FURTO
CRIME SEMI-PÚBLICO
LEGITIMIDADE PARA A QUEIXA
OFENDIDO
PROPRIETÁRIO
POSSE
Sumário

Relativamente ao crime de furto simples previsto e punido pelo artigo 203 n.1 do Código Penal, que só pode ser perseguido mediante prévia queixa, também é ofendido e titular do interesse que a lei quis especialmente proteger aquele que, não sendo o dono da coisa móvel subtraída, tem sobre esta a disponibilidade de fruição das respectivas utilidades.
Assim, o legítimo possuidor da coisa, que lhe havia sido emprestada pelo seu proprietário, tem legitimidade para exercer o direito de queixa.

Texto Integral

Acordam em audiência na Secção Criminal da Relação do Porto:

No Tribunal Judicial da Comarca de ..... (... Juízo Criminal) foi julgado, em processo comum e perante o tribunal singular, o arguido Alberto ....., devidamente identificado nos autos, acusado pelo Ministério Público da prática de um crime de furto qualificado p. e p. pelos artºs 203º nº 1 e 204º nº 1 a) do CP.
A final foi o arguido condenado, como autor de um crime de furto simples, p. e p. pelo artº 203º nº 1 do CP, na pena de 180 dias de multa, à taxa diária de 600$00.
Do assim decidido vem interposto pelo arguido o presente recurso que, devidamente motivado, apresenta as seguintes conclusões:
1. O valor do veículo furtado era de 450.000$00, à data da prática dos factos.
2. O procedimento criminal depende de queixa - artº 203º nº 3 do CP.
3. A queixa apresentada foi-o pelo possuidor e não pelo proprietário.
4. Só o proprietário tem direito de queixa, pois estamos no domínio dos crimes contra a propriedade e não contra a posse.
5. A decisão recorrida violou o artº 203º nº 3 do CP e fez aplicação errada dos artºs 203º nº 1 do mesmo diploma.
O digno magistrado do Mº Pº junto do tribunal recorrido respondeu ao recurso, concluindo pela respectiva improcedência.
Nesta Relação emitiu o Exmo Procurador Geral-Adjunto parecer no sentido da rejeição do recurso, por manifestamente improcedente.
Corridos os vistos e efectuada a legal audiência, cumpre apreciar e decidir.
O tribunal a quo indica como provados os factos seguintes:
Cerca das 21h30m do dia 24/5/96 o arguido, utilizando um reboque, apoderou-se e levou para ..... o veículo ligeiro de mercadorias de matrícula ...-...-..., marca «.....», modelo «.....», cor azul, propriedade de Maria ....., mas que esta havia emprestado à sociedade «S....., Lda», da qual o queixoso Manuel ....., na altura, era sócio.
O veículo, que era utilizado pelo queixoso, encontrava-se estacionado junto da residência deste, sita na Rua .......... .
O valor do veículo, na altura era de cerca de 450.000$00.
Agiu o arguido de vontade deliberada, livre e consciente, com o propósito de fazer sua aquela viatura, como fez, apesar de bem saber que não lhe pertencia e que actuava contra a vontade do possuidor.
Sabia que tal conduta não era permitida.
O arguido é bate-chapas; sofre de síndrome depressivo grave, encontra-se aposentado por doença, recebendo cerca de 80.000$00 mensais; reside em casa própria.
Desconhecem-se antecedentes criminais.
Vejamos então, tendo presentes estes factos na parte que interessam ao conhecimento do recurso, o mérito do recurso, tendo em atenção que é pelas conclusões que o recorrente extrai da sua motivação que se determina o âmbito de conhecimento desta Relação.
E destas vê-se que a única coisa que o recorrente põe em causa é a ausência de queixa por parte do proprietário do veículo subtraído, do que decorrerá a inadmissibilidade da sua condenação.
Ora, é certo que não decorre dos autos que a proprietária do veículo tenha exercido qualquer direito de queixa.
Certo é igualmente que o crime praticado pelo recorrente e por que foi condenado só poderia ser perseguido mediante prévia queixa. Efectivamente, o crime de furto simples só pode ser accionado pelo titular da acção penal - o Mº Pº - se houver queixa prévia (artº 203º nº 3 do CP e artºs 48º e 49º nº 1 do CPP - , funcionando este acto, portanto, como condição de procedibilidade/legitimidade para a promoção do processo penal.
Simplesmente, em sítio algum exige ou sequer pressupõe a lei para o exercício da acção penal por crime de furto simples que tenha que ser sempre o proprietário a pessoa legitimada para apresentar a queixa.
Na verdade, o que a lei diz - artº 113º nº 1 do CP - é que quando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la, salvo disposição em contrário, o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.
Ora, por aqui se vê desde logo que, conforme salienta José de Faria Costa (Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, II, pág 33), o legislador, pelo menos para efeitos de legitimidade quanto ao exercício do direito de queixa, elegeu, como figura central o titular do interesse que a incriminação quis proteger e não o titular do direito. E isto não é de somenos para se afirmar que o que conta é o titular do interesse, ou seja, aquele que tem a disponibilidade da fruição das utilidades da coisa com um mínimo de representação jurídica.
É certo que no comum dos casos é a relação de propriedade que é atingida com o crime de furto, coincidindo na pessoa da vítima as qualidades de proprietária e fruidora do gozo (posse e mera posse) atinente às utilidades da coisa. Mas a verdade é que pode verificar-se, em certos casos, uma separação ou um corte, juridicamente aceite e até tutelado, entre essas duas qualidades. Daí que, como ainda expende José de Faria Costa (ob cit, pág 30), custe a admitir-se que, se entre o que tem a coisa e a própria coisa existe tão só uma relação de mera posse, se diga que o bem jurídico violado tenha sido a propriedade, sendo que quem então é ofendido na fruição das utilidades que da coisa podem ser retiradas é o mero possuidor. Daí que, adianta o mesmo autor, a relação jurídico-penalmente relevante seja a relação de gozo, rematando depois nos seguintes termos relativamente ao bem jurídico protegido no crime de furto: "Temos para nós que o bem jurídico aqui protegido se deve ver como a especial relação de facto sobre a coisa - poder de facto sobre a coisa -, tutelando-se, dessa maneira, a detenção ou mera posse como disponibilidade material da coisa; como disponibilidade da fruição das utilidades da coisa com um mínimo de representação jurídica. Desta forma percebemos o furto, sobretudo, como uma agressão ilegítima ao estado actual das relações, ainda que provisórias, dos homens com os bens materiais da vida na sua exteriorização material (...). (...) hoje o que verdadeiramente conta, sobretudo nas coisas móveis (...) é o valor de uso. É, por conseguinte, este valor de uso que é representado pela comunidade como elemento merecedor de protecção jurídico-penal. (...) o agente da infracção, quando desencadeia o elemento intencional da apropriação, pouco se importa com a exacta determinação do verdadeiro proprietário da coisa. O que ele quer, intencionalmente, é fazer sua - e que sabe que não é sua - aquela coisa de que se apossou. Quem perde, neste jogo sinalagmático, é aquele que podia, concretamente, retirar utilidades da coisa. (...). (...) dever-se á dizer que perante uma actual concepção de bem jurídico não tem sentido falar-se de que é protegida, in casu, a abstracção que o direito de propriedade qua tale, representa.(...). Ora, enquanto pedaço da realidade não é o direito de propriedade que nos interessa, mas antes a especial relação que intercede entre o detentor da coisa e a própria coisa".
Julgamos que é de subscrever este entendimento, do que resulta então que também é ofendido e titular do interesse que a lei quis especialmente proteger relativamente crime de furto aquele que, não sendo embora o dono da coisa móvel subtraída, tem sobre esta a disponibilidade de fruição das respectivas utilidades.
Ora, é o que se passa precisamente no caso vertente: o veículo subtraído estava legitimamente na posse da sociedade «Saco a Saco, Lda» que, pela pessoa de um seu sócio e também gerente (v. pacto social de fls 37) - Manuel ..... - apresentou a queixa. E estava legitimamente na posse desta sociedade por isso que à mesma havia sido emprestado pela proprietária.
Donde, foi a queixa apresentada por quem, por ser legítimo possuidor e ter a disponibilidade da fruição da coisa, para tanto tinha a faculdade (legitimidade) de o fazer.
Improcedem assim as conclusões do recurso.
Decisão:
Pelo exposto acordam os juízes desta Relação em negar provimento ao recurso, confirmando, na parte em questão, a sentença recorrida.
Regime de Custas:
O recorrente é condenado nas custas do recurso, fixando-se em 3 Uc’s a taxa de justiça.
Fixam-se em 13.500$00 os honorários do i. defensor nomeado na audiência desta Relação.
Porto, 28 de Fevereiro de 2001
José Inácio Manso Raínho
Pedro dos Santos Gonçalves Antunes
José Alcides Pires Neves Magalhães
José Casimiro da Fonseca Guimarães