DEPOIMENTO INDIRECTO
PROIBIÇÃO DE PROVA
Sumário

I – A lei apenas proíbe a valoração dos depoimentos indiretos se o juiz não chamar a depor a pessoa indicada pela testemunha como fonte do conhecimento que transmitiu ao tribunal. Essencial é que se garanta o exercício do contraditório, através do interrogatório e do contrainterrogatório, quer da testemunha de ouvir dizer, quer da testemunha fonte.
II – Sendo a testemunha fonte chamada a depor, o depoimento indireto pode ser valorado, mesmo nos casos em que aquela se recusa, lícita ou ilicitamente, a prestar depoimento ou em que, por exemplo, diz de nada se recordar.

Texto Integral

- Tribunal recorrido:

Tribunal Judicial de Barcelos – 2º Juízo Criminal.
- Recorrente:
O arguido Manuel S....
- Objecto do recurso:
No Processo Comum com intervenção de Tribunal Colectivo n.º 693/12. 6JA BRG, do Tribunal Judicial de Barcelos – 2º Juízo Criminal, foi proferido acórdão, nos autos de fls. 489 a 509, no qual, no essencial e que aqui importa, se decidiu condenar o arguido nos termos seguintes:
“III - DECISÃO
Pelo exposto, os juízes que compõem este Tribunal Colectivo julgam a acusação procedente e, em consequência:
a) Condenam o arguido Manuel S..., pela prática de um crime de homicídio na forma tentada, na pessoa da ofendida Sara I... Maciel, p.p. pelos arts. 131º, 22º e 23º do CP, com a agravação prevista pelo nº 3 do art. 86º da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro, na pena de 6 (seis) anos de prisão;
b) Condenam o arguido Manuel S..., pela prática de um crime de homicídio na forma tentada, com a agravação prevista pelo nº 3 do art. 86º da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro, na pessoa da Maria C... Jacinto, p.p. pelos arts. 131º, 22º e 23º do CP, na pena de 4 (quatro) anos de prisão;
c) Condenam o arguido Manuel S..., pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p.p. pelo art. 86º, nº 1, al. c) da Lei nº 5/2006 de 23 de Fevereiro, na pena de 1 (um) ano e 3 (três) meses de prisão;
d) Em cúmulo jurídico, o arguido é condenado na pena única de 8 (oito) anos de prisão.
e) Condenam o arguido nas custas, com 2 UC de taxa de justiça.

Ao abrigo do disposto no art. 109º, nº 1 do CP, determina-se a perda a favor do Estado dos objectos apreendidos no auto, cujo auto se encontra a fls. 14.
Determino a recolha de amostras biológicas ao arguido para inserção na base de perfis de ADN, nos termos dos arts. 8º, nº 2 e 18º, nº 3 da Lei nº 5/2008, de 12/02, a qual será efectuada após trânsito em julgado.
D.N. (solicitando à entidade competente a sua realização).
Após trânsito, remeta boletins ao registo criminal.
Proceda ao depósito.

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Uma vez que as exigências cautelares que determinaram a aplicação ao arguido da medida cautelar de prisão preventiva não sofreram qualquer alteração, antes resultaram reforçadas com a presente decisão, determina-se que este continua a aguardar os ulteriores termos do processo e até ao trânsito em julgado desta decisão, sujeito à medida de coação de prisão preventiva - arts. 191º a 193º, 202º e 204º, a) e c) do CPP.”.

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Inconformado com a supra referida decisão o arguido Manuel S... dela interpôs recurso (cfr. fls. 548 a 606), terminando a motivação com as conclusões constantes de fls. 588 a 606, seguintes:
“1.- O Tribunal a quo deu como provados os factos enumerados de 1 a 27 da matéria de facto constante do douto acórdão recorrido, ou seja, em suma, que o recorrente desferiu um tiro que atingiu a ofendida Sara I... no ombro esquerdo e que apontou a arma na direcção da ofendida Maria C..., premiu o gatilho, sem que a arma disparasse por razões alheias à vontade do arguido ora recorrente e que, com essa actuação o arguido sabia e quis provocar a morte das ofendidas e deter a arma descrita.
2.- .Por tais factos entendeu o Tribunal a quo condenar o arguido na pena única de 8 anos de prisão resultante da condenação pela prática de dois crimes de homicídio na forma tentada (na pena de 4 anos de prisão na pessoa da Maria C... e na pena de 6 anos de prisão na pessoa da Sara I...) e de um crime de detenção de arma proibida, na pena de 1 ano e três meses de prisão.
3.- Nenhuma prova se fez que pudesse levar o Tribunal a chegar à conclusão que os factos referidos nas conclusões anteriores se tivessem provado, sendo que o Tribunal deu aqueles factos como provados através da seguinte dedução: “formou a sua convicção na apreciação crítica de toda a prova carreada para os autos, à luz das regras da experiência comum”.
4.- A prova existente nos autos relativamente ao alegado crime de homicídio, na forma tentada, na pessoa da ofendida Maria C..., não permite concluir pela imputação desse crime ao arguido, ora recorrente.
5.- Quanto ao alegadamente sucedido entre a ofendida Maria C... e o arguido, disseram a ofendida Sara I... e as testemunhas Laurinda M..., António C..., e José M..., de acordo com o resumo dos depoimentos constantes da fundamentação do douto acórdão recorrido:
A ofendida Sara I...:- (…) nesse momento tirou do bolso uma arma e a mãe, com medo, fugiu para a casa de banho”;(…) à terceira vez, como a arma não disparou, o arguido dirigiu-se para a casa de banho à procura de sua mãe, altura em que a testemunha aproveitou para fugir; (…) só passado cerca de 15 minutos é que saiu para o logradouro e ainda viu o arguido encostar a arma ao peito da mãe e tentar disparar mais uma vez, o que não aconteceu, e ouviu-o dizer “vou voltar para vos matar”.
A testemunha Laurinda M...: Apenas assistiu aos factos alegadamente ocorridos no logradouro do prédio e referiu expressamente que “não ouviu qualquer ruído saído da arma”.
A testemunha António C...:“aproximando-se da casa da Sara, apercebeu-se que o arguido tinha uma arma e que a Maria C... tentava desviar a arma para o tecto; (…) teve receio de intervir e retirou-se (…);Quando voltou já o arguido e a Maria C... se encontravam no logradouro, e o arguido andava de um lado para o outro, inquieto, pôs e tirou a arma do bolso (…) e viu, por duas vezes, o arguido dirigir-se à Maria C..., ficando próximo dela (atenta a posição em que se encontrava não pode ver se apontava a arma)” .
A testemunha José M...: Apenas presenciou igualmente os factos ocorridos no logradouro do prédio e no que a esta matéria respeita referiu expressamente que “não se recorda de ter ouvido algum barulho semelhante ao do premir o gatilho”.
6.-Relativamente ao sucedido entre o arguido e a ofendida Maria C..., ainda dentro de casa, a ofendida Sara I... nada sabe. Conforme resulta do teor do seu depoimento, quando o arguido alegadamente se dirigiu para a casa de banho, a ofendida Sara saiu para o exterior, alegadamente para pedir ajuda. Antes disso não viu o arguido apontar a alegada arma nem a disparar ou a tentar fazê-lo contra a sua mãe Maria C....- “Ele distraiu-se e eu aproveitei para fugir. Eu entrei para o vizinho. Que tinha um vizinho. Entrei-lhe pela casa dentro a pedir ajuda.” - Cfr. documentação audio dos actos da audiência, 10-09-2013, com início às 11.35.03, ao minuto 9.45 (…)“Entretanto eu deixei de ver. Fiquei lá dentro da casa. Já só ouvia a D. Laurinda e o Sr. Martinho a falar.”- Cfr. documentação audio dos actos da audiência, 10-09-2013, com início às 11.35.03, ao minuto 9.55
7.- Disse que, passados cerca de 15 minutos é que saiu para o logradouro e que:“ viu o arguido encostar a arma ao peito da mãe e tentar disparar mais uma vez, que não aconteceu, e ouviu-o dizer “vou voltar para vos matar”.(…)“Já só no fim, passando para aí um quarto de hora, que aquilo ainda durou bastante tempo, é que eu saí para fora da casa do vizinho, que foi quando comecei a ter dores. Saí para fora e ouvi o Ti Manel a dizer à minha mãe “eu vou voltar para vos matar”.- Cfr. documentação audio dos actos da audiência, 10-09-2013, com início às 11.35.03, ao minuto 10.10(…)“Foi a última coisa que vi e ouvi” – Cfr. documentação audio dos actos da audiência, 10-09-2013, com início às 11.35.03, ao minuto 10.26(…)“Não vi o que se passou entre os dois, Eu fui para a casa do vizinho e só no fim é que saí da casa do vizinho.”- Cfr. documentação audio dos actos da audiência, 10-09-2013, com início às 11.35.03, ao minuto 10.40
8.- É manifestamente falso que a ofendida Sara tenha saído para o logradouro e visto o arguido a encostar a arma à Maria C... ou a tentar disparar, o que foi desmentido categoricamente por todas as demais testemunhas ouvidas em sede de audiência quanto aos factos. - A testemunha Laurinda M... disse:“Saí o meu portão e já só ví a Sara a ir para a casa do vizinho com sangue do lado.”- Cfr. documentação audio dos actos da audiência, 10-09-2013, com início às 11.57.04, ao minuto 2.20(…) A instâncias da Meritissima Juiz “Mas a Sara também estava?” respondeu “Não, nessa altura já não estava a Sara.”- Cfr. documentação audio dos actos da audiência, 10-09-2013, com início às 11.57.04, ao minuto 12.33O que reafirmou : “Ela levou o tiro e veio para fora e foi para o vizinho. Depois estava lá dentro no vizinho.”- Cfr. documentação audio dos actos da audiência, 10-09-2013, com início às 11.57.04, ao minuto 12.40 “Quando ela veio para fora ele já tinha ido embora. Já lá não estava.”- Cfr. documentação audio dos actos da audiência, 10-09-2013, com início às 11.57.04, ao minuto 12.52(…) E repetiu: “Ela depois veio para casa onde estava a mãe, mas ele já tinha ido embora.”- Cfr. documentação audio dos actos da audiência, 10-09-2013, com início às 11.57.04, ao minuto 13.03 a 13.35 A testemunha António C... disse: “M.P: A D. Sara onde é que ela estava quando o Sr. Manuel saiu para o exterior? (…)Testemunha: Diz que ela a meteu para dentro da casa do vizinho”- Cfr. documentação audio dos actos da audiência, 10-09-2013, com início às 12.11.49, ao minuto 5.50 a 6.40(…) A instâncias da mandatária do arguido: “O Sr. disse que a sua esposa “enfiou” a Sara na casa do vizinho? Testemunha: Sim. Adv.- E o Sr. ia lá?Testemunha: Sim. Que aquilo ainda demorou a coisa de uns minutos.Adv.- E quando o Sr. ia lá ver a Sara, onde é que a Sara estava? Testemunha: Eu não sei se estava na cama ou no sofá. Eu sei que ela estava deitada. Adv.- Estava deitada dentro da casa? Não estava à porta a ver nada? Testemunha: Não. Ela estava lá dentro.”- Cfr. documentação audio dos actos da audiência, 10-09-2013, com início às 12.11.49, ao minuto 9.57 a 10.20; A testemunha José L... disse: A instâncias da Meritissima Juiz “MJ: Olhe, e a Sara, desde que se meteu no seu anexo, voltou a sair ou não? Testemunha: Só quando ele se foi embora. MJ: Só quando ele se foi embora? Testemunha: Sim. MJ: Não voltou a sair? Testemunha: Não. MJ: Só quando veio a ambulância? Testemunha: Só quando veio a ambulância? – Cfr. documentação audio dos actos da audiência, 10-09-2013, com início às 14.30.04, ao minuto 33.39
9.- Não consta do teor de qualquer dos demais depoimentos prestados em sede de audiência, que o arguido tenha proferido tais palavras naquele momento e tenha encostado a arma à Maria C.... A ofendida Sara I... não viu tal facto nem ouviu tais expressões da boca do arguido, primeiro, porque tal não sucedeu, o que resulta à evidência do teor global dos depoimentos das restantes testemunhas ouvidas à matéria de facto, segundo, porque não poderia ver nem ouvir, na medida em que, nesse momento, a ofendida Sara I... encontrava-se dentro da casa da testemunha José L..., como todas as demais testemunhas referiram, onde entrou ainda antes de o arguido e a Maria C... saírem para o logradouro, e de onde só saiu depois de o arguido já se ter ausentado do local.
10.- O que se verifica desde logo igualmente pelo teor do depoimento da testemunha
a) José L..., cujo resumo constante da fundamentação do douto acórdão recorrido refere expressamente que “segundo esta testemunha, a ofendida Sara I... também só saiu de sua casa quando o arguido foi embora.”- cfr. excerto de depoimento acima transcrito, que consta da documentação audio dos actos da audiência, 10-09-2013, com início às 14.30.04, ao minuto 33.39
b) No mesmo sentido depuseram as testemunhas Laurinda M... e António C..., que confirmaram que a ofendida Sara, desde que foi levada pela testemunha Laurinda M... para a casa da testemunha José L..., não mais de lá saiu até chegar a assistência médica do INEM e ser levada pela ambulância.- cfr. depoimentos supratranscritos, insertos na documentação audio dos actos da audiência, supra transcritos.
113.- A testemunha Laurinda M... também foi peremptória quando afirmou que só assistiu aos factos alegadamente ocorridos no logradouro do prédio, mas não viu nem ouviu o arguido disparar ou tentar disparar a alegada arma. -Cfr. depoimento inserto na documentação audio dos actos da audiência, 10-09-2013, com início às 11.57.04 - “ MP: A Sr.ª apercebeu-se se ele tentou disparar? Testemunha: Não. Não percebi.” – minuto 4.49 (…) “MP: Não sabe, então, se ele carregou n gatilho?Testemunha: isso não vi. Não ouvi. Não estive a deitar conta.”- minuto 8.29; O mesmo tendo referido a testemunha António C... : Cfr. depoimento inserto na documentação audio dos actos da audiência, 10-09-2013, com início às 12.11.49- “Mand.ª do arguido: Portanto, o senhor nunca viu se ele estava a apontar a arma ou a premir o gatilho? Testemunha: Não. Com o corpo dele não conseguia ver.”- minuto 10.58 (…) “MJ: O Sr. viu alguma vez o Sr. Manuel a engatar a arma, como o Sr. diz? Testemunha: Não. Vi-o a olhar para ela e a mexer nela, mas a puxá-la a trás como a engatar outra bala, não.” – minuto 12.30 (…) “MJ: O Sr. viu ele a engatar a arma para disparar alguma bala? Testemunha: Não. Francamente não.” – minuto 12.40
12.- A ofendida Maria C..., chamada a depor, recusou-se validamente a fazê-lo, ao abrigo do disposto no artigo 134º do CPP, pelo que, a condenação do arguido pelo crime de homicídio na forma tentada, na pessoa da ofendida Maria C..., estribou-se única e exclusivamente, no depoimento da testemunha António C... quando diz que “a ofendida Maria C..., mais tarde lhe confidenciou que, naquela ocasião, ouviu por duas vezes um clique da arma a disparar”, já que mais nenhuma prova foi produzida nos autos que permita alcançar tal conclusão e o juízo de certeza de que o arguido praticou esses factos.- “Este Tribunal ficou igualmente convencido da intenção do arguido em matar a sua companheira Maria C..., a quem apontou a arma (pelo menos uma das vezes encostou-a ao peito da ofendida) e premiu o gatilho por duas vezes, tal como a ofendida Maria C... contou à testemunha António P... (…)” – in acordão recorrido pág. in fine
13.- Conforme consta do relatório de perícia médico legal de fls….. a que foi sujeita a ofendida Maria C..., esta não apresentou qualquer dano físico que permita essa conclusão e o facto de o arguido disparar ou tentar disparar a alegada arma contra a ofendida Maria C... com a intenção de atentar contra a sua vida, no caso em apreço, não é susceptível de ser provado por qualquer dos meios de prova documental, pericial e testemunhal carreados para os presentes autos, e mencionados em sede de fundamentação do douto acórdão recorrido.
14.- Contrariamente ao que foi o entendimento vertido no douto acórdão recorrido, tal depoimento não pode ser valorado para efeito de prova e condenação do arguido nestes autos, pois, este raciocínio, baseado nas presunções judiciais a que se refere o artigo 351º do Código Civil não é admissível em direito processual penal.Aqui vigora o princípio in dubio pro reo segundo o qual em último termo o tribunal fica obrigado a reunir as provas necessárias à decisão, pelo que a falta delas não pode, de modo algum, desfavorecer a posição do arguido – Prof. Figueiredo Dias, in Dir. Proc. Penal, I Vol., 23º.
15.- Estatuem os art.º 129º e 128º nº1 do CPP as regras para admissão ou valoração desse tipo de depoimento indirecto em sede de processo penal, visando evitar que o arguido não se possa defender de uma hipotética testemunha que não está presente e que outra vem declarar que ouviu dizer. - Neste sentido o acórdão do STJ de 15 de Novembro de 2000, processo 2551/2000,.“ I - O que a lei pretende com o dispositivo do artigo 129º do CPP é evitar que o arguido se não possa defender. Sempre que as declarações aí previstas sejam feitas na presença dos arguidos, o seu direito de defesa está garantido” , Pode até estar o direito de defesa à disposição do arguido, mas não está garantida a legalidade. Nesse caso, estamos, sim, perante um meio de prova proibido previsto no art.º 126º nº2c) CPP.
16.- No mesmo sentido veja-se o douto acórdão do TRC de 14 de Outubro de 2009- TRC de 14-10-2009, processo, 63/09-3PECBR.C1, in: www.dgsi.pt, “O depoimento indirecto, o chamado depoimento de „ouvir dizer‟,só pode ser valorado nos termos do art.º 129º, e constitui uma excepção ao principio da imediação. Salvo nos casos de morte, anomalia psíquica ou impossibilidade de ser encontrada a pessoa de quem se ouviu dizer, é que o Juiz pode apreciar o depoimento de acordo com a sua livre apreciação e convicção, não sendo um dos casos de admissibilidade previstos no art.º129º, é um meio proibido de prova previsto no artº 126º.; e o acórdão do TRC de 26 de Novembro de 2008 - TRC de 26-11-2008, processo 27/05.6GCSRT.C1, in: www.dgsi.pt,; o Acórdão do STJ de 8 de Novembro de 2003, CJ nº166, ano XXVIII, TI, 9, 149 e ss, Apud CARLOSADÉRITOTEIXEIRA, “ depoimento indirecto e arguido”, CEJ nº 2, 2005; o acórdão do TRC de 12 de Abril de 2011 - TRC de 12-04-2011, processo 487/01.4TAVIS.C1 , in: www.trc.pt:
17.- Neste sentido a declaração do acórdão do Tribunal Constitucional de 8 de Julho de1999, decide pela constitucionalidade da valoração do depoimento indirecto dentro dos seguintes pressupostos:
1º-Se verificou a impossibilidade de ouvir a pessoa indicada como fonte pelas testemunhas de acusação
2º. Puderam ser contraditadas pelos recorrentes;
. Não havendo nenhum facto cuja prova tenha assentado exclusivamente nos referidos depoimentos indirectos;
4º. E sendo estes depoimentos apreciados pelo tribunal com a prudência que a impossibilidade de ouvir a fonte impõe e de acordo com as regras da lógica e daexperiência;
5º. é razoável e proporcionado que esses depoimentos possam ser valorados como meios de prova. Desde logo, porque não há diferença substancial entre a situação do arguido que não pode ser encontrado e a daquele que, chamado à audiência, invoca o seu direito ao silêncio para não depor. – in Ac. TC, de 8 de Julho de 1999, nº 440/99, sendo conselheiros Messias Bento, José de Sousa e Brito,Alberto Tavares da Costa, Maria dos Prazeres Beleza, Luís Nunes de Almeida, in: www.tribunalconstitucional.pt,
18.- Neste sentido o acórdão do TRP de 2 de Fevereiro de 2011- TRP de 02-02-2011, Rec.Penal nº 134/08.3TELSLB-A.P1-4ª Sec., in: www.trp.pr, “ Não vale como prova o depoimento que resultar do que se ouviu dizer a determinada pessoa, se esta, chamada a depor, se recusa validamente a fazê-lo, ao abrigo do disposto no art. 134º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal.“ A aceitação do depoimento indirecto nos termos plasmados na norma acabada de citar constitui uma restrição ao princípio constitucional da imediação da prova e só se admite nos casos excepcionais mencionadas no preceito em análise.
19.- No caso dos autos, não foi impossível ouvir a testemunha Maria C..., -que terá relatado à testemunha António C... o que sabia sobre os factos alegadamente ocorridos entre si e o arguido no dia a que se reportam os autos. Face ao depoimento indirecto prestado pela testemunha António C... foi novamente chamada a ofendida Maria da Conceção para prestar declarações que declarou não desejar prestar nos termos do art.º 134.º do CPP.
20.- O direito de recusa de depor como testemunha de Maria C... não pode ser subvertido pelo depoimento indirecto da testemunha António C... sobre o que ouviu dizer àquela, em confidência, ou desabafo, sob pena de violação dos citados artigos 126º, 128º e 129º do CPP, pelo que não pode admitir-se ou valorar-se o depoimentos prestado por aquela testemunha António C..., na parte em que consubstancia esse depoimento indirecto.
21.- O art.º 129.º do CPP tem a natureza de uma norma excepcional, pelo que não pode ser aplicada analogicamente (art.º 11.º do Código Civil).Valorar o depoimento indirecto de uma testemunha que o ouviu dizer de uma testemunha que, chamada a depor, se recusou validamente a depor seria esvaziar de conteúdo o direito consignado no art.º 134.º n.º 1 do CPP, e implica uma violação expressa a esses preceitos legais.
22.- As regras de experiência comum e a análise crítica da prova produzida efectuada pelo Tribunal a quo, não podem ir além da prova existente e produzida, nem substituir-se a essa mesma prova, nem pode o Tribunal socorrer-se dessa alegada experiência para formar a sua “convicção”, baseado em provas ilícitas e meras deduções, nem para suprir a inexistência de meios e prova concretos sobre um determinado facto, sob pena de manifesta violação dos mais elementares e basilares princípios que regem o nosso ordenamento juridico-penal, designadamente o principio in dubio pro reo.
23.- A alegada “intenção de matar” de que o Tribunal a quo ficou alegadamente “convencido”, não pode deduzir-se nem dar-se como provada com recurso a meras “presunções ou indícios”, como fez o douto acórdão recorrido, (Cfr. Prof. Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, vol. I, 6ª ed. Pag. 560, nota 1; Prof. Manuel de Andrade in “Noções Elementares de Processo Civil”, 2ª ed. revista e actualizada, pág. 240), que são proibidas em direito penal, onde vigora o princípio in dubio pro reo.- “À luz do princípio da investigação bem se compreende, efectivamente, que todos os factos relevantes para a decisão (quer respeitem ao facto criminoso, quer à pena), que apesar de toda a prova recolhida, não possam ser subtraidos à “dúvida razoável” do tribunal, também não possam considerar-se como “provados”. E se, por outro lado, aquele mesmo princípio obriga em último termo o tribunal a reunir as provas necessárias à decisão, logo se compreende que a falta delas não possa, de modo algum, desfavorecer a posição do arguido : um non liquet na questão da prova – não permitindo nunca ao Juiz, como se sabe, que omita decisão (art. 110º, 2 do EJ e art. 286º do CP), - tem de ser sempre valorado a favor do arguido. É com este sentido e conteúdo que se afirma o princípio in dubio pro reo” – Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, vol I, pág. 213.
24.- Tendo em conta o teor dos depoimentos das testemunhas, acima transcritos, é manifesto que nenhuma delas confirmou a tese apresentada pelo testemunho de ouvi dizer alegadamente reproduzido pela testemunha António C..., e, face ao seu teor, impõe-se que, sobre a matéria de facto ora em análise, seja proferida decisão diversa da recorrida.
25.- Face à prova produzida impõe-se, sem sombra de dúvida, que se deem como não provados os seguintes factos
3. O arguido levava consigo uma arma de fogo cujas características não foi possível apurar, mas apta a disparar munições de calibre 6.35 mm Browning
4. Ali chegado, o arguido saltou o muro e abriu a porta da referida habitação, encontrando a Maria C... e Sara I....
5. O arguido encetou então uma discussão com Maria C... acerca dos filhos de ambos.
6. Momentos depois, o arguido levou uma mão ao bolso e dali retirou uma arma de fogo que trazia consigo; de imediato, receando que o arguido lhe pudesse fazer mal, Maria C... fugiu para a cada de banho, onde se fechou.
(…)
10.Entretanto, de forma não concretamente apurada, o arguido conseguiu que Maria C... saísse da casa de banho e envolveu-se em nova discussão, puxando-lhe os cabelos.
11.Depois apontou a arma na direcção de Maria C... que, receando que o arguido disparasse sobre si, agarrou com ambas as mãos na arma que este tinha empunhada, apontando-a para o tecto.
12. De seguida, o arguido saiu para o exterior da residência e a Maria C... saiu também à procura da sua filha; o arguido, contudo, interceptou-a e,apontando-lhe a arma, premiu por duas vezes o gatilho, sem que a arma disparasse qualquer tiro, por razões alheias à sua vontade.
26.- Dando-se tais factos como não provados, impõe-se, consequentemente, a absolvição do arguido do crime de homicídio na forma tentada, na pessoa da ofendida Maria C....
27.- Relativamente à ofendida Sara I... e ao crime de homicídio na forma tentada alegadamente praticado contra a sua pessoa, atentos os depoimentos prestados em sede de audiência de julgamento, resulta desde logo do resumo dos mesmos contidos na fundamentação do douto acórdão recorrido e dos excertos supra transcritos que aqui se dão por reproduzidos, que ninguém, além da ofendida Sara I..., viu o arguido disparar a arma que alegadamente disparou o projectil que acertou a ofendida Sara.
28.- Esses factos não foram presenciados por mais ninguém, sem do que as circunstâncias em que ocorreram não foram concretamente apuradas.
29.- Todas as testemunhas ouvidas em sede de audiência de julgamento referiram que a Sara I..., logo após sair de casa, se refugiou na casa da testemunha José L..., e que só daí saiu na ambulância do INEM, já o arguido se tinha ausentado do local. Só a própria Sara I... diz o contrário, e refere que após 15 minutos de ter ido para a casa da testemunha José L..., saiu para o logradouro e viu o arguido apontar a arma à sua mãe, tendo ainda ouvido o mesmo a proferir a já mencionada expressão.
30.- Face a este depoimento da Sara, categoricamente desmentido pelas demais testemunhas, não pode entender-se que esses depoimentos são compatíveis entre si e que não há neles qualquer incongruência ou contradição de relevo. Estamos aqui face a um facto concreto: ou a Sara I... estava dentro de casa do José L..., ou não estava. Este facto, é de extremo relevo para aferir se, em concreto, a Sara I... assistiu ou não a parte dos factos sobre que depôs, e cujo depoimento foi valorado com vista à condenação do arguido.
31.- No mínimo, a dúvida estaria instalada. E em caso de dúvida, o arguido teria necessariamente de ser absolvido. É a aplicação do princípio in dubio pro reo. - É com este sentido e conteúdo que se afirma o principio in dubio pro reo - Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I Volume, pág. 213.
32.- Ao considerar válido o depoimento da testemunha José L... na parte em que refere que a Sara I... só saiu da sua casa após o arguido se ausentar do local, e considerar, por outro lado, válido o depoimento da Sara I... na parte em que afirma que saiu para o logradouro e viu o arguido a apontar a arma à Maria C..., o Tribunal a quo caiu em manifesta contradição entre os fundamentos e a decisão proferida. Além de ter efectuado uma manifesta errónea apreciação da prova produzida e da sua valoração.
33.- Esta contradição é manifesta a insanável e integra o vício previsto no art. 410º, nº 2, al. b) do CPP. Por essa razão impõe-se dar sem efeito o julgamento realizado e ordenar o reenvio dos autos, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 426º e 426º-A do CPP, a fim de proceder a novo julgamento.
34.- Para a hipótese de se entender não haver lugar à anulação do julgamento, os autos contêm a nosso ver elementos que conduzem à absolvição do recorrente.
35.- O Tribunal a quo baseou-se única e exclusivamente no que a testemunha Sara I..., ofendida, declarou. E, face à manifesta contradição do seu depoimento com os depoimentos das demais testemunhas ouvidas, na parte que acima se referenciou, essa prova não pode ter-se como credível e suficiente para condenar o arguido pelos factos de que vem acusado!
36.- Quer isto dizer que, face à precariedade da prova produzida e das contradições dos mencionados depoimentos, e à dúvida que subsiste sobre os mesmos, impõe-se que sejam dados como não provados os seguintes factos:
7- De seguida, o arguido apontou a arma na direcção de Sara I..., que se encontrava a não mais de três metros de si e desferiu um tiro, atingindo-a no ombro esquerdo; nessa altura, a Sara I..., temendo também pela vida e integridade física de sua mãe, dirigiu-se para o arguido pedindo-lhe que não fizesse mal à sua mãe, perguntando-lhe porque estava a agir daquele modo; de seguida, apontando novamente aquela arma à Sara e enquanto dizia: ”isto também é por tua culpa”, o arguido premiu por mais duas vezes o gatilho da arma que, por razões alheias à sua vontade, não disparou.
8- Em consequência dos factos descritos, a Sara I... sofreu dores e ferimentos que exigiram, para seu tratamento, hospitalização, e que lhe determinaram 10 dias de doença, com afectação da capacidade de trabalho profissional, para além de uma cicatriz permanente de 0,4 cm por 0,4 cm na face anterior da cabeça do úmero esquerdo e outra de 1 cm por 1 cm na região inferior da omoplata esquerda.
9- Aproveitando o momento de distracção do arguido, que se dirigia à casa de banho onde estava fechada a Maria C..., a Sara I... fugiu do local a fim de ir procurar ajuda.
37.- E, consequentemente, impõe-se a absolvição do arguido pelos crimes de homicídio na forma tentada, que vem acusado.
38- Na mera hipótese académica de não se entender pela absolvição do arguido dos crimes por que vem acusado, sempre se dirá que a pena aplicada extravasa as necessidades de prevenção geral e especial do caso concreto, sendo, por esse motivo, excessiva, tendo em conta os factos dados como provados nestes autos, em concreto, factos 16 a 27 da matéria de facto dada como provada no douto acórdão recorrido.
39.- Nos termos do estatuído no artigo 71º, nº 1 do Código Penal, a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. Prescrevendo o seu nº 2 que, na determinação concreta da pena o Tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo do crime, depuseram a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente as circunstâncias aí descritas.
40.- No caso presente não se pode determinar uma sanção, em nome da justiça e da equidade, sem usar os poderes extraordinários da atenuação especial da pena, nos termos do artigo 72º do Cód. Penal.
41.- De facto, muitas daquelas circunstâncias são de valor fortemente atenuativo e diminuem de forma acentuada a culpa do agente. Pelo que, na hipótese de se considerarem provados os factos constantes do douto acórdão recorrido, e se julgarem improcedentes os fundamentos supra vertidos, não deve o recorrente ser condenado, pela prática do crime de homicídio tentado, em pena superior a dois anos e dois meses de prisão.
42.- Atendendo, no entanto, ao facto de o recorrente ter tido um comportamento irrepreensível, anterior e posterior, à prática do crime, ter demonstrado arrependimento e, finalmente, ter colaborado desde o início com a justiça, a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, pelo que entendemos que o tribunal deverá optar por suspender-lhe a execução da pena de prisão, nos termos do artigo 50º do Cód. Penal.
43.- Mas mesmo que assim não fosse, ou seja, mesmo que não haja lugar no caso sub judice à atenuação extraordinária, entendemos que a pena aplicada peca por exagero. (cfr. Jorge de Figueiredo Dias “ Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime “ 1990, pág. 302).A esta ideia político – criminal responde o instituto da atenuação especial da pena, previsto no artº 72, nº 1 do Cód. Penal.
44.- Ora, no nosso caso, sempre com o devido respeito parece que não há agravantes. Os factos graves praticados pelo recorrente fazem parte do próprio tipo de crime cometido. Não constituem um plus. As atenuantes são inúmeras e todas elas ou a maior parte de valor fortemente atenuativo.
45.- Deste modo, mesmo que se mantenha a qualificação jurídica da conduta do recorrente, entendemos que a pena, nesse caso não deveria situar-se acima dos -2 anos, 1 mês e 18 dias de prisão.
46.- O mesmo se dizendo, mutatis mutandis, no que respeita ao crime de detenção e arma proibida, por que o arguido foi condenado. A darem-se como provados os factos que permitiram a condenação do arguido, o que não se aceita mas apenas por mera cautela se equaciona, sempre a pena de multa seria adequada às exigências concretas de prevenção geral e especial.
47.- No entanto, ainda que assim e não entendesse, o que não se aceita, optando-se pela pena privativa da liberdade, face aos factos em causa nos autos e todas as circunstâncias atenuantes que militam a favor do arguido, a apena a aplicar deveria situar-se sempre no limite mínimo, ou seja, aplicando-se ao arguido a pena de um ano de prisão. Pelas regras da punição do concurso de crimes, contida no artigo 77º do Cód. Penal, a moldura pela do concurso, neste caso, estaria entre 2 anos, 1 mês e 18 dias e 4 anos, 3 meses e 6 dias e de 500 dias de multa, pelo que se entende justa e adequada a pena única de 3 anos de prisão e multa de 500 dias.
48.- Por fim, a suspensão da execução da pena não depende de um qualquer modelo de discricionariedade, mas antes, como resulta dos termos de imposição do artº 50º, nº 1, do Cód. Penal ( “ o tribunal suspende”), do exercício de um poder- dever vinculado, devendo ser decretada, na modalidade que for considerada mas conveniente, sempre que se verifiquem os respectivos pressupostos. Entendemos, assim, que é de determinar in casu a suspensão da execução da pena, como impõe o artigo 50º, nº 1 do Cód. Penal.
49.- O douto acórdão de que se recorre, violou, assim, por errada interpretação, o disposto nos artigos 22º, 23º, 50º, 71º e 72º, todos do Código Penal, artigo 86º, nº 1 al. c) e 3 da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro, artigos 11º e 351º do Código Civil; e artigos 126º, nº 2 al. c), 128º, 129º, 134º, 410º, nº 2 al. b), 426º e 426º-A, todos do Cód. Proc. Civil.
NESTES TERMOS e nos melhores de direito aplicáveis, deve julgar-se procedente o presente recurso e, por via dele, revogar-se o douto acórdão de que se recorre, substituindo-se por outro que:
a) Considere como não provados os seguintes factos enumerados sob os nºs 1 a 15, inclusive, da fundamentação da matéria de factos contida no douto acórdão recorrido:
a)O arguido e Maria C... viveram com marido e mulher durante cerca de vinte anos até à data dos factos, tendo tido, nesse período, dois filhos, actualmente ainda menores de idade.
b) No dia 10/12/12, cerca das 13 horas, o arguido dirigiu-se à casa sita na Rua Lagar do Azeite, nº 42, em Barcelos, onde vivia a filha da Maria C..., Sara I..., sabendo que a Maria C... ali iria almoçar.
c) O arguido levava consigo uma arma de fogo cujas características não foi possível apurar, mas apta a disparar munições de calibre 6.35 mm Browning.
d) Ali chegado, o arguido saltou o muro e abriu a porta da referida habitação, encontrando a Maria C... e Sara I....
e) O arguido encetou então uma discussão com Maria C... acerca dos filhos de ambos.
f) Momentos depois, o arguido levou uma mão ao bolso e dali retirou uma arma de fogo que trazia consigo; de imediato, receando que o arguido lhe pudesse fazer mal, Maria C... fugiu para a cada de banho, onde se fechou.
g) De seguida, o arguido apontou a arma na direcção de Sara I..., que se encontrava a não mais de três metros de si e desferiu um tiro, atingindo-a no ombro esquerdo; nessa altura, a Sara I..., temendo também pela vida e integridade física de sua mãe, dirigiu-se para o arguido pedindo-lhe que não fizesse mal à sua mãe, perguntando-lhe porque estava a agir daquele modo; de seguida, apontando novamente aquela arma à Sara e enquanto dizia: ”isto também é por tua culpa”, o arguido premiu por mais duas vezes o gatilho da arma que, por razões alheias à sua vontade, não disparou.
h) Em consequência dos factos descritos, a Sara I... sofreu dores e ferimentos que exigiram, para seu tratamento, hospitalização, e que lhe determinaram 10 dias de doença, com afectação da capacidade de trabalho profissional, para além de uma cicatriz permanente de 0,4 cm por 0,4 cm na face anterior da cabeça do úmero esquerdo e outra de 1 cm por 1 cm na região inferior da omoplata esquerda.
i) Aproveitando o momento de distracção do arguido, que se dirigia à casa de banho onde estava fechada a Maria C..., a Sara I... fugiu do local a fim de ir procurar ajuda.
j) Entretanto, de forma não concretamente apurada, o arguido conseguiu que Maria C... saísse da casa de banho e envolveu-se em nova discussão, puxando-lhe os cabelos.
k) Depois aponto a arma na direcção de Maria C... que, receando que o arguido disparasse sobre si, agarrou com ambas as mãos na arma que este tinha empunhada, apontando-a para o tecto.
l) De seguida, o arguido saiu para o exterior da residência e a Maria C... saiu também à procura da sua filha; o arguido, contudo, interceptou-a e,apontando-lhe a arma, premiu por duas vezes o gatilho, sem que a arma disparasse qualquer tiro, por razões alheias à sua vontade.
m) O arguido não era, à data, titular de licença de uso e porte de arma ou detenção de arma (de qualquer categoria).
n) O arguido sabia e quis agir do modo descrito, designadamente provocar a morte da Sara I... e de Maria C... e deter a arma descrita.
o) Sabia que a sua conduta era proibida por lei.
b) Em consequência, absolva o recorrente dos crimes por que vem acusado;
Se assim se não entender,
c) Que não admita a valoração do depoimento indirecto prestado pela testemunha António C..., com os fundamentos supra vertidos, e, em consequência, dê como não provados os seguintes factos:

- Depois apontou a arma na direcção de Maria C... que, receando que o arguido disparasse sobre si, agarrou com ambas as mãos na arma que este tinha empunhada, apontando-a para o tecto.
- De seguida, o arguido saiu para o exterior da residência e a Maria C... saiu também à procura da sua filha; o arguido, contudo, interceptou-a e,apontando-lhe a arma, premiu por duas vezes o gatilho, sem que a arma disparasse qualquer tiro, por razões alheias à sua vontade.
- O arguido sabia e quis agir do modo descrito, designadamente provocar a morte da Sara I... e de Maria C... e deter a arma descrita.
- Sabia que a sua conduta era proibida por lei.
Mesmo que também assim se não entenda,
d) Que não admita a valoração do depoimento indirecto prestado pela testemunha António C..., com os fundamentos supra vertidos, e, em consequência, ordene o reenvio dos autos nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 426º e 426º-A do CPP, a fim de proceder a novo julgamento.
Finalmente, se assim se não entender, Se este tribunal superior mantiver a qualificação jurídica dos factos
e) condene o recorrente em pena de prisão não superior a dois anos e seis meses, pelo crime de homicídio privilegiado, nas penas de 2 anos, 1 mês e 18 dias de prisão por cada um desses crime e na pena de 500 dias de multa pelo crime de detenção de arma proibida, pelo que se entende justa e adequada a pena única de 3 anos de prisão e multa de 500 dias e que declare que essa pena seja suspensa na sua execução;
Assim decidindo farão V. Exas. a habitual JUSTIÇA.”.

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O M. P. respondeu, concluindo que o recurso do arguido não merece provimento (cfr. fls. 622 a 658).
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O recurso foi admitido por despacho constante a fls. 614.
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A Ex.mª Procuradora Geral Adjunta, nesta Relação no seu parecer (constante de fls. 669 a 675) conclui também que o recurso não merece provimento.

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Cumprido o disposto no artigo 417º, n.º 2, do C. P. Penal, veio o arguido a apresentar resposta, que aqui se dá como integralmente reproduzida.

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Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos, prosseguiram os autos para conferência, na qual foi observado todo o formalismo legal.

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- Cumpre apreciar e decidir:
- A - É de começar por salientar que, para além das questões de conhecimento oficioso, são as conclusões do recurso que definem o seu objecto, nos termos do disposto no art. 412º, n.º 1, do C. P. Penal.
- B - No essencial, no recurso, o arguido suscita as questões seguintes:
1- Impugna a matéria de facto dada como provada.
Alegando inexistência e errada valoração da prova;
2- Invoca os vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, al.s a), b) e c) do C. P. Penal.
3- Bem como violação do princípio in dubio pro reo;
4- Discorda da escolha e medida concreta das penas parcelares e única; pretendendo atenuação especial da pena e suspensão da sua execução.
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- C - Matéria de facto dada como provada e não provada, na 1ª instância e sua motivação - cfr. fls. 1047 a 1072:
II - FUNDAMENTOS
1. FACTOS
1.1. Factos provados com interesse para a decisão da causa
1. O arguido e Maria C... viveram como marido e mulher durante cerca de vinte anos até à data dos factos, tendo tido, nesse período, dois filhos, actualmente ainda menores de idade.
2. No dia 10/12/12, cerca das 13 horas, o arguido dirigiu-se à casa sita na Rua Lagar do Azeite, nº 42, em Barcelos, onde vivia a filha de Maria C..., Sara I..., sabendo a que Maria C... ali iria almoçar.
3. O arguido levava consigo uma arma de fogo cujas características não foi possível apurar, mas apta a disparar munições de calibre 6,35 mm Browning.
4. Ali chegado, o arguido saltou o muro e abriu a porta da referida habitação, encontrando a Maria C... e Sara I....
5. O arguido encetou então uma discussão com Maria C... acerca dos filhos de ambos.
6. Momentos depois, o arguido levou uma mão ao bolso e dali retirou a arma de fogo que trazia consigo; de imediato, receando que o arguido lhe pudesse fazer mal, Maria C... fugiu para a casa de banho, onde se fechou.
7. De seguida, o arguido apontou a arma na direcção de Sara I..., que se encontrava a não mais de três metros de si e desferiu um tiro, atingindo-a no ombro esquerdo; nessa altura, a Sara I..., temendo também pela vida e integridade física de sua mãe, dirigiu-se para o arguido pedindo-lhe que não fizesse mal à sua mãe, perguntando-lhe porque estava a agir daquele modo; de seguida, apontando novamente aquela arma à Sara e enquanto dizia: "isto também é por tua culpa", o arguido premiu por mais duas vezes o gatilho da arma que, por razões alheias à sua vontade, não disparou.
8. Em consequência dos factos descritos, a Sara I... sofreu dores e ferimentos que exigiram, para o seu tratamento, hospitalização, e que lhe determinaram 10 dias de doença, com afectação da capacidade de trabalho profissional, para além de uma cicatriz permanente de 0,4 cm por 0,4 cm na face anterior da cabeça do úmero esquerdo e outra de 1 cm por 1 cm na região inferior da omoplata esquerda.
9. Aproveitando um momento de distracção do arguido, que se dirigia à casa de banho onde estava fechada a Maria C..., a Sara I... fugiu do local a fim de ir procurar ajuda.
10. Entretanto, de forma não concretamente apurada, o arguido conseguiu que Maria C... saísse da casa de banho e envolveu-se em nova discussão, puxando-lhe os cabelos.
11. Depois apontou a arma na direcção da Maria C... que, receando que o arguido disparasse sobre si, agarrou com ambas as mãos na arma que este tinha empunhada, apontando-a para o tecto.
12. De seguida, o arguido saiu para o exterior da residência e a Maria C... saiu também à procura da sua filha; o arguido, contudo, interceptou-a e, apontando-lhe a arma, premiu por duas vezes o gatilho, sem que a arma disparasse qualquer tiro por razões alheias à sua vontade.
13. O arguido não era, à data, titular de licença de uso e porte de arma ou detenção de arma (de qualquer categoria).
14. O arguido sabia e quis agir do modo descrito, designadamente provocar a morte de Sara I... e de Maria C... e deter a arma descrita.
15. Sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Mais se provou:
16. Manuel Sá é natural de Barroselas, Viana do Castelo, freguesia onde viveu junto do agregado de origem, pais e 14 irmãos mais novos, num contexto sócio-económico e cultural humilde. Frequentou o ensino até à conclusão do 4º ano, altura em que abandonou os estudos para se iniciar laboralmente na serração onde o seu pai trabalhava.
17. Decorridos alguns anos, na procura de melhores condições laborais, foi trabalhar para França como servente de pedreiro, onde se manteve activo durante seis anos.
18. Em 1974 contraiu casamento, relação da qual tem três filhos, passando a residir numa casa por ele mandada construir num terreno pertença da sogra, construção desta e inacabada. Doze anos depois, emigrou para Andorra, onde trabalhou como motorista de pesados, e o cônjuge como cozinheira num hotel. Anos mais tarde, sem trabalho, regressou sozinho a Portugal, e empregou-se numa empresa de pedra/brita, como motorista de pesados, e comprou um tractor para trabalhar por conta própria nas suas terras e nas de outros, sempre que solicitado.
19. Envolveu-se afectivamente com a ofendida, a sua empregada de limpezas, 21 anos mais nova, passando a constituir agregado com ela e com os três filhos dela, tendo à data a mais nova três anos de idade. Desta união tem dois filhos. Decorridos cerca de dezassete anos de vida em comum, sofreu um Acidente Vascular Cerebral, que o impediu de continuar profissionalmente activo, apenas se dedicando a uma pequena agricultura de subsistência, e a auferir o subsídio de baixa médica.
20. Desde então, acentuaram-se os problemas de relacionamento conjugal e familiar, com uma relação nem sempre percepcionada como satisfatória, com queixas mútuas, e que levaram a companheira a abandonar o lar, deixando os filhos entregues ao pai. Maria C... não aceitou a proposta que lhe foi realizada pelas instituições sociais, de ser acolhida numa casa abrigo de apoio à vítima, tendo arrendado uma casa, igualmente no concelho de Barcelos, onde passou a viver uma nova relação afectiva.
21. Em 2011 a guarda dos filhos foi entregue ao arguido, tendo o regime de visitas sido fixado à mãe, com encontros quinzenais no estabelecimento de ensino, na presença de uma psicóloga. Em Julho de 2012, e na sequência de maus-tratos físicos em relação à filha Carina perpetrados pelo arguido, comportamentos que ele contextualiza como medidas educativas, os menores (actualmente com 16 e 12 anos de idade), foram retirados ao arguido pela Comissão de Protecção de Crianças e Jovens em Risco em 2011.
22. Cerca de um mês e meio antes dos factos, e apesar de algumas crises conjugais, o casal reatou a união marital, na casa morada de família, passando o arguido a partilhar o agregado com a companheira, a filha desta, Sara I..., o companheiro desta e filho, e a mãe da companheira, passando o casal a ter visitas regulares dos filhos menores. O arguido mantinha-se profissionalmente inactivo, subsistindo do subsídio de desemprego no valor de 396€ e do vencimento da companheira, equivalente ao salário mínimo nacional, decorrente da sua actividade profissional como auxiliar no Centro de Saúde local. É referenciado pela companheira como um individuo ambivalente, psiquicamente instável, mas afectuoso e solidário, que gosta de mimar e presentear a família, mas, igualmente, autoritário, com atitudes educacionais inflexíveis e rígidas sobre todos os descendentes da companheira e para com os próprios filhos.
23. O arguido é descrito pelos irmãos e respectivos agregados, como um indivíduo calmo, cordial, mantendo com estes um relacionamento familiar afectuoso. Dedicava o seu tempo livre a conviver com a família, designadamente, com os irmãos, com quem se encontrava assiduamente, e com elementos conhecidos da freguesia. Pontualmente, executava pequenas tarefas agrícolas de subsistência, em terreno próprio existente junto à residência.
24. Apesar das crises conjugais e do relacionamento familiar conturbado com os enteados e filhos, o arguido desejava manter a relação marital e reaproximar os filhos, reavendo a tutela dos menores.
25. No meio comunitário de residência é referenciado como uma pessoa educada, sociável e de agradável convívio.
26. A família de origem e o seu primeiro agregado constituído, ex-mulher e filhos, mantém para com o arguido uma postura de solidariedade, apoiando-o e visitando-o no Estabelecimento Prisional de Braga. Ao longo da sua prisão, verificou-se uma reaproximação da companheira, tendo esta regressado à casa morada de família e passando a visitá-lo de forma regular e assídua no Estabelecimento Prisional.
27. O arguido não tem antecedentes criminais.
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1.2. Com interesse para a decisão da causa, não se provou que:
- o arguido viveu com a ofendida Maria C..., como marido e mulher, apenas até Outubro de 2010, data em que se separaram;
- o arguido e a Maria C... caíram no sofá, onde o arguido encostou a boca da arma ao peito da Maria C... e premiu o gatilho duas vezes, não realizando qualquer disparo por razões alheias à sua vontade.
1.3. Motivação da decisão de facto
O Tribunal formou a sua convicção na apreciação crítica de toda a prova carreada para os autos, à luz das regras da experiência comum.
Assim, foram considerados os depoimentos das seguintes testemunhas:
- Sara I... Maciel, ofendida, que de forma precisa e coerente, merecendo credibilidade do Tribunal, recordou que no dia 10/12/12, pelas 13 horas, se encontrava com a sua mãe, Maria C..., na residência supra referida, onde habitava, quando se apercebeu que o arguido estava a chegar de carro; de seguida, não tendo tocado à campainha, nem batido no portão, saltou o muro e abriu a porta; já dentro de casa, o arguido começou a discutir com a mãe acerca dos filhos de ambos, discussão que ficou mais séria quando começaram a falar sobre a divisão das casas, altura em que o arguido, dirigindo-se à ofendida Maria C... disse: "ah é puta, então vais ver o que tenha aqui para ti!"; nesse momento tirou do bolso uma arma e a mãe, com medo, fugiu para a casa de banho; de imediato, o arguido puxou a culatra a trás e, apontando na sua direcção, disparou um tiro, quando se encontrava a uma distância próxima (por indicação da testemunha, não mais de 3 metros), atingindo-a no ombro; nessa altura pediu ao arguido para não fazer mal à mãe e perguntou porque estava a fazer aquilo, mas ele ainda tentou dar mais dois tiros, dizendo "a culpa disto também é tua!" - a testemunha referiu ter visto o arguido a puxar novamente a culatra atrás e ouviu dois cliques, apontando a arma na sua direcção; à terceira vez, como a arma não disparou, o arguido dirigiu-se para a casa de banho à procura de sua mãe, altura em que a testemunha aproveitou para fugir e pedir auxílio aos vizinhos; ao vizinho Luís disse para ir ajudar a mãe que "ele ia matá-la" e refugiou-se na casa deste; só passado cerca de 15 minutos é que saiu para o logradouro e ainda viu o arguido encostar a arma ao peito da mãe e tentar disparar mais uma vez, o que não aconteceu, e ouviu-o dizer "vou voltar para vos matar";
- Laurinda M..., reformada, vizinha da ofendida Sara I..., referiu que no dia dos factos, cerca de 13 horas, estava a almoçar com o marido quando ouviram um barulho na casa da Sara I...; saíram de casa e viu a Sara com sangue, aflita, pedindo para não deixar a mãe só e dizendo: "ele vai matá-la"; nessa altura, viu que era o "Manel" e a Maria C... que estavam a discutir e saíam de casa; pediu, então, ao arguido para ir embora, para "não fazer barulho" - quando já estavam no logradouro, viu-o tirar a arma do bolso e a apontá-la à Maria C..., perto do peito; a ofendida Maria C... ainda lhe pediu que se acalmasse e que se fosse embora, que depois falavam; ouviu o arguido dirigir-se à Maria C..., dizendo "a nossa vida vai acabar aqui"; depois, o arguido saiu do portão, mas voltou atrás e voltou a apontar a arma na direcção dela, a cerca de um palmo da Maria C...; não ouviu qualquer ruído saído da arma, mas admitiu ter problemas auditivos;
- António C..., reformado, vizinho da ofendida Sara I... e marido da testemunha anterior, que conhece o arguido desde criança, confirmou que no dia dos factos, estava a almoçar com a mulher quando ouviram um grande estrondo na casa da Sara I..., que fica por baixo da sua; saiu de casa e reparou que a Sara tinha sangue a escorrer pela roupa e dirigindo-se a ele disse-lhe: "vá ali que ele deu-me um tiro e quer matar a minha mãe!"; a testemunha Laurinda, sua mulher, acompanhou-a então para casa do Sr. José L... para ser assistida; aproximando-se da casa da Sara, apercebeu-se que o arguido tinha uma arma e que a Maria C... tentava desviar a arma para o tecto, arma esta que tinha cabelos dela enroscados à volta, talvez por terem andado a lutar; ainda se dirigiu ao arguido dizendo para ele parar com aquilo, mas teve receio de intervir, pelo que se retirou e foi dizer à testemunha José L... para que fosse chamar uma ambulância e a polícia; quando voltou, já o arguido e a Maria C... se encontravam no logradouro, e o arguido andava de um lado para o outro, inquieto, pôs e tirou a arma do bolso, manuseou a arma e olhava para ela como que surpreendido por a arma não ter disparado e viu, por duas vezes, o arguido dirigir-se à Maria C..., ficando próximo dela (atenta a posição em que se encontrava não pode ver se apontava a arma); ainda ouviu o arguido dizer à Conceição: "se tu não vens para cima (para casa) as nossas vidas ainda vão acabar"; esta testemunha acabou por concluir que "o homem (o arguido) não queria ir embora sem acabar com a vida dela (Maria C...)”; com relevância, esta testemunha disse ainda que a ofendida Maria C... mais tarde lhe confidenciou que, naquela ocasião, ouviu por duas vezes um "clique" da arma a disparar. Nesta parte, trata-se, sem dúvida, de um depoimento indirecto, na medida em que a testemunha não assistiu (ouviu!) a tal realidade, antes descrevendo o que posteriormente ouviu a ofendida Maria C....
Ora, apesar da regra contida no art. 128º, nº 1 do nos CPP, segundo a qual a testemunha é inquirida sobre factos de que possua conhecimento directo e que constituam objecto de prova, não está completamente arredado o testemunho de “ouvir dizer”, dispondo o art.129º do CPP "1. Se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas. 2.(…) 3. Não pode, em caso algum, servir como meio de prova o depoimento de quem recusar ou não estiver em condições de indicar a pessoa ou a fonte através das quais tomou conhecimento dos factos". O depoimento indirecto é, pois, uma excepção, só podendo ser valorado nos estritos termos previstos nesta norma.
No caso concreto foi chamada a depor sobre estes factos a ofendida Maria C..., assim se cumprindo o disposto no art. 129º, nº1, não obstante a sua nova recusa em depor ao abrigo da faculdade que lhe é conferida pelo art. 134º do CPP, como melhor consta da acta da sessão de julgamento. Assim sendo, o depoimento (indirecto) da testemunha António P... Cruz, na parte em que se reporta ao que a ofendida Maria C... lhe contou quanto aos dois "cliques" que ouviu da arma, será livremente apreciado pelo Tribunal, em conjugação com a restante prova produzida (esta posição é perfilhada, entre outros, pelos Ac. da RP de 7/11/07, RL de 24/1/12 e pelo Ac. RP de 7/11/07 (todos disponíveis in www.dgsi.pt) de onde se extrai o seguinte enxerto: "o depoimento que resultar do que se ouviu dizer a uma pessoa determinada não serve unicamente para levar à produção de um meio de prova directo, podendo valer como prova, por si. Basta que se verifique a morte, anomalia psíquica superveniente ou a impossibilidade de essa pessoa ser encontrada. O mesmo acontecerá se a pessoa determinada a quem se ouviu dizer se recusa a falar ou alega de nada já se lembrar. Com efeito, o que no nº 1 do art. 129º se diz é que o depoimento que resulte do que se ouviu dizer a pessoas determinadas só não pode, nessa parte, servir como meio de prova, se estas não forem chamadas a depor. Se essas pessoas a quem se ouviu dizer forem chamadas a depor, mas nada disserem, alegando esquecimento ou negando-se a depor, lícita ou ilicitamente, o testemunho de ouvir dizer vale como prova, só por si. O que a lei proíbe é a valoração do depoimento indirecto na falta da chamada a depor da pessoa a quem se ouviu dizer. Cumprido este requisito, desaparece a proibição de valoração do testemunho de ouvir dizer. E isto será assim porque a mera presença na audiência da pessoa a quem se ouviu dizer, ainda que remetendo-se ao silêncio, dá ao depoimento que resulta do que se lhe ouviu dizer, perante a possibilidade de confronto, uma força que não teria sem essa presença, sendo a apreciação deste depoimento e, em alguns casos, da própria postura de silêncio daquela, feita segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, nos termos do art. 127º do CPP (...)".
- José M..., ex-vizinho da ofendida Sara I..., narrou que no dia e hora em que ocorreram os factos estava em casa quando ouviu um estrondo; bateram-lhe à porta e viu a Sara que tinha levado um tiro; meteu-a dentro de casa e veio para fora com o telemóvel chamar a ambulância; foi nessa altura que viu o arguido agarrado à mãe da Sara e viu-o com uma coisa escura na mão, que na altura não sabia o que era, mas que tinha ideia que seria uma arma, pois a Sara tinha levado um tiro e viu o arguido a puxar qualquer coisa atrás, que talvez fosse a culatra da arma; nessa altura encostou essa "coisa", que depois percebeu que era a arma, ao peito da Maria C...; não se recorda de ter ouvido algum barulho semelhante ao do premir do gatilho, pois estava preocupado em chamar a polícia e nesse momento refugiou-se novamente em sua casa com medo do arguido, de onde só saiu quando o arguido foi embora; segundo esta testemunha, a ofendida Sara I... também só saiu de sua casa quando o arguido foi embora.
Todos estes depoimentos foram compatíveis entre si e consentâneos com o normal acontecer, não se evidenciando qualquer incongruência ou contradição de relevo, tendo todos merecido a credibilidade do Tribunal.
Foram ainda úteis e complementares desta já abundante prova, os documentos juntos aos autos, nomeadamente, o auto de apreensão de fls. 9, que refere o invólucro de munição, de calibre .25, que se encontrava em cima do balcão de madeira, um casaco de senhora, cor branca, com vestígios de sangue e um orifício ao nível do ombro direito compatível com a passagem de um projéctil, e cabelos que se encontravam em cima do tapete do lado interior da habitação, junto à porta da entrada, auto de apreensão de fls. 14, relativo a um projéctil de munição presumivelmente de calibre 6,35 retirado do obra da ofendida Sara I... e a um casaco em algodão, marca Berg, com manchas supostamente hemáticas e um pequeno orifício ao nível do ombro esquerdo, auto de inspecção ao local e fotografias de fls. 15 a 22 e 23 a 28, 142 a 144, relatório de clínica forense de fls. 164 e 165, 198 a 200 e exame pericial de fls. 283 a 286, relativo à cápsula deflagrada e projéctil, tendo o LPC concluído que ambos os elementos são de calibre 6.35 mm Browning, exame pericial de fls. 289 a 290 relativo à pesquisa de resíduos de disparo na camisola azul usada pelo arguido na altura dos factos, onde se conclui que a camisola apresentava vestígios consistentes com disparos de arma de fogo e que a presença das partículas recolhidas é compatível com disparo de arma do fogo por parte do arguido e que as partículas detectadas eram do mesmo tipo das partículas detectadas no elemento municial deflagrado, e informação de fls. 309 a 311 quanto ao facto de o arguido não ser titular de licença de uso e porte ou detenção de arma.
Perante todos estes elementos de prova e excluindo liminarmente a hipótese absurda de ter sido a própria Sara I... ou a sua mãe a desferir um tiro no seu ombro esquerdo, é indiscutível que o arguido, empunhando a arma que trazia, apontou-a à Sara I... e disparou com intenção de a matar - nesse sentido apontam não só o meio utilizado (uma arma de fogo apta a disparar munições de calibre 6.35 mm), como a proximidade a que o arguido apontou a arma à ofendida e o local do corpo atingido, tão perto de um orgão vital como o coração, só não tendo sido concretizada a sua vontade por motivos alheios à vontade do arguido, tanto é que este, depois de ter atingido a Sara no ombro ainda puxou a culatra atrás e premiu o gatilho por mais duas vezes tal como foi afirmado, de forma peremptória, pela ofendida Sara I.... Este Tribunal ficou igualmente convencido da intenção do arguido em matar a sua companheira Maria C..., a quem apontou a arma (pelo menos uma das vezes encostou-a ao peito da ofendida), e premiu o gatilho por duas vezes, tal como a ofendida Maria C... contou à testemunha António P..., não tendo a arma efectuado qualquer disparo por motivos alheios à vontade do arguido, que olhava para a arma e mostrava-se surpreendido por esta não ter efectuado qualquer disparo, o que, tudo conjugado com as demais circunstâncias (discussão e palavras dirigidas pelo arguido às ofendidas) e desenrolar dos factos, denota bem a referida decisão de matar.
Quanto à detenção da arma utilizada pelo arguido na prática do crime, foi relevante o depoimento da testemunha Sara I..., que afirmou ter visto o arguido a tirar a arma do bolso, e das restantes testemunhas que presenciaram o facto, pois que o viram empunhar tal arma e sair com ela do local. Não obstante a arma não ter sido encontrada, de acordo com o exame pericial à cápsula deflagrada e projéctil apreendidos é possível aferir que se trata de arma de fogo apta a disparar munições de calibre 6,35 mm. Por outro lado, como se referiu supra, da informação prestada a fls. 309 a 311 resulta que o arguido não era detentor de licença de uso de porte de arma para deter a arma que tinha na sua posse.
Para as condições sociais e familiares do arguido valeram os depoimentos das testemunhas Jaime S..., Rosa S... e Valeriano S..., irmãos do arguido, os quais mencionaram que consideram uma pessoa pacífica, boa pessoa, com quem mantêm bom convívio familiar, o que foi confirmado por Luis Taveira, amigo do arguido, que referiu que este sempre o ajudou quando foi preciso, mencionando que nunca o viu em conflitos, José C..., compadre do arguido, Vânia C... e Cidália C... (filhas daquele), os quais mencionaram que convivem regularmente com o arguido ao fim de semana e que o conhecem como pessoa de bem, sem que nunca tivessem ouvido falar mal dele, e o relatório social junto a fls. 476 e ss.
A ausência de antecedentes criminais do arguido é certificada a fls. 475.
Os factos não provados, nomeadamente o facto de o arguido ter encostado a boca da arma ao peito da Maria C... e premido o gatilho duas vezes, resultaram do facto de não se ter efectuado prova segura a esse respeito, já que a ofendida Sara I... não estava presente nessa altura dos acontecimentos e a ofendida Maria C... se recusou a falar.”.

*

- No essencial, no recurso, o arguido suscita as questões seguintes:
1- Impugna a matéria de facto dada como provada.
Alegando inexistência e errada valoração da prova.
Entende o arguido que se devem dar “(…) como não provados os seguintes factos
3. O arguido levava consigo uma arma de fogo cujas características não foi possível apurar, mas apta a disparar munições de calibre 6.35 mm Browning
4. Ali chegado, o arguido saltou o muro e abriu a porta da referida habitação, encontrando a Maria C... e Sara I....
5. O arguido encetou então uma discussão com Maria C... acerca dos filhos de ambos.
6. Momentos depois, o arguido levou uma mão ao bolso e dali retirou uma arma de fogo que trazia consigo; de imediato, receando que o arguido lhe pudesse fazer mal, Maria C... fugiu para a cada de banho, onde se fechou.
(…)
10.Entretanto, de forma não concretamente apurada, o arguido conseguiu que Maria C... saísse da casa de banho e envolveu-se em nova discussão, puxando-lhe os cabelos.
11.Depois apontou a arma na direcção de Maria C... que, receando que o arguido disparasse sobre si, agarrou com ambas as mãos na arma que este tinha empunhada, apontando-a para o tecto.
12. De seguida, o arguido saiu para o exterior da residência e a Maria C... saiu também à procura da sua filha; o arguido, contudo, interceptou-a e,apontando-lhe a arma, premiu por duas vezes o gatilho, sem que a arma disparasse qualquer tiro, por razões alheias à sua vontade.” (cls. n.º 25 do recurso).
- Mais refere o arguido que também não devem dados como provados estes factos (cls. n.º 36 do recurso):
10- De seguida, o arguido apontou a arma na direcção de Sara I..., que se encontrava a não mais de três metros de si e desferiu um tiro, atingindo-a no ombro esquerdo; nessa altura, a Sara I..., temendo também pela vida e integridade física de sua mãe, dirigiu-se para o arguido pedindo-lhe que não fizesse mal à sua mãe, perguntando-lhe porque estava a agir daquele modo; de seguida, apontando novamente aquela arma à Sara e enquanto dizia: ”isto também é por tua culpa”, o arguido premiu por mais duas vezes o gatilho da arma que, por razões alheias à sua vontade, não disparou.
11- Em consequência dos factos descritos, a Sara I... sofreu dores e ferimentos que exigiram, para seu tratamento, hospitalização, e que lhe determinaram 10 dias de doença, com afectação da capacidade de trabalho profissional, para além de uma cicatriz permanente de 0,4 cm por 0,4 cm na face anterior da cabeça do úmero esquerdo e outra de 1 cm por 1 cm na região inferior da omoplata esquerda.
12- Aproveitando o momento de distracção do arguido, que se dirigia à casa de banho onde estava fechada a Maria C..., a Sara I... fugiu do local a fim de ir procurar ajuda.”.
- Voltando a referir de fls. 602 a 605 os factos que entende não dever ser dados como provados.
A prova produzida em audiência de julgamento tendo sido gravada, tem como consequência que o recurso poderá versar matéria de facto e de direito.
Nos termos do disposto no artigo 428º, do Código de Processo Penal, "As relações conhecem de facto e de direito.".
Aos recorrentes, sempre que impugnem a matéria de facto, incumbe o ónus de dar concretização aos pontos de facto que consideram incorrectamente julgados e às provas que impõem decisão diversa da recorrida; aliás, sempre que as provas tenham sido gravadas, a concretização destas terá de ser feita por referência ao consignado em acta. Veja-se o que decorre dos nºs 3 e 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal .
O arguido faz alusão no seu recurso a prova, nomeadamente depoimentos, que em seu entender e convicção levariam a que se desse como apurada matéria diferente.
Como se refere no acórdão do STJ de 21/03/2003, proc. 024324, relator A. Paiva, "A admissibilidade da respectiva alteração por parte do Tribunal da Relação, mesmo quando exista prova gravada, funcionará assim, apenas, nos casos para os quais não exista qualquer sustentabilidade face à compatibilidade da resposta com a respectiva fundamentação”.

Assim, por exemplo:

a) apoiar-se a prova em depoimentos de testemunhas, quando a prova só pudesse ocorrer através de outro sistema de prova vinculada;

b) apoiar-se exclusivamente em depoimento(s) de testemunha(s) que não depôs(useram) à matéria em causa ou que teve(tiveram) expressão de sinal contrario daquele que foi considerado como provado;

c) apoiar-se a prova exclusivamente em depoimentos que não sejam minimamente consistentes, ou em elementos ou documentos referidos na fundamentação, que nada tenham a ver com o conteúdo das respostas dadas.".

Concordamos integralmente com o saber contido neste aresto. A sua visão é a interpretação fiel do que é um recurso sobre a matéria de facto.

Será que no caso em apreço se verifica uma qualquer das situações referidas na sentença proferida?

Cremos, objectivamente, que não.

O acórdão criticado é absolutamente transparente quanto às provas que determinaram a sua convicção. Analisou a prova, nomeadamente depoimentos em confronto e revelou o ponto de chegada da sua ponderação.

É que, como se sumariou no acórdão de 21/11/2001 da Relação de Coimbra, proc. 926/2001, relator Barreto do Carmo:

"I - O acto de julgar é do Tribunal, e tal acto, tem a sua essência na operação intelectual da formação da convicção. Tal operação não é pura e simplesmente lógico-dedutiva, mas, nos próprios termos da lei, parte de dados objectivos para uma formulação lógico-intuitiva.

II - Na formação da convicção haverá que ter em conta o seguinte:

2.1. - a recolha de elementos - dados objectivos - sobre a existência ou inexistência dos factos e situações que relevam para a sentença; dá-se com a produção da prova em audiência;

2.2 - sobre esses dados recai a apreciação do Tribunal - que é livre, art. 127º do Código Processo Penal - mas não arbitrária, porque motivável e controlável, condicionada pelo principio de persecução da verdade material;

2.3 - a liberdade da convicção, aproxima-se da intimidade, no sentido de que o conhecimento ou apreensão dos factos e dos acontecimentos não é absoluto, mas tem como primeira limitação a capacidade do conhecimento humano, e portanto, como a lei faz reflectir, segundo as regras da experiência humana;

III - A convicção assenta na verdade prático-juridica, mas pessoal, porque assume papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis - como a intuição.

IV - Esta operação intelectual não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis).

V - Para a operação intelectual contribuem regras, impostas por lei como sejam as da experiência, a percepção da personalidade do depoente (impondo­-se por tal a mediação e a oralidade), a da dúvida inultrapassável (conduzindo ao principio in dubio pro reo).

VI - A lei impõe princípios instrumentais e princípios estruturais para formar a convicção como sejam:

VII - O principio da oralidade, com os seus corolários da imediação e publicidade da audiência, é instrumental relativamente ao modo de assunção das provas, mas com estreita ligação com o dever de investigação da verdade juridico-prática e com o da liberdade de convicção - princípios estruturais; com efeito, só a partir da oralidade e imediação pode o juiz perceber os dados não objectiváveis atinentes com a valoração da prova.

VIII - A Constituição da República Portuguesa impõe a publicidade da audiência (art. 206Q) e, consequentemente o Código Processo Penal pune com a nulidade a falta de publicidade (art. 321º) publicidade essa que se estende a todo o processo - a partir da decisão instrutória ou quando a instrução já não possa ser requerida (art 86º)) querendo-se que o público assista (art. 86º/a); que a comunicação social intervenha com a narração ou reprodução dos actos (art. 86º/b); que se consultem os autos, se obtenha cópias, extractos e certidões (art. 86º/c)). Há um controlo comunitário quer da comunidade jurídica quer da social, para que se dissipem dúvidas quanto à independência e imparcialidade.

IX - A oralidade da audiência que não significa que não se passem a escrito os autos, mas que os intervenientes estejam fisicamente perante o Tribunal (art. 96º do Código Processo Penal) permite ao Tribunal aperceber-se dos traços do depoimento denunciadores da isenção, imparcialidade e certeza que se revelam por gestos, comoções e emoções da voz, por ex.:

X - A imediação que vem definida como a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de tal como que, em conjugação com a oralidade, se obtenha uma percepção própria dos dados que haverão de ser a base da decisão. É pela imediação, também chamado de princípio subjectivo, que se vincula o juiz à percepção, à utilização, à valoração e credibilidade da prova.

XI - A censura da forma de formação da convicção do tribunal não pode consequentemente assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção.

XII - Doutra forma, ... pretende-se uma inversão da posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão". ( www.trc.pt).

Já no que concerne à convicção, à livre convicção que baseia a decisão, ela é de natureza eminentemente pessoal porque assume papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva, mas também elementos racionalmente não explicáveis - como a intuição.

A credibilidade dos depoimentos prestados em audiência foi aferida pelo julgador justamente na conformação do predito princípio. Como se refere no acórdão do STJ de 15/12/2005, proc. 2951/05, relator Conselheiro Simas Santos, "(...) 4 - Se o recorrente impugna somente a credibilidade da testemunha deve indicar os elementos objectivos que imponham um diverso juízo sobre a credibilidade dos depoimentos, pois ela, quando estribadas elementos subjectivos e não objectivos é um sector especialmente dependente da imediação do Tribunal, dado que só o contacto directo com os depoentes situados na audiência de julgamento, perante os outros intervenientes é que permite formar uma convicção que não pode ser reproduzida na documentação da prova e logo reexaminada em recurso" (www.dgsi.pt).

Ora, in casu a forma como o recorrente conforma a prova com a sua especial e subjectiva visão acaba por o colocar em área reservada ao julgador.

Como se decidiu no acórdão do STJ de 27/02/2003, Proc. 140/03, relator o Conselheiro Carmona da Mota:

" ii. O valor da prova, isto é a sua relevância enquanto elemento reconstituinte do facto delituoso imputado ao arguido, depende fundamentalmente da sua credibilidade, ou seja, sua idoneidade e autenticidade.

iii. A credibilidade da prova por declarações depende essencialmente da personalidade, do carácter e da probidade moral de quem as presta, sendo que tais características e atributos, em princípio, não são apreensíveis ou detectáveis mediante o exame e análise das peças ou textos processuais onde as declarações se encontram documentadas, mas sim através do contacto pessoal e directo com as pessoas.

iv. O tribunal de recurso, salvo casos de excepção, deve adoptar o juízo valorativo formulado pelo tribunal recorrido".

Ou seja, os elementos determinantes para a convicção do julgador assumem distinto cariz, crucial é que o mesmo, com absoluta transparência, os evidencie para que se alcance o juízo lógico que presidiu à decisão.

Visto isto, resulta evidente que a prova, nomeadamente testemunhal, referida pelo recorrente como fundamento para a pretendida alteração da matéria de facto foi considerada, foi ponderada pelo julgador no acórdão que proferiu. Sob o horizonte jurídico do princípio da livre convicção - art. 127º do C.P.Penal.

No sistema vigente, os contornos funcionais do recurso induzem a existência de uma instância de controle em que o tribunal se encontra investido de uma actividade crítica cujo objecto é a decisão impugnada, não se tratando, portanto, de um novum iudicium, destinado a substituir ex integro o precedente.
A configuração do segundo juízo como revisio prioris instantiae ("o recurso em matéria de facto não se destina a um novo julgamento, mas constitui apenas um remédio para os vícios do julgamento em 1ª instância", observa o Prof. Germano Marques da Silva, Forum Iustitia) significa que esta Relação - em que o contacto com as fontes de prova é amplamente mediato - só poderia alterar a matéria de facto se acaso surpreendesse nos autos, prova documental ou pericial, ou nos depoimentos prestados em audiência, a existência de um qualquer elemento probatório que, pela sua irrefutabilidade, não pudesse ser afectado pelo princípio da imediação.
O recorrente limita-se a dar a sua versão dos factos, não a fazendo acompanhar por nenhuma argumentação fundamentada num estudo preciso de molde a necessariamente implicar e impor alteração da matéria de facto fixada, pelo que nesta área não se descortina matéria que contraste com a resultante do convencimento expresso pelo tribunal de 1ª instância, e que assim se terá como consolidada.

Efectivamente, o recorrente não identifica as provas que impõem decisão diversa. Note-se que o verbo usado pela lei é precisamente o verbo impor, o que, no caso, afasta a valia das provas que possam eventualmente sugerir ou até autorizar outra leitura das mesmas. Havendo mais que uma versão possível para os factos, adoptando o decisor uma, importa que o mesmo fundamente a sua opção de forma racional, lógica e consistente, observando, sempre, o que determina o art. 127º referido: atentando às regras da experiência e, também, à sua livre convicção, que como é consabido, é de natureza subjectiva. A fundamentação da sentença é, pois, a objectivação da livre convicção e através dela se afasta o arbítrio e mero subjectivismo.
A convicção quanto aos factos apurados existirá quando o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável.
Com efeito, também a prova não é avaliada de forma isolada, antes, tem de ser toda relacionada e conjugada, podendo o julgador através desse exercício chegar a conclusões que não seriam permitidas por cada um dos elementos de prova, se considerados isoladamente. Porém, da prova produzida, nomeadamente depoimentos, conjugados, tal como se mostram referenciados na motivação do acórdão recorrido, avaliados à luz das regras da experiência comum, é possível extrair a conclusão fáctica em causa.
Mas vejamos detalhadamente:
1.1 - Quanto ao crime de homicídio na forma tentada na pessoa da ofendida Maria C....
Refere o arguido que “A prova existente nos autos relativamente ao alegado crime de homicídio, na forma tentada, na pessoa da ofendida Maria C..., não permite concluir pela imputação desse crime ao arguido (…)” (cls. n.º 4 a fls. 588).
O recorrente põe em causa o depoimento da ofendida Sara I... porquanto invoca que o mesmo foi contrariado pelas demais testemunhas de acusação na parte em que a mesma alega ter saído “de casa da testemunha José L...” para o logradouro e ainda visto o arguido a encostar a arma ao peito da ofendida Maria C..., tendo tentado disparar uma vez mais a arma, o que não sucedeu e ouvindo-o dizer “vou voltar para vos matar”.
O Tribunal a quo considerou os depoimentos das testemunhas de acusação entre si compatíveis.
Estamos de acordo com este ponto de vista, afigurando-se-nos de que algumas divergências entre eles existentes, maxime a supra indicada pelo recorrente, sejam importantes.
Como bem salienta o Ministério Público na resposta que apresentou na 1ª instância, a divergência quanto ao ponto supra explicitado pode e deve ser explicada “(…) em função do foco de interesse das testemunhas, que não era, no momento, o de saber onde estava a Sara I..., mas antes de ver o que o recorrente, empunhando uma arma, fazia” (fls. 648).
Ora, tendo em conta tal foco de atenção por banda das testemunhas, é admissível que a ofendida Sara I... tenha saído para o logradouro sem que as restantes pessoas ali presentes logo disso se tenha apercebido e ainda tenha visto o arguido agir contra a ofendida Maria C... nos termos supra assinalados.
E desde já se refere que não existe destarte também qualquer contradição entre os fundamentos e a decisão proferida, não se vislumbrando a ocorrência do vicio processual previsto no art.º 410.º, n.º2, al. b) do C. P. Penal, invocado pelo arguido o qual tem que ser aferido face ao texto da decisão recorrida.
Sendo certo que de acordo com o acórdão proferido pelo Tribunal a quo, o depoimento da ofendida Sara I... mereceu credibilidade.
Por outro lado, no sentido de que o arguido atentou contra a vida da ofendida Maria C..., existem também os depoimentos das testemunhas Laurinda M..., António C... e José M..., os quais como bem explicita o Ministério Público na respostas que apresentou na 1ª instância:
“As testemunhas não ouviram qualquer ruído saído da arma empunhada pelo arguido, mas a testemunha Laurinda M..., que admitiu ter problemas auditivos, declarou que, no logradouro, viu o arguido tirar a arma do bolso e a apontá-la à Maria C..., perto do peito, ouviu a ofendida Maria C... pedir ao arguido que se acalmasse e que se fosse embora e ouviu o arguido dirigir-se à Maria C..., dizendo "a nossa vida vai acabar aqui", saindo o arguido depois do portão, mas voltando atrás e para apontar novamente a arma na direção dela, a cerca de um palmo da Maria C... (ficheiro áudio 20130910115704_233744_64180:03m50s a 04m50 e 05m 10s a 08m00s)
Por sua vez, a testemunha António C..., além do que ouviu dizer à ofendida Maria C... num momento posterior, declarou que, no logradouro, o arguido andava de um lado para o outro, inquieto, pôs e tirou a arma do bolso, manuseou a arma e olhou para ela como que surpreendido por a arma não ter disparado e, por duas vezes, dirigiu-se à Maria C..., ficando próximo dela, sem que tenha podido ver, atenta a posição em que se encontrava se o arguido apontou ou não a arma à ofendida, mas ainda ouviu o arguido dizer à Maria C...: "se tu não vens para cima (para casa) as nossas vidas ainda vão acabar" (ficheiro áudio 20130910121149_233744 _64180: 04m20s a 05m35s).
Ainda sobre o que se passou no logradouro, a testemunha José M... disse que viu o arguido agarrado à mãe da Sara (a ofendida Maria C...), viu-o com uma coisa escura na mão, que na altura não sabia o que era, mas que tinha ideia que seria uma arma, pois a Sara tinha levado um tiro e viu o arguido a puxar qualquer coisa atrás, que talvez fosse a culatra da arma, e, nessa altura, a encostar a "coisa", que depois percebeu que era a arma, ao peito da Maria C... (ficheiro áudio 20130910143002_233744 _64180: 03m00s a 07m25s)..” (fls. 648 e 649).
Acresce, finalmente, o depoimento da testemunha António C... na parte em que descreveu o que á posteriori ouviu da própria ofendida Maria C....
Pretende o recorrente que este depoimento indirecto não pode ser valorado para efeitos de prova e condenação do mesmo nos autos, visto a ofendida Maria C..., uma vez chamada a depor se ter recusado validamente a fazê-lo nos termos do art. 134.º do C. P. Penal.
No entanto, conforme decorre do já exposto supra, a nosso ver, a condenação do arguido pelo crime de homicídio tentado na pessoa desta ofendida não se baseou única e exclusivamente neste depoimento indirecto, mas também nele se fundou mas sem que com isso se tenha infringido qualquer normativo legal.
Vejamos porquê.
Estabelece o art. 129.º, do C. P. Penal
1 - Se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas.
2 - O disposto no número anterior aplica-se ao caso em que o depoimento resultar da leitura de documento de autoria de pessoa diversa da testemunha.
3 - Não pode, em caso algum, servir como meio de prova o depoimento de quem recusar ou não estiver em condições de indicar a pessoa ou a fonte através das quais tomou conhecimento dos factos.”.
Decorre do preceito em apreço que a proibição de testemunhos de ouvir dizer ou de outiva, não foi, todavia, plasmada de forma absoluta, com efeito, e como se salientou no acórdão deste TRG de 05-03-2012, por nós relatado (Proc.º n.º 376/10.1TA PTL.G1, in www.dgsi.pt) “(…) a lei não proíbe de forma absoluta a produção de depoimentos indirectos. O que o código proíbe é a valoração de tais depoimentos, se o juiz não chamar a depor a pessoa indicada pela testemunha como fonte do conhecimento que transmitiu ao tribunal. No entanto, o depoimento indirecto pode ser valorado sempre que a inquirição da fonte não seja possível, por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de ser encontrada.
Assim, chamando o juiz a fonte a depor, o depoimento indirecto pode ser valorado, mesmo nos casos em que a aquela se recusa, lícita ou ilicitamente, a prestar depoimento ou, por exemplo, diz de nada se recordar já (cfr. Ac. da R. do Porto de 07/11/2007, proc. nº 0714613, in http://www.dgsi.pt).
É que nesta situação é possível o exercício do contraditório na audiência de julgamento, através do interrogatório e do contra-interrogatório, quer da testemunha de ouvir dizer, quer da testemunha fonte, assim se assegurando o respeito pela estrutura acusatória do processo criminal, imposto pelo art. 32º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa.
E a conformidade do art. 129º, nº 1, do C. Processo Penal, ao admitir, nas circunstâncias aí previstas, a valoração do hearsay evidence, com a Lei Fundamental tem vindo a ser afirmada pelo Tribunal Constitucional”.
Este é, o entendimento maioritário da jurisprudência, cfr. a este respeito a bem elaborada resposta do M. P. na 1ª instância a fls. 637 a 640 na qual é identificada jurisprudência no sentido propugnado e onde figura o sobredito acórdão por nós prolatado.
In casu, o Tribunal chamou a depor a pessoa indicada pela testemunha António C..., como fonte do conhecimento que transmitiu ao Tribunal.
A circunstância de tal pessoa – a ofendida Maria C... - se ter recusado licitamente a prestar declarações em nada impede, por consequência que o depoimento indirecto da testemunha António P... possa ser valorado.
Não ocorreu destarte qualquer violação do disposto nos artigos 126.º a 129.º do C. P. Penal, nem tal implicou que se esvaziasse de conteúdo o direito contemplado no art. 134.º, n.º 1 do C. P. Penal.
O depoimento indirecto em apreço foi, pois, devidamente admitido, devendo ser valorado de acordo com o principio da livre apreciação da prova previsto no art. 127.º do C. P. Penal, isto é, coube ao tribunal aprecia-lo segundo as regras da experiência e a sua livre convicção.
Quanto á intenção de matar por parte do arguido em relação á ofendida Maria C..., entendemos que sobre esta matéria a resposta afirmativa da 1ª instância também não merece reparos.
Na verdade, provou-se que foi também em relação a ela a quem o arguido “(…) apontou a arma (pelo menos uma das vezes encostou-a ao peito da ofendida) e premiu o gatilho por duas vezes, tal como a ofendida Maria C... coutou á testemunha António P..., não tendo a arma efectuado qualquer disparo por motivos alheios á vontade do arguido que olhava para a arma e mostrava-se surpreendido por esta não ter efectuado qualquer disparo, o que, tudo conjugado com as demais circunstâncias (discussão e palavras dirigidas pelo arguido ás ofendidas) e desenrolar dos factos, denota bem a referida decisão de matar” (cfr. o Ac. recorrido a fls. 498 e 499).
1.2 - Quanto ao crime de homicídio na forma tentada na pessoa da ofendida Sara I....
Refere o arguido a fls. 597 que:
“27.- Relativamente à ofendida Sara I... e ao crime de homicídio na forma tentada alegadamente praticado contra a sua pessoa, atentos os depoimentos prestados em sede de audiência de julgamento, resulta desde logo do resumo dos mesmos contidos na fundamentação do douto acórdão recorrido e dos excertos supra transcritos que aqui se dão por reproduzidos, que ninguém, além da ofendida Sara I..., viu o arguido disparar a arma que alegadamente disparou o projectil que acertou a ofendida Sara.
28.- Esses factos não foram presenciados por mais ninguém, sem do que as circunstâncias em que ocorreram não foram concretamente apuradas.”.
Conforme já se disse o Tribunal a quo considerou que esta ofendida depôs de forma verossimil.
Para além disso e como uma vez mais bem salientou o M. P. na sua resposta na 1ª instância “(…) o tribunal “a quo” ponderou designadamente, o declarado de António C... sobre o modo como foi abordado na altura pela Sara I... e o que viu quando se dirigiu à casa desta - a testemunha, como consta do acórdão recorrido, disse que estava a almoçar com a mulher quando ouviram um grande estrondo na casa da Sara I..., que fica por baixo da sua, que saiu de casa e reparou que a Sara tinha sangue a escorrer pela roupa, tendo-lhe dito "vá ali que ele deu-me um tiro e quer matar a minha mãe!", que, aproximando-se da casa da Sara, apercebeu-se que o arguido tinha uma arma e que a Maria C... tentava desviar a arma para o teto, arma esta que tinha cabelos dela enroscados à volta, talvez por terem andado a lutar, e que ainda se dirigiu ao arguido dizendo para ele parar com aquilo, mas teve receio de intervir (ficheiro áudio 20130910121149_233744_64180: 02m55s a 04m10s)” (fls. 649 e 650).
Também no mesmo sentido não podem olvidar-se os restantes meios de prova constantes dos autos mencionados no acórdão recorrido tais como “(…) o auto de apreensão de fls. 9, que refere o invólucro de munição, de calibre .25, que se encontrava em cima do balcão de madeira, um casaco de senhora, cor branca, com vestígios de sangue e um orifício ao nível do ombro direito compatível com a passagem de um projéctil, e cabelos que se encontravam em cima do tapete do lado interior da habitação, junto à porta da entrada, auto de apreensão de fls. 14, relativo a um projéctil de munição presumivelmente de calibre 6,35 retirado do obra da ofendida Sara I... e a um casaco em algodão, marca Berg, com manchas supostamente hemáticas e um pequeno orifício ao nível do ombro esquerdo, auto de inspecção ao local e fotografias de fls. 15 a 22 e 23 a 28, 142 a 144, relatório de clínica forense de fls. 164 e 165, 198 a 200 e exame pericial de fls. 283 a 286, relativo à cápsula deflagrada e projéctil, tendo o LPC concluído que ambos os elementos são de calibre 6.35 mm Browning, exame pericial de fls. 289 a 290 relativo à pesquisa de resíduos de disparo na camisola azul usada pelo arguido na altura dos factos, onde se conclui que a camisola apresentava vestígios consistentes com disparos de arma de fogo e que a presença das partículas recolhidas é compatível com disparo de arma do fogo por parte do arguido e que as partículas detectadas eram do mesmo tipo das partículas detectadas no elemento municial deflagrado” (fls. 497 e 498).
Da conjugação de todos estes elementos resulta ter o arguido atentado contra a vida da ofendida Sara I....
Não subsistindo quaisquer dúvidas quando ao seu intuito homicida, atento o meio utilizado (arma de fogo pronta a funcionar de calibre 6.35 mm), a distância da ofendida (a não mais de 3 m) e o local do corpo desta visado pelo disparo “(…) tão perto de um órgão vital como o coração” como bem se disse no acórdão recorrido a fls. 498; a que acresce o facto de o arguido depois de ter atingido a ofendida no ombro esquerdo puxou a colatra atrás e premiu por mais duas vezes o gatilho da arma que, por razões alheias á sua vontade não disparou.
Do exposto decorre não ter o Tribunal tido quaisquer dúvidas quanto á autoria dos factos em apreço e imputados ao arguido pelo que não tendo o Tribunal tais dúvidas não faria sentido fazer-se aplicação do principio do in dubio pro reo.
Não existe, assim, fundamento para considerar como não provados determinados factos constantes do elenco factual apurado na 1ª instância.
Nem tão pouco há fundamento para não admitir a valoração do depoimento indirecto prestado pela testemunha António C....
Como já se referiu entendemos que o acórdão recorrido não merece, pois, reparos quanto à apreciação da prova produzida nos autos, cuja convicção está devidamente enunciada de fls. 494 a 499.
Não vislumbramos que existam os invocados erros de julgamento.
Em suma, o tribunal a quo avaliou a prova segundo a sua livre convicção, sem que tivessem sido violadas quaisquer regras da experiência comum ou sido utilizados meios de prova proibidos, sendo que a factualidade dada como assente tem, pois, sustentabilidade nas provas indicadas na motivação fáctica.
Pelo que não assiste razão ao recorrente neste ponto.
*
2- Invoca os vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, al.s a), b) e c) do C. P. Penal.
Para além do que a este respeito já acima se referiu acrescenta-se o seguinte:
Diz o recorrente que o acórdão proferido padece dos vícios previstos no artigo 410º do C. P. Penal.

Referindo a fls. 598:

“32.- Ao considerar válido o depoimento da testemunha José L... na parte em que refere que a Sara I... só saiu da sua casa após o arguido se ausentar do local, e considerar, por outro lado, válido o depoimento da Sara I... na parte em que afirma que saiu para o logradouro e viu o arguido a apontar a arma à Maria C..., o Tribunal a quo caiu em manifesta contradição entre os fundamentos e a decisão proferida. Além de ter efectuado uma manifesta errónea apreciação da prova produzida e da sua valoração.
33.- Esta contradição é manifesta a insanável e integra o vício previsto no art. 410º, nº 2, al. b) do CPP (…)”.
Acabando face ao teor do seu recurso por invocar também as demais alíneas do n.º 2 deste art. 410.º.

Nos termos do disposto no art. 410 n.º 2 do C. P. Penal, “mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamento, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) Erro notório na apreciação da prova.”

Como é unanimemente entendido, os vícios referenciados no art. 410 n.º 2 do C. P. Penal, têm de resultar do texto da decisão recorrida.

Refere-se o recorrente aos vícios das alíneas a) “Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada” b) "contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão" e c) “Erro notório na apreciação da prova”, todos do n.º 2, do artigo 410°, do Código de Processo Penal.

2.1 - Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada - al. a)

Temos que a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, como refere Germano Marques da Silva - Curso de Processo Penal – Vol.III, pág. 3339/340, “consiste na insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito. É necessário que a matéria de facto dada como provada não permita uma decisão de direito, necessitando de ser completada”, isto é, “quando o tribunal deixa de investigar, podendo fazê-lo, toda a matéria de facto relevante, de tal forma que os factos declarados provados não permitem, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do julgador.” Curso de Processo Penal – Vol.III, pág. 3339/340.
A este respeito, manifestamente, analisada a matéria de facto dada como provada verifica-se que a mesma é suficiente e justifica a decisão de direito constante no acórdão.
2.2 - Contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão - al. b)

A contradição referida na segunda parte da al. b) é a contradição entre a fundamentação e a decisão de facto. A sentença não pode limitar-se a indicar os factos considerados provados e não provados, devendo também conter uma exposição dos motivos que fundamentaram a decisão de considerar determinados factos provados e outros não provados (art. 374 nº 2 do CPP). Esta contradição existe quando, de acordo com um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação justificaria uma diferente decisão da matéria de facto.
Ora, também quanto a este vício, desde já se refere que analisada a decisão em causa o mesmo se não verifica.
2.3 - Erro notório na apreciação da prova - al. c);

Quanto ao vício do erro notório na apreciação da prova - art. 410 nº 2, al. c) do C.P.P., o mesmo, como aliás, todos os do art. 410 nº 2 do CPP, como já se referiu, tem forçosamente que resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum. Isso resulta inequivocamente do corpo da norma. “Trata-se de um erro de que o homem médio, suposto pelo legislador, facilmente se dá conta mediante a leitura da decisão recorrida e não com recurso a elementos a ela estranhos”. (...) “O erro notório só existe quando determinado facto provado é incompatível, ou irremediavelmente contraditório, com outro facto contido no texto da decisão, em termos de as conclusões desta surgirem como intoleravelmente ilógicas” - ac. STJ de 29-2-96, Revista de Ciência Criminal ano 6 pag. 55 e ss.
Tendo que resultar do texto da decisão recorrida, não é possível o recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, designadamente declarações prestadas ou documentos juntos durante o inquérito, a instrução, ou até mesmo no julgamento – cfr. ac. STJ de 19-12-90, citado por Maia Gonçalves em anotação a este artigo
Lendo-se a motivação vê-se que o recorrente, para demonstrar a existência destes vícios, se socorre das declarações prestadas no julgamento, que não permitiriam que a decisão tivesse sido exactamente no sentido do acórdão proferido.
Improcede, assim, também esta arguição.

Não se verificam, pois, os invocados vícios do acórdão, pelo que, nesta parte, deverá o recurso ser julgado improcedente.

*
3- Invoca o arguido violação do princípio in dubio pro reo.
Referindo a fls. 598, cls. n.º 31, que “No mínimo, a dúvida estaria instalada. E em caso de dúvida, o arguido teria necessariamente de ser absolvido. É a aplicação do princípio in dubio pro reo. - É com este sentido e conteúdo que se afirma o principio in dubio pro reo - Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I Volume, pág. 213.
Constitui este princípio uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não houver a certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. No entanto, do exposto e do teor do acórdão, não resulta que, tenham existido versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, de molde a que o arguido deva ser absolvido em obediência a tal princípio. A violação deste princípio pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador, só podendo ser afirmada, quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma evidente, que o tribunal, na dúvida, optou por decidir contra o arguido – (Ac. STJ de 24-3-99 CJ STJ, tomo I, pag. 247).
No entanto, no texto do acórdão não se vislumbra que o Tribunal tenha tido dúvidas sobre a prova de qualquer dos factos que veio a considerar como provados, pelo que também improcede esta invocada violação.

Respeitou, pois, o acórdão, o princípio in dubio pro reo, na sua formulação constitucional, ínsita na presunção de inocência.

Este princípio para além de ser uma garantia subjectiva, é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver a certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa.

Ora, o tribunal a quo não balanceou, não ficou numa dúvida intolerável perante formas diversas de observar os factos, antes chegou a uma certeza jurídica, plenamente motivada, ou seja, com uma fundamentação coerente e racional e, por isso, não arbitrária.

O princípio in dubio pro reo parte da premissa de que o juiz não pode terminar o julgamento com um non liquet, ou seja, não pode abster-se de optar pela condenação ou pela absolvição, existindo uma obrigatoriedade de decisão, e determina que, na dúvida quanto ao sentido em que aponta a prova feita, o arguido seja absolvido. Ora, a actividade do tribunal, ao apreciar livremente a prova, não é livre arbítrio ou valoração puramente subjectiva, mas apreciação de acordo com critérios lógicos e objectivos e, dessa forma, determina uma convicção racional, logo, também ela, em geral, objectivável e motivável. No caso, resulta da fundamentação da matéria de facto que o Tribunal a quo procedeu a uma apreciação da prova amplamente fundamentada, sem a invocação de uma dúvida que tornasse inevitável uma solução de outra natureza, pelo que a conclusão não pode ser a pretendida pelo recorrente.

O acórdão não contém nenhum dos vícios que se lhe apontam, nem este Tribunal vê outro ou outros de que deva conhecer oficiosamente, pelo que se tem a matéria de facto por definitivamente assente. Não é, assim, de concluir de modo diferente no plano fáctico, substituindo-se este Tribunal ao decidido, nesse sentido, pela 1ª instância.

Pelo que também nesta parte deve improceder o recurso.
*
4- Discorda o arguido da escolha e medida concreta das penas parcelares e única; pretendendo atenuação especial da pena e suspensão da sua execução.
Refere que “Na mera hipótese académica de não se entender pela absolvição do arguido dos crimes por que vem acusado, sempre se dirá que a pena aplicada extravasa as necessidades de prevenção geral e especial do caso concreto, sendo, por esse motivo, excessiva, tendo em conta os factos dados como provados nestes autos, em concreto, factos 16 a 27 da matéria de facto dada como provada no douto acórdão recorrido.”
Os art.s 70º e 71º do Código Penal indicam os critérios para a escolha e medida da pena, estatuindo, a ultima norma, que esta deve fazer-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, tendo em vista a protecção dos bens jurídicos e também a reintegração daquele (art. 40º nº 1 do C. P.).
E o nº 2 do art. 71º, manda atender àquelas circunstâncias que não fazendo parte do tipo depuserem a favor ou contra o agente, indicando, a título exemplificativo, algumas dessas circunstâncias nas várias alíneas.
Assim, a medida concreta da pena tem que ser determinada sempre conjugando os factores culpa e prevenção, estando o primeiro ligado a uma vertente pessoal do crime e o segundo à necessidade sentida pela sociedade na punição do caso concreto.
Relativamente à culpa, ela irá não só fundamentar como também limitar a pena.
Traduz o requisito da culpa a vertente pessoal do crime entendido como um juízo de censura pela personalidade manifestada no facto, fixando-se através dela o limite máximo da pena, sendo pressuposto da mesma, limitando de forma inultrapassável as exigências da prevenção – Cfr. Figueiredo Dias: Direito Penal, Consequências Jurídicas do Crime, pag. 255 e ss. .
Deve a pena ser fixada de forma a que contribua para a reinserção social do agente e não prejudique a sua posição social mais do que o absolutamente inevitável e, por outro lado, neutralize os efeitos do crime como exemplo negativo para a sociedade e simultaneamente contribua para fortalecer a consciência jurídica da comunidade sem deixar de ter em consideração as pessoas afectadas com o delito e suas consequências.
Só dessa forma cumprirá a sua função repressiva, de prevenção (protecção dos bens jurídicos) e de reintegração do agente na sociedade.
A este respeito, medida da pena, concordamos com o teor do Ac. do S.T.J., de 13-07-2006, do teor seguinte:

" I - A determinação da medida concreta da pena há-de efectuar-se em função da culpa do agente (relevando o ilícito típico, através desta) e das exigências de prevenção, quer a prevenção geral positiva ou de integração (protecção de bens jurídicos), quer a prevenção especial (reintegração do agente na sociedade) - art. 40.º, n.º 1, do CP -, funcionando a culpa como limite máximo que aquela pena não pode ultrapassar (n.º 2 deste art. 40.º).

II - As circunstâncias referidas no n.º 2 do art. 71.º do CP constituem os itens a que deve atender-se para a fixação concreta da pena e actuam dentro dos limites da moldura penal abstracta, sem se partir de qualquer ponto determinado dessa moldura. São essas circunstâncias e outras que tenham igual relevância do ponto de vista da culpa e da prevenção, porque a enumeração legal é exemplificativa, que vão determinar a medida concreta da pena, a qual há-de satisfazer as necessidades de tutela jurídica do bem jurídico violado e as exigências de reinserção social do agente.

III - A medida da tutela dos bens jurídicos, correspondente à finalidade de prevenção geral positiva ou de integração, é referenciada por um ponto óptimo, consentido pela culpa, e por um ponto mínimo que ainda seja suportável pela necessidade comunitária de afirmar a validade da norma ou a valência dos bens jurídicos violados com a prática do crime, entre esses limites se devendo satisfazer, quanto possível, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização, às quais cabe, em última análise, a função de determinação da medida da pena dentro dos limites assinalados - cf. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, p. 227 e ss. " ( Proc. n.º 1802/06 - 5.ª Secção Rodrigues da Costa (relator) Arménio Sottomayor Oliveira Rocha Carmona da Mota ).

A nosso ver inexiste qualquer fundamento para reduzir quer as penas parcelares quer a pena única fixadas na 1ª instância.
Ao contrário do que afirmou o recorrente os autos não demonstram que o mesmo esteja arrependido ou tenha colaborado ab initio com a justiça; aliás como uma vez mais bem salienta o M. P. na sua resposta na 1ª instância “(…) não vemos como se possa sustentar arrependimento sem o reconhecimento dos factos praticados, nem colaboração efectiva com a justiça, se, em julgamento, não se contribui, por qualquer forma para o esclarecimento dos factos” (fls. 654), independentemente o direito que lhe assiste em se recusar a prestar depoimento sem que tal silêncio o tenha prejudicado.
E o demais referido pelo arguido, que se reconduz aos pontos fácticos 23 a 27 do acórdão recorrido, a fls. 493, já tidos em conta pelo Tribunal na medida da pena, não têm a virtualidade de, como pretende, constituír in casu qualquer atenuante de molde a levar á redução das penas nos termos por ele mencionados.
Sendo que a gravidade destes crimes de homicídio tentado sempre impossibilitariam que se pudesse suspender a execução da pena única fixada.
Aliás, sobre esta matéria afigura-se-nos até que a pena única arbitrada na 1ª instância só pecará por excesso de benevolência, merecendo-nos concordância a declaração de voto vencido constante do acórdão recorrido a fls. 510/ 511, onde nomeadamente se refere que “(…) fazendo jus à sua função de direito de primeira protecção dos bens jurídicos essenciais ao viver em sociedade, diremos que o Direito Criminal não pode pactuar com esta situação e acabar também ele por sancionar levemente comportamentos como os do caso vertente, deixando a ideia de que são tolerados pela sociedade.
Desta forma, atendendo aos seguintes factores:
- a intensidade do dolo, elevada, pois existiu na modalidade de dolo directo e demonstrando insensibilidade perante o valor da vida humana;
- o modo de execução do facto, visto que o arguido empunhou uma arma de fogo, a uma distância de cerca de 3 metros, actuando da forma descrita no ponto 7 da matéria de facto provada, nomeadamente disparando um primeiro tiro que atingiu a ofendida Sara I..., tendo tentado dar mais dois tiros, e só não o conseguindo porque a arma encravou, tendo atingido a ofendida na zona do ombro esquerdo, perto do pescoço e hemi-tórax superior esquerdo onde se alojam vários órgãos vitais, traduzindo uma elevada possibilidade de atingir alguns destes, o que significa que, de entre todas as formas que podem ser utilizadas para praticar a conduta em causa nos autos, esta já reveste uma gravidade muito elevada, fazendo com que a possibilidade de o resultado se vir efectivamente a verificar seja mais elevada;
- o contexto que envolveu o sucedido, na medida em que a conduta ocorreu na sequência da discussão inicial com Maria C... Jacinto, mãe da ofendida Sara I... e então companheira do arguido. Porém, se esta situação poderia eventualmente conferir alguma atenuação (ainda que pequena, pois que, como acabou de dizer-se, o disparar uma arma de fogo como reacção ao facto de aquela se ter refugiado para o interior da casa de banho, constitui uma reacção manifestamente exagerada e desproporcionada), já o comportamento seguinte do arguido sai completamente fora do âmbito desta simples reacção, traduzindo já o explodir de um ressentimento forte contra a ofendida Maria C..., nada havendo que justifique que depois de um primeiro disparo contra a Sara I..., filha desta, eventualmente de uma forma impulsiva e irracional, o arguido ainda volte a tentar disparar sobre esta última (que com grande probabilidade a mataria efectivamente ou lhe causaria lesões irreversíveis muito mais graves), o que só não consegue porque a arma encrava;
- a circunstância de, no caso concreto, e considerando tudo quanto já se referiu a propósito daquela que foi toda a actuação do arguido, serem bastante elevadas as exigências de prevenção geral, desde logo face ao cada vez maior número de casos de desavenças entre cônjuges ou ex-cônjuges ou companheiros ou ex-companheiros, nomeadamente com perseguição de um dos membros do casal ao outro (mais habitualmente o homem à mulher) que terminam com resultados graves e muitas vezes trágicos e que podem atingir também, como foi o caso, terceiros; e,
- mostrando-se também elevadas as exigências de prevenção especial, sendo necessário que aquele consciencialize e interiorize a gravidade dos factos praticados, com isso adequando o seu comportamento futuro às normas da vida em sociedade e ao respeito devido aos direitos, nomeadamente à vida e à integridade física, das outras pessoas, e isto até tendo em conta as características pessoais do arguido referidas nos pontos 20 e 21 da matéria de facto provada”.
Nesta conformidade e atenta a proibição da reformatio in pejus não podemos naturalmente alterar as penas fixadas na 1ª instância as quais ora se mantêm por, apesar de generosas ainda assim acautelarem as fundamentais exigências de prevenção geral e especial.
Mais refere o arguido a fls. 600 e 601:
“40.- No caso presente não se pode determinar uma sanção, em nome da justiça e da equidade, sem usar os poderes extraordinários da atenuação especial da pena, nos termos do artigo 72º do Cód. Penal.
41.- De facto, muitas daquelas circunstâncias são de valor fortemente atenuativo e diminuem de forma acentuada a culpa do agente. Pelo que, na hipótese de se considerarem provados os factos constantes do douto acórdão recorrido, e se julgarem improcedentes os fundamentos supra vertidos, não deve o recorrente ser condenado, pela prática do crime de homicídio tentado, em pena superior a dois anos e dois meses de prisão.
(…)
43.- Mas mesmo que assim não fosse, ou seja, mesmo que não haja lugar no caso sub judice à atenuação extraordinária, entendemos que a pena aplicada peca por exagero. ( cfr. Jorge de Figueiredo Dias “ Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime “ 1990, pág. 302).A esta ideia político – criminal responde o instituto da atenuação especial da pena, previsto no artº 72, nº 1 do Cód. Penal.
44.- Ora, no nosso caso, sempre com o devido respeito parece que não há agravantes. Os factos graves praticados pelo recorrente fazem parte do próprio tipo de crime cometido. Não constituem um plus. As atenuantes são inúmeras e todas elas ou a maior parte de valor fortemente atenuativo.”.
Sendo que face aos factos dados como provados no acórdão e o que se deixou já referido, não se vê em que pode o arguido fundar a sua aspiração á atenuação especial (art.s 72º e 73º do C. Penal).
Refere o art. 72º, n.º1, do C. penal, o seguinte:
"O tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena."
A figura da atenuação especial da pena surgiu em nome de valores irrenunciáveis de justiça, adequação e proporcionalidade, como necessidade de dotar o sistema de uma verdadeira válvula de segurança que permita, em hipóteses especiais, quando existam circunstâncias que diminuam de forma acentuada as exigências de punição do facto, deixando aparecer uma imagem global especialmente atenuada, relativamente ao complexo «normal» de casos que o legislador terá tido ante os olhos quando fixou os limites da moldura penal respectiva, a possibilidade, se não mesmo a necessidade, de especial determinação da pena, conducente à substituição da moldura penal prevista para o facto, por outra menos severa.
São estas as hipóteses de atenuação especial da pena.
O funcionamento de uma tal válvula de segurança obedece a dois pressupostos essenciais, a saber:
1. Diminuição acentuada da ilicitude e da culpa, necessidade da pena, em geral, das exigências de prevenção;
2. A Diminuição da culpa ou das exigências de prevenção só poderá considerar-se relevante para tal efeito, isto é, só poderá ter-se como acentuada quando a imagem global do facto, resultante da actuação das circunstâncias atenuantes se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo.
O que, por outras palavras, significa que a atenuação especial só em casos extraordinários ou excepcionais pode ter lugar. Para a generalidade dos casos, para os casos "normais", "vulgares" ou "comuns", "lá estão as molduras penais normais, com os seus limites máximo e mínimo próprios".
Daí o bem fundado da nossa jurisprudência, quando pressupõe que tal sistema só se torna político-criminalmente suportável se a atenuação especial, decorrente da cláusula geral apontada, entrar em consideração apenas em casos relativamente extraordinários ou mesmo excepcionais (sobre estes pontos ver Ac. do S.T.J. de 29/01/2004, proc. n.º 03P1874, www.itij.pt).

Nesse sentido, vide o acórdão desta Relação de Guimarães:

- Ac. do TRG 30.06.2003, Processo 1041/03 - 1a Secção Relator: Miguez Garcia; Adjuntos: Nazaré Saraiva; Anselmo Lopes.

" III - Como refere o acórdão do STJ de 5 de Abril de 2001, (C. J, ano IX, 2001), tomo u, p. 178) deve considerar-se uma solução antiquada a consagração legislativa de uma "cláusula geral de atenuação especial" como "válvula de segurança", solução essa que dificilmente se pode ter como apropriada para um código como o nosso, "moderno e impregnado pelo princípio da humanização e dotado de molduras penais suficientemente amplas"

IV - Daí o bem fundado da nossa jurisprudência, quando pressupõe que "tal sistema só se toma político-criminalmente suportável se a atenuação especial, decorrente da cláusula geral apontada, entrar em consideração apenas em casos relativamente extraordinários ou mesmo excepcionais".

No caso, nada de excepcional se descortina, já que, atento tudo quanto acima fica dito, se entende que não há qualquer justificação para a mesma, sendo certo que as atenuantes que poderiam beneficiar o arguido foram devidamente valoradas.
Por isso, não há lugar a falar aqui em atenuação especial.
Improcede, assim, também este fundamento de recurso.
*
Termos em que deverá o recurso do arguido ser julgado improcedente.
***
- Decisão:
Pelo exposto, decide-se nesta Relação em julgar o recurso como improcedente, confirmando-se o acórdão recorrido.

*
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.
(Tendo-se em conta o beneficio de protecção jurídica concedido -cfr. fls. 618 e 619)
Notifique.
D. N.