SERVIDÃO POR DESTINAÇÃO DO PAI DE FAMÍLIA
USUCAPIÃO
DESNECESSIDADE
Sumário

1. Os requisitos da constituição da servidão por destinação de pai de família:
a) Os dois ou mais prédios --- tanto podem ser rústicos como urbanos ---, ou as frações do mesmo prédio tenham pertencido ao mesmo dono.
b) A existência de sinais visíveis ou aparentes e permanentes, reveladores da serventia de um prédio para com outro anteriores e posteriores à separação do domínio.
c) Os prédios ou frações do prédio se separem quanto ao seu domínio, por qualquer título negocial (compra e venda, doação, troca, partilha, testamento, etc.) ou por outro título de transmissão (expropriação, usucapião, etc.) e que não haja no documento respetivo nenhuma declaração oposta à constituição do encargo.
2. Configura uma forma de separação dominial exigida pelo art.º 1549º do Código Civil para efeitos de constituição de servidão por destinação e pai de família, a divisão da compropriedade de vários prédios e a respetiva permuta em que cada um dos dois comproprietários fica proprietário exclusivo de cada um dos imóveis (um deles proprietário de um bem e o outro de dois bens).
3. Pedido reconhecimento do direito de passagem com base na constituição de uma servidão por destinação de pai de família e, simultaneamente, por usucapião, só a improcedência do primeiro fundamento justifica a apreciação do direito de passar à luz do segundo.
4. A desnecessidade da servidão pode ser invocada quando tal direito foi constituído por usucapião, mas carece de alegação de factos objetivos que a definam e de pedido, seja por via de ação, seja por reconvenção.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
I.
M.. e mulher, M.., residentes na Rua .., concelho e comarca de Fafe, intentaram ação declarativa, sob forma de processo sumário, contra A.. e marido, F.. residentes na Rua.., concelho e comarca de Fafe, alegando, no essencial, que são proprietários de dois prédios, um deles rústico (artigo 1282) e o outro urbano (1844), e os R.R. são proprietários de um prédio urbano (artigo 1905, que proveio do artigo 1845, provindo este do artigo 339) composto, além do mais, por casa e quinteiro, sendo que os dois referidos prédios urbanos (um dos prédios dos A.A. e o prédio dos R.R.) provieram de um único prédio urbano, enquanto este último (artigo 339) e o rústico dos A.A. (artigo 1282) foram adquiridos em comum e na proporção de metade para o A. marido e seu pai A.. no dia 2.10.1967. Mas, por escritura de permuta de 17.1.1979, o A. marido adquiriu a seus pais (além de outras metades, noutros prédios) a metade indivisa dos prédios dos artigos 1844 e 1282, ficando único titular da plena propriedade dos mesmos.
Situando-se o prédio dos R.R. entre aqueles dois prédios dos A.A., e sendo que o quinteiro daqueles, juntamente com o logradouro do prédio dos A.A. constituía a totalidade do prédio mãe antes da operada divisão, o acesso ao prédio rústico dos A.A. a partir da via publica sempre, há mais de 20 e 30 anos vem sendo feito através do quinteiro do prédio urbano que atualmente pertence aos R.R., no sentido poente/nascente e no sentido inverso para daquele aceder ao prédio urbano dos A.A. e deste à via publica, em extensão e largura determinadas, designadamente para o exercício da atividade agrícola, tendo-se constituído sobre o quinteiro daquele, a favor dos prédios dos A.A., uma servidão de passagem, por destinação e pai de família e também por usucapião.
Não obstante, no dia 4 de fevereiro de 2011, os R.R. construíram um muro no seu quinteiro que obstrói totalmente o leito da passagem e impede os A.A. de transitar através do caminho de servidão entre os seus dois prédios.
Terminam com o seguinte pedido, ipsis verbis:
«Nestes termos e nos mais de direito que mui doutamente serão supridos, deve a presente acção ser julgada totalmente procedente por provada e, por consequência,
a) Ser declarado e reconhecido o direito de propriedade dos A.A. aos prédios melhor identificados sob o artigo 12 supra;
b) Ser declarado e reconhecido o direito de servidão de passagem a pé, com gados presos e soltos, com veículos de tracção animal, motorizados ou com tractores e respectivas alfaias, durante todo o ano e a qualquer hora, através do prédio dos R.R. (serviente), referido no artigo 15º supra, e a favor dos prédios dos A.A. (dominantes), referidos e identificados no artigo 1º supra;
c) Serem os R.R. condenados a reconhecerem esse direito de servidão de passagem a favor dos prédios dos A.A. e, consequentemente, a não impedir nem estorvar os A.A. de exercer tais direitos de servidão;
d) Serem os R.R. condenados a procederem à eliminação do muro melhor identificado no artigo 32º supra, permitindo aos A.A. o livre exercício do seu direito de servidão de passagem.»

Citados, os R.R. contestaram a ação impugnando parcialmente os factos da petição inicial.
Nada opuseram, designadamente, quanto à titularidade do direito de propriedade dos A.A. sobre os dois referidos prédios (artigos 1884 e 1282) e reconheceram que os dois prédios provieram do prédio urbano inscrito sob o artigo 339, prédio este adquirido em compropriedade pelo A. marido e pelo seu pai no ano de 1967, à semelhança do que fizeram com outros prédios, de tal modo que, após processo de discriminação, em 1978, por permuta, ao pai do A. ficou a pertencer o prédio acima identificado como o prédios do R.R. (por eles adquirido por doação) e ao A. o prédio identificado em 1º da petição inicial.
O prédio nº 339, objeto da discriminação não pertencia única e exclusivamente ao mesmo dono, como também os prédios discriminados não ficaram a pertencer a donos diferentes. Os A.A. já eram donos da metade indivisa do seu prédio, assim como o seu pai dono de metade indivisa do dele. E no momento em que se operou a sua discriminação não havia qualquer sinal visível permanente que revelasse de forma inequívoca qualquer serventia de um prédio em relação a outro.
Nunca se constituiu qualquer servidão de passagem a favor dos prédios dos A.A.; só por tolerância dos R.R. o A. marido atravessava o quinteiro dos R.R. a pé. Há mais de 20 ou 30 anos que os A.A. deixaram de passar pelo dito quinteiro para passarem por um caminho dizendo que era o local por onde deveriam passar.
A existir servidão de passagem constituída por usucapião, deve ser considerada extinta por desnecessidade.
O muro construído pelos R.R. em nada afeta a passagem quer para o prédio urbano dos A.A., que confina diretamente com a via pública, quer para o prédio rústico dos mesmo, que tem acesso direto pelo referido caminho.
Defendem assim a improcedência da ação.
Os A.A. responderam à contestação impugnando parte da matéria alegada pelos R.R. e reafirmando o uso e a necessidade da passagem e a constituição a servidão de passagem, quer por destinação e pai de família, quer por usucapião, nada justificando a sua extinção por desnecessidade, sendo que os R.R. também não deduziram esse pedido.
O tribunal dispensou a audiência preliminar e proferiu despacho saneador tabelar, abstendo-se expressamente de elaborar factos assentes e base instrutória.
Instruído o processo, foi realizada a audiência de discussão e julgamento, que culminou com a prolação de respostas fundamentadas à matéria de facto controvertida, ali discriminada, de que não houve reclamação.
Foi depois proferida sentença final que culminou com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, tendo em atenção as considerações produzidas e as normas legais citadas, decido:
a) Declarar e reconhecer o direito de propriedade dos autores sobre os prédios descritos nas alíneas a) e b) dos factos provados;
b) Absolver os réus do demais peticionado;
c) Condenar os autores nas custas do processo – arte. 446.°, n.º 1, do CPC.» (sic)
*
Inconformados com a decisão, os A.A. interpuseram recurso de apelação onde alegaram com as seguintes CONCLUSÕES, ipsis verbis:
(…)
Defendem, assim, os apelantes que seja revogada a decisão recorrida e substituída por outra que jugue a ação procedente, condenando os R.R. nos termos do pedido.
*
Os R.R. responderam em contra-alegações, com as seguintes conclusões:
(…)
Defendem, nestes termos que seja negado provimento ao recurso.
*
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II.
As questões a decidir --- exceção feita para o que é do conhecimento oficioso --- estão delimitadas pelas conclusões da apelação dos A.A., acima transcritas (cf. art.ºs 608º, nº 2, 635º e 639º do novo Código de Processo Civil, aprovado pela lei nº 41/2013, de 26 de junho).
Com efeito importa apreciar e decidir as seguintes questões:
1- Erro na apreciação da prova e modificação da matéria de facto e contradição na decisão em matéria de facto;
2- A constituição de uma servidão de passagem por destinação de pai de família;
3- A constituição de uma servidão de passagem por usucapião; e
4- Abuso de direito dos A.A.
III.
São os seguintes os factos dados como provados na 1ª instância [1]:
a. Encontra-se inscrito na matriz urbana sob o art. 1844, que proveio do inscrito na matriz urbana sob o art. 339, em nome de M.. (ora autor) o seguinte prédio: uma casa, com a área coberta de 90 m2, logradouro com 75 2, eira com 33 m2, alpendre com 19 m2 e espigueiro com 3,25 m2, a confrontar do norte e poente com caminho, do sul com A.. e do nascente com restante prédio donde foi destacado.
b. Encontra-se inscrito na matriz rústica sob o art. 1282, em nome de M.. (ora autor), o seguinte prédio: cerrado da casa, de lavradio, vinho e azeite, a confrontar do norte com caminho, do sul com proprietário, do nascente com A.. e poente com proprietário
c. Encontra-se inscrito na matriz urbana sob o art. 1905, que por sua vez proveio da mesma matriz sob o artigo 1845, o qual por sua vez proveio do inscrito na mesma matriz sob o artigo 339, em nome de A.. (ora ré) o seguinte prédio: uma casa, com a área coberta de 108 m2, com uma divisão no rés-do-chão e duas no primeiro andar, com uma cozinha separada com a área de 56 m2, com quinteiro de 96 m2, alpendre com 18 m2, espigueiro com 3,25 m2 e terreno de horta formado por cinco leiras, umas denominadas trás da casa com 390 m2 e outras denominadas do alpendre com 377 m2, a confrontar do norte com caminho, do sul com caminho, do nascente com proprietário e do poente com a restante parte do prédio.
d. Os prédios descritos em A) e C) provieram do prédio urbano inscrito na matriz urbana sob o art. 339, o qual foi objecto de um processo administrativo de descriminação com o n.º 5/78.
e. Por escritura pública de compra e venda celebrada no Cartório Notarial de Fafe em 02 de Outubro de 1967, o prédio inscrito na matriz urbana sob o art. 339 (facto A) e o prédio inscrito na matriz rústica sob o art. 1282 (facto B) foram adquiridos, em comum e na proporção de metade para cada um, pelo autor M.. e pelo seu pai, A...
f. Por escritura pública de permuta celebrada no Cartório Notarial de Fafe em 17 de Janeiro de 1979, o autor M.. adquiriu, por permuta com os seus pais (A.. e mulher), a metade indivisa de vários prédios, entre os quais os prédios identificados em A) e B).
g. Após o processo de descriminação supra referido, a A.. (pai do autor) ficou a pertencer o prédio referido em C) e a M.. (ora autor) o prédio identificado em A) e B).
h. Há mais de 20 e 30 anos que os autores, por si e passados, estão na posse do prédio referido em A), designadamente habitando-o, nele confeccionando refeições, recebendo os amigos e familiares, dormindo e guardando lenhas, alfaias agrícolas, animais e veículos automóveis, fazendo obras de conservação e remodelação.
i. Há mais de 20 e 30 anos que os autores, por si e passados, estão na posse do prédio referido em B), designadamente cultivando-o, lavrando, adubando e semeando com cereais, designadamente milho, centeio, batata e feijão.
j. Plantando e tratando árvores de fruto e a vinha na sua bordadura.
k. Nele semeando pastos e pondo os gados a pastar.
l. E de tudo colhendo os respectivos frutos e utilidades.
m. Dando-os de arrendamento e recebendo a respectiva renda.
n. Pagando os impostos sobre os mesmos incidentes.
o. E tudo à vista e com o conhecimento de toda a gente, designadamente dos réus.
p. De forma contínua, sem interrupção, nem oposição de ninguém.
q. Na convicção de que estão e sempre estiveram a exercer sobre aqueles prédios, e de modo exclusivo, o seu direito de propriedade.
r. O prédio urbano dos réus localiza-se entre os dois prédios dos autores, de um lado, o prédio urbano – casa de habitação, que fica a poente, e do outro prédio rústico – Cerrado da casa, que fica a nascente.
s. Prédio esse (dos réus) que dispõe de um quinteiro, constituído por uma parcela de terreno adjacente à casa pelo lado norte e ao anexo pelo lado sul e que fica a nascente do logradouro do prédio urbano dos autores.
t. Quinteiro esse que juntamente com o logradouro do prédio dos autores constituía a totalidade do quinteiro do prédio mãe, antes de operada a divisão.
u. O acesso ao prédio rústico dos autores, a partir da via pública, sempre se fez durante 30 anos até 1990/1991, através do quinteiro do prédio urbano referido em C), no sentido poente/nascente e no sentido inverso para daquele aceder ao prédio urbano dos autores e deste à via pública.
v. Que se inicia no prédio urbano dos autores, desenvolve-se no sentido poente/nascente numa extensão de 18 metros por cerca de 2,50 de largura na parte mais estreita, sobre o quinteiro ou logradouro do prédio descrito em C) até atingir o prédio rústico dos autores.
w. Passagem feita a pé, com gados presos e soltos, com veículos de tracção animal, motorizados ou com tractores e respectivas alfaias, durante todo o ano e a qualquer hora.
x. Passagem feita para lavrar, semear, transportar sementes, estrumes, adubos e tratamento das culturas, bem como para colheita dos frutos, como seja batata, feijão e uvas.
y. Tudo isto feito à vista e com o conhecimento de toda a gente, de forma contínua, sem interrupção nem oposição de ninguém, designadamente dos réus.
z. Na convicção de que estão e sempre estiveram a exercer sobre aquela parcela um direito de passagem.
aa. O mencionado nas alíneas u) a z) ocorreu até há cerca de 20 anos (1990/1991), sendo que a partir da construção do caminho aludido na alínea gg) (“caminho de cima”) o acesso aos prédios rústicos dos autores passou a ser feito por aí.
bb. No quinteiro dos réus existe uma abertura, fechada com um portão, voltada para o prédio rústico dos autores.
cc. No dia 04 de Fevereiro de 2011, os réus procederam à construção, no dito logradouro ou quinteiro, de um muro em pedra com 6,53 metros de comprimento e 1,05 metros de altura.
dd. Esporadicamente, e por uma questão de comodidade, e porque as relações entre autores e réus eram boas, o autor marido atravessava o tal quinteiro a pé, o que era tolerado pelos réus.
ee. Numa das extremidades do tal quinteiro do prédio dos réus existia uma cancela com cerca de 2 metros de largura (permitia a passagem de um carro de bois), tendo sido posteriormente alargada para 2,85 metros.
ff. A cancela foi alargada ficando com 2,85 metros.
gg. Há cerca de 20 anos (1990/1991) foi feito um caminho que dá acesso aos prédios dos autores e dos réus.
hh. Na altura da execução deste caminho, o autor marido referiu que o acesso a todos os prédios deveria ser feito por aquele caminho.
ii. E a partir daí, deixaram os autores de passar a pé pelo prédio dos réus.
IV.
As questões da apelação
1- Erro na apreciação da prova e modificação da matéria de facto:
(…)
*
A matéria de facto provada passa a ser a seguinte:
a. Encontra-se inscrito na matriz urbana sob o art. 1844, que proveio do inscrito na matriz urbana sob o art. 339, em nome de M..(ora autor) o seguinte prédio: uma casa, com a área coberta de 90 m2, logradouro com 75 2, eira com 33 m2, alpendre com 19 m2 e espigueiro com 3,25 m2, a confrontar do norte e poente com caminho, do sul com A.. e do nascente com restante prédio donde foi destacado.
b. Encontra-se inscrito na matriz rústica sob o art. 1282, em nome de M.. (ora autor), o seguinte prédio: cerrado da casa, de lavradio, vinho e azeite, a confrontar do norte com caminho, do sul com proprietário, do nascente com A.. e poente com proprietário
c. Encontra-se inscrito na matriz urbana sob o art. 1905, que por sua vez proveio da mesma matriz sob o artigo 1845, o qual por sua vez proveio do inscrito na mesma matriz sob o artigo 339, em nome de A.. (ora ré) o seguinte prédio: uma casa, com a área coberta de 108 m2, com uma divisão no rés-do-chão e duas no primeiro andar, com uma cozinha separada com a área de 56 m2, com quinteiro de 96 m2, alpendre com 18 m2, espigueiro com 3,25 m2 e terreno de horta formado por cinco leiras, umas denominadas trás da casa com 390 m2 e outras denominadas do alpendre com 377 m2, a confrontar do norte com caminho, do sul com caminho, do nascente com proprietário e do poente com a restante parte do prédio.
d. Os prédios descritos em a. e c. provieram do prédio urbano inscrito na matriz urbana sob o art. 339, o qual foi objeto de um processo administrativo de descriminação com o n.º 5/78.
e. Por escritura pública de compra e venda celebrada no Cartório Notarial de Fafe em 02 de Outubro de 1967, o prédio inscrito na matriz urbana sob o art. 339 (facto A) e o prédio inscrito na matriz rústica sob o art. 1282 (facto B) foram adquiridos, em comum e na proporção de metade para cada um, pelo autor M.. e pelo seu pai, A...
f. Por escritura pública de permuta celebrada no Cartório Notarial de Fafe em 17 de Janeiro de 1979, o autor M.. adquiriu, por permuta com os seus pais (A.. e mulher), a metade indivisa de vários prédios, entre os quais os prédios identificados em a. e b.
g. A escritura pública referida em f. teve lugar após o processo de discriminação referido em d.
h. Há mais de 20 e 30 anos que os autores, por si e passados, estão na posse do prédio referido em a., designadamente habitando-o, nele confecionando refeições, recebendo os amigos e familiares, dormindo e guardando lenhas, alfaias agrícolas, animais e veículos automóveis, fazendo obras de conservação e remodelação.
i. Há mais de 20 e 30 anos que os autores, por si e passados, estão na posse do prédio referido em b., designadamente cultivando-o, lavrando, adubando e semeando com cereais, designadamente milho, centeio, batata e feijão.
j. Plantando e tratando árvores de fruto e a vinha na sua bordadura.
k. Nele semeando pastos e pondo os gados a pastar.
l. E de tudo colhendo os respetivos frutos e utilidades.
m. Dando-os de arrendamento e recebendo a respetiva renda.
n. Pagando os impostos sobre os mesmos incidentes.
o. E tudo à vista e com o conhecimento de toda a gente, designadamente dos réus.
p. De forma contínua, sem interrupção, nem oposição de ninguém.
q. Na convicção de que estão e sempre estiveram a exercer sobre aqueles prédios, e de modo exclusivo, o seu direito de propriedade.
r. O prédio urbano dos réus localiza-se entre os dois prédios dos autores, de um lado, o prédio urbano – casa de habitação, que fica a poente, e do outro prédio rústico – Cerrado da casa, que fica a nascente.
s. Prédio esse (dos réus) que dispõe de um quinteiro, constituído por uma parcela de terreno adjacente à casa pelo lado norte e ao anexo pelo lado sul e que fica a nascente do logradouro do prédio urbano dos autores.
t. Quinteiro esse que juntamente com o logradouro do prédio dos autores constituía a totalidade do quinteiro do prédio mãe, antes de operada a divisão.
u. O acesso ao prédio rústico dos autores, a partir da via pública, sempre se fez, há mais de 20 e 30 anos, através do quinteiro do prédio urbano referido em c., no sentido poente-nascente e no sentido inverso para daquele aceder ao prédio urbano dos autores e deste à via pública. (14)
v. Que se inicia no prédio urbano dos autores, desenvolve-se no sentido poente-nascente numa extensão de 18 metros por cerca de 2,50 de largura na parte mais estreita, sobre o quinteiro ou logradouro do prédio descrito em c. até atingir o prédio rústico dos autores.
w. Passagem feita a pé, com gados presos e soltos, com veículos de tração animal, motorizados ou com tratores e respetivas alfaias, durante todo o ano e a qualquer hora.
x. Passagem feita para lavrar, semear, transportar sementes, estrumes, adubos e tratamento das culturas, bem como para colheita dos frutos, como seja batata, feijão e uvas.
y. Tudo isto feito à vista e com o conhecimento de toda a gente, de forma contínua, sem interrupção nem oposição de ninguém, designadamente dos réus.
z. Na convicção de que estão e sempre estiveram a exercer sobre aquela parcela um direito de passagem.
aa. O leito do referido caminho encontra-se trilhado e calcado pelo trânsito contínuo de pessoas, animais e veículos de e para o prédio dos autores, em toda a sua largura e extensão. (20)
bb. No quinteiro dos réus existe uma abertura, fechada com um portão, voltada para o prédio rústico dos autores.
cc. No dia 04 de fevereiro de 2011, os réus procederam à construção, no dito logradouro ou quinteiro, de um muro em pedra com 6,53 metros de comprimento e 1,05 metros de altura.
dd. Obstruindo totalmente o leito do dito caminho. (23)
ee. Devido à construção do muro os autores ficaram impedidos de transitar através do referido caminho e de fazer manobras de inversão de marcha de e para os seus prédios. (24)
ff. Numa das extremidades do tal quinteiro do prédio dos réus existia uma cancela com cerca de 2 metros de largura (permitia a passagem de um carro de bois), tendo sido posteriormente alargada para 2,85 metros.
gg. A cancela foi alargada ficando com 2,85 metros.
hh. Há cerca de 17 ou 18 anos foi feito um caminho que dá acesso aos prédios dos A.A. e dos R.R. (28)
*
O enquadramento jurídico dos factos
2- A constituição de uma servidão de passagem por destinação de pai de família
No essencial, o pedido da ação situa-se na condenação dos R.R. a reconhecerem a existência de uma servidão de passagem sobre um determinado prédio dos R.R. a favor de dois prédios dos A.A., seja com fundamento na sua constituição por destinação de pai de família [9], seja com base na usucapião.
A constituição das servidões prediais pode fazer-se pelas diversas formas previstas no nº 1 do art.º 1547º do Código Civil, estando aqui em causa saber se foi, ou não, constituída a servidão aqui invocada pelos A.A., por DPF.
O tribunal recorrido negou a constituição da servidão.
Segundo o art.º 1549º do Código Civil, “se em dois prédios do mesmo dono, ou em duas fracções de um só prédio, houver sinal ou sinais visíveis e permanentes, postos em um ou em ambos, que revelem serventia de um para com outro, serão esses sinais havidos como prova da servidão quando, em relação ao domínio, os dois prédios, ou as duas fracções do mesmo prédio, vierem a separar-se, salvo se ao tempo da separação outra coisa se houver declarado no respectivo documento.”.
A constituição de servidão por DPF [10] resulta, tradicionalmente, da necessidade de fazer face a determinados estados de necessidade objetiva, decorrentes de relações de vizinhança e, tal como as demais servidões, pressupõe uma ligação entre prédios, traduzindo uma utilidade real de um prédio a favor de outro (e não de uma pessoa a favor de outrem independentemente de relações prediais – servidão pessoal), permitindo, objetivamente, a transferência das qualidades naturais de um prédio para o outro. No entanto, tem uma forma específica de constituição: esta dá-se nos precisos termos em que, por decisão do anterior proprietário comum, havia transferência de utilidades de um parte para a outra ou de um prédio para o outro. Salvo se, na separação, se decidir outra coisa [11].
São requisitos de constituição da servidão por DPF:
1º- Os dois prédios --- tanto podem ser rústicos como urbanos ---, ou as duas frações do mesmo prédio tenham pertencido ao mesmo dono. É essencial que os dois prédios ou as duas frações tenham sido pertença da mesma pessoa --- não bastando para tal que tenham sido possuídos apenas ou que tenham pertencido a pessoas ligadas por vínculos de parentesco ou de casamento.
2º- É necessária a existência de sinais visíveis ou aparentes e permanentes, reveladores da serventia de um prédio para com outro. É o mesmo tipo de sinais que denunciam uma servidão aparente, ou seja, uma prestação de utilidade não transitória, mas estável (como se exige nas situações em que os dois prédios pertencem a donos diferentes). Os sinais têm que revelar a serventia de um prédio para o outro, o que significa que hão de ter sido postos ou deixados com a intenção de assegurar certa utilidade a um à custa ou por intermédio do outro. É este pressuposto que permite concluir que a DPF é fonte de servidões aparentes e contínuas. E embora baste que os sinais existam num dos prédios, eles devem revelar uma profunda interdependência entre os prédios, de modo a que se conclua pela necessidade de assegurar certas utilidades que um deles é suscetível de fornecer ao outro.
3º- Exige-se, por último, que os prédios ou frações do prédio se separem quanto ao seu domínio, por qualquer título negocial (compra e venda, doação, troca, partilha, testamento, etc.) ou por outro título de transmissão (expropriação, usucapião, etc.) e que não haja no documento respetivo nenhuma declaração oposta à constituição do encargo[12].
Não é exigível qualquer relação negocial ou manifestação de vontade para a constituição da servidão, bastando tão só a verificação objetiva dos requisitos legais. Esta surge no momento em que os prédios ou frações se separam quanto à sua titularidade. A serventia [13] dá então lugar à servidão por DPF, enquanto direito real de gozo, como que por presunção iuris tantum, ilidível por manifestação contrária das partes, como decorre do próprio art.º 1549º do Código Civil, na expressão “salvo se ao tempo da separação outra coisa se houver declarado no respectivo documento” [14].
Analisemos o caso sub judice à luz daqueles requisitos.
O primeiro requisito: Os dois prédios --- que tanto podem ser rústicos como urbanos ---, ou as duas frações do mesmo prédio tenham pertencido ao mesmo dono.
Em bom rigor, não é necessário que os prédios entre os quais se vai estabelecer um vínculo de servidão sejam apenas dois. Admite-se que sejam mais do que dois os prédios os prédios que revelem um nexo de serventia, de interdependência, suscetível de fazer nascer uma servidão, quando passarem a integrar esferas jurídicas diversas.[15]
Não obsta, portanto, à constituição da servidão por DPF o facto de estarem envolvidos três prédios (no caso, os artigos 1282, 1844 e 1905).
A 1ª instância negou a constituição da servidão invocando que o que ocorreu foi divisão de compropriedade do prédio mãe, continuando cada um dos prédios criados a partir da divisão a pertencer, agora em exclusivo, a um dos comproprietários daquele. Segundo a sentença, “…a constituição de servidão por destinação do pai de família abrange a separação de prédios que antes pertenciam a uma mesma pessoa e já não à separação de prédios que pertencem a duas pessoas e que se limitam a ficar cada um com um dos prédios. Nos presentes autos, os dois proprietários de um mesmo prédio, partiram-no em dois e cada um ficou com a sua metade”.
A questão da compropriedade na constituição da servidão por DPF tem vindo a ser discutida há décadas, tanto no direito interno, como noutros países da europa e disso dá conta Tavarela Lobo [16], não sendo unívoca a solução encontrada. As divergências são colocadas, sobretudo, nos casos em que o autor da destinação seja proprietário exclusivo de um dos prédios e condómino do outro. Isto é, saber se o proprietário exclusivo de um dos prédios, só por si e sem o consentimento do seu condómino no outro prédio, pode introduzir uma inovação no estado de facto existente e operar uma destinação relevante, constituindo sobre um dos prédios e em benefício do outro, por exemplo, uma servidão, por exemplo, de passagem.
Para a solução desta questão delinearam-se, essencialmente, duas correntes.
Uma defende que, se a oneração recair sobre o prédio de que o autor é comproprietário, a servidão não se constitui por não ser admissível o prejuízo dos restantes proprietários, mas se a oneração (serventia) recair sobre o prédio de que o autor é proprietário exclusivo em benefício do prédio de que é comproprietário (futuro prédio dominante), fica aberta a porta à constituição a servidão.
Já a orientação contrária, sustentada em doutrina italiana mais recente [17], defende que não é possível a constituição da servidão em qualquer daquelas hipóteses. Esta é a posição também defendida por Tavarela Lobo [18].
Para o caso em análise pouco importa esta discussão, pois que os sinais de serventia que podem relevar existem entre prédios que pertenceram aos mesmos donos: o A. marido e seu pai, A... E quando os prédios, ou as duas ou mais frações, pertenceram aos mesmos comproprietários, tem vindo a defender-se que não há qualquer dúvida quanto à possibilidade de constituição da servidão. Dando exemplo, Tavarela Lobo refere [19]: “É pacífico que a expressão «do mesmo dono» compreende tanto o proprietário singular dos dois prédios como os condóminos dos mesmos. Exemplo: os herdeiros do primitivo único proprietário ou os co-adquirentes dos dois prédios estabelecem entre eles uma relação de utilidade sujeitando um prédio ao outro. No momento da separação do domínio, a servidão constitui-se por destinação”.
A matéria de facto provada revela que o A. marido e o A.. foram comproprietários de cada um dos prédios identificados sob os artigos 339 e 1282, por eles adquiridos em comum e na proporção de metade para cada um por escritura de compra e venda celebrada no dia 2.10.1967 (al. e) da sentença). Por escritura de permuta celebrada no dia 17.1.1979 entre aqueles comproprietários, o A. tornou-se proprietário exclusivo dos artigos 1282-Rústico e 1844-Urbano, sendo que este último resultou da divisão em dois do artigo 339, operada através e um processo administrativo de discriminação (dali resultando o artigo 18844-Urbano e o artigo 1905-Rústico, depois de ter tido o nº 1845, ficando este propriedade exclusiva do A..).
Ora, dado o facto provado sob o item u) da sentença, o acesso ao prédio rústico (artigo 1282) dos A.A., a partir da via pública, sempre se fez, há mais de 20 ou 30 anos, através do quinteiro do prédio urbano referido em C) (artigo 1905), no sentido poente/nascente e no sentido inverso para daquele aceder ao prédio urbano (artigo 1844) dos A.A. e deste à via pública.
Não há dúvida de que, quer o prédio 339, quer o prédio 1282 pertenceram aos mesmos donos em compropriedade.

O segundo requisito: Como observámos, é necessária a existência de sinais visíveis ou aparentes e permanentes, reveladores da serventia de um prédio para com outro. É o mesmo tipo de sinais que denunciam uma servidão aparente, ou seja, uma prestação de utilidade não transitória, mas estável (como se exige nas situações em que os dois prédios pertencem a donos diferentes). Sinais com aquelas caraterísticas de aparência, permanência, estabilidade e inequivocidade, que resultem, quer antes, quer depois da escritura de permuta celebrada entre o A. e seu pai.
Desenvolveremos este requisito juntamente com terceiro, que se segue.

O terceiro requisito revela-se de complexa verificação, a merecer abordagem mais profunda: saber se e, na afirmativa, quando, ocorreu separação jurídica dos prédios.
O art.º 1549º do Código Civil refere simplesmente que os sinais de serventia existentes de um prédio para o outro relevarão “quando, em relação ao domínio, os dois prédios, …, vierem a separar-se, …”, sem que nada aponte expressamente quanto à nova titularidade do direito após a separação.
Sempre que se verifiquem os pressupostos do art.º 1549° do Código Civil, a servidão por destinação do pai de família (por destinação do anterior proprietário) constitui-se, não por ato negocial, mas sim por força da lei (“ope legis”), independentemente de se saber se o alienante e o adquirente quiseram que tal acontecesse.[20]
Como escreve Tavarela Lobo [21], “à situação material dos dois prédios pertencentes ao mesmo dono, correspondente a uma mera relação económica entre eles — estado de facto de serventia — sucede-se uma relação de ordem jurídica ao verificar-se a separação do domínio — estado jurídico de servidão. A separação jurídica verifica-se, portanto, quando os dois prédios ou frações deixam de pertencer ao mesmo dono e passam a pertencer a proprietários diferentes.
Será operante para efeitos de constituição de servidão por DPF a divisão da compropriedade dos três prédios em que existia a serventia à data da divisão, ficando dois deles para os A.A. e o outro para o outro comproprietário (A..) a contar do contrato de permuta?
Com a separação de domínio nasce a servidão.
Naturalmente, o que releva é a separação jurídica do domínio. Está em causa uma situação jurídica propter rem; não propriamente a identidade da nova titularidade.
Não nos parece aceitável que a divisão da compropriedade afaste a relevância dos sinais existentes para efeitos de constituição da servidão por DPF, que o facto de um dos prédios ou fração de um prédio continuar a ter como titular um dos anteriores comproprietários determine a não constituição da servidão. Com a divisão da compropriedade e atribuição dos prédios vizinhos a donos diferentes, ainda que anteriores comproprietários, opera-se uma separação dominial.
De outro passo ainda, a fortiori ratione, se impõe a relevância da serventia na divisão de compropriedade. Se ambos os comproprietários de dois prédios confinantes conceberam e usaram uma passagem de um prédio sobre o outro para acederem à via pública e dela se serviram com utilidade, em benefício de um deles ou de ambos, mal se aceitaria que, sendo eles vendidos a terceiras pessoas relevassem tais sinais para então se constituir a servidão por DPF, enquanto que, se fossem divididos entre os dois comproprietários, bem conhecedores da situação, ficando cada um dos prédios para cada um deles, tais sinais já deixassem de ter qualquer valor para aquele fim, apesar de continuarem a utilizar os espaço de passagem, não se constituindo a servidão de passagem por DPF.
A irrelevância da serventia ainda menos se aceitaria se, imediatamente após a divisão da compropriedade, com permuta entre os ex comproprietário, ficando cada um deles proprietário exclusivo de cada um dos bens sobre os quais existe a serventia, tais bens fossem transmitidos a novos adquirentes compradores, pessoas rigorosamente distintas daquelas. Estaríamos então perante uma forma obtusa e abjeta de negação da servidão, pois que, bastaria que a compropriedade não tivesse sido dividida e permutada entre os comproprietários para que, com a venda aos novos adquirentes, a servidão por DPF se constituísse ope legis.
Nesta inteleção, estamos convictos que a conversão da compropriedade em propriedade exclusiva, no ano de 1979, com a permuta e separação da titularidade dos prédios, é um facto relevante para efeito da constituição da servidão de passagem por DPF.
Assim, se:
- Naquela data, o acesso ao prédio rústico que é desde então dos A.A., a partir da via pública, já se fazia através do quinteiro do prédio urbano que é atualmente dos R.R., no sentido poente-nascente e no sentido inverso para daquele aceder ao prédio urbano dos A.A. e deste à via pública;
E se
- Nessa mesma data havia e continuaram a existir (até 1990/91) sinais permanentes de passagem por faixa determinada e dimensionada do terreno, à vista de todos, por ali se circulando a pé, com gados presos e soltos, com veículos de tração animal, motorizados ou com tratores e respetivas alfaias, durante todo o ano e a qualquer hora, seríamos levados a concluir que, para efeitos do art.º 1549º do Código Civil, a divisão da compropriedade dos três prédios aqui em causa entre o A. e o seu pai, A.., com permuta pela qual o A. ficou proprietário exclusivo de dois deles e o António proprietário exclusivo do outro, ficando, assim, os prédios separados e com dois proprietários distintos, configura uma autêntica separação jurídica daqueles domínios, adequada a que, nesse momento negocial (escritura pública de permuta de 17 de janeiro de 1979), verificados que estejam os demais requisitos legais, se tivesse constituído entre eles a indicada servidão de passagem por destinação de pai de família, na falta de declaração documentada em contrário. [22]
Haveria, pois, naquela data, uma aparência de servidão estável entre os prédios, bem reveladores da interdependência entre eles existente para serventia de utilidades comuns. Estaria, por isso, verificado também o segundo dos apontados requisitos.
A utilidade inerente ao conteúdo da servidão em causa é a passagem através de determinado espaço, nomeadamente a favor dos A.A. sobre o quinteiro do prédio dos R.R. A construção do muro de pedra, por estes ali levada a efeito, seria abusiva e ilegal por violar o direito dos demandantes, impedindo os A.A. de, por direito próprio, por ali passarem para acederem a cada um dos seus dois prédios (al.s gg., hh. e ii. dos factos provados).
Constituída que estivesse a servidão de passagem por DPF ela permaneceria, sem que tivesse ocorrido qualquer causa de extinção de entre as previstas no art.º 1569º, nº 1, do Código Civil.
Os R.R. teriam que demolir o muro e desobstruir a passagem a fim de que os A.A. continuassem a exercer o seu direito.
A procedência da ação com base na constituição da servidão de passagem por destinação de pai de família determinaria a desnecessidade de que se conhecesse da sua constituição por usucapião. E ficaria inviabilizado o caminho da sua extinção por desnecessidade, já esta forma de cessação do direito não é admissível nas servidões constituídas por DPF.
Acontece, porém, que, como observámos já, a servidão por DPF não se constitui se no momento da separação do domínio dos prédios ou frações do prédio os referidos sinais de aparência de servidão, os sinais da serventia entre os prédios ou frações não existirem já colocados em um ou em ambos, tenham seles sido colocados pelo então proprietário (ou comproprietários) ou por proprietários anteriores.
Volvendo ao caso que nos ocupa, constata-se que os A.A. alegaram, sob o item 23º da petição inicial, que “o acesso ao prédio rústico dos A.A. a partir da via publica sempre, há mais de 20 e 30 anos vem sendo feito através do quinteiro do prédio urbano que actualmente pertence aos R.R., no sentido poente/nascente e no sentido inverso para daquele aceder ao prédio urbano dos A.A. e deste à via publica”. E sob o artigo 24º do mesmo articulado que “de igual modo, a comunicação entre os dois identificados prédios dos A.A. sempre, há mais de 20 e 30 anos vem sendo feito através do dito quinteira ao prédio dos R.R., no sentido nascente/poente e vice-versa”.
Estes factos lograram obter adesão de prova (item u. dos factos provados), deixando ao tribunal a possibilidade de ponderar a existência de sinais de passagem pelo prédio que é hoje dos R.R. desde há 30 anos até á data da instauração da ação.
Quer atendendo à instauração da providência cautelar (14.3.2011), quer à data da instauração desta ação principal (3.3.2011), quer os sinais de passagem pelo eido dos R.R., quer os atos de posse dos A.A. invocados sobre o espaço da passagem, remontam, no máximo atendível, a março de 1981; data em que já se havia dado a separação da compropriedade por via da divisão e permuta, escriturada no ano de 1979.
Não estando comprovada (nem alegada) a situação de serventia da passagem em data anterior à separação do domínio, é manifesta a impossibilidade de constituição da servidão de passagem por DPF. Sem aquela serventia prévia, não se pode constituir aquela servidão no momento da separação dominial.
Improcede, assim, o fundamento da constituição de servidão por DPF invocado pelos A.A. para obter a procedência do pedido de reconhecimento do direito de passar pelo eido dos R.R. e demolição do muro construído sobre o espaço da passagem.
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3- A constituição de uma servidão de passagem por usucapião
Como ensina Tavarela Lobo [23], apontando jurisprudência firmada [24], “a invocação da prescrição funciona como mero reforço para o caso de se não provar a destinação. Se esta se prova, a servidão fica, em rigor, definitivamente constituída por tal forma, sendo irrelevante a prova da prescrição [25].
A improcedência do fundamento da constituição da servidão por DPF conduz-nos à análise do fundamento da usucapião.
Dispõe o art.º 1287º, do Código Civil que “a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião”.
É sabido que a posse é a base do nosso sistema jurídico no que respeita aos direitos reais; por ela se adquirem e sem ela se perdem direitos. É o primeiro pressuposto da usucapião e traduz o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (art.º 1251º do Código Civil).
Na conceção subjetivista do instituto possessório, pela qual se orienta a nossa lei, a posse integra-se por dois elementos: o corpus possessório e o animus possidendi. Enquanto aquele traduz o domínio de facto sobre a coisa, revelado no exercício efetivo de poderes materiais sobre ela, bastando que haja uma fruição da coisa mediante a recolha das vantagens económicas desta, o aninus é o elemento de natureza psicológica, caracterizado pela intenção de agir como titular do direito correspondente aos atos realizados. Ele consiste na intenção de exercer sobre a coisa, como seu titular, o direito real correspondente àquele domínio de facto.
Possuidor é, pois, para a nossa lei, aquele que, atuando por si ou por intermédio de outrem, tem, além do corpus possessório, também o animus possidendi – uma intenção dominial em sentido amplo, a intenção de exercer sobre a coisa um direito real próprio.
A verificação destes dois elementos é indispensável à usucapião.
A falta do animus, o exercício do poder de facto sobre a coisa sem o animus possidendi, traduz mera posse precária, simples detenção (art.º 1253º do Código Civil), não verdadeira posse, e é insuscetível de conduzir à usucapião. Porém, a prova do animus encontra-se facilitada com o estabelecimento, no nº 2 do art.º 1252º, de uma presunção de posse: em princípio, presume-se a posse (em nome próprio) naquele que exerce o poder de facto, ou seja, naquele que tem o corpus.
Foi neste sentido que, pelo acórdão uniformizador de jurisprudência de 14.5.1996, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, se decidiu que “podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa”. [26]
Para além da posse, com aquelas indispensáveis características, a usucapião não prescinde do decurso da situação de posse por um determinado lapso de tempo (este variável conforme a natureza móvel ou imóvel da coisa), devendo ainda reunir outras duas características: que seja pública e pacífica. Aquela é a que se exerce de modo a poder ser conhecida pelos interessados (art.º 1262º do Código Civil), enquanto a posse pacífica é a que foi adquirida sem violência (art.º 1261º, nº 1, do mesmo código). Os demais caracteres da posse (titulada, de boa ou má fé, etc.) apenas relevam quanto ao prazo.
Aquele que houver sucedido na posse de outrem por título diverso da sucessão por morte pode juntar à sua a posse do antecessor. É o que dispõe o art.º 1256º da citada lei civil.
A servidão é um encargo, um direito real limitado, um jus in re aliena, uma limitação ao direito de propriedade do prédio onerado ou serviente (art.º 1543º do Código Civil).
As utilidades das servidões podem ser as mais variadas, futuras ou eventuais, mesmo que não aumentem o valor do prédio dominante (art.º 1544º do Código Civil).
São características da servidão a inseparabilidade e a indivisibilidade.
Como é sabido, as servidões podem ser voluntárias ou legais, sendo aquelas as que resultam unicamente da vontade das partes (contrato, testamento, usucapião ou destinação do pai de família), sem que haja preceito legal que possibilite a sua imposição (art.º 1547º, nº 1, do Código Civil).
Não havendo dúvida alguma de que os A.A. são proprietários dos prédios identificados em a. e b. dos factos provados, estamos para saber se se constituiu a seu favor, enquanto titulares daqueles direitos de propriedade, uma servidão de passagem por usucapião sobre o quinteiro do prédio dos R.R., identificado sob a subsequente al. c.
Está demonstrado que o acesso ao prédio rústico dos autores, a partir da via pública, sempre se fez, há mais de 20 e 30 anos, através do quinteiro do prédio urbano referido em c., no sentido poente-nascente e no sentido inverso para daquele aceder ao prédio urbano dos autores e deste à via pública. Igualmente provada ficou a forma como vem sendo exercida essa passagem: inicia-se no prédio urbano dos autores, desenvolve-se no sentido poente-nascente numa extensão de 18 metros por cerca de 2,50 de largura na parte mais estreita, sobre o quinteiro ou logradouro do prédio descrito em c. até atingir o prédio rústico dos autores. Passagem feita a pé, com gados presos e soltos, com veículos de tração animal, motorizados ou com tratores e respetivas alfaias, durante todo o ano e a qualquer hora. Destina-se a lavrar, semear, transportar sementes, estrumes, adubos e tratamento das culturas, bem como para colheita dos frutos, como seja batata, feijão e uvas. E tudo isto é feito à vista e com o conhecimento de toda a gente, de forma contínua, sem interrupção nem oposição de ninguém, designadamente dos réus (al.su. a y. dos factos provados).
Além dos referidos atos materiais de posse está igualmente assente que os mesmos vêm sendo exercidos pelos A.A. na convicção de que estão e sempre estiveram a exercer sobre aquela parcela um direito de passagem (al. z. dos factos provados).
Há sinais visíveis e permanentes da passagem (art.º 1258º do Código Civil).
“A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião” (art.º 1287º do Código Civil).
Aquele conjunto de factos, designadamente o exercício da posse com as referidas características de continuidade, pacificidade e publicidade, ao longo de mais de 20 e até de 30 anos, satisfaz plenamente os pressupostos da usucapião, exigidos pelos art.ºs 1287º e seg.s do Código Civil, tendo-se como constituída a servidão de passagem segundo aquela forma de aquisição originária do direito real, a favor dos A.A., enquanto titulares dos prédios identificados em a. e b. (prédios dominantes), sobre o prédio dos R.R. identificado em c. (prédio serviente).
A construção do muro pelos R.R. no ano de 2011 interrompeu abusiva e ilegalmente o exercício do direito dos A.A., ao obstruir totalmente o leito do caminho de servidão, impedindo-os de transitar através dele e de fazer as manobras de inversão de marcha de e para os seus prédios (al.s cc. a ee. dos factos provados).
Com base na constituição de uma servidão de passagem por usucapião, comprovado que os R.R. obstruem ilegalmente o seu exercício regular, a ação tem que proceder.
É certo que os R.R. invocam a desnecessidade da servidão em virtude da construção do caminho de cima e que as servidões de passagem constituídas por usucapião podem extinguir-se por desnecessidade relativamente ao prédio dominante (art.º 1569º, nº 2, do Código Civil) [27].
Em todo o caso, não está demostrada aquela desnecessidade. Não basta provar-se que foi aberto outro caminho que dá acesso aos prédios dos A.A. e dos R.R. A desnecessidade tem de ser objetiva, típica e exclusiva e supõe uma mudança na situação do prédio dominante. Para que haja extinção por desnecessidade é necessário que, após a sua constituição, tenham sobrevindo alterações no prédio dominante de que resulte ficar este servido de acessos de tal modo que tudo volte a passar-se como se aquela servidão nunca tivesse sido necessária [28].
Mas, não só não foi demonstrada a desnecessidade, como os R.R. nem sequer deduziram pedido reconvencional em conformidade. A violação do princípio do pedido sempre ditaria também o insucesso da defesa preconizada.
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4- Abuso de direito dos A.A.
O art.º 334º do Código Civil acolhe uma conceção objetiva do abuso do direito, segundo a qual não é necessário que o titular do direito atue com consciência de que excede os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social do direito.
A lei considera verificado o abuso independentemente da intenção do agente, bastando que essa a atuação contrarie objetivamente aqueles valores.
O abuso de direito caracteriza-se por um comportamento que tenha a aparência de licitude jurídica --- por não contrariar a estrutura formal-definidora (legal ou conceitualmente) de um direito, à qual mesmo externamente corresponde --- e, no entanto, viole ou não cumpra, no seu sentido concreto-materialmente realizado, a intenção normativa que materialmente fundamenta e constitui o direito invocado, ou de que o comportamento realizado se diz exercício” [29].
O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24.9.2009 [30] refere que “para ocorrer abuso de direito é imperioso que o modo concreto do seu exercício, objectivamente considerado, se apresente ostensivamente contrário “à boa fé, (a)os bons costumes ou (a)o fim social ou económico” do direito em causa (artigo 334º do Código Civil)”.
Escreveu-se na sentença recorrida: “Ora, os autores acordaram em 1990/1991 na feitura de um novo caminho, deixando de passar no caminho antigo. Assim acordaram, assim fizeram. Torna-se deste modo evidente uma clara situação objectiva de confiança: os réus face a este comportamento tinham tudo para confiar nos autores no que respeita ao fim da passagem antiga. O tempo decorrido é extremamente assinalável. E face a isto os réus decidiram fazer algumas obras que buliriam com o antigo caminho, mas o qual foi considerado extinto pelos autores. E a boa fé dos réus é inequívoca. Afinal, o novo caminho foi acordado com os autores. Tudo não passou de um acordo voluntário entre as partes.”
Com base nesta afirmação, concluiu-se ali que os A.A. litigam com venire contra factum proprium, assim, em abuso de direito, conducente à improcedência da ação.
A invocação desta exceção tem por base factos que esta instância afastou da matéria de facto provada, designadamente que na altura da execução do caminho de cima que dá acesso aos prédios dos A.A. e dos R.R., o A. marido referiu que o acesso a todos os prédios deveria ser feito por aquele caminho e que, a partir daí, os A.A. deixaram de passar pelo prédio dos R.R. [31]
E tendo-se provado factos diferentes, pelos quais se conclui pela constituição da servidão de passagem por usucapião, é manifesto que os demandantes, ou qualquer deles, não tomaram conduta contraditória que justificasse violação da confiança criada na parte contrária com base no comportamento anterior, não podendo agora, de modo algum, afirmar-se que os demandantes litigam em abuso de direito.
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A carceribus ad metam, a apelação tem que ser julgada procedente.
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SUMÁRIO (art.º 663º, nº 7, do novo Código de Processo Civil):
1. Os requisitos da constituição da servidão por destinação de pai de família:
a) Os dois ou mais prédios --- tanto podem ser rústicos como urbanos ---, ou as frações do mesmo prédio tenham pertencido ao mesmo dono.
b) A existência de sinais visíveis ou aparentes e permanentes, reveladores da serventia de um prédio para com outro anteriores e posteriores à separação do domínio.
c) Os prédios ou frações do prédio se separem quanto ao seu domínio, por qualquer título negocial (compra e venda, doação, troca, partilha, testamento, etc.) ou por outro título de transmissão (expropriação, usucapião, etc.) e que não haja no documento respetivo nenhuma declaração oposta à constituição do encargo.
2. Configura uma forma de separação dominial exigida pelo art.º 1549º do Código Civil para efeitos de constituição de servidão por destinação e pai de família, a divisão da compropriedade de vários prédios e a respetiva permuta em que cada um dos dois comproprietários fica proprietário exclusivo de cada um dos imóveis (um deles proprietário de um bem e o outro de dois bens).
3. Pedido reconhecimento do direito de passagem com base na constituição de uma servidão por destinação de pai de família e, simultaneamente, por usucapião, só a improcedência do primeiro fundamento justifica a apreciação do direito de passar à luz do segundo.
4. A desnecessidade da servidão pode ser invocada quando tal direito foi constituído por usucapião, mas carece de alegação de factos objetivos que a definam e de pedido, seja por via de ação, seja por reconvenção.
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V.
Pelo exposto, sem mais considerações, acorda-se nesta Relação em julgar a apelação procedente e, em consequência,
a) Reconhece-se o direito de propriedade dos A.A. sobre os dois prédios identificados em a. e b. dos factos provados;
b) Reconhece-se o direito de servidão de passagem dos A.A. constituída por usucapião (enquanto titulares do direito real reconhecido em a), a pé, com gados presos e soltos, com veículos de tração animal, motorizados ou com tratores e respetivas alfaias, durante todo o ano e a qualquer hora, através do prédio dos R.R., identificado em c. dos factos provados;
c) Condenam-se os R.R. a reconhecer aqueles direitos a favor dos prédios dos A.A. e, consequentemente, a não impedir nem estorvar o respetivo exercício; e ainda
d) A demolirem o muro que construíram, identificado no item gg. dos factos provados, permitindo o livre exercício do direito de servidão de passagem dos A.A.
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CUSTAS
Custas na 1ª instância e da apelação pelos R.R.
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Guimarães, 15 de outubro de 2013
Filipe Caroço
António Santos
Figueiredo de Almeida
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[1] Por transcrição.
[9] Adiante DPF.
[10] Destinação de pai de família.
[11] Menezes Cordeiro, Direitos Reais, II volume, 1979, pág. 1040.
[12] Neste sentido, P. Lima e A. Varela, Código Civil anotado, vol. III, 1972, pág.s 580 e seg.s.
[13] Assim designando a lei o laço de interdependência predial anterior à separação dos imóveis.
[14] Em abono desta tese, A. Lima Araújo e Fernando Seara, Direitos Reais, AAFDL, 1980, pág.s 525 e 526, e J. Oliveira Ascensão, Direitos Reais, Almedina, 1978, pág. 480.
[15] A. Lima Araújo e Fernando Seara, ob. cit., pág.s 520 e 521 e P. Lima e A. Varela, Código Civil anotado, vol. III, 1972, pág. 582.
[16] Destinação de Pai de Família, Servidões e Águas, Coimbra, 1964m pág.s 38 e seg.s.
[17] Barassi, Grosso e Deiana, Pescatore-Albano-Creco e Branca. Entre nós, Barbosa de Magalhães, citados em Tavarela Lobo, ob. cit., pág.s 39 e 40.
[18] Ob. cit., págs. 46 e 47.
[19] Tavarela Lobo, ob. cit., pág. 38., P. Lima e A. Varela, ob. cit., pág. 58.
[20] Acórdão Supremo Tribunal de Justiça de 15.3.2005, Colectânea de Jurisprudência do Supremo, T. I, 146.
[21] Ob. cit., pág. 78.
[22] A conclusão semelhante, numa situação de divisão de compropriedade, embora, com fundamento algo diferente, se chegou no acórdão da Relação do Porto de 29 de maio de 2012, proc. 233/08.1TBARC.P2, in www.dgsi.pt. Cf. ainda os acórdãos da mesma Relação de 30.10.2006, proc. 0556630 e de 14 de junho de 2011, proc. 233/08.1TBARC.P1, publicados na mesma base de dados.
[23] Ob. cit., pág. 91.
[24] Acórdão da Relação de Coimbra de 25 de janeiro de 1956, in Jurisp. das Relações , 2º, V, pág. 249, anot.
[25] Naturalmente, prescrição aquisitiva, como era designada a usucapião do Código de Seabra.
[26] In DR, nº 144, de 24.6.1996 e no BMJ 457/55.
[27] O mesmo não pode acontecer com as servidões constituídas por destinação de pai de família.
[28] Além de outros, o acórdão da Relação do Porto de 26.11.2002, Colectânea de Jurisprudência, T. V., pág. 182, e o acórdão da mesma Relação, de 12.12.2006, proc. 0622564, in www.dgasi.pt.
[29] Castanheira Neves, “Lições de Introdução ao Estudo do Direito”, edição copiografada, Coimbra, 1968/69, pág. 391, citado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.1.2003, Colectânea de Jurisprudência do Supremo, T. I, pág. 64.
[30] Documento nº SJ2009092400006597, in www.dgsi.pt.
[31] Em bom rigor, não ficou provada a afirmação que se faz na sentença de que os A.A. acordaram … na feitura de um novo caminho.