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RESPONSABILIDADE OBJECTIVA
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
INCUMPRIMENTO DO CONTRATO
Sumário
O nosso ordenamento jurídico não consagra a responsabilidade civil objectiva no não cumprimento dos contratos. As relações contratuais entre vendedor e comprador são reguladas pelo direito comum (civil e comercial), não se lhes aplicando as do Decreto-Lei n.383/89, de 11 de Junho.
Texto Integral
Acórdão no Tribunal da Relação do Porto:
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No Tribunal Judicial de Barcelos, G...,
intentou a presente acção declarativa de condenação contra P. Lda
Pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia global de ATS 77.35,53 (1.183.233$00 em moeda portuguesa), correspondente ao preço de diversas mercadorias que vendeu à Ré e esta não pagou.
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Citada a Ré veio contestar e reconvir.
Apesar de aceitar os fornecimentos e preços referidos pela A. na P.I., veio a Ré alegar que a mercadoria fornecida pela A. apresentava defeitos no seu fabrico.
Tal mercadoria era constituída por golas para camisolas interiores de senhora, sendo certo que a matéria prima empregue na sua confecção apresentava defeitos, fazendo com que as camisolas se tornassem desconfortáveis e incomodativas às pessoas que as vestiam, causando-lhes irritação na zona do pescoço, dado a excessiva dureza dos materiais empregues.
A Ré tentou resolver a questão com a A., nomeadamente através de faxes enviados à representante em Portugal.
Conseguiu a R. que um representante da A., na Áustria, se deslocasse a Portugal, tendo este garantido que as remessas posteriores viriam já sem o defeito reclamado.
Tal, porém, não foi cumprido, continuando as remessas posteriores do mesmo produto a apresentar o mesmo defeito.
As golas defeituosas eram 236.753.
A Ré vendia cada camisola por 400$00.
Em consequência do defeito, teve de fazer um desconto de 20%, passando a vendê-las por 320$00.
Sofreu, pois, um prejuízo de 80$00/camisola, o que no total corresponde ao prejuízo de 18.940.240$00, quantia que em via reconvencional peticiona da A. .
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Na réplica a A. alega a inadmissibilidade do pedido reconvencional e impugna a matéria de facto em que se fundamenta a reconvenção.
Admite ter apenas ocorrido um pequeno problema com as golas, que foi totalmente ultrapassado por acordo das partes.
A Ré nunca apresentou qualquer reclamação, pelo que, há muito teria caducado o seu pretenso direito.
Na tréplica, defende a Ré a admissibilidade da reconvenção e mantém a sua posição factual já descrita na contestação-reconvenção.
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Foi concedido à Ré o benefício do apoio judiciário na modalidade de dispensa total de preparos e prévio pagamento de custas.
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Após a frustração da tentativa de conciliação promovida, proferiu-se saneador - sentença no qual foi admitido o pedido reconvencional, que, porém, foi julgado totalmente improcedente, julgando-se procedente o pedido de A..
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É desta decisão que recorreu a Ré-reconvinte, recurso que foi admitido como de apelação, a subir imediatamente com efeito suspensivo.
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Conclusão da apelação
Apresentadas tempestivamente alegações, formulou a apelante as seguintes conclusões:
1) A causa de pedir na reconvenção e correspondente pedido da recorrente assenta na responsabilidade da recorrida, como produtora e por ter vendido à apelante produtos com defeito, no caso dos autos, golas para camisolas interiores de senhora, o que lhe causou danos na importância de 18.940.240$00.
2) À factualidade dos autos e no tocante à recorrente são aplicáveis as normas constantes do D.L. 383/89, de 6 de Novembro que transpõe a Directiva nº 85/374/CEE, comando comunitário a que o Estado Português se obrigou por força do art. 3º do Tratado de Adesão de Portugal à Comunidade Europeia.
3) O D.L. 383/89 revogou tacitamente as normas do C. Comercial e C. Civil no tocante à responsabilidade civil decorrente de produtos defeituosos
4) A sentença recorrida violou o disposto nos art. 1º, 2º, 3º, 4º e 11º do D.L. nº383/89 de 6/11 e o nº 2 do art. 659º do C.P.C.
Conclui pelo provimento do recurso devendo julgar-se a reconvenção procedente ou, se assim se não entender, deve ordenar-se o prosseguimento dos autos para fixação da matéria de facto.
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Nas suas contra-alegações pugna a alegada pela confirmação do decidido.
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Os Factos
A factualidade a ter presente para a decisão do recurso é apenas a que ficou descrita no antecedente relatório, que, por isso, aqui se não repete.
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Cumpridos os vistos há que decidir.
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Fundamentação
Como resulta claro das conclusões, o recurso está limitado à parte da decisão que julgou improcedente o pedido reconvencional e restringe-se à questão de saber se, ao caso dos autos, tem aplicação o regime especial de responsabilidade objectiva consagrada no D.L. 383/89 de 6/11.
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Segundo defende a apelante, uma vez que a A. / apelada lhe forneceu golas para camisolas interiores de senhora e essas golas apresentavam defeitos ao nível da matéria prima utilizada na sua confecção, que tornavam as camisolas desconfortáveis e incomodativas às pessoas que as vestiam, causando-lhes irritação na zona do pescoço, terá aplicação o D.L. 383/89 de 6/11, que transpôs a Directiva Comunitária nº 85/374/C.E.E. do Conselho de 25 de Julho de 1985 para o direito interno e que estatui sobre a responsabilidade civil decorrente de produtos defeituosos e não as regras do C. Comercial e do C. Civil, aplicadas na sentença recorrida, as quais teriam sido tacitamente revogadas pelo referido Diploma Legal.
Consequentemente, sendo a apelada a produtora das ditas golas que a apelante incorporou nas camisolas que fabricou, está aquela obrigada a indemnizar a apelante, independentemente de culpa, demonstrados que estejam os danos, o defeito e o nexo da causalidade entre este e aquele, nos termos do art. 1º do D.L. 383/89.
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Antes de entrar na análise da questão concreta, convém perceber o enquadramento em que surge a referida Directiva Comunitária, fonte directa do D.L. 383/89, de modo a melhor se definir o alcance da responsabilidade objectiva que o legislador quis impôr ao produtor de produtos defeituosos.
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Como se sabe, a regra no direito civil é a responsabilidade baseada na culpa, a qual, no domínio de tal disciplina, assenta na ideia da censurabilidade do comportamento do agente, medida por referência ao padrão abstracto do homem médio, isto é, pela diligência de um pai de família em face das circunstâncias de cada caso, no dizer do art. 487º nº2 do C
..C.
Desde há muito, porém, se reconheceu que a complexidade crescente da vida social, os riscos acrescidos de certas actividades lícitas, exigem esquemas de responsabilidade que, ultrapassando a fronteira da culpa, garantam os mais diversos e frequentes riscos, em homenagem à segurança social de todos e cada um dos cidadãos.
À medida em que as concepções individualistas foram dando lugar aos modernos Estados Sociais, mais se acentuou a tendência para retirar do seio da pura responsabilidade subjectiva largas parcelas de actividade social corrente, criadoras de riscos que lhe são inerentes e que afectam a generalidade das pessoas.
Com este objectivo e para além da clássica responsabilidade fundada na culpa em que ao lesado compete provar a culpa do lesante, sob pena de não ser ressarcido, estabeleceram-se presunções de culpa em benefício dos lesados e criaram-se, por fim, esquemas de responsabilidade objectiva, complementados ou não por seguros sociais, por vezes obrigatórios.
Manteve-se, é certo, o princípio regra da responsabilidade fundada na culpa, permanecendo excepcionais os restantes mecanismos indemnizatórios, embora a tendência seja, cada vez mais, para restringir aquele princípio base a um núcleo residual.
Ora, um dos ramos da actividade humana a exigir mecanismos de segurança social que se não compadecem com os estritos limites da culpa provada ou mesmo presumida é exactamente a actividade de produção e de consumo onde a parte forte é representada pelo produtor e a parte fraca pelo consumidor anónimo, ou seja, o público em geral, o qual tem de ser especialmente protegido de modo a acautelar adequadamente o seu ressarcimento pelos danos provocados em pessoas e coisas por produtos defeituosos, já que os mecanismos tradicionais de responsabilidade não respondem já eficazmente a tal finalidade.
De facto, o progresso científico e tecnológico, a produção em série, a especialização, a complexidade do processo produtivo e organizativo das empresas produtoras, a distribuição dos produtos em cadeia, limitam, cada vez mais, a actividade do mero vendedor/comerciante à situação de intermediário ou distribuidor de produtos ao consumidor final, sem qualquer possibilidade de controlo sobre a qualidade dos produtos comercializados.
E, se é verdade que o nosso direito tradicional contempla e regula as relações directas entre vendedor e comprador, designadamente no que respeita à compra e venda de coisas defeituosas (art. 913º e sg. do C.C.), o certo é que, pelas razões acima referidas, não tem em conta a relação produtor-consumidor.
Como observa Calvão da Silva (Responsabilidade Civil do Produtor – 278)... “Isto leva a que a questão da responsabilidade do produtor qua tale -importante sobretudo na hipótese típica dos chamados «danos dos produtos», dos danos causados por produtos ao consumidor final, distanciado do fabricante por uma cadeia distributiva- não seja directa e adequadamente abrangida pelas suas normas” (do C. Civil).
“Estas assentam no modelo do contrato, produtor de efeitos entre partes mas res inter alios acta em relação a terceiros, pelo que o adquirente ou consumidor final lesado apenas pode exercer os direitos edilícios contra o seu vendedor -vendedor que em regra terá uma função de distribuição- e só excepcional e episodicamente contra o próprio produtor ou fabricante das coisas defeituosas.
Porque assim é, a interposição de um ou mais contratos intermédios entre a produção e o consumo impede a qualificação recíproca de parte entre produtor e consumidor, ficando fora do alcance do Código a responsabilidade contratual do produtor qua tale e, assim, o (sub) adquirente final não pode exercer directamente os seus direitos contra ele”.
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Consequentemente a protecção adequada do consumidor final perante o produtor não pode encontrar-se no âmbito da responsabilidade contratual, sob pena de ser ineficaz na generalidade dos casos.
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Por outro lado, se procuramos a solução no domínio da responsabilidade extracontratual , igualmente se nos deparam grandes obstáculos.
É evidente que o consumidor que sofre danos provocados por um produto defeituoso goza do direito de acção contra o produtor, do âmbito da responsabilidade geral por actos ilícitos (art. 483º nº1 do C.C.), mas sobre ele recai, então, o ónus de provar os respectivos pressupostos – o facto, a ilicitude (no caso o defeito do produto), a imputação do facto ao lesante (culpa), o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Ora, especialmente a necessidade de provar a culpa do produtor constitui obstáculo de monta para o mero consumidor normal, completamente alheio ao processo de fabrico e à organização produtiva, sem conhecimentos técnicos necessários à sua compreensão.
A sofisticação técnica de muitos produtos, a automação generalizada, a complexidade organizativa e tecnológica da produção moderna, a composição múltipla do produto acabado, a própria destruição do produto defeituoso, torna particularmente difícil a prova da culpa senão praticamente impossível em muitos casos.
Certo que a jurisprudência, pressionada pela realidade da vida, foi dando as suas contribuições no sentido de facilitar, de algum modo, a prova da culpa, pelo recurso à teoria da chamada prova de primeira aparência, assente na verosimilhança, nas regras da experiência comum, em presunções materiais, de facto ou judiciais...
Em alguns casos, deu-se mesmo um passo de maior significado, passando a presumir-se a culpa do produtor, como fez, na Alemanha, o S. Tribunal no caso “H...” estabelecendo que “se na utilização regular de um produto industrial uma pessoa ou uma coisa é lesada porque o produto foi defeituosamente produzido, deve o produtor provar que não teve culpa no defeito. Se o produtor não consegue fazer esta prova, responde segundo os princípios delituais” (citado por Calvão da Silva, obra referida – 369/97).
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Apesar de tudo, manteve-se, porém, o princípio da culpa, que, entre nós, nem a Lei quadro da defesa do consumidor (1981) afastou.
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É, pois, neste enquadramento e de acordo com o conhecido princípio “ubi commoda ibi incommoda” que surge a Directiva Comunitária nº 85/374/C.E.E. de 25/7/85, e, na sequência dela, o D.L. 383/89 de 6/11, que a transpôs para o nosso direito interno.
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Entendeu-se que, no caso da chamada responsabilidade por produtos se está perante uma situação específica, característica da vida moderna, em que os danos sofridos pelo consumidor em geral só podem ser convenientemente acautelados na base de uma responsabilidade directa e objectiva do produtor, responsabilidade objectiva, que, não, porém, absoluta ou limitada, como resulta das várias limitações (prescrição e caducidade – art. 11 e 12), (exclusão de responsabilidade – art. 5), (restrição a coisas móveis e exclusão dos produtos do solo, de pecuária de pesca e de caça – art. 3º), (limite de responsabilidade – art. 9º), (franquia – art. 8º nº2), (exclusão dos danos no próprio produto defeituoso – art. 8º nº 1) etc, que, apesar de tudo, o equilíbrio entre os interesses em confronto justificam.
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Surge, assim, um direito especial, consagrando claramente a responsabilidade do produtor independente de culpa, mas um direito especial que, ao contrário do que afirma a apelante, não pretende derrogar, nem derrogou o direito comum já existente.
Pelo contrário, veio antes complementá-lo, reforçando, assim, a defesa do consumidor (cf. art. 13º do D.L. 383/89).
Como diz o autor já várias vezes citado (obra referida – 170) “... com a introdução do D.L. 383/89, as vítimas do produto defeituoso e danoso passam a dispor de um novo fundamento ou teoria da responsabilidade que vem juntar-se aos existentes no direito nacional comum, consentindo ao lesado obter do produtor o ressarcimento do dano pelo aproveitamento da convivência de regimes e critérios que possam vigorar neste domínio; por outro lado, porque à complementaridade assinalada –complementaridade que não impede o lesado de recorrer a disposição eventualmente mais favorável da disciplina geral- acresce a subsidiariedade do direito comum, expressa ou implicitamente salvaguardada em várias das disposições da directiva incorporada no direito nacional, direito comum que continua a reger as matérias não reguladas pela disciplina especial”.
(Em sentido semelhante cf. –Da Responsabilidade Civil Decorrente de Produtos Defeituosos- de Maria Afonso e Manuel Variz –Coimbra Ed. - anotação ao art. 13º do D.L. 383/89).
Veio, por conseguinte, o referido D.L. preencher uma lacuna legislativa há muito sentida no direito da responsabilidade, sendo, por isso, natural e lógico que a sua regulamentação se dirija apenas à matéria dela carecida e não a matéria já antes regulamentada.
Daí que o seu campo de aplicação se direccione para as relações entre produtor e os terceiros consumidores finais, entre os quais não existe, regra geral, qualquer vinculação contratual.
O que se procura é a responsabilização directa (objectiva) do produtor perante as pessoas lesadas pelos defeitos de produtos que aquele põe em circulação, isto é, perante o consumidor anónimo, perante o público utente em geral.
Como bem observa Calvão da Silva na citação transcrita nas contra-alegações, o que interessa neste domínio é o “produtor como tal e enquanto tal”, como responsável pelo fabrico e colocação no mercado de certo produto defeituoso, não o produtor enquanto vendedor, ligado contratualmente ao respectivo comprador.
Para estes últimos casos não existia qualquer lacuna legislativa. Quando se trate de relações contratuais entre vendedor e comprador (como é o caso dos autos) as regras em princípio aplicáveis são os do direito comum, (C. Civil ou C. Comercial).
É que, no âmbito do contrato, a responsabilidade do produtor /vendedor para com o comprador tem a ver com o cumprimento defeituoso, com a chamada violação contratual positiva, ou com o puro e simples incumprimento.
Não é esse o tipo de responsabilidade que é objecto da regulamentação especial do D.L. 383/89.
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Mas, com o que fica dito, não se exclui que o consumidor protegido por aquele corpo especial de normas, possa ter uma relação contratual directa com o produtor.
Não serão essas as situações normalmente abrangidas pelo D.L. em causa, mas pode acontecer que tal ocorra em casos pontuais.
Só que, então, não teria relevância a qualidade de vendedor do produtor nem a relação contratual que o liga ao consumidor para efeitos do funcionamento da responsabilidade objectiva. Não é a indemnização pelo cumprimento defeituoso ou pelo incumprimento que está em causa.
O que tem de estar em causa é o dano resultante da morte ou lesão pessoal, ou o dano em coisa diversa do produto defeituoso, que seja normalmente destinado ao uso ou consumo privado, e que o lesado lhe tenha dado principalmente esse destino.
O que releva é a mera qualidade de produtor “qua tale”, enquanto responsável pela colocação em circulação do produto defeituoso que originou o referido dano, independentemente da eventual relação contratual.
Por outras palavras, mesmo existindo uma relação contratual entre o produtor e o consumidor a responsabilidade objectiva consagrada no D.L. 383/89 só funciona, claro está, se se verificarem os respectivos requisitos.
Se estes não estiverem presentes, poderá funcionar a responsabilidade contratual ou a responsabilidade extra contratual subjectiva, desde que presentes, obviamente, os requisitos indispensáveis.
E pode até acontecer que estejam presentes os pressupostos da responsabilidade objectiva e os dos outros tipos de responsabilidade, caso em que o lesado poderá optar pela disciplina jurídica que mais lhe convier.
É o que resulta da falada complementaridade e subsidiariedade.
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Postas estas prévias considerações estamos já em condições de responder à pergunta inicialmente feita e que é a de saber se o regime especial do D.L. 383/89 tem aplicação ao caso dos autos, como pretende a apelante.
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Pensamos que a resposta é francamente negativa, não pelo facto de entre a A. (produtor-vendedor) e a Ré (compradora) existir uma relação contratual de compra e venda, mas porque, no caso, a A. não pode ser vista na qualidade de simples produtora, como tal e enquanto tal, responsável directa perante a Ré consumidora, lesada pelos defeitos de um produto que aquela colocou em circulação.
Na verdade, a A., no caso concreto, assume as vestes de vendedora, de parte contratante, sujeita, por isso, a eventual responsabilidade contratual por venda de produtos defeituosos. Nada mais do que isso.
Acresce que não existem danos ressarcíveis nas condições do art. 8º do D.L. 383/89.
Não se verificam, pois, os pressupostos da responsabilidade civil objectiva regulamentada no referido diploma legal.
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Aprofundemos apenas a questão dos danos, visto ser decisiva para a decisão do recurso.
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Além do mais, competia à Ré reconvinte alegar e provar a existência de danos enquadráveis no citado art. 8º.
Acontece que, os danos alegados, ainda que viessem a provar-se, nunca seriam ressarcíveis à luz daquele preceito legal.
Segundo a mencionada norma “são ressarcíveis os danos resultantes da morte ou lesão pessoal e os danos em coisa diversa do produto defeituoso, desde que seja normalmente destinada ao uso ou consumo privado e o lesado lhe tenha dado principalmente este destino”.
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Logo se vê portanto, que, no caso, e em relação à Ré/apelante, não há evidentemente qualquer lesão pessoal a indemnizar, nem ela tem legitimidade para peticionar qualquer tipo de indemnização pelas eventuais “irritações na zona do pescoço” (lesões pessoais?) dos utentes das camisolas que fabricou com a incorporação das golas, alegadamente defeituosas, compradas à A. reconvinda e por esta produzidas.
De resto, nem a Ré revelou grande consideração pelas pessoas dos utentes das ditas camisolas, uma vez que, desconfortáveis e incomodativas, embora, não se coibiu de as colocar em circulação, vendendo-as, ainda que com desconto, conforme alega.
Ora, a serem de facto causadoras de irritação e se for de considerar tal incomodo como lesão pessoal, quem se sujeita à responsabilidade objectiva é a própria Ré ao abrigo do disposto no art.2º n.1 (2ª parte) ou n.2 b) do D.L. 383/89.
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Também não parece haver quaisquer danos “em coisa diversa do produto defeituoso”.
Destinando-se as golas vendidas pela A. a serem incorporadas nas camisolas fabricadas pela Ré, a serem essa golas defeituosas, como se alega, parece que o defeito inquinaria a própria peça acabada, considerada na sua unidade.
O dano resultante ocorreria no próprio produto defeituoso por defeito intrínseco dele próprio e não em coisa diferente ou diversa dele, correspondendo, afinal, à sua inaptidão para o uso normal a que se destinava, à sua falta de qualidade, ou, como seria mais apropriado ao caso concreto, à desvalorização da peça acabada.
Mas então não estamos perante um dano ressarcível no âmbito do D.L. 383/89, que apenas contempla os danos em coisa diversa do produto defeituoso.
No caso de vícios da própria coisa que a desvalorizem, a tornem inidónea para o fim em vista ou se traduzem em falta da qualidade assegurada pelo vendedor, entra-se no domínio do direito comum, que desde há muito regulamenta o ressarcimento de tais danos (cf. art. 913º e seg. do C. Civil).
Estamos, então, em pleno incumprimento contratual ou cumprimento defeituoso que não é objecto de regulamentação especial do D.L. 383/89 (neste sentido cf. obra cita pag. 702 e seg.)
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Mas, ainda que se entendesse de modo diferente e se considerasse o produto final (as camisolas) coisa diferente do produto defeituoso (as golas) ainda assim não teria melhor sorte a pretensão da Ré/apelante.
É que só são indemnizáveis os danos provocados pelo produto defeituoso em coisas de uso privado, no duplo sentido de coisas normalmente destinadas ao uso ou consumo privado e em relação às quais o lesado lhes tenha dado principalmente esse destino (uso ou consumo privado).
No caso, embora as camisolas produzidas pela apelante se destinem a uso privado, é evidente que não foram utilizadas pela Ré principalmente com esse destino, isto é, a Ré não lhe deu qualquer uso privado, pois, como é óbvio e vem alegado, destinou-as à venda, comercializou-as, fez delas objecto de negócio.
Consequentemente, mesmo nesta hipótese, que só por mero raciocínio se equaciona, estaria afastado irremediavelmente o funcionamento da responsabilidade objectiva regulamentada no D.L. 383/89.
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Assim, e sem necessidade de maiores considerações, pode, desde já, concluir-se, como se conclui pela total improcedência do recurso.
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Decisão
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termos em que acordam neste Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação e em confirmar, por isso, a decisão na parte objecto de recurso.
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Custas pela apelante (apoio judiciário)
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Porto
13/07/2000
António Manuel Machado Moreira Alves.
António Alberto Moreira Alves Velho.
Camilo Moreira Camilo.