RESPONSABILIDADE BANCÁRIA
DESCOBERTO BANCÁRIO
ABUSO DE DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
Sumário

I - O descoberto em conta, também designado por facilidades de caixa, é a situação que ocorre quando, numa conta-corrente subjacente a uma abertura de conta, o banqueiro admita um saldo a seu favor, isto é, um saldo negativo para o cliente.
II - Esta operação pode resultar de um acordo prévio com o titular da conta, mas pode igualmente verificar-se independentemente de tal acordo, o que sucede quando o banco consente que o cliente levante fundos superiores ao saldo da sua conta.
III – No caso de um descoberto ad nutum, como é o caso dos autos, o mesmo deve ser tomado como uma tolerância do banqueiro, que não constitui direitos para o cliente.
IV – A decisão do banco recorrido em não exercer o direito de se substituir ao recorrente no pagamento do prémio de seguro, ao abrigo do contratado, por ser credor hipotecário e ainda do disposto no art.º 55º do Decreto-Lei nº 72/2008, de 16 de Abril, assenta num direito próprio, sem qualquer intervenção do recorrente, sendo ilegítima a expectativa deste de que o banco procederia ao pagamento sem que tivesse a sua conta aprovisionada.
V – O comportamento do banco recorrido não configura, neste caso, um abuso de direito, nomeadamente na vertente de “venire contra factum proprium”.

Texto Integral

Acordam nesta Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I - RELATÓRIO
A… instaurou a presente acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra B…, S.A. e C…, S.A., pedindo que as rés sejam:
a) declaradas responsáveis pela anulação da apólice do seguro multiriscos n.º 000000000 da D…, S.A.;
b) condenadas, solidariamente, a pagar ao autor a quantia de € 24.000, acrescida de IVA, para proceder à reparação dos danos identificados nos artigos 5.º a 7.º da p.i., bem como os que se vierem a liquidar em execução de sentença;
c) condenadas, solidariamente, a pagar ao autor, a título de danos não patrimoniais, a quantia de € 2.500,00.
Para tanto, alegou, em resumo, que:
- é dono de um prédio urbano, tendo celebrado com a D…, S.A. um contrato de seguro multirisco habitação, sendo o pagamento dos prémios emergentes desse contrato, de periodicidade anual, efectuado por débito na conta de depósitos à ordem titulada pelo autor na 1.ª ré, que, depois, procedia à entrega do valor do prémio de seguro à 2.ª ré para esta, por sua vez, efectuar o pagamento do prémio à D….
- na noite de 4 para 5 de Fevereiro de 2009, ocorreu um sinistro na casa do autor, que consistiu na ruptura de um tubo na cozinha, que provocou inundações no 1.º piso e no rés-do-chão, o que provocou danos em diversos locais, importando a sua reparação em € 24.000 (s/ IVA).
- o autor participou a ocorrência do sinistro à dita D…, que se escusou, no entanto, a assumir a responsabilidade do pagamento do custo da reparação no prédio do autor, já que em virtude do não pagamento do prémio de seguro, havia procedido à anulação da apólice nº 000000000, com efeitos desde o dia 02.01.2009.
- a 1.ª ré, em 13.01.2009, retirou da sua conta à ordem a quantia de € 637,99 para pagar o prémio de seguro, quantia essa que, depois, entregou à 2.ª ré, para que pagasse aquele prémio de seguro à D…, S.A., o que aquela não fez.
As rés contestaram, apresentando cada uma o seu articulado.
Alegaram, no essencial, que ao contratar o referido seguro, o autor subscreveu junto da seguradora uma autorização para débito em conta de todos os prémios de seguro que fossem devidos por força daquele contrato, consentindo que tais débitos fossem efectuados na conta de que era titular junto da 1.ª ré, sendo essa cobrança levada a cabo pelo sistema de débitos directos.
Sucedeu que na data do vencimento do primeiro prémio do seguro, ocorrido em 02.01.2009, o prémio não foi pago pela circunstância de a conta do autor não ter saldo suficiente para o efeito, razão pela qual a 1.ª ré foi interpelada pela D…, por carta de 12.01.2009, no cumprimento do estabelecido no contrato, para se substituir ao autor, querendo, no pagamento do prémio de seguro.
Porque não pretendia que o seguro fosse definitivamente anulado, a 1.ª ré procedeu então ao débito a descoberto em 13.01.2009, na conta do autor, do valor do prémio em dívida no montante de € 637,99 e fez a entrega, em numerário, à 2.ª ré, sociedade que trata destes procedimentos junto de outras seguradoras em seu nome, do montante em causa para que esta contactasse a Global no sentido de pagar o prémio em dívida.
Porém, tendo a 1.ª ré constatado que o autor a informara, por carta de 23.12.2008 que iria proceder à transferência do seu crédito à habitação para uma outra instituição de crédito, o que efectivamente veio a suceder, pelo que colocada na situação de liquidar no prazo de oito dias o prémio em dívida, ou seja até 21.01.2009 e indo consumar-se, como consumou, a transferência para o Deutsche Bank do crédito que justificava o seguro, logo a 1.ª ré se desinteressou por completo em efectuar tal pagamento, tendo procedido ao estorno, na conta do autor, do montante debitado para tal efeito, com data-valor de 13.01.2009 para que nenhuns encargos ou despesas fossem imputados a este por utilização da conta a descoberto.
Na sua contestação a 2.ª ré acrescenta ainda que não celebrou qualquer contrato com o autor, pelo que não violou nem poderia ter violado nenhum dever ou obrigação contratual de pagamento de qualquer prémio de seguro.
Terminam as rés pedindo que a acção seja julgada improcedente, com a sua consequente absolvição do pedido.
Houve réplica, concluindo o autor como na petição inicial.
Dispensada a audiência preliminar, proferiu-se despacho saneador tabelar e procedeu-se à selecção da matéria de facto assente e à organização da base instrutória.
Instruído o processo, seguiram os autos para julgamento, sendo a matéria de facto decidida nos termos do despacho de fls. 286 a 390, sem reclamações.
Por fim, foi proferida sentença a julgar a acção improcedente e a absolver as rés do pedido.
Inconformado com o decidido, recorreu o autor para esta Relação, encerrando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
«1- Atenta a fundamentação da sentença apelada constatamos que o tribunal “a quo” não ponderou toda a factualidade dada por provada, concentrando antes toda a sua atenção no facto de o A., na data em que deveria ser efectuado o débito directo, não ter a sua conta provisionada com o montante necessário ao pagamento do prémio de seguro, olvidando-se, desde logo, de que no âmbito do sistema bancário existe a figura comummente designada de descoberto em conta.
2- Ora, o descoberto em conta traduz-se na concessão de crédito bancário, com ou sem acordo prévio, e consiste na operação pela qual o banco consente que o seu cliente saque para além do saldo existente na conta de que é titular, até um certo limite e por determinado prazo, sendo o seu reembolso exigível a todo o tempo - Acórdão da Relação do Porto, de 16.3.1998, CJ, Tomo II, pág. 206.
3- Trata-se, portanto, de uma medida excepcional, de crédito de curto prazo para acudir a necessidades momentâneas e imprevistas de clientes de confiança, e sem necessidade de instruções escritas.
4- Ora, na situação em análise é indubitável que o A., na data em que entrava o débito directo, não dispunha na sua conta de fundos necessários ao desconto para o pagamento do prémio de seguro. Porém, também está provado que, em 13 de Janeiro a 1.ª Ré debitou, a “descoberto”, na conta titulada pelo A. a quantia de €637,99 com vista ao pagamento da apólice de seguro multiriscos, quantia essa entregue à 2.ª Ré para proceder em conformidade – cfr. als. f), o) e p) dos factos provados.
5- Ora, esta situação consubstancia um comportamento social típico nas relações bancárias revelador da vontade de que a 1.ª Ré adiantasse os meios para cobrir o valor de tal débito directo, o que esta aceitou, adiantando fundos seus com os quais pretendeu efectuar o respectivo pagamento;
6- Sendo certo que, posteriormente a isso, mormente em 10 de Fevereiro de 2009, a 1.ª Ré ainda deu a conhecer ao A. que movimentou a débito da sua conta o valor de €637,99, precisamente, para pagamento do prémio de seguro, tendo, inclusive, cobrado juros pelo pagamento a descoberto da conta – cfr. doc. n.º 4 junto com a PI.
7- A isto acresce que, apesar de tal débito ter sido feito a descoberto de conta, o certo é que, conforme resulta do extracto de conta junto com o articulado da contestação (doc. 4), logo em 19 de Janeiro de 2009, ou seja, ainda antes de terminado o prazo concedido pela D… à 1.ª Ré para se substituir ao A. no pagamento do prémio, este provisionou a conta com o depósito de €3.000,00, tendo a conta ficado com um saldo positivo de €2.650,23, o mesmo sucedendo na data em que a 1.ª Ré procedeu ao estorno da quantia de €637,99 e à anulação do juros devedores, em 27.02.2009;
8- Daí que, a 1.ª Ré não tinha que se substituir a nada nem a ninguém, uma vez que, estando a conta provisionada, só tinha de entregar o montante do prémio de seguro à 2.ª Ré para, por sua vez, proceder ao pagamento do prémio do seguro, tal como estava incumbida.
9- Porém, não tendo as Rés procedido ao pagamento do prémio do seguro como estavam obrigadas, a seguradora anulou a respectiva apólice, com efeitos (retroactivos) a 2 de Janeiro de 2009, não tendo, consequentemente, assumido o sinistro ocorrido na habitação do A. em 6 de Fevereiro de 2009.
10- Por outro lado, não deixa de ser surpreendente a conivência por parte do tribunal “a quo” com o argumento utilizado pela 1.ª Ré para justificar o “volte face” do seu comportamento, e que tem que ver não com o facto de o A. ter a conta a descoberto mas com o facto de o A. ter transferido o crédito habitação da 1.ª Ré para o Deutsche Bank (Portugal), S.A..
11- Na verdade, salvo devido respeito, tal argumento não afasta a culpa (que se presume) das Rés que, por isso, incorrem na responsabilidade civil contratual devendo, consequentemente, responder pelo prejuízos causados ao A. – art. 798.º e 799.º do CC.
12- Porém, mesmo que assim não se entenda, o que não se concebe nem concede, sempre o comportamento das Rés deve ser apreciado à luz da figura jurídica do ABUSO DE DIREITO, na modalidade do venire contra factum proprium e do exercício em desequilíbrio.
13- Na verdade, da factualidade dada por provada e dos documentos juntos aos autos, resulta evidente que a actuação das Rés é manifestamente reprovável, constituindo o exercício abusivo de um direito, porquanto viola os princípios da boa-fé e da confiança, tanto mais que, com tal comportamento, o A. ficou sem a cobertura de danos provocados na sua habitação, do que resultou um prejuízo superior a €17.000,00.
14- O mesmo é dizer que isto ultrapassa os limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes, atentos os juízos de valor positivamente consagrados na lei, isto é, os valores éticos predominantes.
15- Na verdade, o desejável cumprimento das obrigações não é perseguido a qualquer preço. Há limites, impostos exactamente pela boa fé, bons costumes e pelo próprio fim do direito, que, manifestamente, não foram observados pelas Rés.
16- Pelo exposto, resulta evidente que a sentença apelada, ao não julgar procedente a acção, violou o disposto nos artigos 334.º, 342.º, n.º 1 e 2, 483.º, n.º 1, 798.º e 799.º, n.º 1, todos do Código Civil.»
Termina pedindo que a apelação seja julgada procedente, com a consequente revogação da sentença e a sua substituição por outra que julgue a acção totalmente procedente.
As rés contra-alegaram, pugnando pela manutenção da sentença recorrida.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

II - ÂMBITO DO RECURSO
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, consubstancia-se nas seguintes questões:
- se as rés são responsáveis pela anulação do seguro multi-riscos habitação celebrado entre o autor e a D…, S.A.;
- respondida afirmativamente a questão anterior, quais os danos indemnizáveis.

III – FUNDAMENTAÇÃO
A) OS FACTOS
Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos[1] :
1. O autor é dono de um prédio urbano sito na Rua …, nº …, freguesia de …, Guimarães [A)].
2. Por escritura pública celebrada em 2 de Janeiro de 2007 no Cartório Notarial de Dra. Antónia Manuela Fernandes Novais Silva, E…, em representação do réu B…, S.A., declarou conceder ao autor e mulher F…, para efeitos de obras de construção/alteração do prédio urbano denominado “Quinta …”, composto por casa de cave e rés-do-chão, com anexo e logradouro, sito no lugar do …, freguesia de …, concelho de Guimarães, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº …-…, um empréstimo no montante de € 100.000, a utilizar por tranches, por crédito na conta nº 0000000 à medida que fosse concretizado o investimento programado, o que os segundos declararam aceitar e confessar-se devedores e constituir hipoteca sobre o referido imóvel para garantia do valor de € 137.207,60 - doc. de fls. 50 a 69 [G)].
3. De acordo com a cláusula 10.ª do documento complementar que fazia parte da mencionada escritura, o autor e esposa obrigavam-se, além do mais, a contratarem numa Companhia de Seguros de reconhecido crédito um seguro multi-riscos sobre o dito imóvel fazendo inserir na respectiva apólice a existência da hipoteca - doc. de fls. 50 a 69 – [H)].
4. Por via da apólice nº 000000000, com início em 2 de Janeiro de 2009, o autor acordou com D…, S.A. transferir para esta os multi-riscos da sua habitação mediante o pagamento de um prémio de periodicidade anual, com vencimento a 2 de Janeiro - doc. de fls. 70 e 71 [B)].
5. Esse pagamento seria levado a cabo por débito na conta de depósitos à ordem com o nº 0000000000000 titulada pelo autor no réu B…, S.A.
6. Sendo o montante do prémio automaticamente creditado na conta da seguradora [10.º].
7. Da acta adicional da apólice nº 000000000 consta como credor hipotecário o réu B…, S.A. - doc. de fls. 70 e 71 [I)].
8. Nessa acta previa-se, como cláusula especial, que a D… não procederia à anulação nem alteração da mesma, à excepção do aumento de capital, bem ao pagamento de qualquer indemnização por sinistro sem prévio consentimento do credor - doc. de fls. 70 e 71 [J)].
9. Em 6 de Fevereiro de 2009, o autor participou à Seguradora referida em B) uma ruptura de um tubo ocorrida na sua habitação - doc. de fls. 27 [D)].
10. Com data de 17 de Fevereiro de 2009, a D…, S.A., reportando-se àquela participação, comunicou ao autor que a apólice nº 000000000 se “encontrava anulada e de nenhum efeito desde 2 de Janeiro de 2009” e que “o sinistro não era da sua responsabilidade” - doc. de fls. 28 [E].
11. Em 2 de Janeiro de 2009 a conta do autor não tinha provisão para o pagamento do prémio [N)].
12. Em 12 de Janeiro de 2009 a seguradora referida em B) instou o réu a substituir-se ao autor no pagamento do prémio no prazo de oito dias [O)].
13. Em 13 de Janeiro o réu B…, S.A. debitou na conta do autor acima identificada o montante de € 637,99 para pagamento do prémio da mencionada apólice - doc. de fls. 29 [F)].
14. O réu procedeu ao mencionado débito “a descoberto” [P)].
15. O réu B… entregou à Ré C… aquela quantia [7º].
16. Aquele réu entregou a esta ré o aluído montante para que esta contactasse a D… para o fim de se substituir ao autor no pagamento do prémio no prazo de oito dias [Q)].
17. A ré C… não pagou à D… o prémio no prazo de trinta dias após o seu vencimento [M)].
18. Por carta datada de 23 de Dezembro de 2008 o autor e esposa comunicaram ao réu B…, S.A. que pretendiam fazer a transferência do crédito habitação para o Deutsche Bank (Portugal), S.A. com escritura agendada para 21 de Janeiro de 2009, pelas 10 horas, no Cartório Notarial de Dr. Carlos Tavares - doc. de fls. 77 [L].
19. Em face dessa comunicação o réu B… deu instruções à ré C… que suspendesse todos os actos destinados à regularização do pagamento [R)].
20. O réu, em 27.02.2009, procedeu ao estorno, na conta do autor, do montante referido em F), acrescido dos juros respectivos, com data-valor de 13 de Janeiro de 2009 [S)].
21. Na noite de 4 para 5 de Fevereiro de 2009 ocorreu a ruptura de um tubo na cozinha da casa do autor, que provocou inundações no primeiro piso e no rés-do-chão [3.º].
22. Em consequência do referido em t), o prédio do autor ficou com as paredes, tectos, todo o material e madeira (chão, rodapés, portas) e apainelados danificados [4.º].
23. Para a sua reparação é necessário:
» 1º piso:
- substituir os apainelados contraplacados marítimo castanho;
- rectificar os aros das portas interiores;
- tratar e lacar as madeiras;
- picar, emassar e lixar as paredes das áreas danificadas, dar duas demãos de isolante
e três demãos de tinta acetinada;
- limpar toda a área afectada;
» rés-do-chão:
- substituir os apainelados contraplacados marítimo de madeira sucupira;
- tratar e lacar as madeiras;
- lixar o tecto, dar duas demãos de isolante e três demãos de tinta;
- dar três demãos de tinta nas paredes;
- pintar as paredes da adega;
- pintar o tecto da casa de banho;
- limpar toda a área afectada [5.º].
24. O valor da reparação atrás referida, ascende a 17.000€ sem IVA [6.º].
25. O autor sofreu incómodos e arrelias [9.º].

B) O DIREITO
Da responsabilidade do réu banco
Do descoberto em conta
A análise da responsabilidade do réu banco pressupõe que nos debrucemos, num primeiro momento, sobre o descoberto em conta.
Começaremos por dizer que a abertura de conta prevê um quadro para a constituição de depósitos bancários que o banqueiro se obriga, desde logo, a receber, e regula a conta-corrente bancária. Prevê regras sobre os seus movimentos incluindo juros, comissões e despesas que o banqueiro poderá debitar e sobre os extractos, assumindo este, implicitamente, todo o serviço de caixa relacionado com a conta aberta.
A concessão de crédito por descoberto em conta é um dos negócios que as cláusulas contratuais gerais respeitantes à abertura de conta podem prever.
O descoberto em conta, também designado por facilidades de caixa, é a situação que ocorre quando, numa conta-corrente subjacente a uma abertura de conta, o banqueiro admita um saldo a seu favor, isto é, um saldo negativo para o cliente[2].
Esta operação pode resultar de um acordo prévio com o titular da conta, mas pode igualmente verificar-se independentemente de tal acordo, o que sucede quando o banco consente que o cliente levante fundos superiores ao saldo da sua conta. O segundo é, manifestamente, o caso mais frequente: a maior parte dos “descobertos em conta” não configura uma operação formalmente negociada, antes corresponde a situações em que o cliente ordena a disponibilização de quantias superiores ao saldo da sua conta, sem que lhe assista o direito de o fazer (por falta de depósito suficiente), satisfazendo o banco, sem a tal ser obrigado, as ordens do cliente, por confiar na sua solvabilidade.
Seja como for, em qualquer dos casos está-se perante uma concessão de crédito ao cliente, o que confere ao banco o direito à restituição da quantia adiantada e legitima a cobrança, também pelo banco, de juros.
No caso em apreço está assente que o autor contratou com a D…, S.A. um seguro “multi-riscos” da sua habitação, com início em 2 de Janeiro de 2009, mediante o pagamento de um prémio de periodicidade anual, com vencimento a 2 de Janeiro, devendo esse pagamento ser efectuado por débito numa conta de depósitos à ordem titulada pelo autor/recorrente no banco réu/recorrido.
Esse contrato de seguro foi celebrado na sequência da obrigação assumida pelo autor, perante aquele réu, de contratar numa companhia de seguros um seguro “multi-riscos” sobre o imóvel que constituía a sua habitação.
Daí que, tendo o contrato de seguro sido celebrado também no interesse do réu banco, foi estipulada na apólice uma cláusula especial, de acordo com a qual a seguradora não procederia à anulação nem alteração do contrato de seguro, à excepção do aumento de capital, bem como ao pagamento de qualquer indemnização por sinistro sem prévio consentimento do credor, o réu banco, que nessa qualidade ali surge identificado (cfr. a “acta adicional” de fls. 70/71).
Na data do pagamento do prémio, a referida conta, na qual seria efectuado o débito do valor correspondente ao montante do prémio devido, não se encontrava aprovisionada com a quantia necessária para o efeito.
Nesse sentido, a seguradora, em cumprimento da cláusula especial que a impedia de anular o contrato sem prévio consentimento do banco, em 12.01.2009, instou-o a substituir-se ao autor no pagamento do prémio no prazo de 8 dias.
Sustenta o recorrente que tendo sido transmitida ao banco recorrido a ordem de pagamento por débito directo dos recibos de seguro em causa, tal constituiria, por si só, uma autorização para movimentação da conta a descoberto.
Mas não tem razão.
A instrução de pagamento por débito directo dos recibos da seguradora não encerra qualquer autorização do banco no sentido de tais pagamentos ocorrerem mesmo a descoberto, sendo que tal instrução não comporta a intervenção do banco a quem é dada a ordem, a qual é negociada e aceite entre credor e devedor, servindo o banco de mero intermediário no cumprimento da instrução que lhe é remetida pelo seu cliente ou pelo credor, com expresso consentimento daquele.
Tal instrução pressupõe, como é imposto pelo credor de tais débitos, que o devedor (aqui recorrente) tenha a conta aprovisionada na data dos pagamentos para que o banco não os devolva por falta de fundos na mesma.
Como refere o banco apelado nas suas alegações, «os débitos directos são, para os devedores, um meio de efectuar pagamentos através das suas contas bancárias e, para os credores, um meio de efectuar as suas cobranças, sendo certo que os pagamentos só ocorrerão se os débitos forem apresentados dentro dos prazos estabelecidos e se a conta do devedor se mostrar aprovisionada, estando tais pagamentos normalmente associados a contratos duradouros ou de carácter periódico, como por exemplo, o fornecimento de serviços de energia, telefone, água, seguros, etc.».
No caso em apreço, não está demonstrado, até porque tal não foi alegado, que o banco recorrido tenha autorizado o recorrente a efectuar pagamentos de débitos directos mesmo que a sua conta estivesse a descoberto.
E, convém não esquecer, que no caso de um descoberto ad nutum, como é o caso, o mesmo «deve ser tomado como uma tolerância do banqueiro, que não constitui direitos para o cliente»[3].
Ora, no caso em apreço, quando a credora seguradora enviou para cobrança pelo sistema de débito directo na conta do recorrente o prémio de seguro devido, a mesma não estava aprovisionada com fundos suficientes para que tal pagamento tivesse lugar.
Foi por essa razão que a seguradora, depois de decorrido o prazo para a regularização desse pagamento sem que o mesmo tivesse ocorrido, interpelou o banco recorrido em 12/01/2009 para se substituir, querendo, ao segurado no pagamento do mesmo.
O banco, que num primeiro momento manifestou intenção de proceder ao pagamento do prémio, desistiu desse propósito, face à decisão do autor de transferir o “crédito à habitação” para outra instituição de crédito.
Tal desistência ocorreu no uso de um direito do banco, pois a opção entre pagar ou não pagar sempre lhe assistiria, considerando que o recorrente já não o podia fazer e porque a apólice de seguro se encontrava anulada e de nenhum efeito desde 2 de Janeiro de 2009.
Ademais, tratando-se de débito directo incumbiria ao recorrente (devedor) dar instruções à seguradora para apresentar de novo a pagamento o prémio, se ainda no prazo devido, ou pagá-lo directamente à mesma, assim evitando a devolução do recibo de seguro sem pagamento por falta de aprovisionamento da conta de depósito à ordem, o que não está demonstrado que tenha sucedido, pelo que em nada releva o facto do recorrente ter a conta aprovisionada em data posterior (19/01/2009).
Também não colhe o argumento invocado pelo recorrente de que, pelo facto do banco recorrido ter debitado a descoberto a sua conta de depósitos à ordem em 13/01/2009, lhe foi criada a expectativa de que o seguro fora pago.
Desde logo porque o recorrente não formulou o seu pedido tendo por base tal fundamento, nem tão pouco alegou factos tendentes a concluir, uma vez provados, que ficou com o conhecimento de tal pagamento e que apenas por isso não cuidou de ordenar uma nova apresentação no banco do prémio a pagamento ou de o fazer directamente à seguradora.
Seja como for, sempre seria legítimo concluir que não tendo o recorrente a conta à ordem aprovisionada na data do vencimento do prémio de seguro e não tendo, nos trinta dias seguintes ao seu vencimento, ordenado à seguradora nova apresentação do mesmo a pagamento, que o mesmo se teria desinteressado do seguro naquela companhia, até porque iria transferir, como transferiu, o respectivo crédito à habitação e com ele o próprio seguro para outra instituição de crédito e seguradora de confiança do novo banco.
Importa também não esquecer, que o banco recorrido estornou ao recorrente o valor debitado, e que a seguradora lhe comunicou que a apólice se encontrava anulada e de nenhum efeito desde 2 de Janeiro de 2009.
Em face de tal factualidade – e do que se não alegou nem provou -, não se vê como pode o recorrente sustentar uma expectativa séria relativamente ao pagamento do prémio de seguro.

Do abuso de direito
O recorrente invoca ainda o abuso de direito, alegando ter o banco recorrido actuado com violação dos princípios da boa-fé e da confiança, tudo na modalidade do venire contra factum proprium.
No artigo 334.º do Código Civil preceitua-se que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
A este propósito escreveu-se de forma lapidar no Acórdão do STJ de 25-05-1999[4]:
«(…) a concepção geral do abuso de direito postula a existência de limites indeterminados à actuação jurídica individual. Tais limites advêm de conceitos particulares como os de função, de bons costumes e de boa fé.
O problema de base posto pelo abuso de direito reside na indeterminação dos conceitos que o informam e, designadamente, no de boa fé. Diz-se indeterminado o conceito que não permite uma comunicação clara e imediata quanto ao seu conteúdo. Por isso, o conceito indeterminado carece de um processo de concretização, tendente a possibilitar a sua aplicação em concreto.
E sabe-se que a lei utiliza conceitos indeterminados como modo privilegiado de atribuir ao aplicador intérprete – “maxime” ao juiz – instrumentos capazes de promover, no caso concreto, uma busca mais apurada da justiça, como diz o Prof. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo 1, 1999, Almedina.
De salientar também que assegurar expectativas e direccionar condutas são indubitavelmente funções primárias do direito.
Ou seja: por um lado, assegurar desde logo a confiança fundada nas condutas comunicativas das “pessoas responsáveis”, fundada na própria credibilidade que estas condutas reivindicam, e, por outro lado, dirigir e coordenar dinamicamente a interacção social e criar instrumentos aptos a dirigir e coordenar essa interacção, por forma a alterar as probabilidades de certas condutas no futuro.
E ambas as funções se relacionam com aquela “paz jurídica” que, ao lado da justiça, é referida como uma das expressões da própria “ideia de direito” (v. Prof. Baptista Machado, Obra Dispersa, vol. I, Scientia Jurídica, Braga, 1991, pág. 346).»
Uma das modalidades que pode revestir o abuso de direito encontra guarida no instituto jurídico denominado “venire contra factum proprium”.
Esta vertente do abuso de direito inscreve-se no contexto da violação do princípio da confiança, que sucede quando o agente adopta uma conduta inconciliável com as expectativas adquiridas pela contraparte, em função do modo como antes actuara.
Como escreve o Prof. Menezes Cordeiro[5]:
“O venire contra factum proprium” postula dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo.
O primeiro – o factum proprium – é, porém, contrariado pelo segundo.”
A conduta dos RR., para ser integradora do “venire” terá, objectivamente, de trair o “investimento de confiança”, importando que os factos demonstrem que o resultado de tal conduta constituiu, in concreto, injustiça.
Como ensina o mesmo ilustre civilista[6], são quatro os pressupostos da protecção da confiança, ao abrigo da figura do “venire contra factum proprium”:
“ (...) 1°- Uma situação de confiança, traduzida na boa-fé própria da pessoa que acredite numa conduta alheia (no factum proprium);
2.° Uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do factum proprium seja plausível e, portanto, sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis;
3.° Um investimento de confiança, traduzido no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma actividade na base do, factum proprium, de tal modo que a destruição dessa actividade (pelo venire) e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara;
4.° Uma imputação da confiança à pessoa atingida pela protecção dada ao confiante, ou seja, que essa confiança (no factum proprium) lhe seja de algum modo recondutível.”
Ora, da factualidade dada como provada, não se vislumbra qualquer comportamento do banco susceptível de violação do princípio da confiança.
A actuação do banco, ao não pagar o recibo da apólice de seguro assenta no facto, reconhecido pela própria recorrente, de que à data da sua apresentação a pagamento a sua conta de depósito à ordem não tinha saldo para o efeito, sendo essa falta de aprovisionamento da conta que teve como consequência a anulação da apólice de seguro.
Também a decisão do banco recorrido em não exercer o direito de se substituir ao recorrente no pagamento do prémio de seguro, ao abrigo do contratado, por ser credor hipotecário e ainda do disposto no art.º 55º do Decreto-Lei nº 72/2008, de 16 de Abril, assenta num direito próprio, sem qualquer intervenção do recorrente, sendo ilegítima a expectativa deste de que o banco procederia ao pagamento sem que tivesse a sua conta aprovisionada.
Isto porque a decisão de pagar ou não pagar, considerando a matéria de facto provada, não representa qualquer comportamento contraditório por parte do banco recorrido, pelo que não houve violação dos princípios da boa-fé ou confiança.
O comportamento do banco recorrido não configura, neste caso, um abuso de direito, nomeadamente na vertente de “venire contra factum proprium”.

Da responsabilidade da 2.ª ré
Todas estas considerações relativas à ausência de responsabilidade por parte do banco apelado, são aplicáveis à ré C…, S.A. (2.ª ré), a qual, aliás, se limitou a cumprir ordens do banco recorrido, sendo a mesma totalmente alheia à relação contratual estabelecida entre o autor e o banco.
Na verdade, servindo-se o banco recorrido daquela sociedade para o tratamento de assuntos relacionados com pagamentos, negociações e contactos com as mais diversas seguradoras, como oportunamente alegado, e tendo o banco dado instruções à mesma para suspender todos os actos destinados à regularização do pagamento do prémio do seguro, não se vê como nem por que forma pode esta ré ser responsabilizada pela anulação da apólice de seguro em discussão nos autos.
A haver responsabilidade, que como se viu não há, sempre a mesma seria do banco recorrido, nos termos do nº 1 do artigo 800º do Código Civil, e nunca da 2.ª ré.
Decorre, assim, do exposto que não colhem as conclusões do recorrente, tendentes ao provimento do recurso, pelo que a sentença recorrida terá de manter-se.

Sumário:
I - O descoberto em conta, também designado por facilidades de caixa, é a situação que ocorre quando, numa conta-corrente subjacente a uma abertura de conta, o banqueiro admita um saldo a seu favor, isto é, um saldo negativo para o cliente.
II - Esta operação pode resultar de um acordo prévio com o titular da conta, mas pode igualmente verificar-se independentemente de tal acordo, o que sucede quando o banco consente que o cliente levante fundos superiores ao saldo da sua conta.
III – No caso de um descoberto ad nutum, como é o caso dos autos, o mesmo deve ser tomado como uma tolerância do banqueiro, que não constitui direitos para o cliente.
IV – A decisão do banco recorrido em não exercer o direito de se substituir ao recorrente no pagamento do prémio de seguro, ao abrigo do contratado, por ser credor hipotecário e ainda do disposto no art.º 55º do Decreto-Lei nº 72/2008, de 16 de Abril, assenta num direito próprio, sem qualquer intervenção do recorrente, sendo ilegítima a expectativa deste de que o banco procederia ao pagamento sem que tivesse a sua conta aprovisionada.
V – O comportamento do banco recorrido não configura, neste caso, um abuso de direito, nomeadamente na vertente de “venire contra factum proprium”.

IV - DECISÃO
Termos em que acordam os Juízes desta Secção Cível em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente.
*
Guimarães, 12 de Setembro de 2013
Manuel Bargado
Rita Romeira
Amílcar Andrade (dispensei o visto)
__________________________________
[1] Na parte final de cada um dos pontos, indicar-se-á entre parêntesis a alínea e o número correspondente aos “factos assentes” e à base instrutória, sendo alguns retocados na sua redacção e distribuídos por uma ordem (tendencialmente) lógica e cronológica.
[2] Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, 2.ª edição, Almedina, p. 589.
[3] Menezes Cordeiro, ob. cit., p. 90.
[4] In CJ/STJ, tomo 2º, p. 116 (Fernandes Magalhães).
[5] In Da Boa Fé no Direito Civil, Colecção Teses, p. 745.
[6] In Revista da Ordem dos Advogados, Ano 58, Julho/1998, p. 964.