REGISTO PREDIAL
REGISTO PROVISÓRIO
RECURSO HIERÁRQUICO
PRAZO DE INTERPOSIÇÃO DE RECURSO
TELECÓPIA
LEGITIMIDADE PARA RECORRER
PROVA TESTEMUNHAL
Sumário

1- Na contagem do prazo de interposição do recurso hierárquico da decisão do Conservador do Registo Predial, enviado por telecópia, nos termos do art.º 140º, nº 1, do Código do Registo Predial, não tem aplicação o disposto no art.º 60º, nº 3, do mesmo código, pois nada justifica que naquela matéria funcione o princípio da prioridade do registo que se manifesta no último dos artigos citados pela necessidade de respeitar uma determinada ordem de receção dos pedidos de registo;
2- Assim, enviado o recurso hierárquico por telecópia, em determinado dia útil, mas já depois do encerramento ao público dos serviços da Conservatória, vale essa data de expedição como a data da prática do ato processual.
3- Se apenas o notário que titulou o facto jurídico sujeito a registo obrigatório foi o apresentante desse mesmo facto a registo e não sendo, por isso, o titular do direito levado a registo parte da relação de registo, não pode este último, por falta de legitimidade, impugnar hierarquicamente a decisão do Conservador do Registo Predial que, não satisfazendo o pedido de registo definitivo de um usufruto, fez um registo provisório, por dúvidas.
4- Atualmente, na impugnação judicial da decisão do Conservador do Registo Predial, por se tratar de um verdadeiro recurso, não há lugar à produção de prova testemunhal, devendo o tribunal apreciar a matéria à luz dos elementos constantes do processo.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I.
R.., SA, com sede social na Zona Industrial.., Concelho de Évora, impugnou judicialmente um despacho de indeferimento liminar de um recurso hierárquico proferido pela Adjunta de Conservador do Registo Predial da Conservatória do Registo Civil, Predial e Comercial e Cartório Notarial de Terras de Bouro, cujo teor foi o seguinte:
«O recurso é intempestivo (artigo 141° CRP).
O recorrente não tem legitimidade (artigo 39°, n.º 2, al. b) CRP).
A) INTEMPESTIVIDADE:
Nos termos do disposto pelo artigo 141°, n° 1, do Código do Registo Predial, o prazo para a interposição de recurso hierárquico da decisão do conservador que recuse a prática de um ato nos termos requeridos é de 30 dias a contar da notificação a que se refere o n° 1 do artigo 71° do referido diploma. A interposição extemporânea de recurso hierárquico obsta ao conhecimento do seu mérito, conduzindo ao seu indeferimento liminar – parecer proferido no processo n° R.P. 151/2001 DSJ,BRN 10/2001.
B) FALTA DE LEGITIMIDADE:
Da decisão do conservador só poderá interpor recurso hierárquico o apresentante P°. R.P. 136/2006 DSJ-CT.» (sic)

O recurso hierárquico recaiu sobre uma decisão proferida pela dita Conservatória que, na sequência da apresentação nº 304 de 15.2.2012, efetuou como provisório, por dúvidas, o registo da aquisição do direito de usufruto de um determinado prédio pela R.., SA.
Na impugnação judicial, a impugnante alegou, essencialmente[1] , que:
a) O recurso hierárquico é tempestivo, nos termos do art.º 141º do Código do Registo Predial, por o prazo de 30 dias ali previsto dever contar-se nos termos do art.º 71º do Código do Registo Predial, ou seja, desde a data da anotação do despacho de provisoriedade por dúvidas. E, tendo esta ocorrido no dia 20.2.2012, o recurso foi interposto dentro daquele prazo, por fax datado de 21.3.2012.
b) Quanto à falta de legitimidade da recorrente, foi a R.., SA que interpôs o recurso hierárquico da decisão que determinou a provisoriedade do registo apresentado através da AP. nº 304, sendo ela a interessada no ato levado a registo, por ser também, enquanto usufrutuária, a única entidade afetada com a provisoriedade do registo. No âmbito do recurso hierárquico interposto estava devidamente representada pela sua mandatária, conforme procuração junta aos autos.
Noutro ponto, a Sr.ª Conservadora da Conservatória do Registo Predial não tem legitimidade para proferir despacho de indeferimento liminar do recurso hierárquico, por apenas ter legitimidade para o efeito o Sr. Presidente do Instituto dos Registos e do Notariado.

A Conservatória do Registo Civil, Predial e Comercial e Cartório Notarial de Terras de Bouro respondeu à impugnação, quanto àqueles pontos:
a) A data da notificação anotada quanto ao prédio em causa é de 20.2.2012. A petição do recurso hierárquico foi enviada por telecópia, às 9h11m, do dia 22.3.2012, tendo sido recebido o original da petição de recurso, via postal, em 23.3.2012. Porém, o prazo havia expirado no dia 21.3.2012, relevando aqui o disposto no art.º 60º, nº 3, al. a) do Código do Registo Predial.
Mas mesmo que se considerasse que o recurso hierárquico deu entrada por telecópia de 21.3.2012, às 21h38m, “a anotação da apresentação ocorreria imediatamente antes da primeira apresentação pessoal do dia seguinte, por ser recebida entre a hora de encerramento ao público e as 24 horas, ou seja, no mesmo dia 22.3.2012 --- art.º 60°, n° 3, al. b) do C.R.P.”
b) Quanto à questão da legitimidade para impugnar o ato do Conservador, defendeu que a sua decisão que recuse a prática do ato nos termos requeridos só pode ser impugnada pelo “apresentante”, no caso a Sr.ª Notária do Cartório Notarial da Marinha Grande, que celebrou a escritura de compra e venda do usufruto entre a sociedade “J.., S.A.” e a sociedade “R.., S.A.”, cumprindo, assim a obrigação de registar prevista no artigo 8°-B, n° l, al. b), do C.R.P.
A recorrente, advogada, não foi apresentante, não tinha mandato da impugnante, nem usou adequadamente do instituto da gestão de negócios.

Ouvido, o Ministério Público limitou-se a aderir aos fundamentos da decisão de sustentação da decisão impugnada, de fl.s 2 a 4, defendendo a improcedência da impugnação.
O tribunal a quo conheceu da impugnação proferindo decisão com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, julga-se totalmente improcedente o recurso interposto por R.., S.A.
Custas a cargo da recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC’s.”

Inconformada, a impugnante “R.., SA, interpôs recurso de apelação, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
A. O recurso hierárquico foi interposto tempestivamente, nos termos do Artº 141º do C.R.P.
B. O ato levado a registo a que coube a AP. Nº 304 de 15/02/2012, por decisão da Srª Conservadora da Conservatória do Registo Predial de Terras do Bouro, foi objeto de registo provisório por dúvidas, fundamentando-se tal provisoriedade no facto de a transmissão do usufruto em causa, não ter sido acompanhada da correspondente licença de utilização.
C. Não se conformando com a provisoriedade do Registo, veio a ora Recorrente (sociedade comercial R.. S.A., pessoa colectiva nº ..), interessada no ato levado a registo (uma vez que o usufruto constituído através da supra identificada escritura, foi-o a seu favor) interpor Recurso Hierárquico da decisão da Srª Conservadora do Registo Predial.
D. A provisoriedade do registo a que coube a Ap. Nº304 datada de 15/02/2012 foi notificada à sua apresentante no dia 20/02/2012.
E. A interposição do Recurso Hierárquico ocorreu na data de 21/03/2012 (sublinhado nosso), tendo o mesmo sido remetido via fax na referida data para a Conservatória do Registo Predial de Terras do Bouro às 21h38, conforme documento junto aos autos e por este meio se anexa – doc.01 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos.
F. O que significa que tal recurso foi interposto dentro do prazo de trinta (30) dias que a lei confere para o efeito, pois o prazo para a interposição de recurso hierárquico é de trinta dias prazo esse contado de forma seguida, devendo a respectiva apresentação ser realizada na “conservatória competente” – artigos 141.º, 142.º e 147.º-B do Código de Registo Predial e artigo 144.º do Código de Registo Civil, o que sucedeu.
G. Mais se afirma, conforme aliás também resulta dos presentes autos, que por mero lapso de escrita, a ora Recorrente aquando da apresentação do seu Recurso hierárquico via fax em 21.03.2012, pelas 21H38, identificou nas suas alegações de recurso, como sociedade Recorrente, a sociedade J.., S.A. (parte também interveniente na já identificada escritura de constituição de usufruto), quando deveria ter identificado como tal (diga-se, como Recorrente), a sociedade R.., S.A..
H. Tal lapso, foi corrigido no dia imediatamente seguinte àquele em que o recurso foi remetido à competente Conservatória, através da remessa do respetivo requerimento no qual foi expressamente solicitada a retificação/correção da identificação da Recorrente (requerimento remetido via fax em 22.03.2012 pelas 09h10), tudo conforme melhor consta dos autos e bem assim do documento que se junta como doc.02 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos.
I. Assim, com a remessa do requerimento de interposição de recurso hierárquico à competente conservatória na data de 21.03.2012 pelas 21h38, dúvidas não devem subsistir de que o Recurso hierárquico deu entrada efetivamente entrada no dia 21.03.2012, e não 22.03.2012 conforme alegado na douta decisão da qual se recorre, razão pela qual se pugna pela sua tempestividade,
J. Tempestividade que se requer seja reconhecida.
K. Por outro lado, o recurso hierárquico em causa foi interposto por quem tem legitimidade para recorrer, uma vez que a sociedade R.. S.A. é titular de um direito subjetivo e interesse legalmente protegido, estando lesada pelo ato administrativo que determinou a provisoriedade do registo da constituição de um usufruto a seu favor;
L. A Srª Notária ao ter concretizado o ato de pedido de registo da constituição do usufruto em causa, agiu em representação da sociedade interessada – R.. S.A.
M. Ora, a ter legitimidade o representante do interessado para o ato, por maioria de razão também é detentor dessa mesma legitimidade o representado.
N. O Recurso hierárquico em causa, foi assim interposto, por quem detinha legitimidade para o efeito, legitimidade que se requer seja reconhecida.
O. Subsiste ilegitimidade da Srª Adjunta da Conservadora da Conservatória do Registo Predial de Terras do Bouro, em substituição legal, para proferir despacho de indeferimento Liminar relativamente ao recurso hierárquico interposto, uma vez que apenas tem legitimidade para o efeito nos termos do disposto no Artº 144º nº1 do CRP, é o Sr Presidente do Instituto dos Registos e do Notariado, para além de que não foi junto qualquer documento comprovativo dos poderes alegados pela Adjunta da Srª Conservadora em alegada substituição legal.
P. Nos termos do nº1 do Artº 144º do Código do Registo Predial, o recurso hierárquico interposto de uma decisão do Sr Conservador, é decidido no prazo de noventa dias, pelo Presidente do Instituto dos Registos e do Notariado, I.P..
Q. A referida decisão é notificada ao Recorrente e comunicada ao Conservador que sustentou a decisão.
R. É assim ao Presidente do Instituto dos Registos e do Notariado, I.P., quem cabe julgar o recurso hierárquico interposto, designadamente apreciando questões referentes à sua tempestividade e legitimidade do Recorrente,
S. Ao Sr Conservador, cabe apenas nos termos do Artº 142º - A, proferir despacho de sustentação ou reparação da decisão por si já proferida, quando é notificado da interposição do recurso hierárquico.
T. Aquando do recurso interposto da decisão da Srª Conservadora para o Tribunal competente, foi arrolada prova testemunhal por parte da Recorrente, não tendo sido proferido qualquer despacho sobre a sua admissibilidade,
U. Pelo que não foi a testemunha arrolada inquirida em 1ª instância, nem qualquer decisão fundamentada sobre a sua não audição foi proferida.
V. Ora, a preterição da produção de prova arrolada pela Recorrente, constitui uma grave violação do exercício do contraditório por parte daquela, W. Tendo como consequência a nulidade de todo o processado após a interposição do recurso judicial da decisão da Srª Conservadora,
X. Nulidade que se requer seja reconhecida para todos os efeitos legais.
Y. Deverá assim ser revogado o despacho da Adjunta da Senhora Conservadora que decretou a provisoriedade, por dúvidas, do pedido de registo da constituição de usufruto a que corresponde a AP 304 DE 15.02.2012, substituindo aquele por um outro que admita liminarmente o Recurso Hierárquico interposto, julgando-o tempestivo e interposto por quem goza de legitimidade.
Z. Ou caso assim se não entenda, deverá ser considerado nulo todo o processado após a interposição judicial do recurso da decisão da Srª Conservadora, ordenando-se a inquirição da testemunha arrolada, com as legais consequências,…». (sic)
*
Não foram oferecidas contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II.
O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões da apelação, acima transcritas, sendo que se apreciam apenas as questões invocadas e relacionadas com o conteúdo do ato recorrido e não sobre matéria nova, exceção feita para o que for do conhecimento oficioso (cf. art.ºs 660º, nº 2, 684º e 685º-A, do Código de Processo Civil, na redação que foi introduzida pelo Decreto-lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, aqui aplicável).
Estão para decidir as seguintes questões:
- Contagem do prazo de recurso hierárquico na utilização de telecópia;
- Legitimidade da recorrente;
- Legitimidade da Sr.ª Conservadora para proferir despacho de indeferimento liminar relativo ao recurso hierárquico;
- Subsidiariamente, nulidade processual por preterição de prova.
*
III.
São os seguintes os factos considerados pela 1ª instância:
a) A.. requereu, junto da Conservatória do Registo Predial de Terras de Bouro, pela Ap. nº 304, de 15.02.2012, o registo da aquisição do usufruto do prédio ali id.
b) Por despacho subscrito pelo/a Sr/.ª Conservador/a, datado de 16.02.2012, foi o referido registo lavrado provisoriamente por dúvidas, nos termos dos arts. 68.º, 70.º e 71º do Cód. Reg. Predial, com base no facto de a transmissão do usufruto não ter sido acompanhada da correspondente licença de utilização, nos termos do artº 1º, nº 1 do Dec.-Lei nº 281/99, de 26 de Julho.
c) O referido despacho foi notificado à apresentante (A..) aos 20.02.2012.
d) Inconformada com o despacho da Ex.ma Sr.ª Conservadora proferido nos termos descritos em b), R.., S.A., interpôs recurso hierárquico da mesma para o Senhor Presidente do Instituto dos Registos e do Notariado, I.P., recurso esse apresentado, via fax, aos 22.03.2012, tendo o respetivo original sido rececionado, via postal, em 23.03.2012.
e) Por decisão proferida pela Adjunta da Conservadora, em substituição legal, datada de 02.04.2012, foi o recurso hierárquico naqueles termos interposto indeferido liminarmente, que pela extemporaneidade na sua apresentação, quer ainda pela falta de legitimidade do então recorrente, na medida em que se não tratava do respetivo apresentante.
*
IV.
1ª questão: Tempestividade do recurso hierárquico
Está em causa uma questão processual, pelo que, além dos factos atendidos na 1ª instância, pode a Relação atender a outros que resultem do processo.
O recurso hierárquico foi interposto da decisão da Sr.ª Conservadora do Registo Predial que qualificou de provisório e registou como tal a aquisição do direito de usufruto da recorrente.
É aceite por todos e está fora do thema decidendum que o prazo de interposição do recurso hierárquico é de 30 dias, que a recorrente se considera notificada da referida decisão qualificadora no dia 20.2.2012 e que interpôs tal recurso por telecópia enviada para a Conservatória do Registo Predial acima identificada, sendo de aceitar a utilização daquela forma de remessa do requerimento[2] .
Conforme resulta do documento de fl.s 88 e 89 --- cuja veracidade é admitida pela Ex.ma Conservadora na decisão pela qual sustentou o indeferimento liminar do recurso hierárquico --- a telecópia foi expedida pelas 21h38m do dia 21 de março de 2012 (posteriormente objeto de retificação de mero lapso).
A questão é saber se, tendo sido expedida a telecópia no dia 21.3.2012, o recurso deve considerar-se interposto nesse dia ou no dia seguinte, por se considerar só na última data foi efetuada a anotação da apresentação nos livros da Conservatória. A recorrente não dá relevância à data da anotação, enquanto a Ex.ma Conservadora entende que o recurso deve considerar-se interposto apenas nessa data, ou seja, no dia 22 de março de 2012.

Baseia a recorrida a sua posição na norma do art.º 60º, nº 3, al. b), do Código do Registo Predial [3], segundo a qual:
“Os documentos apresentados por telecópia são anotados pela ordem de recepção dos pedidos nos seguintes termos:
a)…
b) Imediatamente antes da primeira apresentação pessoal do dia seguinte, quando recebidos entre a hora de encerramento ao público e as 24 horas.”
Encontra-se esta norma no Capítulo IV, sob a epígrafe “Apresentação”, referindo-se o art.º 60º à anotação da apresentação de documentos para registo (cf. nº 1 do mesmo preceito legal).
A interposição de um recurso hierárquico não configura, ao menos na nossa perspetiva, uma apresentação para registo, mas uma reação recursiva relativa a um ato de registo que, no caso, foi a qualificação como provisório de um registo de aquisição de um direito de usufruto que, certamente, se pretendia definitivo.
E se o caso não se enquadra diretamente na norma do art.º 60º, também não vemos que o espírito da norma possa ter algo a ver com o caso concreto ao ponto de se lhe poder aplicar, tão-pouco, por analogia (art.º 10º do Código Civil).
Sendo compreensível a discriminação dos atos de registo em função do momento da apresentação de documentos para o efeito, designadamente face à possibilidade de registo sucessivo de vários atos sobre o mesmo bem e à necessidade de determinar a anterioridade de uns relativamente aos outros para a definição e prevalência de direitos subjetivos (cf. art.ºs 2º, 5º, 6º, 7º, 34º, 41º e seg.s, 60º e seg.s, entre outros)[4] , nada justifica o respeito pela ordem estabelecida no art.º 60º ou por qualquer outra ordem, quanto à interposição de recurso hierárquico. O que releva nesta matéria é averiguar da verificação dos requisitos de recorribilidade, em ordem a admitir ou rejeitar o recurso, independentemente dos factos levados a registo.
Com efeito a data de interposição do recurso não pode nem deve estar dependente do critério previsto no art.º 6º e, como tal, não se pode considerar interposto no dia 22 de março.
Admitido o ato por telecópia, não podemos alhear-nos do diploma que criou a sua prática legal, o decreto-lei nº 28/92, de 27 de fevereiro, que concede, em termos muito amplos, a possibilidade da sua utilização para a prática de quaisquer atos processuais (respetivo art.º 2º)[5].
Da conjugação daquele decreto-lei com a norma do art.º 150º, nºs 1 e 2, al. c), do Código de Processo Civil, temos que, no envio de telecópia, vale como data da prática do ato processual a data da expedição da telecópia. Daí que, tendo o prazo terminado no dia 21 de março e não sendo de aplicar ao caso o disposto no art.º 60º, se deva considerar também que o recurso hierárquico foi interposto no último dia de prazo. É tempestivo, portanto.
*
2ª questão: Legitimidade da recorrente
O registo predial, na veste de registo público, atesta a verificação de factos jurídicos e permite que o público em geral se possa fiar nos efeitos que típica e normalmente se produzem associados a tal facto. Vale dizer que é plural o objeto da publicidade registal: os factos que se registaram e que se provam pelo registo e as situações jurídicas que desse registo se retiram por ilação. Pluralidade que envolve um feixe alargado de interesses centrados no interesse público do conhecimento do facto registado como requisito de eficácia, mas também os interesses privatísticos dos sujeitos beneficiários do facto registado. E, por isso, está legitimada a intervenção alargada dos titulares dos diversos interesses em jogo na prossecução dos fins prosseguidos pelo recurso de apelação: a validade jurídica do ato do conservador do registo predial.[6]
No despacho de indeferimento liminar decidiu-se que o recurso hierárquico não poderia ser admitido por apenas poder ser interposto pelo apresentante do ato a registo.
Resulta dos documentos juntos aos autos e está aceite pela recorrente que a apresentante do facto a registo foi a Sr.ª Dr.ª A.., a notária perante a qual foi celebrada a escritura pública de compra e venda do direito de usufruto. A autora do recurso hierárquico foi, no entanto, a sociedade adquirente do referido direito, R.., SA. (cf. fl.s 88 e 90).
Pese embora o notário seja um dos sujeitos da obrigação de registar, devendo promover o registo de factos obrigatoriamente a ele sujeitos (art.º 8º-B, nº 1, al. b)), nada impede os sujeitos, ativos ou passivos, da respetiva relação jurídica de pedir o registo dos factos a ele sujeitos. Esta legitimidade é-lhes reconhecida expressamente pelo art.º 36º que, aliás, a estende também a “todas as pessoas que nele tenham interesse ou que estejam obrigadas à sua promoção”. No caso de outros interessados legítimos pedirem o registo do facto, cessa a obrigação da Sr.ª Notária o promover (nº 5 do art.º 8º-B).
Foi no uso desta legitimidade que a Ex.ma Notária apresentou o facto a registo. O registo não foi requerido pela R.., SA.
Poderia entender-se que jamais o adquirente e titular do direito registado, discordando da qualificação dada pela Ex.ma Conservadora, poderia ficar dependente da vontade do notário apresentante para o efeito de recorrer ou não recorrer hierarquicamente de um facto do seu interesse pessoal e direto, relativo a um direito subjetivo de que é titular. Nesta perspetiva, só ele, aliás, poderia recorrer de uma decisão que lhe foi desfavorável em razão da qualificação, como provisório, do registo efetuado, assim, sujeito a caducidade.
Todavia, importa não confundir a legitimidade para a apresentação do facto a registo com a legitimidade para interpor o recurso hierárquico a que se refere o art.º 140º, nº 1.
No que diz respeito à atribuição de legitimidade, seja para o recurso hierárquico, seja para a impugnação judicial, o Código de Registo Predial, nos art.ºs 140º e seg.s, não contempla expressamente qualquer regra. Deve, por isso, recorrer-se, subsidiariamente, quanto ao recurso hierárquico, ao disposto no Código do Procedimento Administrativo, por força do art.º 147º-B.
Segundo o art.º 160º, nº 1, do último dos citados códigos, “têm legitimidade para reclamar ou recorrer os titulares de direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos que se consideram lesados pelo acto administrativo”.
A questão é saber se, não tendo a recorrente requerido o registo do direito (tendo legitimidade para o efeito), e não sendo, por isso, parte da relação de registo, travada entre a S.ª Notária e a Sr.ª Conservadora, pode, ainda assim, recorrer hierarquicamente. Ou seja, não se lhe negando a legitimidade para recorrer enquanto parte interessada, o exercício desse direito sempre estaria dependente do facto de ser apresentante do facto a registo.
Como se extrai do acórdão da Relação do Porto de 19.12.2012 [7], da conjugação dos referidos art.ºs 8º-A e 36º, na redação introduzida pelo Decreto-lei nº 116/2008, de 4 de julho, o legislador, na prossecução do interesse ou finalidade subjacente ao registo predial (conforme prescreve o artigo 1.º do respetivo Código: “O registo predial destina-se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário”), afetou à obrigação de promover o registo de factos obrigatoriamente a ele sujeitos, pessoas e entidades que, por via das suas funções privadas ou públicas, de algum modo tenham tido intervenção nos atos sujeitos a registo obrigatório. O que se enquadra, aliás, na previsão do art.º 41º ao mencionar que o registo se efetua mediante o pedido de quem tenha legitimidade, salvo os casos de oficiosidade previstos na lei.
O registo destina-se, em primeira linha, à tutela dos interesses de terceiros indeterminados, do público, e só reflexamente protege o interesse privado daquele que aproveita do facto registado. A atividade registal situa-se na área da gestão pública do Estado [8] e a legitimidade do notário assenta no interesse público presente não apenas no processo de registo propriamente dito, mas também na impugnação de decisões registais desfavoráveis que neste processo forem proferidas. Bem se compreende assim a legitimidade e o dever funcional do notário na promoção do registo relativamente ao ato público a que presidiu e de onde resulta a obrigatoriedade de registo. Age no interesse público; não em representação de qualquer um dos sujeitos da relação jurídica de onde dimana o facto sujeito a registo.
Não sendo a questão pacífica, tendemos a considerar que a legitimidade para recorrer hierarquicamente da decisão do conservador que recusa o registo ou não o efetua em conformidade com o que lhe é requerido pertence apenas ao apresentante do ato.
A relação registal é uma relação diferente da relação entre sujeito ativo e sujeito passivo que precede e está subjacente ao ato de registo. O legislador, ao especificar no nº 1 do art.º 71º que “os despachos de recusa e provisoriedade por dúvidas (…) são notificados ao apresentante (…)”, e ao prescrever, no art.º 141º, que o prazo para interposição da impugnação judicial se conta a partir da notificação a que se reporta aquele artigo, está a evidenciar que o sujeito ativo da relação registal é o apresentante do pedido de registo.
Os apresentantes são definidos como as pessoas que tenham participado, no lado ativo ou passivo, no procedimento registal, como apresentantes ou como representados destes (art.ºs 61°, nº 1, alínea b), 64°, 36° e 39° do Código de Registo Predial e art.ºs 2° a 4° da portaria n.º 621/2008, de 18/07).
Outras pessoas que não tenham intervindo no processo registal, ainda que possam, em face da lei, comprovar que também são titulares de um interesse direto ou indireto na realização do registo, sendo terceiro na relação que entre a Conservatória e o apresentante se desencadeou com o pedido de registo, a sua intervenção não é de admitir no recurso hierárquico.
Como se refere no citado acórdão da Relação do Porto de 19.12.2012, citando vários pareceres emitidos pelo Conselho Técnico do IRN, “não existe qualquer interesse direto, indireto, público ou privado que justifique a atribuição de legitimidade autónoma a quem se alheou da promoção do registo” e, mais adiante, reafirma-se que “a legitimidade para impugnar o ato de registo levado a cabo pelo sujeito que o promoveu, está condicionada, pelo menos, à sua promoção (ainda que o registo não seja (concretizado nos termos requeridos), ou seja, a legitimidade para colocar em crise o ato promovido, mas não realizado nos termos em que o foi, estabelece-se entre esse sujeito que o requereu e a identidade que praticou o ato impugnado”.
Ao não subscrever o pedido de registo, a recorrente (sujeito ativo do facto registado) pôs-se à margem do processo de registo, instaurado com o pedido que foi subscrito apenas pela notária. Ao não acompanhar aquele pedido, a recorrente autoexcluiu-se liminarmente o direito de provocar a reapreciação da decisão registal desfavorável em sede de recurso.
Citando o parecer R.P. 150/2011, refere ainda o citado acórdão da Relação do Porto:
“Na verdade, não tendo o registo, em regra, efeitos constitutivos, mas meramente declarativos (ou consolidativos), a relação registral, de cariz publicitário, estabelece-se entre a pessoa que inicialmente dá a conhecer o facto (apresentante do pedido de registo), a pessoa que transmite, após certa elaboração, o conhecimento assim obtido (conservador) e a pessoa a quem, em última análise, se destina o conhecimento do despacho de qualificação (o mesmo apresentante, ainda que outros interessados existam).
Assim, o apresentante ao requerer o registo (mesmo que venha posteriormente a verificar-se que não se encontram preenchidos alguns dos requisitos enunciados nos artigos 36.º a 39.º), ou mesmo que a sua iniciativa de dar a conhecer não conduza à feitura do registo nos termos da apresentação, no âmbito da relação registral, é o único interlocutor da Conservatória, por ter sido ele quem promoveu e desencadeou o procedimento respetivo e ao qual é dado conhecimento da recusa ou da qualificação do registo (artigo 71.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Registo Predial), assistindo-lhe, assim, legitimidade para impugnar o ato.
A intervenção de terceiros, em relação a esta relação, ainda que tenham tido intervenção na realização dos atos subjacentes ao pedido de registo, …, se não interveio na relação registral por não ter promovido o registo do mesmo, apresenta-se como terceiro nessa relação registral, não sendo titular de qualquer interesse em conflito ou sequer da relação de direito substantivo implicada e a tutelar, não se podendo considerar vencido ou prejudicado com a decisão”. [9]
Podem até subsistir interesses contraditórios e conflituantes entre o sujeito afetado pela qualificação do ato registal (que o promoveu) e o sujeito que interveio na realização dos atos habilitantes daquela promoção, sem ter promovido o registo. E no confronto dos mesmos, no tocante à atribuição de legitimidade para questionar a decisão qualificadora, parece-nos que sempre será de dar prevalência ao interesse do sujeito que promoveu o registo, tanto mais que as finalidades publicitárias visadas com o mesmo se encontram asseguradas.
O que se impugna é a decisão sobre a realização do ato de registo, ou seja, a decisão qualificadora do registo, visando-se a obtenção de uma sentença judicial que julgue procedente ou improcedente a impugnação da qual resulta, respetivamente, a subsistência ou insubsistência da recusa do ato registal nos termos requeridos (art.º 148º).
Aqui chegados, resta concluir que não se verifica o pressuposto da legitimidade para o recurso hierárquico da R.., SA, sendo correta, apesar de sintética, a avaliação que a Conservatória do Registo Predial efetuou no sentido de não admitir o recurso com o referido fundamento.
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3ª questão: Legitimidade da Sr.ª Conservadora para proferir despacho de indeferimento liminar relativamente ao recurso hierárquico
A recorrente invoca como legitimidade o que se nos revela ser mais uma questão de competência funcional, em razão da estrutura dos órgãos do notariado, defendendo que é do Presidente do IRN o poder para apreciar o recurso hierárquico, podendo este determinar que seja previamente ouvido o conselho técnico. Acrescenta que, no caso, “a decisão de que se recorre foi proferida pela Sr.ª Conservadora da Conservatória do Registo Predial de Terras ao Bouro”.
Vejamos.
O conhecimento dos pressupostos de admissibilidade do recurso não se confunde com o conhecimento do mérito do recurso, do seu thema decidendum.
O Código do Registo Predial não nega ao Conservador do Registo Predial a possibilidade de se pronunciar sobre os pressupostos de admissibilidade do recurso, sendo que compete àquele mesmo órgão o dever reparar ou sustentar a decisão, como aconteceu no caso e se prevê no art.º 142º-A, nº 1. Tal atividade pressupõe, necessariamente, a admissão do recurso. Se o recurso da decisão não é admissível, não pode, à sua luz, ser a decisão reparada ou sustentada.
Propendemos, pois, no sentido de que a omissão de referência a qualquer decisão liminar de apreciação dos pressupostos do recurso hierárquico seja preenchida com a necessidade do Conservador proferir despacho de admissão ou rejeição do recurso.
Mas ainda que assim não se entendesse, o conhecimento em curso da impugnação judicial que versa sobre a admissibilidade do recurso hierárquico e declara que tal recurso é de admitir ou de rejeitar, conduz obrigatoriamente ao conhecimento ou ao não conhecimento do seu objeto, conforme o caso, não podendo a administração voltar a pronunciar-se sobre os pressupostos da sua admissibilidade de que o tribunal já conheceu.
Com efeito, não procede também este fundamento da apelação.
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4ª questão: Subsidiariamente, nulidade processual por preterição de prova
Nas conclusões da apelação T. a Y., a impugnante invoca a nulidade de todo o processado após a interposição do recurso judicial da decisão de indeferimento liminar, por não ter sido inquirida uma testemunha arrolada, havendo preterição de prova.
A testemunha, T.., foi arrolada nas alegações do próprio recurso de impugnação judicial.
A primeira barreira com que deparamos é encontrar instrução no recurso e mesmo matéria preordenada que possa constituir objeto de prova testemunhal. Nem nas alegações a impugnante mostra justificação para a produção de prova.
A impugnação judicial é, atualmente, um verdeiro recurso, sem que a lei do registo predial preveja a produção de prova testemunhal numa fase do processo que é apenas recursória e cuja natureza se revela de revisão ou reponderação da decisão recorrida, como é próprio do regime de recursos no direito português. Na verdade, o art.ºs 145º prevê apenas a instrução com o material relativo ao recurso hierárquico antes do conhecimento da impugnação por sentença. Por maioria de razão, o tribunal aprecia apenas com base nos elementos constantes do processo a impugnação de um despacho do Conservador que não admitiu o recurso hierárquico. [10]
A recorrente decai também nesta questão.
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Neste enfiamento, é de concluir que, embora o recurso hierárquico seja tempestivo, a recorrente não tem legitimidade para recorrer, sendo de confirmar a decisão judicial recorrida.
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SUMÁRIO (art.º 713º, nº 7, do Código de Processo Civil):
1- Na contagem do prazo de interposição do recurso hierárquico da decisão do Conservador do Registo Predial, enviado por telecópia, nos termos do art.º 140º, nº 1, do Código do Registo Predial, não tem aplicação o disposto no art.º 60º, nº 3, do mesmo código, pois nada justifica que naquela matéria funcione o princípio da prioridade do registo que se manifesta no último dos artigos citados pela necessidade de respeitar uma determinada ordem de receção dos pedidos de registo;
2- Assim, enviado o recurso hierárquico por telecópia, em determinado dia útil, mas já depois do encerramento ao público dos serviços da Conservatória, vale essa data de expedição como a data da prática do ato processual.
3- Se apenas o notário que titulou o facto jurídico sujeito a registo obrigatório foi o apresentante desse mesmo facto a registo e não sendo, por isso, o titular do direito levado a registo parte da relação de registo, não pode este último, por falta de legitimidade, impugnar hierarquicamente a decisão do Conservador do Registo Predial que, não satisfazendo o pedido de registo definitivo de um usufruto, fez um registo provisório, por dúvidas.
4- Atualmente, na impugnação judicial da decisão do Conservador do Registo Predial, por se tratar de um verdadeiro recurso, não há lugar à produção de prova testemunhal, devendo o tribunal apreciar a matéria à luz dos elementos constantes do processo.
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V.
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirma-se a decisão judicial recorrida.
Custas da apelação pela apelante.
Guimarães, 19 de fevereiro de 2013
Filipe Caroço
António Santos
Figueiredo de Almeida
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[1] E no que pode constituir fundamento de impugnação judicial.
[2] A discussão desta poderia situar-se no âmbito de aplicação dos art.ºs 70º, 71º, 140º, 141º e 147º-B do Código do Registo Predial e 158º a 160º e 166º e seg.s do Código do Procedimento Administrativo.
[3] Diploma a que pertencem todas as disposições legais que se citarem sem menção de origem.
[4] O princípio da prioridade do registo, prior tempore, significa que o direito inscrito em primeiro lugar prevalece sobre os que se lhe seguirem relativamente aos mesmos bens, por ordem da data dos registos, e, dentro da mesma data, pela ordem temporal das apresentações correspondentes.
[5] Não estando prevista a sua utilização no Código do Procedimento Administrativo, tal lacuna de regulamentação deve ser integrada pelo Decreto-lei nº 28/92, de 27 de fevereiro (cf. acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 6.4.2006, proc. 11571/02, in www.dgsi.pt).
[6] Acórdão da Relação de Coimbra de 2.3.2010, proc. 593/09.7TBAVR.C1, in www.dgsi.pt.
[7] Proc. 196/12.9TBLSD.P1, in www.dgsi.pt., que aqui seguiremos de perto.
[8] José Alberto González, “Direitos Reais e Direito Registal Imobiliário”, 4ª ed., págs. 171 e 172.
[9] Ainda no sentido de que a relação processual registal se estabelece entre o apresentante e a conservatória, José Alberto González, ob. cit., pág. 154 e os Pareceres R.P. 150/2011 SJC-CT, in http://www.irn.mj.pt/IRN/sections/irn/doutrina/pareceres/predial/2011/p-r-p-150-2011-sjc-ct/downloadFile/file/RP150-2011.pdf?nocache=1328020234.95, R.P. 136/2006 DSJ-CT, in http://www.irn.mj.pt/IRN/sections/irn/doutrina/pareceres/predial/2006/p-r-p-136-2006-dsj-ct/downloadFile/file/prp136-2006.pdf?nocache=1316104545.68, neste se citando o 116/2006 DSJ-CT, também objeto de publicação na mesma página do Instituto de Registo e Notariado, para onde se remete para maior desenvolvimento.
[10] Neste sentido, acórdão da Relação do Porto de 12.1.2006, proc. 0536285, in www.dgsi.pt.