PERDA A FAVOR DO ESTADO
Sumário

Os bens apreendidos no processo penal, cuja detenção seja lícita por particulares, não podem ser declarados perdidos a favor do Estado em despacho proferido após a sentença.

Texto Integral

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães

*

I- Relatório

Por despacho de 28-11-2012 foi declarado perdido a favor do Estado o veículo de matrícula 28-76-..., utilizado pelo arguido António P... que havia sido anteriormente condenado na pena de 4 anos e 3 meses de prisão pela prática de crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art. 21º, n.º 1 do DL 15/93, condenação essa devidamente transitada em julgado.

Inconformado recorre o arguido apresentando as seguintes conclusões:

1- A questão suscitada no presente recurso é tão só saber se a viatura da marca Mitsubishi, modelo Pajero, matrícula 28-76-... deve ou não ser declarado perdida a favor do Estado.

2- O arguido entende, salvo o devido respeito, que o despacho ora posto em crise não tem qualquer fundamento legal, constituindo até uma violação do caso julgado. O Despacho de que ora se recorre, viola formal e materialmente, a lei.

3- Formalmente porque, por Douto Acórdão proferido nos autos no início do ano 2011, há muito que transitou em julgado, sendo certo que de tal decisão judicial consta expressamente que os veículos não são declarados perdidos a favor do Estado.

4- O teor do despacho de que ora se recorre, põe em causa a segurança jurídica, pois o arguido conformou-se e criou a expectativa de que, materialmente, a decisão foi a de lhe devolver a viatura, aliás ter-se entendimento diverso não faz qualquer sentido.

5- Na verdade, se fosse para ter em conta dos elementos de ordem material que ora são citados no Douto despacho, isto é, o facto de “O veículo apreendido (ter sido) utilizado pelo arguido António P... na actividade de tráfico de estupefacientes a que se dedicou, e, nomeadamente para proceder ao transporte, quando efectuava transacções dos estupefacientes, e outros artigos relacionados com a supra referida actividade e que lhe foram apreendidos no dia 8 de Janeiro de 2010”, deveria o Tribunal tê-lo declarada logo naquela altura (a quando da prolação do acórdão).

6- Em face de tudo o exposto, entende o arguido que, pelo facto de se ter verificado o trânsito em julgado da decisão que determinou a devolução dos veículos, na qual se inclui, naturalmente, a viatura do arguido recorrente, não se poderá agora por mero despacho, revogar-se tal decisão e ordenar-se a perda a favor do Estado, sob pena de violação dos direitos de defesa constitucionalmente consagrados.

7- Independentemente do exposto supra, não assiste, razão material ou de conteúdo na decisão ora tomada, inexistindo fundamento legal para se declarar perdido a favor do Estado o veículo do arguido recorrente.

8- Dos factos dados como provados e no que à viatura em causa respeita, resultou tão só demonstrado que no dia em que foi detido, recebeu do co-arguido Paulo César uma quantidade de produto estupefaciente, numa altura em que conduzia a viatura da marca Mitsubishi, Pajero. Nada mais de relevante existe.

9- o perdimento a favor do Estado de um veículo ao abrigo do art. 35º, nº 1 do DL 15/93, de 2/1 pressupõe uma verdadeira relação de instrumentalidade do bem relativamente ao crime, não se bastando com a simples utilização daquele na prática deste.

10- Dos factos provados acabados de expor e dados como provados no Acórdão e no que à viatura respeita resulta apenas a situação do dia da detenção do arguido. Nada mais. Neste sentido vide:

«No dia 08 de Janeiro de 20010, pelas 12h e 20m, António P..., conduzindo o veículo, de matrícula 28-76-..., de marca Mitsubishi, modelo Pajero dirigiu-se em direcção a Felgueiras, pelas E.N. 101-3, em direcção a Barrosas, freguesia de lagares, concelho de Felgueiras, onde se encontrou com o Paulo P... que se fazia transportar no veículo, de matrícula, 62-...-99, de matrícula Seat, modelo Ibiza.

Uma vez aí, o Paulo P... vendeu e entregou ao António P..., 100g de um produto estupefaciente, que após a realização de exame toxicológico se revelou ser cocaína, cfr Relatório de Exame de fls., recebendo deste em troca, a quantia de 3.700€ (três mil e setecentos euros) em notas do BCE.

Assim, no interior do veículo, de matrícula 28-76-..., conduzido por António P..., que lhe foi apreendido pela entidade policial, foram-lhe ainda apreendidos ainda os seguintes produtos e objectos, que se encontravam no seu interior…»

11- Não obstante o facto de o arguido se ter deslocado na viatura para adquirir produtos estupefacientes tal não significa de per si, que o veículo fosse um elemento preponderante da prática do crime, que o arguido não praticasse do mesmo modo o crime.

12- Não resultam dos factos provados matéria que o arguido iria utilizar este veículo automóvel para contactar clientes.

13- Além de que, não resulta como provado no douto acórdão que este veículo tivesse sido adquirido com dinheiro de proveniência ilícita, nomeadamente resultado da actividade de tráfico de droga.

14- Os factos dados como provados não são suficientes para declarar como perdido a favor do estado o veículo automóvel de matrícula provisória 28-76-....

15- Da factualidade apurada não é possível concluir que o veículo em causa, embora facilitando a prática do crime, tenha servido como condição sine qua non para a prática do crime por cuja autoria o arguido foi condenado.

16- Ao decidir nesta conformidade o Tribunal “a quo” violou o disposto no art.º 109º do Código Penal, razão pela qual se impõe a revogação do Douto despacho, devendo, em consequência, ser ordenada a imediata devolução da viatura ao recorrente.

*

Respondeu o MP pugnando pela improcedência do recurso.

Subidos os autos a Ex.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer no sentido da procedência do recurso, na linha da jurisprudência desta Relação no tocante ao tratamento da questão suscitada.

Colhidos os vistos cumpre decidir.

*

II- Fundamentação

Teor do despacho recorrido

“… Fls. 5865: O veículo apreendido foi utilizado pelo arguido António P... na actividade de tráfico de estupefacientes a que se dedicou, e, nomeadamente para proceder ao transporte, quando efectuava transacções dos estupefacientes, e outros artigos relacionados com a supra referida actividade e que lhe foram apreendidos no dia 8 de Janeiro de 2010.

Verifica-se, deste modo, que o veículo se encontra nas condições a que alude o art.35º, n.º 1 do Decreto-lei n.º 15/93, de 22.1

No acórdão o arguido António P... foi condenado na pena de cinco anos de prisão pela prática do crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art. 21º, n.º 1 do citado Decreto-lei n.º 15/93 e relegou-se para momento oportuno a decisão sobre o destino dos veículos apreendidos.

Assim atento o supra referido e a promoção que antecede, declaro o veículo com matrícula 28-76-... perdido a favor do Estado uma vez que o mesmo serviu ao arguido António P... para a prática do crime de tráfico de estupefacientes em que foi condenado – cfr. art. 35º, n.º1 do Decreto-lei n.º 15/93, de 22.1…”.

*

Apreciando

Preliminarmente dir-se-à que os fundamentos esgrimidos no recurso pelo arguido não colhem, não passando de alegações de retórica inconsequente tributárias de deficiente leitura e apreensão do que se mostra escrito no acórdão condenatório no tocante à perda dos veículos a favor do Estado (de facto em nenhum momento da peça em causa se declarou que os veículos não são declarados perdidos) e de deficiente interpretação do que seja o tipo de crime de tráfico e da forma por que o mesmo se consuma (no respeitante aos fundamentos substanciais da referida declaração de perda).

Não obstante, certo e seguro é que o acórdão condenatório nada decidiu, sem que fundamentasse tal omissão, no tocante à potencial perda dos veículos apreendidos nos autos, limitando-se a declarar no respeitante a tal matéria que oportunamente seria decidida, tal qual se colhe do teor da última folha da peça em causa (fls. 42 do presente recurso em separado), quando é certo que o dispositivo da sentença deve conter necessariamente a indicação do destino a dar a coisas ou objectos relacionados com o crime (art. 374º, nº3, al. c) CPP) e que o art. 186º, nº.2 CPP estipula, de modo claro e inequívoco, que logo que transitar em julgado a sentença, os objectos apreendidos são restituídos a quem de direito, salvo se tiverem sido declarado perdidos a favor do Estado.

Questão está, pois, em saber se, após a prolação da sentença, podem ainda ser declarados perdidos a favor do Estado os bens apreendidos em processo penal.

Sobre a matéria pronunciou-se já de forma concludente a Ex.ª PGA no respectivo parecer entendendo que tal não é possível, como ficou enunciado acima.

Estamos perante questão já múltiplas vezes apreciada pelos Tribunais da Relação em diversos arestos Ac. Rel. Porto de 30-6-2004, pr. 0413638, rel. Fernando Monterroso,

Ac. Rel. Porto de 17-5-2006, rel. Joaquim Gomes,
Ac. Rel. Guimarães de 12-1-2009, pr. 2200/08.2, rel. Filipe Melo,
Ac. Rel. Guimarães de 28-9-2009, pr. 2143/05.5 TBBCL, rel. Ana Paramés,
Ac. Rel. Guimarães de 17-1-2011, pr. 1168/03.0 PBGMR, rel. Mª Isabel Cerqueira.

e cuja solução encontrada tem sido de forma uniforme a enunciada no Ac. Rel. Évora de 16-4-2013, pr. 28/11.5GBORQ.E1, rel. Sénio Alves, disponível em www.dgsi.pt, que merece a nossa integral adesão.

Ali se escreveu, entre o mais, o seguinte:

“… Sabido que são as conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação que delimitam o âmbito do recurso - artºs 403º e 412º, nº 1 do CPP - cumpre dizer que em discussão nos presentes autos está o saber se:

a) Omissa na sentença condenatória a declaração de perdimento de bens apreendidos, é possível decidi-lo em despacho posterior?

b) Perante resposta afirmativa, justificava-se, no caso, a declaração de perdimento de tais objectos a favor do Estado?

No que à primeira questão diz respeito:

Estatui-se no art. 374º, nº 3, al. c) do CPP que a sentença termina pelo dispositivo que contém “a indicação do destino a dar a coisas ou objectos relacionados com o crime”.

De outro lado, manda o nº 2 do art. 186º do CPP que “logo que transitar em julgado a sentença, os objectos apreendidos são restituídos a quem de direito, salvo se tiverem sido declarados perdidos a favor do Estado”.

Foi precisamente com invocação deste último normativo que o recorrente peticionou a restituição dos objectos apreendidos, posto que não declarados perdidos na sentença condenatória (entretanto transitada em julgado).

Ora, num ponto todos estaremos seguramente de acordo: o momento correcto para dar destino aos objectos apreendidos é a sentença. É isso que claramente resulta dos dois dispositivos acabados de citar. E é isso que igualmente decorre do evoluir normal do processo: é na sentença, após fixação da matéria assente, que se há-de decidir se determinado objecto serviu ou estava destinado a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou se por este foi produzido e, bem assim, se o mesmo - pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso – oferece riscos sérios de ser utilizado no cometimento de novo facto ilícito, ou coloca em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas – art. 109º, nº 1 do Cód. Penal.

Ora, não tendo sido ordenado o perdimento a favor do Estado de determinados bens apreendidos no tal momento correcto que é a sentença, é possível fazê-lo em momento posterior, por simples despacho?

Há que distinguir:

Se o bem ou objecto em causa é, por sua própria natureza, algo cuja detenção é proibida por particulares, o seu perdimento a favor do Estado deve ser declarado em despacho autónomo, mesmo após o trânsito em julgado da sentença onde, com desrespeito pelo estatuído no art. 374º, nº 3, al. c), se omitiu o destino a dar-lhe. Com efeito, carece de qualquer razoabilidade permitir, por exemplo, que ao abrigo do disposto no art. 186º, nº 2 do CPP seja devolvido ao arguido condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, a droga que lhe foi apreendida, se o tribunal omitiu na decisão final o destino a dar-lhe.

Se, porém, o objecto tem, em si, natureza lícita (rectius, se em abstracto a sua detenção por particulares é permitida por lei), então a sentença é o único momento em que pode ser declarado o seu perdimento a favor do Estado, verificados os pressupostos de que depende essa decisão.

Entendimento contrário sempre consubstanciaria violação de caso julgado e, fundamentalmente, constituiria uma flagrante deslealdade processual e uma manifesta violação das garantias de defesa do recurso.

Sejamos claros:

Um arguido condenado numa pena de 40 dias de multa à razão diária de €5,50 (como sucedeu in casu) poderá não ter real interesse em recorrer da sentença. Ponderadas as hipóteses de sucesso de um eventual recurso e os custos inerentes a essa fase processual, a prudência aconselhará alguma contenção processual e uma resignação que, contudo, não significará necessariamente aceitação. Dito de outro modo: embora não concordando com a decisão, o arguido poderá considerar que “sai mais barato” pagar a multa em que foi condenado do que suportar os custos inerentes ao recurso e a um eventual decaimento no mesmo.

Ora, deixando assim transitar em julgado a sentença condenatória, se mais tarde for confrontado com uma declaração de perdimento de objectos com valor eventualmente superior ao próprio montante da multa em cujo pagamento foi condenado o seu direito ao recurso só formalmente lhe estará assegurado. Poderá efectivamente recorrer da decisão que declarou o perdimento (como sucedeu neste processo); porém, os pressupostos de que dependia a declaração de perdimento já se mostram fixados numa decisão anterior, transitada em julgado, contra a qual não pode agora reagir. Dito de outro modo: o prejuízo - o verdadeiro prejuízo - para o arguido surge numa decisão complementar da sentença proferida; mas a forma de contra a mesma reagir implicaria a impugnação da matéria de facto fixada numa sentença já transitada.

Posto que os objectos apreendidos sejam de detenção lícita por particulares (como sucede no caso em apreço), a omissão de pronúncia quanto ao destino a dar-lhes em sentença transitada em julgado determina, nos termos do art. 186º, nº 2 do CPP a sua restituição “a quem de direito”, isto é, aos seus proprietários.

Se o MºPº entendesse que tais bens deveriam ser declarados perdidos a favor do Estado, deveria – no tempo certo – interpor recurso da sentença que tal não decidira.

Em jeito conclusivo: transitada a sentença e nela se não decidindo o perdimento a favor do Estado de objectos apreendidos, de detenção lícita por particulares, deve ser dado cumprimento ao disposto no art. 186º, nº 2 do CPP, não sendo lícito determinar, por despacho posterior, o perdimento desses objectos …”.

Em suma, transitada a sentença e nela se não decidindo o perdimento a favor do Estado de objectos apreendidos, de detenção lícita por particulares, deve ser dado cumprimento ao disposto no art. 186º, nº 2 do CPP, não sendo possível determinar, por despacho posterior, o perdimento desses objectos.

*

III- Decisão

Nos termos expostos, acordam os juízes desta Relação em conceder provimento ao recurso interposto, revogando o despacho recorrido e ordenando que o mesmo seja substituído por outro que determine a entrega do veículo apreendido ao recorrente.

Sem tributação.