ACIDENTE DE VIAÇÃO
CULPA DO LESADO
MORTE
DANOS MORAIS
CÔNJUGE
Sumário

I - Se no âmbito do DL nº 522/85, de 31/12, “justificável“ era considerar que o regime legal do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel não excluía peremptoriamente - maxime o respectivo artº 7º - a reparação dos danos não patrimoniais sofridos pelos familiares de condutor de veículo automóvel falecido em acidente do qual foi o único responsável, já com o Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, tal entendimento passou a ser menos defensável.
II - Tendo o acidente ocorrido em finais de 2011, e dele resultando a morte do condutor do único veículo automóvel nele interveniente, e de cuja ocorrência foi o exclusivo responsável, improcede a acção intentada pelo seu cônjuge e filhos com vista à condenação da Seguradora - e no âmbito de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel - no pagamento de uma indemnização pelos danos não patrimoniais que sofreram com a morte daquele.

Texto Integral

Acordam os Juízes na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães
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1.Relatório.
M.., D.. e M.., intentaram acção declarativa de condenação, na forma ordinária, contra ..Companhia de Seguros, S.A, pedindo
a condenação da Ré a pagar-lhes a quantia total de 120.000,00 € , acrescida de juros à taxa legal, vencidos desde a citação e vincendos até ao efectivo e integral pagamento, sendo ela/quantia devida a título de ressarcimento do dano não patrimonial próprio que sofreram com a morte do marido e pai, respectivamente, sendo a mesma devidamente repartida por todos, e cabendo €50.000,00 para a 1ª R. e €35.000,00 para cada um dos restantes AA.
Para tanto , alegaram os AA, em síntese, que :
- No dia 08 do mês de Novembro do ano de 2011, em caminho Municipal de Arcos de Valdevez, ocorreu um acidente de viação com um tractor agrícola e em consequência do qual faleceu J.., sendo que os aqui AA. são , respectivamente, a ex-cônjuge viúva e os filhos da vítima falecida;
- O acidente referido verificou-se quando o J.. , ao conduzir o tractor agrícola indicado, e ao descrever com ele uma curva, entrou em despiste, subindo o tractor uma barreira em rampa, acabando por se voltar e ficando voltado com as rodas para cima, e , tendo o condutor ficado debaixo do tractor, sofreu então diversos ferimentos, acabando em consequência dos mesmos por falecer;
- Ora, porque à data do acidente o veículo tractor estava seguro na Ré Seguradora, garantindo o contrato de seguro a responsabilidade civil pelos danos emergentes de acidente de viação e, de entre os danos cobertos, incluem-se os danos de natureza não patrimonial próprios dos AA.,deve portanto a Seguradora indemnizar os danos morais que sofreram em consequência da morte de seu marido e pai, no acidente supra descrito.
1.1.- Após citação, a Ré Seguradora apresentou contestação, defendendo-se no essencial por impugnação e sustentando que , tendo o acidente ocorrido em razão de conduta do próprio segurado/falecido, não está sequer constituída na obrigação de indemnizar, pois que, no âmbito do contrato de seguro, apenas se obrigou ao pagamento das indemnizações devidas pelas lesões corporais ou materiais causadas a terceiros pelo tractor por aquele conduzido.
Ora, conclui a Seguradora, tendo o sinistrado sido o único culpado na produção do acidente que o vitimou, e porque não é sequer imaginável que, tirando as situações de existência de seguro de acidentes pessoais, o seguro de responsabilidade civil - destinado a conferir cobertura aos danos causados a terceiros por um veículo terrestre a motor - possa conferir de igual modo cobertura aos danos sofridos pelos herdeiros do condutor cuja actuação foi, sem qualquer contribuição de outrem, causadora da sua própria morte, deve a acção improceder.
1.2.- Apresentando os AA a réplica, seguiu-se a prolação do competente despacho saneador ( com dispensa da realização da audiência preliminar ), a fixação da matéria de facto assente e a organização da base instrutória da causa, procedendo-se finalmente à audiência de discussão e julgamento .
1.3.- Porque em sede de audiência de discussão e julgamento acordaram as partes no tocante à factualidade provada ( no âmbito de toda a incluída na base instrutória), e conclusos ao autos para o efeito, proferiu de seguida o tribunal a quo a sentença, sendo o respectivo excerto decisório do seguinte teor:
“(…)
DECISÃO
Pelo exposto decide-se julgar a presente acção totalmente improcedente e em consequência absolve-se a R. do pedido.
Custas pelos AA.
Registe e notifique.”
1.4. - Inconformado com a decisão/sentença indicada em 1.3., da mesma apelaram então os autores, apresentando os recorrentes na respectiva peça recursória as seguintes conclusões:
a) A única questão a decidir nos presentes autos, face à inequivocidade dos danos sofridos pelos autores, é a de saber se estes, na qualidade de cônjuge e filhos do tomador do seguro e condutor do veículo que faleceu em consequência de acidente de viação ocorrido por sua culpa exclusiva, têm direito a uma indemnização, por danos próprios, como compensação pela tristeza, desgosto e sofrimento que aquela morte lhes causou.
b) Está em discussão nos autos um contrato de seguro, titulado pela apólice nº 605933088, celebrado por J.., com a Ré “..Companhia de Seguros,S.A, mediante o qual aquele primeiro, na qualidade de proprietário do tractor agrícola de matrícula ..-TZ, transferiu para a ré a responsabilidade civil por danos causados a terceiros pela circulação deste veículo.
c) Com o devido respeito por entendimento contrário, entendem os autores que atento o disposto nos artigos 496.º, n.º 2 e 4 e 499.º, ambos do Código Civil, e no artigo 14.º, n.º 1 do Dec. Lei 291/2007, impõe-se concluir que o cônjuge e filhos do condutor do veículo seguro revestem a qualidade de terceiros, assistindo-lhes o direito de exigir da ré seguradora indemnização pelos danos próprios, de natureza não patrimonial, sofridos com a morte daquele condutor.
Com efeito,
d) Como se discorre no douto acórdão desta Relação de 07/02/2012, processo1210/11.0TBVCT.G1, disponível in www.dgsi.pt, a primeira Directiva 72/166/CEE do Conselho, de 24 de Abril de 1972, a segunda Directiva 84/5/CEE do Conselho, de 30 de Dezembro de 1983, a terceira Directiva 90/232/CEE do Conselho, de 14 de Maio de 1990 e a quinta Directiva 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio de 2005, limitaram-se a prever disposições mínimas para o tipo de danos pessoais e patrimoniais que devem ser cobertos pelo seguro e para as pessoas lesadas que têm direito a indemnização.
e) Neste contexto, os Estados-Membros da União Europeia são obrigados apenas a garantir que o direito nacional esteja conforme às disposições destas directivas e assegure o seu efeito útil, tendo competência para alargar o âmbito da cobertura do seguro, desde que não coloque em causa o efeito útil das directivas.
f) A problemática de saber se os danos próprios sofridos pelos familiares do condutor em consequência da morte deste estão, ou não, abrangidos pela cobertura do seguro obrigatório há-de ser resolvida no seio do direito interno de cada Estado-Membro.
g) Ora, atento o disposto nos artigos 496.º, n.º4 e 499.ºdo Código Civil e no artigo 14.º, n.º 1 do Dec. Lei 291/2007, de 21 de Agosto, impõe-se concluir que o cônjuge e descendentes do condutor do veículo seguro, revestem a qualidade de terceiros, assistindo-lhes, por isso, o direito de exigirem da ré seguradora indemnização pelos danos próprios, de natureza não patrimonial, sofridos com a morte daquele condutor.
h) Provados os danos dos autores, como bem resulta dos pontos 20 a 31 dos factos provados, revela-se justo e adequado, como compensação pelos danos não patrimoniais próprios sofridos pelos autores, a quantia de 120.000,00 €, sendo 50.000,00 € para o cônjuge e 35.000,00€ para cada filho.
Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, em conformidade com as conclusões que antecedem, assim se fazendo a habitual JUSTIÇA.
1.5.- Contra-alegando, veio a Ré Seguradora sustentar não impender sobre si qualquer obrigação de indemnizar os apelantes, razão porque deve ser negado provimento ao recurso interposto pelos Autores, com o que se fará, JUSTIÇA.
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Thema decidendum
Colhidos os vistos, cumpre decidir, sendo que , estando o objecto do recurso delimitado pelas conclusões ( daí que as questões de mérito julgadas que não sejam levadas às conclusões da alegação da instância recursória , delas não constando, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal ad quem) das alegações do recorrente (cfr. artºs. 684º nº 3 e 685º-A, nº 1, ambos do Código de Processo Civil - com as alterações introduzidas pelo DL nº 303/07, de 24 de Agosto - revogado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho - cfr. artº 7º, nº1, deste último diploma legal ), a questão a apreciar e a decidir é tão só a seguinte :
I- Apurar se os AA, na qualidade de viúva e filhos de vitima mortal de acidente de viação, têm direito à reparação dos danos não patrimoniais próprios sofridos e decorrentes da referida morte, ou ,ao invés, porque o acidente ficou a dever-se a “culpa” exclusiva do próprio falecido e condutor do único veículo nele interveniente, estão os referidos AA excluídos da “cobertura” emergente do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.
II- Concluindo-se que aos AA assiste o direito à reparação pela Seguradora dos danos não patrimoniais sofridos, quais as quantias indemnizatórias a atribuir a cada um .
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2.Motivação de Facto.
Mostra-se fixada pelo tribunal a quo a seguinte factualidade :
2.1.- No dia 08 do mês de Novembro do ano de 2011, pelas 10h40, no Caminho Municipal, sito no lugar do Coto, Távora de São Vicente, concelho e comarca de Arcos de Valdevez, ocorreu um acidente de viação;
2.2.- Em consequência desse acidente faleceu J.., residente que foi na freguesia de São Vicente de Távora, concelho e comarca de Arcos de Valdevez. – factos não impugnados e constantes de documento autêntico ;
2.3.- Os Autores são ex-cônjuge viúva e filhos, respectivamente, do falecido J..;
2.4.- Foi interveniente nesse acidente, o tractor agrícola de matrícula ..-TZ, conduzido pelo seu proprietário J..;
2.5.- O tractor circulava pelo referido caminho municipal no sentido Norte-Sul, ou seja, no sentido de Távora – E.N. 202;
2.6. - O local onde ocorreu o acidente, o dito caminho municipal, configura uma curva de reduzida visibilidade, no sentido descendente com largura total de aproximadamente de 3,40 m, conforme descreve o Auto de Ocorrência;
2.7.- No referido local o piso era e é asfaltado, encontrava-se seco, limpo e em bom estado de conservação;
2.8. - O veículo tractor ao descrever uma curva à direita em relação ao seu sentido de marcha, dada a configuração íngreme do local, entrou em despiste;
2.9. - Despistou-se para a esquerda da sua faixa de rodagem, subiu uma barreira em rampa, acabando por se voltar, dando uma volta de 180 graus, ficando voltado com as rodas para cima;
2.10.- O seu condutor ficou debaixo do tractor, preso, sem poder sair do local;
2.11.- Em consequência directa e necessária do acidente o condutor sofreu ferimentos graves em diversas partes do corpo;
2.12.- Dada a gravidade dos ferimentos, não resistiu aos mesmos, acabando por falecer;
2.13.- No local ainda foi socorrido pelos serviços do INEM, os quais vieram a confirmar a fatídica morte;
2.14. - O veículo conduzido pelo sinistrado foi o único interveniente no acidente.
2.15. - Os serviços do INEM prestaram socorro ao condutor sinistrado, para lhe salvar a vida, mas sem êxito;
2.16.- Os Autores, conviveram juntos, na qualidade de cônjuge e filhos do falecido, 44 , 42 e 38 anos;
2.17.- Os Autores solicitaram da Ré para que esta assumisse a responsabilidade e efectuasse o pagamento indemnizatório a que achavam ter direito;
2.18.- A Ré não assumiu qualquer responsabilidade;
2.19. - Por contrato de seguro titulado pela apólice n.º 605933088, celebrado por J.., com a Ré “..Companhia de Seguros, S.A.” (anteriormente denominada “Companhia de Seguros.., S.A.”), antes da data do acidente em causa, esta assumiu a responsabilidade pelo pagamento das indemnizações devidas pelos danos causados pelo veículo de matrícula ..-TZ, nos termos da referida apólice;
2.20.- Os Autores ao terem conhecimento do acidente e da consequente morte do marido e pai, sofreram um choque profundo ;
2.21.- Logo após o acidente os aqui Autores, acorreram para o local do mesmo, a fim de saberem do sucedido – cfr. quesito 2 aceite por acordo das partes.
2.22.- No local, quando lhes foi transmitida a gravidade dos ferimentos e a consequente morte, sentiram enorme incómodo, angústia e profunda tristeza ;
2.23.- Os Autores choraram a morte do marido e pai ;
2.24. - Os aqui Autores naquele dia do acidente, bem como nos dias e noites que se seguiram andaram tristes e passaram noites sem dormir :
2.25. - A morte do marido e pai, causou nos aqui Autores um profundo desgosto;
2.26.- Entre os Autores e o falecido havia uma enorme amizade e uma enorme cumplicidade ;
2.27.- Os Autores receberam muito apoio e carinho pelo falecido marido e pai ;
2.28.- O falecido apoiava e acompanhava os aqui Autores diariamente ;
2.29.- Os Autores continuam tristes, aborrecidos e incomodados com a morte do seu marido e pai, respectivamente ;
2.30 - Essa tristeza, dor e sofrimento irão permanecer pela vida fora ;
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3.- Motivação de Direito.
3.1.- Têm os AA, na qualidade de cônjuge e descendentes do falecido, direito à reparação - pela Seguradora e no âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel - dos danos não patrimoniais próprios sofridos e decorrentes da morte de condutor do único veículo automóvel interveniente em acidente de viação e de cuja ocorrência foi ele o único e exclusivo responsável ?
Como decorre do relatório do presente Acórdão, o thema decidendum da apelação trazida a este tribunal da Relação prende-se precisamente com a resposta a dar à questão que integra o “título” conferido ao respectivo item 3.1. , pugnando os apelantes por uma resposta positiva , e , a apelada, pela resposta contrária, sendo esta última , recorda-se, aquela que foi seguida pela primeira instância.
Porque pertinentes e úteis para a posição a seguir/perfilhar no âmbito do presente Acórdão, relembram-se aqui e agora algumas das decisões de tribunais superiores que, com referência à matéria ora em apreciação, tiveram já a oportunidade de se pronunciar/decidir .
Ora, como que alinhando por uma resposta afirmativa, concluíram, de entre vários outros, e nos termos que resumidamente a seguir se indicam, os seguintes Acs.:
I - “Atento o disposto nos arts. 496º, nº3 e 499ºdo C. Civil e do art. 14º, nº 1 do DL 291/2007, de 21.08, impõe-se concluir que os ascendentes do condutor do veículo seguro, revestem a qualidade de terceiros, assistindo-lhes, por isso, o direito de exigirem da ré seguradora indemnização pelos danos próprios, de natureza não patrimonial, sofridos com a morte daquele condutor”. - Cfr. Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães, de 7/12/2012, e tendo por objecto um acidente ocorrido a 29.09.2008 (1) ;
II - “O contrato de seguro obrigatório garante e a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo, excluindo-se da garantia de seguro os danos decorrentes de lesões corporais sofridos pelo seu condutor, bem como os danos decorrentes de lesões corporais causados ao seu cônjuge e descendentes, de acordo com a respectiva apólice, em consonância, aliás, com o estatuído no art. 7º do Dec-Lei 522/85, de 31 Dezembro, que reproduz este normativo. Garante apenas os danos causados a terceiros.
(…)
Compreende-se esta exclusão do condutor da garantia do seguro, porquanto sendo ele próprio beneficiário dessa garantia (art. 8° do Dec-Lei 522/85 ) não pode simultaneamente ser considerado terceiro para efeito de ressarcimento de danos próprios.
Mas a garantia de seguro já não exclui os danos próprios, de natureza não patrimonial, sofridos pelo cônjuge e filhos do condutor do veículo decorrentes da sua morte, consistentes nos sofrimentos, desgosto e tristeza que essa mesma morte lhes provocou.” Cfr. Ac. do STJ de 8/1/2009, e tendo por objecto um acidente de viação ocorrido a 31 de Janeiro de 2004 . (2)
III - “ Sendo o condutor do veículo automóvel o responsável exclusivo pelo acidente de viação, seguramente que se mostra excluída qualquer indemnização aos seus familiares resultante de transmissão por via sucessória de um direito gerado na esfera jurídica daquele condutor, no regime legal do seguro obrigatório de responsabilidade automóvel.
Porém, já assim não acontece relativamente aos danos não patrimoniais ( ditos, também, danos morais) reclamados, que não são provenientes de qualquer transmissão mortis causa, do desditoso condutor para os seus familiares, sendo antes danos próprios destes, isto é, gerados na esfera jurídica de cada um destes demandantes que, embora decorrentes da morte do referido condutor, não se confundem com o dano morte ou dano de perda do direito à vida, pois não é este o direito que está aqui em causa.” - Cfr. Ac. do STJ de 14/2/2013, e tendo por objecto um acidente ocorrido a 4.5.2007 (3) .
Por outra banda, já em sentido contrário, ou seja, optando por uma resposta negativa, concluíram, de entre diversos outros, e nos termos que a seguir outrossim se indicam, os seguintes Acs.:
I - “ Quando determinado acidente se ficou a dever a acção culposa e exclusiva do condutor de um veículo, que veio a falecer, a seguradora não tem que indemnizar os danos não patrimoniais sofridos pelos familiares desse condutor, já que o condutor, reunindo em si a incompatível qualidade de lesante e lesado, também por esses danos não responderia.” - Cfr. Ac. do Tribunal da Relação do Porto, de 19/3/2012, e tendo por objecto um acidente ocorrido a 5.04.2007 (4).
II - “Os danos sofridos pelo condutor dum veículo automóvel não estão abrangidos pelo seguro obrigatório respeitante a tal veículo.
Em caso de morte daquele, esta ressalva de abrangência inclui os danos que daí resultaram para os familiares” - Cfr. Ac. do STJ de 8/1/2009, e tendo por objecto um acidente ocorrido a 17.2.2002 (5)
III - “ (…) inexistindo a obrigação de indemnizar o dano morte por este não resultar da violação ilícita de um direito de outrem, princípio este transversal a todo o regime da responsabilidade civil extracontratual por actos ilícitos, soçobra qualquer obrigação de indemnizar decorrente desse facto originário, morte , na medida em que ela resulta de condução culposa e lesiva do direito à vida do próprio, e a indemnização prevista no art. 496º do C. Civil, por danos não patrimoniais dos familiares da vítima, por maior que tenha sido o seu padecimento, independentemente de poder ser considerado dano próprio ou não, não deixa de ser um dano indirecto que exige a obrigação de indemnizar por outrem que não da própria vítima (lesado)”- Cfr. Ac. do STJ de 24/2/2011 (6).
Conhecidas que são, em traços largos, as divergências que explicam as diferentes decisões supra apontadas, importa antes de mais precisar que, em rigor, em todas elas se aceita e reconhece que, a “resposta” para o thema decidendum há-de forçosamente ser encontrada a partir de uma análise do direito interno/nacional de cada Estado-Membro da União Europeia, e isto não obstante, a partir de 1972, ter o legislador europeu iniciado um processo paulatino de aproximação dos regimes nacionais de seguro de responsabilidade civil automóvel, o que tudo deu origem à aprovação de diversas directivas, sendo a mais recente a Directiva 2009/103/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de Setembro de 2009 (7).
Igualmente, inquestionável é que, em obediência ao disposto no artº 12º, do Cód. Civil, e no âmbito do direito nacional aplicável, importa atentar no conteúdo do direito vigente à data do facto, ou seja, os efeitos de um acidente de viação só podem ser os que lhe atribuía a lei vigente ao tempo em que ocorreu (8) , razão porque pacífico é também o entendimento segundo o qual o diploma legal aplicável em matéria de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel é aquele que vigorava na data do acidente.
Ponto também convergente e pacífico, em todas as decisões judiciais supra indicadas, é aquele que considera que os danos não patrimoniais a que alude o nº 2, do artº 496º do CC [ reza tal dispositivo que “ Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem “ ] são danos próprios dos herdeiros, ou seja, o direito ao seu ressarcimento não é a estes últimos conferido pela via sucessória, antes consubstancia um direito que lhes cabe iure próprio, nos termos e pela ordem no preceito legal estabelecida . (9)
Finalmente, aceita-se também (em qualquer das “correntes jurisprudenciais” divergentes) que, os familiares/pessoas indicadas nos nºs 2 e 3, do artº 496º, do CC, como sendo aquelas a quem, por morte da vítima, se reconhece o direito à indemnização para ressarcimento dos danos não patrimoniais sofridos, são em rigor terceiros em relação ao contrato de seguro de responsabilidade civil, pois que, para todos os efeitos, não participaram na sua celebração - Res Inter Alios Acta. (10)
Isto dito , importa de seguida começar por atentar - no seguimento aliás da conclusão supra indicada no sentido de que a “resposta” para o thema decidendum há-de forçosamente ser encontrada a partir de uma análise do direito interno/nacional de cada Estado-Membro da União Europeia - , nas disposições legais que brotam do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto (11), diploma este que in casu é o aplicável e o qual , no respectivo artº 4º, nº1, reza que ” Toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos corporais ou materiais causados a terceiros por um veículo terrestre a motor para cuja condução seja necessário um título específico e seus reboques, com estacionamento habitual em Portugal, deve, para que esses veículos possam circular, encontrar-se coberta por um seguro que garanta tal responsabilidade, nos termos do presente decreto-lei”.
No seguimento do disposto no referido dispositivo legal, imperioso é começar desde logo concluir que, o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, é um seguro cujo titular do direito à indemnização é um terceiro, que não o segurado e como sucede no seguro de coisas, garantindo a respectiva outorga a “ responsabilidade civil do tomador do seguro, dos sujeitos da obrigação de segurar previstos no artigo 4.º e dos legítimos detentores e condutores do veículo “ - cfr. artº 15º, nº1.
Analisando ainda o mesmo DL. nº 291/2007, de 21/8, e sob o título de “ Exclusões”, vemos que nos diz ele, no seu artº 14º , que :
“ 1 - Excluem-se da garantia do seguro os danos corporais sofridos pelo condutor do veículo seguro responsável pelo acidente assim como os danos decorrentes daqueles.
2 - Excluem-se também da garantia do seguro quaisquer danos materiais causados às seguintes pessoas:
a) Condutor do veículo responsável pelo acidente;
b) Tomador do seguro;
c) Todos aqueles cuja responsabilidade é garantida, nos termos do n.º 1 do artigo seguinte, nomeadamente em consequência da compropriedade do veículo seguro;
d) Sociedades ou representantes legais das pessoas colectivas responsáveis pelo acidente, quando no exercício das suas funções;
e) Cônjuge, ascendentes, descendentes ou adoptados das pessoas referidas nas alíneas a) a c), assim como outros parentes ou afins até ao 3.º grau das mesmas pessoas, mas, neste último caso, só quando elas coabitem ou vivam a seu cargo;
f) Aqueles que, nos termos dos artigos 495.º, 496.º e 499.º do Código Civil, beneficiem de uma pretensão indemnizatória decorrente de vínculos com alguma das pessoas referidas nas alíneas anteriores;
g) A passageiros, quando transportados em contravenção às regras relativas ao transporte de passageiros constantes do Código da Estrada.
3 - No caso de falecimento, em consequência do acidente, de qualquer das pessoas referidas nas alíneas e) e f) do número anterior, é excluída qualquer indemnização ao responsável do acidente.
4 - Excluem -se igualmente da garantia do seguro:
a) Os danos causados no próprio veículo seguro;
b) Os danos causados nos bens transportados no veículo seguro, quer se verifiquem durante o transporte quer em operações de carga e descarga;
c) Quaisquer danos causados a terceiros em consequência de operações de carga e descarga;
d) Os danos devidos, directa ou indirectamente, a explosão, libertação de calor ou radiação, provenientes de desintegração ou fusão de átomos, aceleração artificial de partículas ou radioactividade;
e) Quaisquer danos ocorridos durante provas desportivas e respectivos treinos oficiais, salvo tratando -se de seguro celebrados ao abrigo do artigo 8.º”
Ora, tendo presente a disposição legal transcrita do artº 14º, e em contraponto ao diploma legal revogado ( o DL nº 522/85, de 31/12 ), importa desde logo atentar que o legislador, no âmbito do DL nº 291/2007, como que abandona a dicotomia que estabelecia o direito pretérito e existente entre os danos patrimoniais e não patrimoniais, e decorrentes de lesões corporais ou materiais causadas a terceiros ( inserta dos artºs 1º, nº 1 e 7º, nº3 ) , antes envereda pela utilização da noção de danos corporais ( nestes incluindo o dano morte - cfr. artº 3º,nº2 ) versus danos materiais ( no artº 4º).
No seguimento da apontada constatação, a nosso ver, como que deixa em parte de relevar o argumento alicerçado na “letra” do pretérito regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, e o qual sustentava/defendia que, ao expressamente - em concretas situações - excluir a indemnização do responsável culposo do acidente e por danos não patrimoniais [ o que apenas constava do nº 3, do artº 7º, pois que, o respectivo nº2, aludia antes e em rigor a “quaisquer danos” decorrentes de lesões materiais ], tal só queria/podia significar que não quis o legislador excluir a indemnização a título de danos não patrimoniais em quaisquer outros casos, pois que , se assim fosse, tê-lo-ia também dito expressamente .
Significativa é, outrossim, a diferente redacção que o legislador, em comparação com a que constava do pretérito nº1, do artº 7º , do DL nº 522/85 [ “ Excluem-se da garantia do seguro os danos decorrentes de lesões corporais sofridos pelo condutor do veículo seguro“ ], conferiu ao nº1, do artº 14º, do diploma actualmente em vigor, pois que, ao acrescer-lhe a referência “assim como os danos decorrentes daqueles”, tal permite concluir prima facie que mais não pretendeu o legislador - também - do que referir-se aos danos indirectos, que é o mesmo que dizer, aos “prejuízos reflexamente” sofridos por terceiros ou lesados mediatos , e dos quais fazem parte inquestionavelmente os danos não patrimoniais que sofrem os terceiros que se encontram ligados por estreitos laços de afeição à vítima que sofre directamente - o lesado imediato (12) - a lesão na sua pessoa ( cfr. nº 2, do artº 496º, do CC).
Este entendimento é aquele que, muito recentemente, foi perfilhado pelo Tribunal da Relação de Coimbra (13) , nele se concluindo que “ Nos termos do nº 1 do aludido art.º 14º do Dec. Lei nº 291/2007, de 21/08, estão agora excluídos da garantia do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, quer a indemnização pelo dano da morte do condutor do veículo, quer os danos morais da sua perda, sofridos pelas pessoas mencionadas nos nºs 2 e 3 do artº 496º do C. Civil “.
E, mais recentemente ainda, foi também ele - o referido entendimento - aquele que veio a merecer a adesão deste mesmo Tribunal da Relação de Guimarães, o que sucedeu no seu Acórdão de 18/6/2013, outrossim da 2 dª Secção Cível (14).
De resto, ainda no âmbito do direito - referente ao seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel - pretérito de responsabilidade civil automóvel , havia já quem ( vide v.g. o Ac. do STJ citado e de 8/1/2009, in Proc. nº 08B3722 ) sustentasse que, da evolução histórica da redacção do artigo 7.º do Decreto-Lei nº 522/85, o que resultava não era um qualquer fio condutor que apontasse para uma protecção especial dos familiares, mormente dos familiares do condutor, antes apontava tal normativo para uma preocupação do legislador em não os discriminar - os referidos familiares - quanto aos danos pessoais e em os afastar da sua exclusão por terem tal qualidade , não preenchendo assim o artº 7º o que as directivas deixaram em vazio quanto a favorabilidade dos familiares.
Mas, ainda que se defenda que, da actual e diferente redacção dos artºs 1º e 14º do DL Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, quando comparada com a que resultava dos pretéritos artºs 1º e 7º, do revogado DL nº 522/85 - e não obstante não desconhecer certamente o legislador que, no âmbito deste último diploma legal, existiam duas interpretações diametralmente opostas, sendo as decisões supra indicadas a prova provada da existência à data de uma verdadeira vexata quaestio - , nenhuma consequência se deve retirar/extrair em sede de interpretação da lei ( cfr. artº 9º, nºs 1 e 3, do CC ), impondo-se em última análise buscar a solução ao Código Civil ( em conformidade de resto com o disposto no artº 11º, nº1, alínea a), do DL Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto ), incontornável é que o Artº 496º, nº2, do CC , como bem se nota no Ac. do TRP de 19/3/2012 ( douto Aresto este que a primeira instância seguiu de perto ), alude a um dano indirecto [ de terceiro que não é o lesado imediato, ou aquele cujo direito foi ilicitamente violado pelo lesante - cfr. artº 483º, nº1, do CC - , aludindo a um dano moral por ricochete (15) ]
É assim que, como bem esclarecem Pires de Lima e Antunes Varela (16), a referência especial - no artº 496º, nº2, do CC “ (…) ao caso de o facto ilícito ter provocado a morte da vitima tem por objectivo designar o titular do direito à indemnização e as pessoas cujos danos ( não patrimoniais) devem então ser tomados em linha de conta “.
Ora, estando em causa a morte do condutor do veículo seguro responsável pelo acidente, não apenas não existe lesado imediato ( ou a vítima ), como a fortiori não existe o terceiro lesante e sobre o qual há-de incidir a obrigação de indemnizar, quer o dano directo ( nos termos do artº 483º, do Código Civil ) , quer o indirecto ( nos termos do artº 496º, nº2, do Cód. Civil ).
Em suma, como com clarividência se nota no Ac. do TRP de 19/3/2012, sendo incontornável que a responsabilidade civil por actos ilícitos pressupõe que o agente lesante e a vítima que sofre o dano que resulta do facto ilícito pelo primeiro praticado sejam pessoas distintas, não fazendo de resto sentido que possa haver dano indirecto sem dano directo imputável, como que em última análise falecem os pressupostos exigíveis da responsabilidade civil extracontratual por actos ilícitos ( antes brota o dano directo de facto praticado pelo próprio lesado imediato).
E, não existindo obrigação de indemnizar que impenda sobre o condutor do veículo seguro responsável pelo acidente, a fortiori não pode portanto sobre a Ré Seguradora incidir qualquer obrigação de indemnização, pois que , como é consabido, o contrato de seguro visa tão só cobrir a responsabilidade que incida sobre pessoa que seja civilmente responsável pela reparação de danos corporais ou materiais causados a terceiros ( cfr. artº 4º, nº 1, do DL ).
Em suma, em razão de tudo o supra exposto, temos para nós que bem andou a primeira instância em, socorrendo-se da posição sustentada no Ac do Tribunal da Relação do Porto, de 19.03.2012, julgar a acção totalmente como improcedente.
Destarte, a apelação improcede in totum, impondo-se a confirmação da sentença apelada.
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4.- Sumariando .
I - Se no âmbito do DL nº 522/85, de 31/12, “justificável“ era considerar que o regime legal do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel não excluía peremptoriamente - maxime o respectivo artº 7º - a reparação dos danos não patrimoniais sofridos pelos familiares de condutor de veículo automóvel falecido em acidente do qual foi o único responsável, já com o Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, tal entendimento passou a ser menos defensável.
II - Tendo o acidente ocorrido em finais de 2011, e dele resultando a morte do condutor do único veículo automóvel nele interveniente, e de cuja ocorrência foi o exclusivo responsável, improcede a acção intentada pelo seu cônjuge e filhos com vista à condenação da Seguradora - e no âmbito de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel - no pagamento de uma indemnização pelos danos não patrimoniais que sofreram com a morte daquele.
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5. Decisão.
Termos em que,
acordam os Juízes na 2 dª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, em , julgando a apelação improcedente:
5.1.- Manter a sentença recorrida.
Custas da apelação pelos apelantes.
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(1) Proferido no Proc. nº 1210/11.0TBVCT.G1, sendo Relatora Maria Rosa Tching, com um voto de vencido e disponível in www.dgsi.pt.
(2) Proferido no Proc. nº 08B3796 , sendo Relator Alberto Sobrinho, e disponível in www.dgsi.pt ..
(3) Proferido no Proc. nº 705/10.8 TBPFR.P1.S1,sendo Relator Álvaro Rodrigues e disponível in www.dgsi.pt ..
(4) Proferido no Proc. nº 265/10.0TVPRT.P1 ,sendo Relator José Eusébio Almeida e disponível in www.dgsi.pt.
(5) Proferido no Proc. nº 08B37222, sendo Relator João Bernardo e disponível in www.dgsi.pt .
(6) Aresto citado no Ac. do STJ indicado na nota 3.
(7) Cfr. o Ac. citado do TR de Guimarães, de 7/2/2012.
(8) Cfr. Ac. do STJ de 19/5/1970, citado por Pires de Lima e Antunes Varela in CC Anotado, Vol. I, 1979, pág. 49, nota 2.
(9) Cfr. Delfim Maya de Lucena, in Danos Não Patrimoniais, pág. 68/69.
(10) Cfr. Leite Campos, in “ Seguro de Responsabilidade Civil Fundada em Acidentes de Viação “ , Almedina, 1971, pág. 66.
(11) Como consta do respectivo Artº 1º, aprova ele “ o regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel e transpõe parcialmente para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio, que altera as Directivas n.os 72/166/CEE, 84/5/CEE, 88/357/CEE e 90/232/CEE, do Conselho, e a Directiva n.º 2000/26/CE, relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis.”
(12) Cfr. Delfim Maya de Lucena, ibidem, pág. 67.
(13) Ac. de 28/5/2013, in Processso nº 368/12.6TBTND.C1, sendo Relator Nunes Ribeiro e disponível in www.dgsi.pt.
(14) Proferido no Proc. nº 476/12.3TBBCL.G1, Edgar Valente e disponível in www.dgsi.pt.
(15) Utilizando a terminologia de Américo Marcelino, in Acidentes de Viação e Responsabilidade Civil, 2ª Edição, págs 211 e segs. r
(16) Ibidem, Vol. I, pág. 434, nota 3.
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Guimarães, 15/10/2013
António Santos
Figueiredo de Almeida
Ana Cristina Duarte