CIRE
INSOLVÊNCIA
APLICAÇÃO DA LEI PROCESSUAL NO TEMPO
Sumário

A alínea e) do n.º 1 do art.º 230.º do CIRE, introduzida pelo art.º 2.º da Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril, acrescentou um quinto fundamento para o encerramento do processo de insolvência e aplica-se aos processos pendentes que ainda não tenham sido declarados encerrados.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I - RELATÓRIO

Recorrente: A….
Recorridos: Os credores do insolvente.

Tribunal Judicial de Felgueiras – 3.º Juízo Cível.
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1. Em 21 de dezembro de 2012, foi proferido o seguinte despacho, que se transcreve:
O insolvente veio aos autos, em 07-11-2012, requer que o Tribunal encerre o processo nos termos do art.º 230.° n.° 1 al. e) do CIRE, dando início ao período de cessão.
Invoca, em suma, que com a entrada em vigor da Lei n.° 16/2012, de 20-04, que alterou o CIRE, a alínea e) do artigo 230.° pretendeu imprimir uma maior celeridade ao processo e que o período de cessão se iniciasse ainda com ativos não liquidados.
Os credores, notificados pelo insolvente do aludido requerimento, nada vieram dizer aos autos.
Cumpre decidir.
Em 18-10-2011 foi proferido nestes autos despacho a deferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, determinando-se que no período de cessão (cinco anos subsequentes ao encerramento do processo) o rendimento disponível que o devedor venha a auferir seja cedido ao fiduciário (Cfr. despacho de fls. 323 a 327).
Ora aquele despacho foi perfeitamente claro ao estabelecer que o período de cessão seria nos 5 anos subsequentes ao encerramento do processo, e este ainda não foi determinado. Uma vez que se encontra ainda a decorrer a liquidação do ativo.
À data da prolação daquele despacho ainda não tinha entrado em vigor a Lei n.° 16/2012, e, salvo o devido respeito por opinião diversa, as alterações efetuadas por aquela lei apenas podem valer para o futuro, não podendo ultrapassar-se o trânsito em julgado do despacho de deferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, que expressamente estabeleceu que o período de cessão seria nos 5 anos subsequentes ao encerramento.
Uma vez que o Administrador da insolvência ainda não informou ter concluído a liquidação e não foi realizado, por isso, o rateio, não pode senão indeferir-se, por ora, o encerramento do processo, o que se decide.
Notifique.
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Tendo em conta os fundamentos expostos supra, não deveria ter-se proferido o despacho a ordenar o cumprimento do artigo 240.° n.° 2, do CIRE, uma vez que ainda não se iniciou o período de cessão.
Assim, desde já nos penitenciamos por tal lapso e dou sem efeito o despacho proferido em 02-11-2012.
Notifique.
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FIs. 403/404: Dê imediato conhecimento ao AI para que, atento o disposto no artigo 88.º do CIRE, comunique ao processo 563/1 2.8TBFLG a pendência destes autos em que foi decretada a insolvência do executado e informe, posteriormente, o que tiver por conveniente.
Felgueiras, d.s. (após as 17 h) (fim de transcrição).

2. Inconformado, veio o insolvente recorrer deste despacho, com as conclusões que a seguir se transcrevem:
l.° - Na douta decisão recorrida foi indeferido o encerramento do processo de insolvência nos termos da al. e) do art.° 230.° do CIRE.
2.º - A fundamentação do indeferimento recai no facto de o Tribunal a quo entender que tal dispositivo não se aplica in casu, por estar a decorrer a fase de liquidação do ativo e, por à data da prolação do Despacho Inicial de Exoneração do Passivo Restante estar (1) em vigor a Lei 16/2012.
3.º - Considerando o teor de Memorando de enquadramento das propostas de alteração ao Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas “No estudo de avaliação sucessiva do regime das insolvências realizado pela DGPJ em 2010, um dos problemas identificados por alguns magistrados prendeu-se com o facto de não haver norma expressa que possibilitasse ao juiz encerrar o processo de insolvência sempre que, havendo ou não bens na massa insolvente, fosse requerida, por devedor que seja pessoa singular, a exoneração do passivo restante.
A alteração ora proposta ao n.° 1 do artigo 230.° do CIRE visa colmatar tal lacuna que, efectivamente, após análise do quadro legal vigente, nos parece inquestionável, devendo a mesma ser suprida, a bem da clareza da ordem jurídica e do bom funcionamento do processo”.
4.º - Considerando que a Proposta de Lei n.° 39/XII que antecedeu a Lei n.° 16/2012, de 20 de Abril mantém exactamente a mesma letra quanto à redação da al. e) do art.° 230.° do CIRE - única alteração ao artigo -, dúvidas não restarão quanto ao âmbito da sua aplicação.
5.° - Do teor das 3.ª e 4.ª conclusões, a interpretação da al. e) do art.° 230.° do CIRE nos termos do art.º 9.° do Código Civil, concluirá da sua aplicação ao presente porquanto só assim cumprirá o pensamento legislativo e corresponderá de modo vítreo à letra do preceito.
6.º - A alínea e) do art.° 230.° do CIRE, atenta a natureza processual, é aplicável aos presentes autos, apesar de o Despacho Inicial de Exoneração do Passivo Restante datar de 04-10-2011.
7.º - Nos termos do art.° 12.º n.° 2 do Cód, Civil, quando dispuser diretamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor”, Ou seja, o preceito em referência é aplicável in casu.
8.º - A introdução da alínea e) do art.° 230.° do CIRE na senda do pensamento do legislador, permite encerrar o processo de insolvência quando for requerida a exoneração do passivo por pessoa singular e exista património por liquidar.
9.° - O período de cessão só se inicia após o encerramento do processo - n.° 2 art.° 239.° do CIRE: “O despacho inicial determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período da cessão (…)”.
10.º - Retomando a 5.ª conclusão, nada obsta, bem pelo contrário, que após a prolação de despacho inicial de exoneração do passivo restante e de nomeação de fiduciário, seja proferido em momento posterior despacho de encerramento do processo de insolvência ao abrigo da al. e) do art.° 230.º do CIRE.
11.º - O âmbito de aplicação da al. e) do art.° 230.° do C1RE é o despacho inicial de exoneração do passivo, quer este seja a proferir ou já se encontre proferido (fim de transcrição).

3. Não houve resposta ao recurso.

4. Colhidos os vistos, em conferência, cumpre decidir.

5. Objeto do recurso

O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões das alegações formuladas (artigos 660.º n.º 2, 664.º e 684.º n.ºs 2, 3 e 4 do CPC) sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso.

A questão a decidir consiste em apurar se é aplicável aos presentes autos o preceituado na alínea e) do n.º 1 do art.º 230.º do CIRE, aditado pela Lei n.º 16/2012, de 20.04, a fim de ser declarado o encerramento do processo após a declaração de insolvência.

II – FUNDAMENTAÇÃO

A matéria de facto a atender para decidir este recurso é aquela que consta do despacho recorrido e do recurso, que não foi questionada, para além da retificação já inserida na nota 1.
Anota-se também o dissídio quanto à data do despacho que deferiu liminarmente a exoneração do passivo restante, a qual é de 18.10.2011, como se pode ver pela certidão junta a este apenso, a fls. 17 da mesma e 19 destes autos, e não a data de 04.10.2011 indicada pelo apelante, certamente por lapso.
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O art.º 2.º da Lei n.º 16/2012, de 20 de abril, aditou ao art.º 230.º n.º 1 do CIRE a alínea e), cujo teor é o seguinte: “quando este ainda não haja sido declarado, no despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante referido na alínea b) do artigo 237.º”.
Esta alínea deve ser lida em conjugação com o proémio do n.º 1 do artigo onde foi inserida. Daí resulta que: prosseguindo o processo após a declaração de insolvência, o juiz declara o seu encerramento quando este ainda não haja sido declarado, no despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante referido na alínea b) do artigo 237.º”.
Em 18-10-2011 foi proferido nestes autos despacho a deferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, determinando-se que no período de cessão (cinco anos subsequentes ao encerramento do processo) o rendimento disponível que o devedor viesse a auferir seria cedido ao fiduciário. Não foi declarado o encerramento do processo de insolvência nessa data nem em outra posterior (tendo em conta o conhecimento que temos no momento em que elaboramos este acórdão).
O art.º 6.º da Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril, prescreve que entra em vigor 30 dias após a data da sua publicação, pelo que entrou em vigor em 21 de maio de 2012. Daqui se extrai que o despacho que deferiu liminarmente a exoneração do passivo restante foi proferido antes desta lei ter entrado em vigor.
A alínea e) do n.º 1 do art.º 230.º do CIRE, introduzida pelo art.º 2.º da Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril, acrescentou um quinto fundamento para o encerramento do processo de insolvência (2).
Esta norma legal deve ser interpretada em conjugação com o prescrito no art.º 237.º al. b) do CIRE, nos termos da qual a concessão efetiva da exoneração do passivo restante pressupõe que o juiz profira despacho declarando que a exoneração será concedida uma vez observadas pelo devedor as condições previstas no art.º 239.º durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado despacho inicial.
Da conjugação dos art.ºs 237.º als. b) e d), 239.º e 244.º do CIRE, resulta que este despacho inicial tem em vista fixar as condições que devem ser observadas pelo devedor para ser proferido, no termo do prazo da cessão, o despacho definitivo sobre a exoneração ou não do passivo(3).
Durante o prazo de cinco anos em que o rendimento disponível do devedor é cedido a um fiduciário, o processo de insolvência fica encerrado (4).
A Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril, nada dispôs quanto à sua aplicação aos processos pendentes, como é o caso destes autos.
O art.º 12.º do Código Civil prescreve sobre a aplicação das leis no tempo e estabelece a regra geral de que as leis só têm eficácia para o futuro (n.º 1).
Todavia, quando a lei dispuser diretamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhe deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor (n.º 2, 2.ª parte).
Sobre esta matéria, seguimos o entendimento doutrinal (5) de que, no âmbito do direito processual, quando a lei diz que dispõe para futuro, deve ser interpretada no sentido de que se aplica, além das ações futuras, também aos atos futuros a praticar nos processos pendentes, a menos que exista alguma norma transitória que disponha especificamente sobre a matéria.
O art.º 142.º do CPC vem ao encontro desta solução, ao prescrever que a forma dos diversos atos processuais é regulada pela lei que vigore no momento em que são praticados (n.º 1).
A lei processual nova aplica-se aos atos a praticar nas ações pendentes, a menos que seja outra a sua vontade expressa, o que não ocorre neste caso concreto.
A decisão judicial a declarar o encerramento do processo de insolvência é um ato jurisdicional a praticar no processo. Este despacho ainda não foi proferido. Assim, tendo a alínea e) do n.º 1 do art.º 230.º do CIRE, introduzida pelo art.º 2.º da Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril, acrescentado um quinto fundamento para o encerramento do processo de insolvência, deve este fundamento ser apreciado pelo juiz em processo pendente para este efeito.
Trata-se de um ato que não foi ainda praticado no processo, pelo que é-lhe aplicável a alínea e) do n.º 1 do art.º 230.º do CIRE, aditada pela referida lei.
A tal não se opõe o facto de já ter sido proferido despacho liminar a conceder a exoneração do passivo restante, nos termos em que foi proferido. A inovação legislativa vem confirmar este entendimento, ao introduzir como fundamento para o encerramento do processo de insolvência o facto de não ter ainda sido declarado no despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante referido na alínea b) do artigo 237.º.
Termos em que é concedida a apelação, revoga-se o despacho recorrido e determina-se que seja substituído por outro que tenha também em conta, para efeitos de decidir sobre o encerramento do processo de insolvência, o novo fundamento previsto no art.º 230.º n.º 1 al. e) do CIRE, na redação conferida pela Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril.

Sumário: I – A alínea e) do n.º 1 do art.º 230.º do CIRE, introduzida pelo art.º 2.º da Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril, acrescentou um quinto fundamento para o encerramento do processo de insolvência e aplica-se aos processos pendentes que ainda não tenham sido declarados encerrados.

III - DECISÃO
Face ao exposto, acordam os juízes da 1.ª Secção Cível desta relação em julgar procedente a apelação, revogar o despacho recorrido e determinar que seja substituído por outro que tenha também em conta, para efeitos de decidir sobre o encerramento do processo de insolvência, o novo fundamento previsto no art.º 230.º n.º 1 al. e) do CIRE, na redação conferida pela Lei n.º 16/2012, de 20 de abril.
Sem custas.
Notifique.
(Acórdão elaborado e integralmente revisto pelo relator).

Guimarães, 02 de maio de 2013.
Moisés Silva (relator)
Manuel Bargado (1.º adjunto)
Helena Melo (2.ª adjunta)
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(1) Salvo o devido respeito, existe aqui um claro lapso do recorrente, pois na fundamentação de indeferimento diz-se que: “ à data da prolação daquele despacho ainda não tinha entrado em vigor a Lei n.° 16/2012”.
(2) Leitão, Luís, Direito da Insolvência, 4.ª edição, Edições Almedina, SA, Coimbra, maio 2012, p. 303.
(3) Fernandes, Luís e Labareda, João, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, reimpressão de Agosto, Quid Iuris, Lisboa, 2009, p. 787.
(4) Leitão, Luís, Direito da Insolvência, …, p. 303.
(5) Varela, Antunes e outros, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, revista, Coimbra Editora, Coimbra, 1985, pp. 48 e seguintes, a qual se mantém atualizada.