INVENTÁRIO PARA SEPARAÇÃO DE MEAÇÕES
Sumário

Apresentando os interessados em inventário para a separação das meações acordo de partilha do qual decorre violação da regra legal da participação de ambos os cônjuges por metade no ativo e no passivo, violação suscetível de prejudicar os credores, não pode tal acordo ser homologado pelo tribunal.

Texto Integral

Apelação – N.º R 21/14
Processo n.º 1/13.9TBCBC.G1 – 1ª Secção.
Recorrente: M…
Recorrido: J… e outros.
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Acordam na 1ª Secção Civil do Tribunal da Relação de Guimarães:
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Nos autos de processo de inventário para partilha de bens em casos especiais, em que é cabeça de casal J… e interessada M…, juntaram estes aos autos um requerimento que designaram “acordo de partilha”.
Notificado para se pronunciar, o credor “Banco…, SA” veio afirmar que não prescinde da responsabilidade solidária dos devedores e, em relação ao Ministério Público, limitou-se a apor o seu visto, mas já se havia pronunciado contra o acordo de partilha na conferência de interessados, onde estes já haviam o declarado, tendo sido proferido despacho que recusou a homologação do acordo.
É deste despacho que vem interposto o presente recurso pela interessada M…, que conclui a sua alegação da seguinte forma:
- o despacho recorrido recusou a homologação do acordo de partilha, de folhas 97 a 99, outorgado pelos recorrentes;
- o Tribunal a quo entendeu que os recorrentes, através do acordo controvertido, transigiram sobre o objecto da causa;
- entendeu o tribunal recorrido que a situação em apreciação configura uma circunstância de litisconsórcio necessário;
- considerando a posição assumida pelo credor hipotecário, entendeu o tribunal pela decisão ora em crise que inexistia consenso entre todos litisconsortes necessários, pelo que a transação é ineficaz em relação a eles;
- os cônjuges são partes principais no processo de inventário que visa a extinção da comunhão de bens do casal;
- os credores são tão só interessados no processo de inventário na medida em que os seus direitos possam vir a ser afectados;
- os interesses dos credores revestem natureza patrimonial e consubstanciam-se na garantia de cumprimento das obrigações que impendem sobre as partes no inventário e que dependerá do activo líquido apurado, a final, caso exista (tornas a pagar/receber);
- os cônjuges, partes principais nos autos de inventário, podem transigir sobre a adjudicação dos bens que compõem a sua meação bem como a assumpção do passivo respectivo;
- o acordo de partilha assume natureza interna, adstringente nas relações entre as partes e não vincula o credor hipotecário, caso este não dê o seu consentimento à transmissão da dívida;
- o disposto no artigo 1730º do Código Civil não obsta à transacção quanto à assumpção integral do passivo por uma das partes no inventário, visando tão só garantir uma divisão equitativa do património comum em situação de dissolução e partilha de bens, traduzida, a final, no activo líquido ou passivo líquido apurado;
- a situação controvertida não configura circunstância de litisconsórcio necessário;
- o acordo de partilha situa-se na esfera dos direitos disponíveis das partes;
- aos credores, no âmbito de um processo de inventário iniciado por força do disposto nos artigos 220º do CCPT e 1406º do CPC, é facultada a possibilidade de se pronunciarem acerca da escolha efectuada pelo cônjuge meeiro, podendo reclamar do valor atribuído bens;
- in casu, o credor hipotecário não se opôs à escolha realizada pela recorrente, ou sequer reclamou, apenas não desonerou o recorrente da responsabilidade assumida perante si;
- “atribuir a um dos cônjuges, no inventário para separação de meações, um determinado imóvel sobre o qual recai uma hipoteca é atribuir-lhe, para efeitos de partilha, um valor garantido pela hipoteca. (O) passivo garantido por hipoteca deverá ser imputado ao cônjuge adjudicante e a partilha dos bens condicionará e ser condicionada por essa imputação”;
- à parte cumpridora, perante o credor hipotecário, cabe o direito de regresso em relação à parte inadimplente;
- in casu, o valor atribuído aos bens não foi objecto de qualquer;
- pelo acordo outorgado pelas partes, que importou a escolha realizada pela recorrente, ao recorrente/executado seriam adjudicados bens valorizados em euros 11.555,00.;
- pelo acordo outorgado pelas partes, à recorrente seriam adjudicados bens e imputado um passivo que computariam um valor líquido de euros 11.594,09, competindo-lhe o pagamento de tornas ao recorrente, no valor de euros 19,55;
- a escolha efectuada pela recorrente, decorrente do acordo de partilha ora em crise, não consubstancia, em momento algum, lesão dos interesses dos credores;
- ainda que se impute na metade do activo euros 38.197,50, metade do passivo euros 26.622,96, o activo líquido a atribuir a cada parte é de euros 11.574,55 e ao recorrente serão adjudicados bens cujo valor ascende a euros 11.555,00;
- o tribunal recorrido deveria ter homologado o acordo de partilha controvertido;
- o Tribunal a quo violou, entre outros, o disposto nos artigos 1326°, n.º 3, 1327°, n.ºs 1 e 3, 28°, n.º 1 do Código ded Processo Civil e 1730° do Código Civil.
Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se o despacho recorrido e, consequentemente, homologando-se o acordo de partilha de folhas 97 a 99, com as legais consequências.
O credor “Banco…, SA” e o Ministério Público apresentaram contra alegações em que defendem a improcedência do recurso.
Cumpre-nos agora decidir.
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Delimitado como se encontra o objecto do recurso pelas conclusões da alegação – artigos 635º, n.º 4 e 640º do Código de Processo Civil – das apresentadas pela Apelante resulta que a questão que é submetida à nossa apreciação consiste em saber se inexistem fundamentos para recusar a homologação do acordo de partilha junto ao processo.
A intervenção de terceiros no processo de inventário está delimitada no artigo 1327º, n.º 3 do Código de Processo Civil, que dispõe: “Os credores da herança e os legatários são admitidos a intervir nas questões relativas à verificação e satisfação dos seus direitos, cumprindo ao Ministério Público a representação e defesa dos interesses da Fazenda Pública”.
No caso de separação de bens nos termos do artigo 825º, que é o caso deste processo “ex vi” o disposto no artigo 220º do CPPT, o exequente e os credores detêm ainda as prerrogativas previstas no artigo 1406º daquele diploma.
A intervenção de credores do casal e de exequente em relação a um dos cônjuges encontra-se, assim, delimitada por aquelas disposições, afigurando-se-nos impróprio falar-se em litisconsórcio necessário entre interessados; do que se trata apenas é de não descurar a protecção dos interesses desses intervenientes, o que impõe que, no caso de acordo de partilha entre os interessados, eles devam ser convidados a pronunciarem-se, mas não constituindo o seu acordo condição necessária à homologação.
Com efeito, como se escreve no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04/11/2010, disponível em www.dgsi.pt, “Deve assim considerar-se que requerente e requerida acordaram na adjudicação dos bens que haveriam de compor as meações, nos termos aliás previstos nas regras gerais do processo de inventário (artigo 1352º do Código de Processo Civil) por princípio aplicáveis”.
“No entanto, a especificidade do inventário agora em causa impõe que os interesses do exequente sejam devidamente acautelados, o que desde logo exige a sua convocação para a conferência de interessados (o acórdão deste Supremo Tribunal de 3 de Fevereiro de 2008, www.dgsi.pt, proc. nº 08A3950) como decidiu definitivamente o acórdão recorrido ao julgar o agravo (nº 2 do artigo 754º do Código de Processo Civil); e, bem assim, a possibilidade de “intervenção nas questões relativas à verificação e satisfação dos seus direitos” (acórdão recorrido)”.
A oposição ao acordo alcançado pelos cônjuges teve pois que ser tomada em conta na decisão do tribunal de o homologar ou não; e a verdade é que não merece qualquer censura o acórdão recorrido enquanto, confirmando a sentença, considerou fundada a oposição. Se é certo que houve o cuidado de proteger o cônjuge não executado com algumas das regras do inventário especial do artigo 1406º do Código Civil, a verdade é que o interesse do credor não pode ser descurado, sendo manifesto que o acordo a que os cônjuges chegaram afecta relevantemente a consistência do seu direito. Justifica-se a recusa de homologação”.
Isto não significa, no entanto, que o seu acordo seja condição da homologação; seria aliás difícil conciliar a exigência deste acordo com a concessão, ao cônjuge requerente, do direito de escolha. Significa, apenas, que o tribunal deve ponderar a sua oposição e recusar a homologação de um eventual acordo com fundamento em lesão dos interesses do exequente”.
E não se agite com a circunstância de a homologação do acordo cercear as faculdades atribuídas aos credores no artigo 1357º do Código de Processo Civil, porquanto o passivo relacionado foi aprovado por ambos os interessados na conferência de interessados em que estavam presentes o credor hipotecário e o Ministério Público, que não lançaram mão de tais faculdades.
Porém, o artigo 1730.º do Código Civil dispõe:
1. Os cônjuges participam por metade no activo e no passivo da comunhão, sendo nula qualquer estipulação em sentido diverso.
2. A regra da metade não impede que cada um dos cônjuges faça em favor de terceiro doações ou deixas por conta da sua meação nos bens comuns, nos termos permitidos por lei.
Como referem Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil, Anotado, Volume IV, páginas 435 e seguinte, “O artigo 1730º impõe a regra da metade quanto à qualificação quanto à participação dos cônjuges no património comum”, o que significa que “… relativamente aos bens integrados na comunhão, quaisquer que eles sejam no caso concreto os cônjuges não poderão afastar-se da regra da metade”.
Por seu lado, no acórdão da Relação do Porto de 23/10/2012, disponível em www.dgsi.pt, escreve~se: “A norma que, proibindo estipulações entre os cônjuges, ou entre estes e terceiros, contrárias à regra da metade instituída para a participação dos cônjuges no património comum, tem especialmente em vista o momento da dissolução e partilha deste porquanto, na vigência da sociedade conjugal o património comum “pertence em bloco a ambos eles”ou seja, “são titulares de um único direito e de um direito uno.”
E porque se surpreendam na causa/função da norma motivos de interesse ordem publica, uma vez que como afirma Guilherme Oliveira (RLJ, Ano 129, página 286) “ao impor a regra da metade a ambos os cônjuges, o legislador deve ter querido evitar que um deles tentasse obter do outro um acordo injusto de uma partilha desigual, usando algum ascendente psicológico sobre o outro” – ou acrescentamos nós, por acordo de ambos, serem sonegados bens à execução de credores de um deles – a sanção estabelecida para a sua inobservância é a nulidade e é à luz do regime desta que importa decidir”.
No caso deste processo, o acordo de partilha proposto pelos interessados a violação daquela regra da metade é flagrante uma vez que são adjudicados à interessada mulher a maioria dos bens relacionados e o único imóvel, bem de maior valor, ainda que lhe tenha também sido adjudicada a totalidade do passivo – sendo que não pode deixar de ter-se em consideração que metade deste era já de sua responsabilidade – e não foi estipulado sequer o pagamento de tornas ao interessado, ao que poderá não ser estranha a penhora das tornas que lhe vierem a ser devidas.
Como assim, porque ferido o acordo da nulidade mencionada, justificava-se plenamente a recusa de homologação do mesmo.
Termos em que se acorda em negar provimento ao recurso e se confirma o despacho recorrido.
Custas pela Apelante.
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Guimarães, 20 de março de 2014
Carlos Guerra
José Estelita de Mendonça
Conceição Bucho