pois ela não é sanável.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães


A… instaurou no Tribunal Judicial da Comarca de Monção, acção declarativa, com processo ordinário, contra:
As HERANÇA JACENTES por óbito de B… e de C…,
E contra seus HERDEIROS:
X…
Y… e
Z…
Pedindo que os Réus sejam condenados a pagar à Autora a quantia de €186.869,13, acrescida do valor a liquidar em execução de sentença relativo ao lucro cessante contabilizado entre 15 de Abril de 2008 até 31 de Dezembro de 2008, bem como do valor a apurar relativo ao dano de clientela, tudo acrescido de juros de mora à taxa legal até efectivo e integral pagamento.

Para tanto, alega, em síntese, que:
A Autora celebrou um contrato de arrendamento urbano, sobre o rés-do-chão de um prédio, sito no Largo do Loreto, em Monção, para aí explorar, na qualidade de arrendatária, um salão de cabeleireiro e um gabinete de estética.
A dona do prédio habitava no primeiro andar do mesmo prédio.
No dia 15 de Abril de 2008, ocorreu um incêndio no primeiro andar do imóvel, no qual funcionava o estabelecimento comercial da Autora.
Em consequência desse incêndio, o estabelecimento comercial da Autora ficou totalmente destruído, apesar de não ter sido directamente atingido pelas chamas, mas antes por enormes quantidades de água utilizada pelos bombeiros para extinguirem o incêndio.
A A. sofreu graves prejuízos pela destruição do recheio do estabelecimento, máquinas e equipamentos, utilizados na sua actividade, que ficaram inutilizados.
Considera que os prejuízos daí decorrentes deverão ser suportados, na íntegra, pelos Réus.
Contestaram os Réus, deduzindo no seu articulado, defesa por excepção e por impugnação.

No despacho saneador a Mma Juiz julgou inepta a petição inicial, por falta de causa de pedir e absolveu os Réus da instância.
A Autora interpôs recurso, pugnando pela revogação do despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que julgue improcedente a excepção dilatória da ineptidão da petição inicial.

Contra-alegando, os recorridos defendem a manutenção do decidido.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

O Mmº Juiz a quo entendeu que a petição era inepta por falta de causa de pedir, por não estarem alegados factos suficientes para fundamentar uma responsabilidade civil contratual dos RR.
Vejamos.
A presente acção perfila-se no domínio da responsabilidade civil contratual (artº 798º e ss CC).
O dever de indemnizar, tanto no campo da responsabilidade contratual, como no da extra-contratual, só existe quando, cumulativamente se verifiquem os seguintes pressupostos:
a prática de um acto ilícito, a existência de um nexo de causalidade entre este e determinado dano e a imputação do acto ao agente em termos de culpa, apreciada como regra em abstracto, segundo a diligência de um «bom pai de família».
No domínio da responsabilidade contratual a ilicitude de um facto danoso resulta da desconformidade entre o comportamento devido pelo seu autor (a prestação debitória) e o comportamento observado.
No caso sub judice, a Autora funda o seu pedido de indemnização nos seguintes factos:
A existência de um contrato de arrendamento; a ocorrência de um incêndio que destruiu o 1º andar do prédio e tornou, como consequência do mesmo, o rés-do-chão inutilizável e a existência de danos.
Apenas isto.
Ora, não basta invocar um contrato e um dano para se concluir pela obrigação de indemnizar.
No âmbito de um contrato de arrendamento, como é o caso, a obrigação de indemnizar teria sempre como causa um incumprimento culposo pela locadora de uma obrigação derivada do contrato.
E ainda a adequação do dano à violação.
Ora, nesse particular, nada vem concretamente alegado na petição inicial.

O que vale dizer, que, a Autora não alega os factos integradores dos pressupostos necessários para fazer nascer a obrigação de indemnizar, no quadro da responsabilidade civil contratual.
Nos termos do disposto no art.º 467º, n.º 1, al. d) do C.P.C., na petição com que propõe a acção, deve o autor expor os factos que servem de fundamento à acção. É o que se chama causa de pedir.
Diz-se inepta a petição quando falte a causa de pedir (artº 193º, nº2 al a) do CPC).
A nossa lei consagra a teoria da substanciação, segundo a qual o objecto da acção é o pedido, definido através de certa causa de pedir - cfr. Acórdão da Relação de Coimbra, in Colectânea de Jurisprudência, Ano XI, 1986, Tomo 4, página 86 e seguintes e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26/10/75, Boletim do Ministério da Justiça n. 250, página 159 e Revista de Legislação e Jurisprudência n. 109, página 311.
Quer a doutrina, quer a jurisprudência têm considerado, que a causa de pedir é o facto jurídico de que emerge o direito do autor e fundamenta, portanto, a sua pretensão e traduzindo-se num facto concreto tem de ser invocada na petição, ou nos termos do nº 1 do artigo 273º do Código de Processo Civil, sem o que não pode ser apreciada na sentença.
Assim, a causa de pedir consiste no facto jurídico de que procede a pretensão material deduzida na acção e o autor tem necessariamente de a indicar sob pena de ineptidão da petição inicial - artigo 193º, nº 2, alínea a) do Código de Processo Civil - do que resulta a nulidade de todo o processado - artigo 193º, nº 1 citado - e a absolvição da instância - artigos 288º, nº 1, alínea b) e 494º, nº 1, alínea b), todos do Código de Processo Civil.
É sabido que a causa de pedir é caracterizada pela sua especificidade e adequação. Quer dizer, que, a causa de pedir tem de ser concretizada ou determinada, consistindo em factos ou circunstâncias concretas e individualizadas; não podendo apresentar-se como manifestamente irrelevante ou contraditória com o pedido.
Como deriva claramente da leitura do artigo 467º “ o autor deve expor os factos e as razões de direito que servem de fundamento à acção". Alberto dos Reis esclarece que "…a narração há-de conter, pelo menos, os factos pertinentes à causa e que sejam indispensáveis para a solução que o autor quer obter: os factos necessários e suficientes para justificar o pedido" [In Código Processo Civil Anotado , Vol II, pág. 351].
Como resulta da própria definição jurídico processual, a causa de pedir é entendida como o "facto jurídico de que procede a pretensão deduzida" – artº. 498º, nº4.
Funcionando no sistema jurídico resultante da reforma processual o principio do dispositivo que, embora com contornos mais rígidos, já era o que definia o regime anterior, é sobre o autor, que invoca a titularidade de um direito, que cabe fazer a alegação dos factos de cuja prova seja possível concluir pela existência do direito – art.º 264º, nº1 do CPC.
O Autor tem de alegar a relação material de onde faz derivar o correspondente direito e dentro dessa relação material os correspondentes factos constitutivos.
O ónus da alegação da matéria de facto integradora da causa de pedir está desta forma inter-relacionado com o artigo 664º, devendo a actividade do Tribunal limitar-se aos factos alegados pelas partes, de modo que a falta de alegação de determinados factos constitutivos do direito do autor pode comprometer o reconhecimento do direito de que seja titular.
É a consagração do principio da substanciação da causa de pedir que está plasmado no citado normativo e que impõe e supõe a alegação do conjunto dos factos essenciais que se inserem na previsão abstracta da norma ou normas jurídicas definidoras do direito cuja tutela jurisdicional se busca através do processo civil.
Tal alegação deve traduzir-se em factos concretos, que preenchem a previsão da norma que concede a situação subjectiva alegada pela parte [Vide Teixeira de Sousa in As partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa, pág. 123] e não a referência a conceitos legais ou a afirmação de certas conclusões desenquadradas dos factos subjacentes.
Ora, não tendo, no caso vertente, a Autora, alegado factos concretos que possam integrar a causa de pedir, verifica-se a falta desta e, consequentemente, a ineptidão da petição inicial, o que acarreta a nulidade de todo o processo ( artº 193º, nºs 1 e 2 a)),
A nulidade de todo o processo constitui excepção dilatória que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância (artºs 493º, nºs 1 e2 e 494º b), do CPC), sendo de conhecimento oficioso do tribunal (artº 495º).
Quando falta a causa de pedir, não pode ser proferido o despacho previsto no artº 508º: não há que suprir a falta de pressupostos processuais nem de aperfeiçoar a petição inicial, pois que nem a nulidade decorrente da ineptidão é suprível nem a petição inepta por falta de causa de pedir carece de ser aperfeiçoada (não se pode aperfeiçoar o que não existe) - Ac. RP, de 23.02.2006: JTRP00038871, dgsi.Net.
Nesse caso, não há lugar a convite à parte para suprir a nulidade pois ela não é sanável.
Assim, nenhuma censura merece a decisão recorrida.

Decisão
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso.
Custas pela apelante.
Guimarães, 31-01-2013
Relator
Amílcar Andrade
Adjuntos: Manso Rainho;
Carvalho Guerra