Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
DOAÇÃO MODAL
RESOLUÇÃO
PROVA TESTEMUNHAL
Sumário
I – A doação com encargos é um contrato em que, por força da sua declaração negocial de aceitação, o donatário assume a obrigação de adoptar o comportamento a que se refere a cláusula modal, podendo o beneficiário desse comportamento ser o doador, um terceiro, ou o próprio donatário. II – Os doadores (ou os seus herdeiros) somente poderão pedir a resolução da doação, com o fundamento em incumprimento dos encargos, quando, por interpretação do contrato, esse direito lhes seja conferido. III – Aos doadores não basta provar que a cláusula modal foi causa impulsiva da doação, isto é, que a não teriam feito se soubessem que o inadimplemento teria lugar.É necessário que o direito de resolução lhes seja conferido pelo contrato e, portanto, corresponda a uma vontade real susceptível de desentranhar a sua eficácia em sede interpretativa. IV – E sendo, como é, uma estipulação acessória, anterior ou, pelo menos, contemporânea da escritura pública, se tivesse assumido a forma verbal, ela sempre seria nula nos termos do disposto no artº. 221º., do Código Civil. V – Acresce que, não estando minimamente reflectida no texto do documento, fica vedado o recurso à prova testemunhal, nos termos do nº. 1 do artº. 393º., do Código Civil.
Texto Integral
- ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES -
A) RELATÓRIO
I.- A… e mulher J…, com os sinais de identificação nos autos, intentaram acção, com processo comum, sumária, contra E…, que também usa o nome de E…, também identificada nos autos, pedindo que se declare:
a) a resolução da doação que eles, Autores, fizeram à Ré, ainda no estado de solteira, por conta da quota disponível deles, de metade indivisa da fracção autónoma designada pela letra “A”, correspondente ao rés-do-chão e primeiro andar esquerdo, com três varandas e garagem na cave, do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal situado no lugar de…, do concelho de Viana do Castelo, inscrito na matriz predial no artigo… e descrito na CRP sob o nº…, por incumprimento culposo da Ré, da cláusula expressa na escritura de doação, em que se obrigava a tratar bem deles, Autores, na saúde e na doença, de lhe prestar alimentos, neles se compreendendo a alimentação, vestuário e habitação, e de lhes perfazerem todo o carinho, assistência médica e medicamentosa, sempre que o necessitassem até à morte do último;
b) que, em consequência, o prédio acima referido deixe de pertencer em comum e em partes iguais à Ré e ao seu irmão E… e passe este a ser proprietário de metade indivisa, ficando a outra parte a pertencer a eles, Autores.
A Ré contestou e os autos prosseguiram os seus termos vindo a proceder-se ao julgamento que culminou na prolacção da sentença que decidiu julgar a acção totalmente improcedente e absolver a Ré do pedido.
Inconformados, os Autores trazem o presente recurso pretendendo que seja revogada aquela sentença e substituída por acórdão que condene a Ré no pedido.
Não foram apresentadas contra-alegações.
O recurso foi recebido como de apelação, com efeito devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
*
II.- Os Autores/Apelantes fundam o recurso nas seguintes conclusões:
1 – A prova produzida em julgamento impunha uma decisão diversa do Tribunal na aplicação do direito.
2 - Foram considerados provados os seguintes factos: … … (cfr. infra).
3 – Quanto à fundamentação de direito refere-se que a resolução da doação só tem lugar se esse direito tiver sido conferido no contrato e que o direito de resolução pelos doadores apenas pode ser exercido se as partes previram essa forma de resolução.
4 - A recorrida revela um total alheamento do estado de saúde dos recorrentes e das suas necessidades, designadamente no que concerne a alimentos e prestação de assistência médica, bem como à necessidade de receberem carinho e atenção.
5 - As alterações de domicílio e deveres familiares não impedem a recorrida de cumprir com as suas obrigações para com os recorrentes.
6 - Apesar de tal situação ser imoral, entendeu-se que os recorrentes não têm direito à resolução do contrato porque não ficou previsto na escritura pública essa faculdade, nos termos do artigo 966º. do Código Civil.
7 - Existe matéria de facto para que os recorrentes legitimamente tenham pedido a resolução da doação por incumprimento da cláusula modal, apesar de não constar na escritura pública.
8 - Para o efeito basta ver o depoimento da testemunha E… – gravado em CD com a duração de 32m:20s quando questionado sobre a cláusula modal o mesmo respondeu:
“ … não ficou escrito mas os meus pais antes da escritura disseram que se não cumpríssemos que era tudo anulado …”
Seguidamente perguntaram-lhe porque não ficou escrito e ele referiu:
“ … não sei porque quem fez foi o notário mas o combinado com os meus pais e com a minha irmã foi isso …”
9 - A recorrida donatária tinha e tem consciência de que se incumprisse com o seu encargo/obrigação de que a doação ficaria sem efeito.
10 – Estamos perante uma cláusula modal mista cuja prestação não tem valor pecuniário (tratar os doadores com amor e carinho) e uma obrigação com conteúdo patrimonial (alimentar, vestir, proporcionar assistência médica e medicamentosa aos doadores).
11 - O incumprimento culposo da cláusula modal confere aos doadores o direito de exigir o cumprimento de encargos ou o de pedir a resolução da doação.
12 - Como optou pela segunda situação coube aos recorrentes provar o incumprimento do modo (artigo 342º, nº 1 do CC) e caberia à recorrida provar que tal incumprimento não procedia de culpa sua.
13 - Os recorrentes provaram o incumprimento culposo por parte da recorrida e esta não provou que o mesmo não resultasse de culpa sua.
(RE, 7/3/1991; BMJ 405 – 549)
14 - Não havia necessidade de que constasse na escritura que em caso de incumprimento por parte da recorrida fosse conferido o direito aos recorrentes para a resolução da doação.
15 - Nem a doutrina nem os tribunais superiores são unânimes em considerar que o direito de resolução da doação pelo doador apenas pode ser exercido se as partes no contrato de doação previram essa forma de cessação, ou seja, que esteja expressamente prevista em cláusula contratual.
16 - Basta que os doadores peçam essa anulação em tribunal e que provem esse incumprimento, o que se verificou.
17 – A Douta Sentença Recorrida fez, pois, má aplicação do direito à matéria fáctica dada como provada, bem como ao depoimento da testemunha acima indicada, violando entre outras os artigos artigo 966º. do CC e artigos 653º, 668 (alínea c) do nº 1) todos do CPC.
*
Como resulta do disposto nos artos. 684º., nº. 3; 685º.-A, nos. 1 e 3, e 685º.-C, nº. 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil (C.P.C.), sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.
E de acordo com as conclusões a única questão a apreciar é a de saber se a resolução da doação pelos doadores está ou não dependente de cláusula expressa no contrato de doação.
*
B) FUNDAMENTAÇÃO
III.- O Tribunal a quo julgou provados os seguintes factos:
a) Os Autores são pais da Ré e de E….
b) Por escritura pública denominada “doação” celebrada em 19 de Agosto de 1998, exarada a fls. 116 a 118 do Livro de Notas para escrituras diversas nº 206-E, do 1º. Cartório Notarial de Viana do Castelo, os aqui Autores declararam doar, com reserva de usufruto e por conta da quota disponível, aos seus filhos E… e E…, em comum e partes iguais, a fracção autónoma designada pela letra “A”, correspondente ao rés-do-chão e primeiro andar esquerdos, com três varandas e garagem na cave com entrada a poente, a primeira a contar do norte e logradouro, do prédio urbano afecto ao regime de propriedade horizontal, situado no Lugar de…, concelho de Viana do Castelo, inscrito na respectiva matriz sob o artigo …, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Viana do Castelo, sob o nº… ao qual atribuíram o valor de Esc. 2.200.000$00.
c) Mais, declararam os aqui Autores, ali primeiros outorgantes que “esta doação é feita com a cláusula de os donatários tratarem bem os doadores na saúde e na doença, de lhes prestarem alimentos, neles compreendendo alimentação, vestuário e habitação e de lhes perfazerem todo o carinho, assistência médica e medicamentosa, sempre que necessitarem, e até à morte do último.”, doação e cláusula que a aqui Ré e seu irmão declararam aceitar.
d) Após a doação da fracção autónoma, os Autores passaram a viver com os seus filhos, cumprindo estes com as suas obrigações de lhes prestarem alimentos, bem como dando-lhes todo o carinho e assistência.
e) No ano de 1999, a Ré saiu da residência onde morava com os pais.
f) Apesar desse facto, os Autores sempre pensaram que a Ré iria cumprir com as obrigações de lhes prestar alimentos e de continuar a conviver com eles e a dar-lhes todo o carinho e atenção.
g) Pelo menos a partir do ano de 2004, ocorreu um afastamento entre Autores e Ré, e, pelo menos desde o ano de 2007, que a Ré ignora os Autores.
h) Pelo menos desde o ano de 2004, que a Ré diminuiu os contactos com os Autores.
i) A Ré deixou de prestar assistência aos Autores, quer a nível de alimentos, quer ao nível da saúde, não comparticipando nem suportando quaisquer despesas para aqueles efeitos.
j) Desde 1999, que é o irmão da Ré, E…, que dá todo o carinho e assistência que os Autores necessitam, passando desde a referida data a ser o único filho a residir com eles.
k) Desde, pelo menos a ano de 2007, que a Ré não mais contactou os Autores, por telefone ou por carta.
l) Pelo menos desde o ano de 2007, que a Ré não contacta os pais em datas festivas - aniversários, natal, e ano novo.
m) Desde o ano de 1999 que a Ré deixou de prestar aos Autores, por si ou através de terceira pessoa, quer assistência na saúde e na doença, e, desde, pelo menos, o ano de 2007, que não lhes transmite qualquer carinho e atenção.
n) A Ré, pelo menos o ano de 2007, não demonstra qualquer interesse pelo estado de saúde mental e físico dos Autores não se preocupando em lhes dar assistência, carinho e atenção.
o) Em Agosto de 2005, a Ré foi viver com o marido para as Antilhas Francesas, dado que aquele é militar e foi transferido para uma base em St. Martin, situada na referida ilha.
p) Quando foi viver para St. Martin a Ré mantinha contactos telefónicos com os Autores.
q) Desde 27 de Agosto de 2008, que a Ré vive com o marido e os filhos na Ilha de Reunião, a mais de 11000 Km de Viana do Castelo.
*
IV.- Como resulta da facticidade acima transcrita, os Apelantes, na escritura pública que celebraram em 19/08/1998, declararam doarem à Ré, sua filha, e ao filho E…, em comum e partes iguais, uma fracção autónoma que aí vem identificada, tendo estes declarado aceitarem a doação.
A doação, de acordo com o disposto no artº. 940º., do Código Civil (C.C.), é o contrato pelo qual uma pessoa, à custa do seu património, por espírito de liberalidade, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação em benefício do outro contraente.
Elementos essenciais da doação são, pois: uma disposição gratuita de bens ou direitos; a diminuição do património do devedor; o espírito de liberalidade.
É um negócio jurídico bilateral já que pressupõe duas vontades negociais: uma proposta de doação e a aceitação – é necessária a aceitação do donatário, sem o que a proposta de doação caduca (cfr. artº. 945º., do C.C.).
Não sendo um contrato bilateral, ou sinalagmático, já que só acarreta obrigações para uma das partes (o doador), não havendo uma contraprestação da outra parte contratante (o donatário), o artº. 963º., do C.C. prevê que os doadores onerem as doações com encargos, apondo uma cláusula modal (ou modo), pela qual impõem ao donatário os ónus ou encargos (que, porém, como se referiu não têm a natureza de contraprestação).
Com Mota Pinto diremos que doação com encargos “é um contrato em que, por força da sua declaração negocial de aceitação, o donatário assume a obrigação de adoptar o comportamento a que se refere a cláusula modal” (in “Teoria Geral do Direito Civil”, 3ª. edição actualizada, pág. 579 sgs., maxime, 582), podendo o beneficiário desse comportamento ser o doador, um terceiro, ou o próprio donatário.
O Supremo Tribunal de Justiça, pelo Acórdão nº. 7/97, de 25/02/1997, uniformizou jurisprudência no sentido de a cláusula modal a que se refere o artigo 963.º do Código Civil abranger todos os casos em que é imposto ao donatário o dever de efectuar uma prestação, quer seja suportada pelas forças do bem doado, quer o seja pelos restantes bens do seu património” (in D.R., I Série-A, nº. 83, de 9/04/1997, págs. 1598 - 1602).
A obrigação a que fica sujeito o donatário não tem de ter, necessariamente, conteúdo patrimonial, pode ser de carácter moral, sendo, por isso, perfeitamente válida a cláusula modal aposta pelos Apelantes: “esta doação é feita com a cláusula de os donatários tratarem bem os doadores na saúde e na doença, de lhes prestarem alimentos, neles compreendendo alimentação, vestuário e habitação, e de lhes perfazerem todo o carinho, assistência médica e medicamentosa, sempre que necessitarem e até à morte do último”.
Se a cláusula modal não for cumprida os doadores, ou os seus herdeiros, podem exigir o seu cumprimento ou podem pedir a resolução da doação, desde que tal direito lhes seja conferido pelo contrato, nos termos do disposto nos artos. 965.º e 966.º, do C.C..
No que toca à resolução, o artº. 966º., referido, não se afasta do princípio geral estabelecido no artº. 432.º, que sujeita a sua admissibilidade à previsibilidade na lei ou em convenção contratual, e corresponde, nos contratos bilaterais ao nº. 2 do artº. 801º., do C.C..
É entendimento uniforme, quer na doutrina, quer na jurisprudência, o de que os doadores (ou os seus herdeiros) somente poderão pedir a resolução da doação, com o fundamento em incumprimento dos encargos, quando, por interpretação do contrato, esse direito lhes seja conferido.
Não lhes basta provar que “a cláusula modal foi causa impulsiva da doação, isto é, que o doador a não teria feito se soubesse que o inadimplemento teria lugar; é necessário que o direito de resolução lhe seja conferido pelo contrato e, portanto, corresponda a uma vontade real susceptível de desentranhar a sua eficácia em sede interpretativa”, como refere Mota Pinto (ob. cit., pág. 583).
No mesmo sentido se pronunciaram, dentre outros, para além dos que vêm referidos na douta sentença, ainda os Acórdãos: do S.T.J. de 9/02/1999 (C.J., Acórdãos do S.T.J., ano VII, Tomo I, págs. 94-97); da Rel. de Lisboa, de 26/03/1998 (C.J., ano XXIII, Tomo II, págs. 113-114); de Coimbra, de 2/05/1990 (C.J., ano XV, Tomo III, págs. 41 e 42); desta relação de Guimarães de 12/07/2011 (Procº. 122/10.0TBEPS.G1 (Manuel Bargado), in “www.dgsi.pt”). E mesmo o Ac. da Relação de Évora de 7/03/1991, mencionado pelos Apelantes, não diverge daquele entendimento, referindo expressamente, “e o incumprimento culposo de tal obrigação (contratual) confere à doadora o direito, também de origem contratual, de pedir a resolução da doação …”. Com efeito, na situação ali julgada, a doadora introduziu uma cláusula pela qual declarou que “reserva o direito de rescindir esta doação” se os donatários não cumprissem com a cláusula modal aí estabelecida (de teor idêntico, de resto, ao que os ora Apelantes estabeleceram) (in C.J., ano XVI, Tomo II, págs. 323).
Como se pode ver do texto da escritura pública de doação outorgada pelos Apelantes, estes não reservaram para si o direito de resolverem a doação se os donatários, ou algum deles, não cumprisse, ou deixasse de cumprir as obrigações que estipularam.
Nem se retira do mesmo texto qualquer expressão que permita ser interpretada - de acordo com as regras e princípios estabelecidos nos artos. 236º. e 238º., do C.C. - nesse sentido,
E não relevam, para o efeito, as intenções que hajam, eventualmente, formulado e comunicado verbalmente aos donatários porquanto, tratando-se de estipulação acessória anterior ou contemporânea à escritura pública, ela era nula, nos termos do disposto no artº. 221º., do C.C..
Por isso que não pode, sequer, ser considerado o invocado depoimento do, também donatário, E… (conclusão 8), desde logo por não ser permitido o recurso à prova testemunhal – cfr. artº. 393º., nº. 1, do C.C..
Restaria pois aos Apelantes, como refere a douta sentença impugnada, pedir a revogação da doação por ingratidão da donatária, se houvesse fundamento para tanto, o que a facticidade provada não permite concluir.
De todo o modo, não se vislumbrando forma de obrigar a Ré a cumprir as obrigações de conteúdo moral (pelo menos de uma forma sentida, tratar bem os doadores na saúde e na doença e perfazer-lhes todo o carinho), já pode ser-lhe exigido que cumpra as de conteúdo patrimonial (prestação de alimentos e de assistência médica e medicamentosa).
Sem embargo, vindo pedida apenas a resolução da doação, pelos fundamentos que vêm de ser expostos, não pode ser acolhida a pretensão dos Apelantes.
*
C) DECISÃO
Considerando, pois, tudo quanto vem de expor-se, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o presente recurso de apelação, confirmando integralmente a decisão impugnada.
Custas pelos Apelantes.
Guimarães, 04/03/2013
(escrito em computador e revisto)
Fernando Fernandes Freitas
Purificação Carvalho
Rosa Tching