DOCUMENTO AUTÊNTICO
FORÇA PROBATÓRIA
CONFISSÃO EXTRAJUDICIAL
Sumário

1- A força probatória material dos documentos autênticos restringe-se aos factos praticados ou percecionados pela autoridade ou oficial público de que emanam os documentos, já não abarcando a sinceridade, a veracidade e a validade das declarações emitidas pelas partes perante essa mesma autoridade ou oficial público.
2- Declarando os vendedores numa escritura pública de compra e venda que receberam da compradora (participante no ato) o preço convencionado, a prova da veracidade ou do conteúdo dessa declaração resulta, com força probatória plena, dessa confissão extrajudicial, nos termos da segunda parte do nº 2 do art.º 358º do Código Civil, porquanto lhes é desfavorável e é feita à parte contrária.
3- Não tendo sido impugnada a decisão em matéria de facto em sede de apelação, e não tendo os vendedores logrado provar os factos alegados em sentido contrário ao da confissão de recebimento do preço escriturado, subsiste aquela confissão, não podendo o tribunal deixar de considerar como provado o facto confessado.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
I.
Â… mulher, M…, casados segundo o regime de comunhão de adquiridos, residentes na Rua …, concelho de Viana do Castelo, intentaram ação declarativa de condenação, sob a forma de processo sumário, contra M… e marido, J…, casados segundo o regime de comunhão de adquiridos, residentes em…, em França, alegando essencialmente que, por escritura pública celebrada a 30.8.1995, compraram aos R.R. uma quarta parte indivisa de uma casa de habitação e que, apesar de várias insistências suas, nunca aqueles vendedores se mostraram disponíveis para entregar a posse da parte adquirida pelos A.A. ou para devolverem o preço que estes pagaram na referida aquisição. Os R.R. transmitiram a outrem essa mesma parte indivisa do prédio, agindo de má fé, incorrendo em responsabilidade civil por facto ilícito (art.º 483º do Código Civil). E assim, tendo transmitido duas vezes o mesmo direito, devem restituir aos A.A. tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição não for possível, o valor correspondente, nos termos do art.º 289º, nº 1, do Código Civil.
Culminam a petição inicial com o seguinte pedido: “Nestes termos e nos melhores de direito aplicáveis, deve a presente acção ser julgada procedente e provada e os R.R. condenados a pagar aos A.A. a quantia de 16.412,36€, correspondente ao capital e aos juros entretanto vencidos, bem como nos juros vincendos, bem como nos juros vincendos, e ainda nas custas e acréscimos legais”. (sic)
Citados, os R.R. contestaram a ação, por exceção e por impugnação.
Quanto ao primeiro ponto invocaram a existência de contradição entre o pedido e a causa de pedir, não compreendendo como não foi posta em causa, pelos demandantes, a validade e a eficácia da referida escritura pública e, simultaneamente se pede a restituição do preço alegadamente pago, acrescido de juros vencidos e vincendos.
Os R.R. impugnaram parte dos factos alegados na petição inicial, apresentando a sua versão dos acontecimentos, designadamente a simulação do preço, fixando-o por valor mais elevado do que o real com vista a evitar o exercício do direito de preferência de terceiros; e nem sequer o preço real foi alguma vez pago.
Concluíram pela improcedência da ação.
Os A.A. replicaram impugnando parte da matéria alegada na contestação. Invocaram a nulidade do contrato por o direito em causa lhes ter sido vendido numa ocasião em que os vendedores já não eram seus titulares, alteraram/completaram o pedido em conformidade e reafirmaram o pagamento do preço, de acordo com o constante da escritura pública.
O pedido passou a ter a seguinte redação:
a) Se declare nulo o negócio jurídico de compra e venda celebrado em 30.8.1995 por escritura pública;
b) Se condenem os R.R. a restituírem aos A.A. a quantia de € 18.028,30 correspondente ao capital (preço, sisa e quantia despendida com a realização da escritura pública) e juros entretanto vencidos, assim como nos juros vincendos, custas e acréscimos legais.
Foi proferido despacho saneador no âmbito do qual se admitiu a alteração/explicitação do pedido pela expressa invocação da nulidade da compra e venda.
Dispensada a audiência preliminar e a elaboração de factos assentes e base instrutória, e instruído o processo, teve lugar a audiência de discussão e julgamento que culminou com respostas fundamentadas à matéria de facto.
Foi proferida sentença que culminou com o seguinte segmento decisório:
“Por todo o exposto, julgo a presente acção parcialmente procedente e, em consequência:
- declaro a nulidade do negócio celebrado entre as partes, por escritura pública de compra e venda datada de 30 de Agosto de 1995;
- condeno os réus a pagar aos Autores, a título de indemnização, a quantia de € 1.153,76 (mil cento e cinquenta e três euros ,e setenta e seis cêntimos), acrescida dos respectivos juros vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a data da citação e até efectivo e integral pagamento.
Custas a cargo dos Autores e dos Réus na proporção de 90% e de 10%, respectivamente.” (sic)

Inconformados, os A.A. recorreram da sentença, tendo apresentado alegações com as seguintes CONCLUSÕES:
“1º - Dá-se aqui por reproduzida a matéria de facto dada por provada e constante na sentença recorrida;
2º - Assenta a sentença e o raciocínio da Mmª Juiz “ a quo” no pressuposto de que tendo os RR. invocado que o preço não foi pago, arguindo mesmo a simulação da compra e venda, que os AA. não lograram fazer prova do pagamento do preço;
3º Na realidade os AA. possuem uma escritura pública de compra e venda em que os RR. declaram vender aos AA., “ pelo preço de dois milhões de escudos, quantia que dela declaram ter já recebido (..)”;
4º Estamos perante um documento autêntico, e que nos termos do artigo nº 371, nº 1 do Código Civil, o mesmo faz prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora;…”
5º A afirmação exarada em escritura pública de compra e venda de um prédio de que os outorgantes vendedores disseram, naquele ato, já haverem recebido o preço da venda faz prova plena de tal afirmação.
6º Salvo prova do contrário feita em incidente de falsidade, cfr. Os arts. 363, nº 1 e 2, e 371º, nº 1 do Cód. Civil.
7º Nos termos do art. 372º, nº 1 do Código Civil “ A força probatória dos documentos autênticos só pode ser ilidida com base na sua falsidade.
8º Ora no processo em causa o Incidente de falsidade do preço não foi suscitado pelos Réus e era a estes que o cabia fazer.
9º A afirmação documentada na escritura pública de compra e venda, relativamente ao recebimento do preço, constitui uma confissão extrajudicial que faz prova plena daquele facto, na medida em que for desfavorável ao outorgante vendedor e favorável à parte contrária – cfr. Os arts. 347º, 351º, 393º, nº2 e 395º do Cód. Civil (STJ, 2-6-1999:BMJ, 488º-313, e CJ/STJ, 1999-2º-136).
10º A prova legal plena só pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objeto, sem prejuízo de outras restrições especialmente determinadas na lei”, nos termos do artigo 347º do Código Civil.
11º A decisão recorrida violou ou fez errada aplicação do disposto nos artigos 347º, 363º, nº 1, 371º, nº1, 372º, 393º, nº 2 e 894º todos do Código Civil”.

Em contra-alegações, vieram os R.R. pugnar pela manutenção do decidido, concluindo do seguinte modo:
“1. Competia aos Autores fazer prova de que pagaram o preço, facto que não lograram.
2. Por isso, andou bem o tribunal recorrido, ao decidir como decidiu, na medida em que, o facto de constar da escritura pública que foi pago o preço de dois mil contos (atualmente 10.000,00€) não significa, tout court que aquele preço tivesse sido pago.
3. Isto porque, na esteira das melhores doutrina e jurisprudência “a força probatória material dos documentos autênticos restringe-se, nos termos do artigo 371.º, nº1 do Código Civil, aos factos praticados ou percepcionados pela autoridade ou oficial público que emanam os documentos, já não abarcando, porém, a sinceridade, a veracidade e validade das declarações prestadas perante essa mesma autoridade ou oficial público.”
4. A resposta aos quesitos dada pelo Exma Sra Juiz a quo, a sua fundamentação e a fundamentação da sentença são claras e por isso inatacáveis.
5. Não se verifica a necessidade e de invocação do incidente de falsidade.
6. Não é o documento autêntico, em si mesmo que está adulterado,
7. Nem o seu conteúdo foi alterado propositadamente pelo notário.
8. Em rigor, não se trata de um documento falso, mas sim de um negócio que não foi de facto realizado, porque o preço não foi pago, nem a coisa transmitida.” (sic)
*
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II.
A questão a decidir encerra apenas matéria de direito, estando o objeto do recurso delimitado pelas conclusões da apelação, acima transcritas, exceção feita para o que for do conhecimento oficioso (cf. art.ºs 608º, nº 2, 635º e 639º do novo Código de Processo Civil[1]).
Impõe-se solucionar a seguinte questão: qual a força probatória da declaração constante de uma escritura pública de compra e venda, assinada pelos vendedores e pela compradora, pela qual aqueles referem expressamente ter recebido desta última o preço do direito objeto do contrato (esc.2.000.000$00)?
*
III.
O tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos [2]:
a) Por escritura pública de compra e venda lavrada em trinta de Agosto de mil novecentos e noventa e cinco no Segundo Cartório Notarial de Viana do Castelo, exarada de folhas setenta e duas verso a folhas setenta e quatro verso, do Livro cento e trinta e dois – F, os Réus declararam vender aos Autores uma quarta parte indivisa de uma casa de rés-do-chão com seu logradouro, sito no Lugar …, concelho de Viana do Castelo, inscrita na matriz urbana sob o artigo … e descrita na Conservatória do Registo Predial de Viana do Castelo sob o número… (documentos números um, dois e três juntos com a petição inicial e cujos teores aqui se dão por integralmente reproduzido).
b) De acordo com o documento junto aos autos a fl. 21 (original a fl. 117), cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, emitido pela Repartição de Finanças de Viana do Castelo, datado de 29 de Agosto de 1995, M…, casada, declarou que pretende pagar a sisa que for devida com referência à compra pelo preço de 2.000.000$00 vai fazer a J… e mulher, residente em …, da ¼ (uma quarta parte) indivisas de uma casa baixa em alvenaria, situada no lugar de…, inscrita na matriz respectiva sob o artigo …, com o valor patrimonial de 3.286$00, tendo sido paga a quantia de 200.000$00.
c) Na escritura pública mencionada no artigo 1º da petição inicial (alínea a) dos factos provados) foi declarado “(…) Disseram os primeiros outorgantes: Que vendem à segunda outorgante, pelo preço de dois milhões de escudos, quantia que dela declaram ter já recebido (..)”.
d) De acordo com o documento junto aos autos a fl. 22 (original a fl. 116), cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, M… efectuou o pagamento da quantia de 31.310$00, no dia 30 de Agosto de 1995, pela realização de uma escritura pública de compra e venda no valor de 2.000.000$00.
e) Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Viana do Castelo sob o nº … (correspondente à anterior descrição com o nº …, do Livro nº 177) um prédio registado em nome de M… e marido A…, desde o dia 16-10-2006, pela Ap. 23 (causa: compra).
f) Por inventário obrigatório nº 40/80 da 2ª secção, maço 120, nº 14 que correu os seus termos pelo Tribunal Judicial de Viana do Castelo, por óbito de I…, falecida em 06-10-1968, mãe do réu marido, foi adjudicado ao réu marido, à época solteiro, 1/6 de ¾ partes do imóvel.
g) Os Réus eram proprietários de 3/8 da totalidade do prédio, sendo o restante prédio propriedade de A… e mulher na proporção de 4/8 e E… e marido proprietários de 1/8.
h) Por acção especial de arbitramento para divisão de coisa comum, em que foi Autor A… e mulher M… e Réus J… e mulher M…, E… e marido M…, que correu os seus termos pelo Tribunal Judicial de Viana do Castelo, sob o nº 187-A/92, da 1ª secção do 1º Juízo, os referidos A… e mulher quiseram pôr fim à indivisão (documento nº 6 junto com a petição inicial e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
i) No âmbito da acção de divisão de coisa comum nº 187/A/92 da primeira secção do 1º Juízo de Viana do Castelo foi arrematado o bem melhor descrito a fl. 31 a A…, tendo-lhe sido adjudicado o referido prédio, em consequência da licitação.
j) Por requerimento feito ao processo em 27 de Setembro de 2000, os Réus vieram solicitar a passagem do precatório cheque para levantamento do depósito efectuado na Caixa Geral de Depósitos de Viana do Castelo, referente à quota parte dos requerentes no produto da venda da arrematação nos referidos autos.
k) Em 26 de Outubro de 2000 foi consignada a entrega do precatório cheque a favor de J… e mulher no montante de Esc. 206.250$00/€ 1.028,77.
l) Os Réus sempre viveram em França e só se deslocavam a Portugal nas férias estivais.
m) De acordo com o documento junto aos autos a fl. 53, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, Â… fez a declaração aí constante e assinou-a, encontrando-se a respectiva assinatura reconhecida e com data de 30 de Agosto de 1995.
n) O Autor marido, à data da realização da escritura mencionada na alínea a) dos factos provados, dedicava-se à construção civil, como empresário em nome individual.
o) Nunca, até à data de hoje, o réu marido realizou quaisquer obras em casa dos réus.
p) Foi junto aos autos uma cópia de um cheque do Banco…, passado à ordem do Sr. Â… ao qual foi aposta a quantia de duzentos e sessenta e um mil escudos e a data de “97-08-18” e uma cópia de uma requisição de cheques, datada de 97-08-18 em nome de J…, a fl. 54 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
q) O documento junto a fl. 145 dos autos está assinado pelo Autor marido.
r) O documento junto a fl. 145 dos autos não contém a assinatura do Réu marido.
s) À data da celebração da escritura o Réu marido tinha conhecimento de que corria uma acção de divisão de coisa comum e que tinha por objecto o referido prédio, tendo sido assinado o aviso de recepção para efeito da citação em 22-06-1994, nos termos constantes da certidão judicial junta aos autos com a resposta à contestação e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
*
A questão do recurso
O tribunal a quo considerou nula a compra e venda por entender que os R.R. venderam um bem alheio. Este ponto foi aceite por ambas as partes, não constituindo objeto da apelação.
A questão para cuja apreciação somo solicitados prende-se com as consequências da declaração de nulidade, particularmente com a obrigação de devolução do preço da venda, a que o vendedor sempre está obrigado nos termos do art.º 289º, nº 1, do Código Civil, caso o tenha recebido: se deve, ou não deve, considerar-se provado, atento o declarado pelos R.R. na escritura pública, que a A. mulher lhes pagou o preço do direito por aquele meio (válida ou invalidamente) transmitido.
A sentença é assertiva e com ela concordamos quanto às considerações ali tecidas a propósito da força probatória da escritura pública, enquanto documento autêntico. Refere o seguinte, ipsis verbis:
«Como é sabido, “Relativamente ao valor probatório da escritura pública, tratando-se de um documento autêntico, é inequívoco que tem força probatória plena, nos termos do artº. 363º., nº. 1, do Cód. Civil, mas apenas relativamente aos factos que refere como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que nele são atestados com base nas percepções da entidade documentadora – nº. 1 do artº. 371º., do mesmo Cód.. Como observam Pires de Lima e Antunes Varela, “o valor probatório pleno do documento autêntico não respeita a tudo o que se diz ou contém no documento … não fica provado que seja verdadeira a afirmação do outorgante, ou que esta não tenha sido viciada por erro, dolo ou coacção, ou que o acto não seja simulado”(in “Código Civil Anotado”, vol. I, pág. 326), isto é, a prova plena, “não abrange a sinceridade ou a veracidade” dos actos e declarações que encerra, como, com clareza, se exprime o Ac. do S.T.J. de 26/04/1994 (ut C. J., (Acórdãos do S.T.J.), ano II, tomo II – 1994, pág. 69). Do exposto se extrai que, na situação sub judicio, a escritura pública apresentada pelos Apelantes faz (apenas) prova de eles terem comparecido no cartório notarial juntamente com P… e perante o Notário esta haver declarado que vendia àqueles o imóvel “todo o recheio … identificado numa relação…”, pelo preço de “sessenta e nove mil euros”. Não prova, porém, que os Apelantes e a referida P… praticaram, na realidade, todos os actos integrantes do contrato de compra e venda, designadamente o pagamento do preço, que o caracteriza – cfr. artº. 978º., do C.Civil” (acórdão datado de 29 de Maio de 2012, relator: Fernando Fernandes Freitas, do Tribunal da Relação de Guimarães, in www.dgsi.pt).».
A prova plena emergente das escrituras públicas resulta da fé pública que a lei atribui aos documentos autênticos, com base nas garantias de verdade emergentes da sua proveniência, o oficial público nomeado e fiscalizado no exercício das suas funções, também ele sujeito a requisitos e exigências fixados na lei. Mas a prova plena cinge-se aos factos praticados pelo documentador e os por ele atestados, dela estando arredada a veracidade desses factos, a sua validade e a sua eficácia jurídica, já que tais qualidades não estão ao alcance da perceção do notário ou oficial público.
O documento prova, então, plenamente, que as partes fizeram ao documentador as declarações nele inscritas e que perante ele praticaram determinados atos de que ele se certificou ou podia certificar-se. Esta força probatória plena, prevista no art.º 371º do Código Civil, só pode ser discutida e infirmada através do incidente de falsidade: o documento autêntico é falso quando nele se atesta como tendo sido objeto da perceção da autoridade ou oficial público qualquer facto que na realidade se não verificou, ou como tendo sido praticado pela entidade responsável qualquer ato que na realidade o não foi (art.º 372º, nºs 1 e 2, do Código Civil).
Já o conteúdo das declarações, porque não atestado pela entidade documentadora, pode, em princípio, ser impugnado por qualquer meio de prova.
Como é manifesto, a prova plena emergente da escritura pública referida em a) dos factos provados só se estenderia à veracidade do pagamento (conteúdo da declaração), nos termos do citado art.º 371º, nº 1, ou seja, por força da prova plena emergente de um documento autêntico, se nela estivesse atestado pelo notário que no ato da escritura a compradora entregou aos vendedores determinada quantia pecuniária como pagamento do preço, enquanto facto por ele percecionado.
Com efeito, a escritura pública celebrada entre as partes, só por si, não faz prova plena de que o preço do direito vendido foi recebido pelos vendedores; apenas faz prova plena de que os vendedores declararam que a compradora lhes pagou aquele direito. A força probatória plena do documento respeita apenas à materialidade das declarações e não também à eficácia da declaração do autor.
Os R.R. não suscitaram a falsidade desta declaração, conformando-se com a sua realização percecionada pelo oficial público.
Se essas declarações foram verdadeiras, livremente prestadas, não inquinadas de erro, dolo ou outros vícios, ou se se atestam factos não percecionados, já não estão a coberto da força probatória plena dos factos documentados, pelo que podem ser impugnados, nos termos gerais, sem necessidade de arguição da falsidade do documento.
Todavia, esta conclusão é insuficiente para resolver a questão.
Segundo o art.º 355º, nºs 1 e 4, do Código Civil, sendo admissível a confissão extrajudicial, esta é a que é feita por algum modo diferente da confissão judicial.
Enquanto a confissão judicial escrita tem força probatória plena contra o confitente, a confissão extrajudicial, em documento autêntico ou particular, considera-se provada nos termos aplicáveis a estes documentos e, se for feita à parte contrária ou a quem a represente, tem força probatória plena (art.º 358º, nºs 1 e 2, do Código Civil).
A confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária (art.º 352º do Código Civil). “É uma declaração de ciência (não uma declaração constitutiva, dispositiva ou negocial), pela qual uma pessoa reconhece a realidade de um facto que lhe é desfavorável (contra se pronuntiatio) – dum facto cujas consequência jurídicas lhe são prejudiciais e cuja prova competiria, portanto, à outra parte, nos termos do artigo 342.º do Código Civil” [3].
Como ensina Vaz Serra [4], “a força probatória plena, atribuída pela lei à confissão judicial e a certas confissões extrajudiciais, é independente da intenção do confitente e funda-se na regra de experiência de que quem conhece um facto a si desfavorável e favorável à parte contrária fá-lo porque sabe ser ele verdadeiro” [5].
Nos casos em que a confissão faz prova plena o confitente não pode, em princípio, invalidá-la, e o adversário não carece de fazer outra prova do facto confessado, ficando o juiz vinculado à confissão. Como refere Vaz Serra [6] ela é uma prova pleníssima, visto não admitir, em regra, prova do contrário, sendo, por este motivo, declarada regina probationum, probatio probatissima ou omnium probationum maxima.
A declaração em escritura pública feita pelos vendedores de que receberam do comprador o preço do bem transacionado não pode deixar de constituir a confissão inequívoca de um facto desfavorável, feita à parte contrária, presente no ato documentado. Não vemos como ultrapassar o valor daquela declaração como confissão extrajudicial relevante para efeitos do art.º 358º, nº 2, última parte, do Código Civil. Tem força probatória plena, porque feita à parte contrária. Neste caso, não se considera apenas provada nos termos aplicáveis aos documentos autênticos, porque foi feita à parte contrária e é desfavorável aos confitentes.
Quer isto dizer que a escritura pública, ainda que não faça prova da realidade do pagamento do preço, fá-la da declaração de confissão desse pagamento, comprovando-se, por esta via confessória, nos termos do citado nº 2 do art.º 358º, a realidade de tal pagamento”[7].
Ainda que com força de prova plena, a confissão, seja ela judicial ou extrajudicial, pode ser declarada nula ou anulada nos termos gerais, por falta ou vícios da vontade, designadamente por erro, nos termos do art.º 359º do Código Civil. Significa isso que “a confissão poderá ser atacada se, além de não corresponder à verdade, proceder de erro ou de outro vício do consentimento do confitente”, ou seja, “para que a confissão possa ser impugnada, há-de alegar-se e provar-se que, além do facto confessado não corresponder à realidade, o confitente errou acerca dele ou que foi vítima de outra causa de falta ou de vício da vontade” [8].
Dispõe o art.º 347º do Código Civil que “a prova legal plena só pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objecto, sem prejuízo de outras restrições especialmente determinadas na lei”. Tal significa que os vendedores são admitidos a destruir a força da confissão de haverem recebido o indicado preço, através de prova de que na realidade não o receberam, designadamente por ter havido vício negocial. [9]
Os R.R., na contestação, invocaram matéria destinada a infirmar a veracidade da declaração de recebimento do preço constante da escritura. Alegaram designadamente que o preço foi inferior ao declarado para evitar o exercício do direito de preferência por parte de determinados terceiros, que nunca foi recebido por eles, e ainda que atribuíram ao negócio o preço que consta de um documento particular que ambas firmaram, de esc.1.000.000$00.
Esta matéria foi impugnada na resposta à contestação e levada a julgamento, tendo merecido resposta negativa [10], como resulta da decisão de fl.s 153 a 158, mais precisamente das respostas dadas aos artigos 38º a 41º, 44º a 49º e 51º da contestação e ao artigo 17º da resposta à contestação. Não tendo sido infirmada, subsiste a validade e a eficácia confessória plena da declaração de recebimento do preço constante da escritura pública.
Impor aos A.A. o ónus de provar que a declaração dali constante é verdadeira, ou seja, a prova de que pagaram o preço [11], seria esvaziar por completo de conteúdo a força da declaração/confissão dos R.R. de que já o receberam, tornando mesmo inútil tal declaração, para mais lavrada em documento autêntico, forma mais solene que a praticada na feitura de um simples documento particular, pelo qual tem igualmente força probatória plena e material a confissão extrajudicial de facto desfavorável ao confitente em favor da parte contrária (art.ºs 374º, nº 1 e 376º, nºs 1 e 2, do Código Civil). Mesmo pela via de um documento particular, estaria demonstrada a veracidade do pagamento [12].
Na falta de impugnação recursória da matéria de facto dada como provada e não provada, a mesma subsiste estabilizada, ficando demonstrado, por força da confissão dos R.R., exarada na escritura pública, que receberam o preço relativo ao direito declarado transmitir por aquela forma, a quantia de esc.2.000.000$00 (€ 9.975,95) e que agora devem restituir aos A.A. em razão da nulidade do negócio por venda de bem alheio (art.ºs 289º, nº 1 e 892º do Código Civil).
Como a nulidade produz efeitos ex tunc, deve ser restituído tudo o que foi prestado. Esta restituição é, assim, uma consequência da declaração de nulidade, e não o cumprimento da obrigação contratual de restituir o que foi prestado, pois que, por força da invalidade, não há que cumprir obrigações contratualmente assumidas.
Além daquele valor a restituir, os A.A. têm direito aos respetivos juros de mora; porém, apenas os vencidos desde a citação. Como ensina Dias Marques [13], «a nulidade, sendo a inaptidão intrínseca do negócio para criar os efeitos jurídicos que o Direito atribui como consequência à “fattispecie respectiva” (efeitos típicos) não exclui a possibilidade de ele produzir algum efeito estranho àquela sua configuração legal típica ...». Estes são, porém, efeitos distintos dos que a lei fez corresponder ao tipo legal considerado.
O nº 3 do referido art.º 289º dispõe que é aplicável, em qualquer dos casos previstos nos números anteriores, diretamente ou por analogia, o disposto nos art.ºs 1269º e seg.s do Código Civil.
Como é sabido os juros são frutos civis (art.º 211º, nº 2, do Código Civil), razão pela qual, remetendo aquele nº 3 para o art.º 1271º do mesmo código, se pode concluir que a obrigação de restituir baseada na nulidade do negócio, além de operar retroativamente, também pode abranger os frutos e, portanto, os juros.
Só a partir da citação operada nestes autos é que os demandados ficaram a conhecer a pretensão dos demandantes, relativamente a eles, enquanto obrigados na restituição por força da nulidade do contrato celebrado. A boa fé em que, porventura, se mantinham até àquela data, cessou (art.º 481º, al. a), do Código de Processo Civil), pelo que --- tal como acontece com o possuidor de má fé --- devem restituir os frutos que o capital recebido poderá ter produzido, ou seja, os juros legais (art.º 1271º, aplicável analogicamente por força do citado nº 3 do art.º 289º).
Temos assim que, a partir da citação (data da interpelação para restituírem), os R.R. passaram a responder pelos rendimentos que um homem normalmente diligente, um bom pai de família, teria obtido com a aplicação do capital em causa. Por conseguinte, devem restituir aos A.A. os juros legais desse capital, a contar de 18 de março de 2011. Acaso assim não se entendesse, ao mesmo resultado se chegaria mediante a aplicação dos princípios gerais de direito e, nomeadamente pelo recurso aos art.ºs 804º, 805º e 806º, do Código Civil.[14]
A apelação procede.
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SUMÁRIO (art.º 663º, nº 7, do NCPC):
1- A força probatória material dos documentos autênticos restringe-se aos factos praticados ou percecionados pela autoridade ou oficial público de que emanam os documentos, já não abarcando a sinceridade, a veracidade e a validade das declarações emitidas pelas partes perante essa mesma autoridade ou oficial público.
2- Declarando os vendedores numa escritura pública de compra e venda que receberam da compradora (participante no ato) o preço convencionado, a prova da veracidade ou do conteúdo dessa declaração resulta, com força probatória plena, dessa confissão extrajudicial, nos termos da segunda parte do nº 2 do art.º 358º do Código Civil, porquanto lhes é desfavorável e é feita à parte contrária.
3- Não tendo sido impugnada a decisão em matéria de facto em sede de apelação, e não tendo os vendedores logrado provar os factos alegados em sentido contrário ao da confissão de recebimento do preço escriturado, subsiste aquela confissão, não podendo o tribunal deixar de considerar como provado o facto confessado.
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V.
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em julgar a apelação procedente ---embora com base na força probatória da confissão (e não na força probatória da escritura pública) --- na parte em que ainda o não foi pela decisão da 1ª instância e, em consequência, por ter sido já declarado nulo o contrato de compra e venda, condenam-se os R.R. a restituir aos A.A. a quantia de € 9.975,96 (esc.2.000.000$00) correspondente ao preço que a A. mulher lhes pagou no âmbito desse mesmo negócio, acrescida dos respetivos juros de mora, à taxa legal, vencidos desde a data da citação.
Custas da apelação e da ação pelos recorridos.
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Guimarães, 1 de outubro de 2013
Filipe Caroço (por vencimento)
António Santos
Paulo Barreto - vencido, conforme voto de vencido que segue

Voto vencido pelos seguintes motivos:
Apreciando, cumpre, desde logo, proceder à separação das questões, uma com resposta pacífica e unânime na nossa jurisprudência superior, a outra com decisões menos alinhadas.
A primeira questão – relativa à força probatória dos documentos autênticos, in casu, de escritura pública – tem resposta unânime da jurisprudência, que foi, de resto, a seguida pelo tribunal a quo.
A escritura pública, sendo documento autêntico (363.º, n.º 2, do CC), considera- -se provada nos termos aplicáveis a estes documentos, fazendo, pois, prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial respectivo (art.º 371,º, n.º 1, do CC).
Como se pode ler no Ac. STJ, de 02.03.2011, relator Cons. Alves Velho, processo n.º 758/06.3TBCBR-B.P1.S1: “ A regra é que o documento faz prova plena, salvo demonstração da falsidade, quanto à verdade dos factos que neles se referem como praticados pela autoridade ou oficial público, bem como quanto à verdade dos factos nele exarados pelo documentador passados na sua presença e por ele percepcionados; resulta, tal força probatória plena, da fé pública que a lei atribui ao documento, que assenta nas garantias de veracidade decorrentes da sua proveniência, o oficial público cuja nomeação e fiscalização do exercício de funções está sujeito a requisitos e exigências também eles fixados na lei; limita-se, essa prova plena, aos factos praticados pelo documentador e os por ele atestados, não abrangendo a verdade ou sinceridade desses factos, nem a sua validade, nem a sua eficácia jurídica, pois que tais qualidades não estavam ao alcance da percepção do documentador”.
O que fica plenamente provado é que o declarante o disse, mas não fica provado que seja verdadeira a afirmação do declarante (cfr. Vaz Serra, RLJ, Ano 111.º, pg. 302).
Por conseguinte, foi acertada, nesta parte, a decisão da primeira instância, o que significa que decaem os fundamentos do recurso plasmados nas 1.ª a 8.ª conclusões.
E assim entramos na segunda questão, abordada na 9.ª conclusão: a declaração de recebimento do preço, em escritura pública, tem força probatória plena decorrente de confissão extrajudicial (art.º 358.º, n.º 2, do Código Civil).
Questão que o tribunal a quo não abordou, quedando-se pelo afastamento da força probatória plena dos documentos autênticos. Não estando esta Relação condicionada aos fundamentos jurídicos da primeira instância, nada obsta – e até é seu dever – analisar em profundidade a matéria da confissão extrajudicial.
Antes do mais, a redacção do art.º 358.º, n.º 2, do Código Civil: A confissão extrajudicial, em documento autêntico ou particular, considera-se provada nos termos aplicáveis a estes documentos e, se for feita à parte contrária ou a quem a represente, tem força probatória plena”.
Encontramos uma primeira jurisprudência do STJ (sempre em dgsi.pt). Plasmada em ac. de 13.09.2012, relator Cons. Tavares de Paiva, processo n.º 2816/08.0TVLSB.L1.S1, defende o seguinte: “ É certo que a força probatória dos documentos autênticos só pode ser ilidida com base na respectiva falsidade ( cfr. 372 nº1 do CC) , mas quando se pretenda provar que o conteúdo da declaração atestada em documento autêntico não corresponde à verdade ou que esta declaração é simulada, ou proferida por erro, dolo ou coacção não se torna necessário arguir a falsidade ( fr. Ac. STJ de 29.3.1976 ( RLJ , ano 111, pag. 297 e segs. com anotação de Vaz Serra a pags. 301 e segs.). Acontece que, no caso dos autos, como bem observa o Acórdão recorrido, não vem provada qualquer vício da confissão consubstanciada na declaração de recebimento do preço constante da escritura, atentas as respostas que mereceram os quesitos da base instrutória atinentes a tal matéria, que foram respondidos como” não provados” , à excepção do referido quesito 1º. Sendo assim, subsiste apenas a declaração de recebimento do preço por parte da Autora, declaração inserta na aludida escritura pública, que configura uma verdadeira declaração confessória à luz do art. 352 do C. Civil. E neste domínio há que ter em atenção o estatuído no nº2 do art. 358 segundo o qual« a confissão extrajudicial , em documento autêntico ou particular, considera-se provada nos termos aplicáveis a estes documento se, se for feita à parte contrária ou a quem a represente , tem força probatória plena.» Por seu turno, o nº3 estabelece «A confissão extrajudicial não constante de documento não pode ser provada por testemunhas nos casos em que não é admitida prova testemunha ; quando esta seja admitida, a força probatória da confissão é livremente apreciada pelo tribunal». No caso em apreço, estamos perante uma declaração confessória exarada em documento autêntico (escritura pública) e à luz do citado nº2 do art. 358 tem força probatória plena”.
Visto este acórdão, teria razão a recorrente. Não se chegando à prova plena pela força probatória do documento autêntico, sempre se chegaria pela confissão extrajudicial, porque a declaração de recebimento consta de documento autêntico e foi dirigida à parte contrária ou a quem a representa.
Com todo o devido respeito, não é possível acolher esta jurisprudência do STJ.
As provas têm por função demonstrar a realidade dos factos (art.º 341.º, do Código Civil). Claro que aqui não está em causa uma certeza absoluta, mas também não é dessa que cura o direito, nem a prova em tribunal. Interessa-nos uma certeza que corresponda a uma forte probabilidade que seja suficiente para as necessidades da vida em comunidade, dos interesses e direitos em pleito. A busca de uma verdade quase filosófica não interessa ao direito. Enquanto “casa de direitos”, o tribunal julga segundo as provas que o aproximam de uma realidade fortemente provável. E isso basta. Há, pois, qualquer que seja o instrumento probatório, uma procura da realidade dos factos.
Ora, diz-nos o artigo 358.º, n.º 2, do CC:
- a confissão extrajudicial, em documento autêntico ou particular, considera-se provada nos termos aplicáveis a estes documentos;
- e, se for feita à parte contrária ou a quem a represente, tem força probatória plena.
Na primeira parte, a confissão extrajudicial sujeita-se à força probatória do documento em que se insere.
Indo ao que nos interessa, sabemos já que uma escritura pública, enquanto documento autêntico, faz apenas prova plena do que é percepcionado pelo oficial público (ou privado investido em tais funções).
Na escritura pública mencionada no artigo 1º da petição inicial (alínea a) dos factos provados) foi declarado “(…) Disseram os primeiros outorgantes: Que vendem à segunda outorgante, pelo preço de dois milhões de escudos, quantia que dela declaram ter já recebido (..)”. A escritura pública em apreço nos autos é um documento autêntico, mas não tem força probatória plena para demonstrar o pagamento do preço, porque o oficial não atesta a declaração do recebimento. Não é possível demonstrar a realidade dos factos a que alude o art.º 341.º, do CC.
Por conseguinte, desta menção constante da escritura pública poderemos apenas retirar, para efeito probatórios, que os vendedores declararam que receberam o preço. Dela não se pode extrair o efectivo recebimento do dinheiro.
É verdade que a confissão é o reconhecimento da realidade de um facto, uma declaração de ciência de afirmação de uma realidade representada pelo declarante como uma declaração de verdade, assentando a força probatória plena – art. 358º-2 cit. - na “regra da experiência segundo a qual ninguém afirma – dirigindo-se à parte contrária - um facto contrário ao seu interesse se ele não for verdadeiro” – art. 352º C. Civil (cfr. LEBRE DE FREITAS, “A Confissão no Direito Probatório”, 160 e 187) – vd. Ac. citado relatado pelo Cons. Alves Velho. Mas também é certo que para o 358.º, n.º 2 não basta que o facto confessado conste de documento autêntico, exige que se considere provado nos termos aplicáveis aos documentos autênticos. Se o art.º 358.º, n.º 2 se bastasse com a declaração confessória exarada em documento autêntico, tudo seria mais simples, ficando o documento autêntico com a prova plena da declaração e a confissão com a prova, também plena, do facto confessado. Porém, face à redacção da primeira parte do art.º 358.º, n.º 2, o facto tem que ser provado nos termos aplicáveis aos documentos autênticos, o que significa que, ao abrigo do art.º 371.º, n.º 1, apenas se obtém a prova plena da declaração confessória (declaração do recebimento do preço), sem que se chegue ao facto confessado (efectivo recebimento do preço). É evidente que não podemos ignorar o peso probatório da declaração confessória, mas a sua apreciará recairá já no âmbito da livre convicção do julgador, concorrendo com diversos elementos probatórios.
O concreto exemplo do que vimos a sustentar é o de uma situação em que o pagamento e recebimento do preço sejam realizados perante o oficial, constando então da escritura pública, quer a declaração do recebimento do preço, quer a percepção directa desse facto pelo oficial. Obviamente que, neste caso, a confissão assumirá prova plena em demanda contra o outro outorgante (requisito da segunda parte do art.º 358.º, n.º 2). O facto confessado foi percepcionado pelo oficial e, por isso, considera-se provado nos termos aplicáveis aos documentos autênticos (art.º 371.º, n.º 1, do CC).
Dir-se-á que então o art.º 358.º, n.º 2, nada traz de novo, porque a prova plena sempre resultaria do documento autêntico, não sendo necessária a prova por confissão. Não será bem assim. Primeiro, porque, deste modo, o legislador deixou claro que não basta constar de documento autêntico para que uma confissão, enquanto tal, tenha força probatória plena. Segundo, porque não é qualquer confissão nos termos aplicáveis aos documentos que tem força probatória plena, é preciso que seja dirigida à parte contrária ou a quem a representa. Terceiro, porque uma confissão extrajudicial contida em testamento público não tem força probatória plena (art.º 358.º, n.º 4). Quarto, porque esta norma integra o regime probatório próprio da confissão e a não existir, com esta ou outra redacção, não seria possível saber quais os casos em que a confissão extrajudicial tem força probatória plena, o que é importante para a definição dos efeitos que o legislador quis atribuir à confissão. Finalmente, não se devem desprezar, por exemplo, os efeitos da confissão extrajudicial na prescrição presuntiva, consignados no art.º 313.º, n.º 2, do CC.
O acórdão do STJ de 02.03.2011, relator Cons. João Bernardo, processo n.º 888/07.4TBPTL.G1, é lapidar: “ Cremos, pois, que esta construção há-de ser conjugada com a interpretação do n.º2 do artigo 358.º. Na sua (infeliz) redacção dispõe: A confissão extrajudicial, em documento autêntico ou particular, considera-se provada nos termos aplicáveis a estes documentos e, se for feita à parte contrária ou a quem a represente, tem força probatória plena. Esta última frase pode ser interpretada de duas maneiras: Uma no sentido de que, onde, face aos documentos, à prova plena não se chegar, chegar-se-á, pela via da confissão, se esta for feita à parte contrária ou a quem a represente; Outra no sentido de que a confissão extrajudicial só conduz à prova plena se esta resultar dos documentos e for feita à parte contrária ou a quem a represente.
A primeira das interpretações tem contra ela o n.º4 do mesmo artigo. Ali se determina, na parte que agora nos importa, que a confissão extrajudicial feita a terceiro ou contida em testamento é apreciada livremente pelo tribunal. O legislador, claramente, quis aqui afastar da prova plena emergente da confissão, o que está provado plenamente por documentos. A prova plena poderá emergir destes, mas não da confissão. Esta, “qua tale”, é de livre apreciação. Se numa escritura pública de compra e venda, o comprador entrega, perante o notário, ao comprador, o preço e isso fica ali a constar, temos a prova plena emergente do documento, mas nunca da confissão em caso de demanda movida por terceiro. E tal interpretação tem ainda contra ela a copulativa “e”. Entendemos, assim, a exigência de que a confissão tenha sido feita à parte contrária ou a quem a represente, daquele n.º2 do artigo 358.º, não como atribuidora de prova plena que não resulta “ a se” dos documentos ali referidos, mas antes como requisito cumulativo. Para a confissão ser valorada, “qua tale”, em ordem a conduzir a prova plena terá, para além de constar dos documentos em termos de prova plena – primeira parte do texto – de ter sido feita à parte contrária ou a quem a represente. É a posição de Manuel de Andrade (ob. cit., 248), ao referir, a propósito da confissão extrajudicial, que “quando exarada em documento com força probatória plena e for feita à parte contrária ou a quem a represente, tem força probatória plena (artigo 358.º, n.º2 do Cód. Civil)”(sublinhado nosso). Decerto que esta interpretação deixa a redundância de se exigir um requisito para se atingir a prova plena quando, nalguns casos, esta já resulta da própria natureza do documento. Mas, continuamos a entender que aqui a lei – em termos pouco claros, temos de reconhecer - quis apenas cingir-se aos efeitos da confissão, sendo mais exigente, sem bulir com os próprios dos documentos. Colhendo esta interpretação, temos que a figura da confissão não permite, no nosso caso, alcançar a prova plena. Ainda que a declaração de recebimento do preço tenha sido feita à parte contrária, vale apenas o que resulta do regime probatório dos documentos autênticos supra pormenorizado”.
Aqui, sustenta o Cons. João Bernardo que não basta, para ter força de prova plena por via de confissão extrajudicial, que a declaração de recebimento do preço conste de documento autêntico e seja dirigida à parte contrária. Para a confissão ser valorada, “qua tale”, em ordem a conduzir a prova plena terá, para além de constar dos documentos em termos de prova plena – primeira parte do texto – de ter sido feita à parte contrária ou a quem a represente.
Para reforçar o sentido deste acórdão do STJ, aqui reproduzimos o seu sumário:
“ 1. A apreciação do valor probatório da inserção em documento autêntico – in casu escritura pública de compra e venda – de declaração de que o preço da venda já foi recebido envolve, ainda que interpenetradamente, três figuras jurídicas:
A primeira reporta-se à prova do cumprimento;
A segunda ao valor probatório dos documentos autênticos;
A terceira ao valor probatório da confissão.
2 . Quanto à primeira, há a considerar que a força probatória da quitação coincide com a do documento que consubstancia ou em que se insere.
3 . No que diz respeito à segunda, deve entender-se que, nos casos em que o recebimento não tenha sido objecto de percepção pela autoridade ou oficial público respectivo, não se alcança a prova plena, antes sendo caso de prova de livre apreciação pelo Tribunal.
4 . Quanto à terceira, às dúvidas sobre se tal declaração, sem mais, deve ser considerada como confessória, há que acrescentar que o artigo 358.º n.º2 do Código Civil deve ser interpretado no sentido de que a confissão extrajudicial só conduz à prova plena se esta resultar do documento em que se insere e for feita à parte contrária ou a quem a represente.
5. Em qualquer dos casos, tratando-se de interpretação do contexto do documento, é admissível, além das outras, a prova testemunhal”.
Posto isto, concluímos, a declaração do recebimento do preço, constante da escritura pública em apreciação, não tem força probatória plena, ao abrigo do art.º 358.º, n.º 2, do Código Civil.
Resta-nos, assim, a livre convicção do tribunal quanto à declaração do recebimento do preço constante da escritura pública. E aqui há a dizer duas coisas: primeira, o objecto do recurso restringe-se à força probatória plena da declaração do recebimento do preço, quer por constar de documento autêntico, quer por via de confissão extrajudicial, o que, como vimos, afastamos; segunda, os recorrentes não cumprem o ónus da alínea b), do n.º 1, do artigo 685.º-B, do Código de Processo Civil, ou seja, não indicam quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida. Não podemos olvidar que houve produção de prova em julgamento. E, assim, não é possível a este tribunal apreciar qualquer outro elemento probatório que, sujeito à livre apreciação quanto à prova do recebimento do preço, concorresse com a declaração constante da escritura pública.
Os recorrentes limitam-se a sustentar que a prova do recebimento do preço resulta, em termos de prova plena, da escritura pública. Posição com a qual discordamos e, por isso, improcede a apelação.
E, assim, julgava improcedente a apelação e confirmava na íntegra a sentença recorrida.
Guimarães, 01 de Outubro de 2013
Paulo Barreto

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[1] Aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de junho (adiante NCPC).
[2] Por transcrição.
[3] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 240 e 241.
[4] Provas – Direito Probatório Material, in BMJ 111/16.
[5] No mesmo sentido, Lebre de Freitas, “A Confissão no Direito Probatório”, pág.s 160 e 187.
[6] Idem, pág. 17.
[7] Acórdão. do Supremo Tribunal de Justiça de 3.6.1999, Colectânea de Jurisprudência do Supremo, T. II, pág. 136 e seg.s
[8] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, pág. 552 e 564.
[9] Tem-se entendido que os termos gerais são os dos art.ºs 240º e seg.s quanto á falta e aos vícios de vontade, e 285º e seg.s, todos do Código Civil, quanto ao regime da nulidade e da anulabilidade, referindo-se o nº 2 do art.º 359º tanto ao erro na declaração (art.º 247º), como ao erro sobre os motivos determinantes da vontade (art.ºs 251º e 252º) --- A. Varela e P. de Lima, in Código Civil anotado, 2ª edição, vol. I, pág. 295 --- não bastando a simples negação da confissão. Cf. ainda acórdão da Relação do Porto de 31.3.2009, proc. 0822279, in www.gdsi.pt.
[10] Independentemente de se saber se essa prova do contrário poderá ser feita por testemunhas ou por presunções judiciais, atento o disposto nos art.ºs 393º, nº 2, última parte, e 394º, nº 1, do Código Civil. Cf., entre outros, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.11.2005, proc. 05A3283, acórdão da Relação de Lisboa de 13.9.2007, proc. 1903/2007-2, acórdão da Relação do Porto de 3.3.2009, proc. 0826796 e ainda, mais recentemente, o acórdão da Relação de Guimarães de 25.10.2012, proc. 1673/10.1TBVCT.G1 todos in www.dgsi.pt. 1673/10.1TBVCT.G1.
[11] Como defende o tribunal recorrido.
[12] Cf. em sentido semelhante, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.11.2005, proc. 05A3283 e acórdão da Relação de Évora de 16.2.2012, in www.dgsi.pt.
[13] Noções Elementares de Direito Civil, Lisboa, 1973, pág. 90, nota 1.
[14] Cfr., inter alia, acórdão da Relação de Lisboa de 3.11.81, Colectânea de Jurisprudência, T V, pág. 114; acórdão Relação de Coimbra de 10.2.87, Colectânea de Jurisprudência, T I, pág. 57; acórdãos Relação de Lisboa de 20.4.89, Colectânea de Jurisprudência, T II, pág. 143 e de 18.2.1993, Colectânea de Jurisprudência, T I, pág. 147.