ARMA PROIBIDA
PRINCÍPIO DA LEGALIDADE
Sumário

I – O princípio da legalidade impõe que a norma descreva de forma clara, precisa e rigorosa, a conduta ou o facto considerado criminalmente reprovável.
II – O termo «BASTÃO», que consta da norma da al. d) do art. 86 da Lei 5/2006 de 23-2 como objeto de detenção proibida, não tem o significado com que é usado na linguagem comum – objeto que tem a função de “arrimo”, “encosto”, “amparo”, “bengala para apoio”. Tal equivaleria a englobar no conceito um número indeterminado de objetos que, sendo indispensáveis para múltiplas atividades humanas licitas, podem igualmente ser usados como instrumentos de agressão. É o caso de bengalas, varas, cajados, cabos de enxada, bordões dos peregrinos de Santiago, etc..
III – No contexto da redação da norma, tal termo refere-se aos objetos iguais, ou similares, aos «bastões», vulgarmente transportados à cintura pelos membros das forças policiais, para serem usados quando é necessário empregar a força para a manutenção da ordem.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
No 3º Juízo Criminal de Guimarães, em processo comum com intervenção do tribunal singular (Proc. nº 464/11.7GBGMR), foi proferida sentença que condenou o arguido Joaquim M... pela prática, em autoria material, de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea d), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 17/2009, de 06 de Maio, na pena de 160 (cento e sessenta) dias de multa, à razão diária de € 5,00 (cinco euros), o que perfaz a pena de multa de € 800,00 (oitocentos euros).

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O arguido Joaquim M...interpôs recurso desta sentença, suscitando as seguintes questões:
- impugna a decisão sobre a matéria de facto;

- argui a existência do vício do erro notório na apreciação da prova;

- alega que os factos não integram a prática do crime por que foi condenado;

- questiona a medida da pena aplicada.


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Respondendo, a magistrada do MP junto do tribunal recorrido defendeu a improcedência do recurso.

Nesta instância, a sra. procuradora-geral adjunta emitiu parecer no mesmo sentido.

Cumpriu-se o disposto no art. 417 nº 2 do CPP.

Colhidos os vistos cumpre decidir.


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I – Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos (transcrição):
1) No dia 05 de Abril de 2011, pelas 09h00m, na Rua de S. João, em Airão, S. João - Guimarães, o arguido Joaquim M...detinha e transportava no porta bagagens do veículo ligeiro de passageiros com a matrícula 56-88-... que conduzia, um bastão com corpo em madeira de cor castanha e vermelha, com um suporte para a mão em cordão, com um comprimento total de 63 cm, não tendo justificado a sua posse;
2) O arguido era conhecedor das características do bastão que detinha e transportava, bem sabendo que não o podia fazer nas referidas circunstâncias, porquanto não justificou a sua posse e o mesmo serve como arma de agressão e, ainda assim, quis detê-lo e transportá-lo nas circunstâncias supra descritas;
3) O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei;
4) O arguido é casado e vive com a esposa e uma filha de 11 anos em casa arrendada, pagando de renda € 80,00;
5) Encontra-se desempregado há cerca de 2 anos, não recebendo subsídio de desemprego e a esposa está em processo de reforma por doença;
6) Como rendimentos têm apenas € 270,00 mensais de Rendimento Social de Inserção;
7) Tem a 4ª classe e não tem antecedentes criminais.
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Transcreve-se igualmente a fundamentação da decisão sobre a matéria de facto
Para além dos documentos juntos aos autos, nomeadamente o auto de apreensão e auto de exame, bem como as fotografias, a convicção do tribunal fundou-se nas declarações do arguido, quer quanto às suas condições pessoais, quer quanto à posse bastão, que não justificou, não merecendo credibilidade na parte em que se refere que o utilizava, até há cerca de 10 anos atrás, para jogar basebol com um sobrinho e que entretanto andava com ele no carro, dizendo, incoerentemente que o trazia no carro para deitar fora (durante 10 anos!) e depois dizer que não sabia para que o tinha no carro.
Por outro lado, a testemunha Nuno D..., militar da GNR que fiscalizou o arguido, em depoimento preciso e que não suscitou quaisquer dúvidas quanto à sua credibilidade, referiu que o bastão se encontrava na mala do carro, visível quando se abria e que o arguido disse que trazia ali o bastão para qualquer eventualidade.
Ora, da análise da prova resulta que o arguido efectivamente não trazia no carro o referido bastão como objecto para prática de desporto e que bem sabia que não podia deter o objecto em causa, pois acaba por dizer que era para deitar fora, desfazer-se dele, donde se conclui conhecer a proibição da sua posse, caso contrário nada lhe podia acontecer se o trouxesse no carro, a não ser, como referiu, que o trouxesse no carro para qualquer eventualidade, ou seja, para ser utilizado como objecto de agressão. Por outro lado, é do conhecimento geral da população, que instrumentos como o detido pelo arguido são vulgarmente transportados em veículos e utilizados como instrumentos de agressão, como frequentemente é noticiado pela comunicação social.
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FUNDAMENTAÇÃO

Suscita-se a questão prévia de saber se o objeto que o arguido transportava no seu carro, deve ser considerada «arma proibida», porque enquadrável em algum dos objetos elencados no art. 86.º, n.º 1, alínea d), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro.

Uma primeira nota: ao contrário do que perpassa da fundamentação da sentença não é elemento do tipo de crime a detenção do objeto ser feita com a específica intenção de ser usado como “arma” de defesa ou agressão. Esse elemento em nenhuma parte é referido no texto da norma. A lei não criminaliza “a detenção de quaisquer objetos que possam ser usados como arma de agressão ou defesa, quando detidos com tal intenção”. Em todo o caso, tal específica intenção de agressão não foi alegada na acusação, pelo que é facto que nunca poderia ser considerado.


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Decorre dos documentos juntos aos autos (para os quais remete a motivação da decisão sobre a matéria de facto), que se trata de um objeto em madeira (fls. 3), com o comprimento de 63 cm, castanho e vermelho, com a inscrição em letras brancas “O GLORIOSO” (fls. 6).

Na sentença considerou-se que o objeto em causa é enquadrável no conceito de «BASTÃO», mencionado na al. d) do nº 1 do art. 86 da Lei 5/2006 de 23-2, como objeto de detenção proibida.

Na realidade, aquela norma elenca várias “armas”, a saber:

- arma da classe E,

- arma branca dissimulada sob a forma de outro objecto,

- faca de abertura automática,

estilete,

- faca de borboleta,

- faca de arremesso,

- estrela de lançar,

- boxers,

- outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse,

-aerossóis de defesa não constantes da alínea a) do n.º 7 do artigo 3.º,

armas lançadoras de gases,

- bastão,

- bastão extensível,

- bastão eléctrico,

- armas eléctricas não constantes da alínea b) do n.º 7 do artigo 3.º,

- quaisquer engenhos ou instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão,

- silenciador,

- partes essenciais da arma de fogo, bem como munições de armas de fogo independentemente do tipo de projéctil utilizado…

Há, pois, que determinar que objetos cabem no conceito de «bastão» desta norma.

A sentença recorrida considerou o significado corrente da palavra. Transcreve-se: “Segundo a definição da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, bastão, é “um pau que se pode trazer na mão como arrimo ou arma de defesa”.

“Arrimo” significa “encosto”, “amparo”.

Similarmente, o Dicionário da Porto Editora, 3ª edição, define «bastão» como “espécie de bengala para apoio ou para servir de arma ofensiva ou defensiva”, “bordão”, “báculo”. Segundo este dicionário «bordão» é um “pau que serve para apoio de quem caminha”, “bastão”, “cajado”.

Considerar o mero significado corrente da palavra, para determinar o alcance do conceito de «bastão» usado na norma da al. d) do art. 86 da Lei 8/2006 de 23-2, violaria o princípio da legalidade. “A legalidade dos ilícitos é conseguida através da técnica a tipicidade, que consiste em descrever, de forma clara, precisa e rigorosa, a conduta ou o facto considerados criminalmente reprováveis. Esta descrição é aquilo que constitui o que se chama “tipo” e assim aquela conduta ou aquele facto são chamados “conduta típica” ou “facto típico” – Teresa Beleza, Direito Penal, 2ª ed., Volume I, pag. 73, citado por António Beça Pereira, em anotação ao art. 2 do RGCO, Almedina, 1997 (sublinhado do relator).

Fazer coincidir o conceito usado na norma com o significado que o termo tem na linguagem comum, equivaleria a englobar no conceito um número indeterminado de objetos que, sendo indispensáveis para múltiplas atividades humanas licitas, podem igualmente ser usados como instrumentos de agressão. É o caso de bengalas, varas, cajados, cabos de enxada, bordões dos peregrinos de Santiago, etc. etc..

Isso teria como consequência deixar à decisão subjetiva e arbitrária de cada aplicador da lei, o juízo, em cada caso concreto, sobre se determinado objeto deve ser considerado «bastão», para o efeito da lei penal, ou apenas um instrumento de uso comum, o que afrontaria o princípio da legalidade. “O critério decisivo para aferir do respeito pelo princípio da legalidade (…) residirá sempre em saber se (…) do conjunto da regulamentação típica deriva ou não uma área e um fim de proteção da norma claramente determinados” – Figueiredo Dias, Direito Penal, tomo I, ed. 2004, pag. 174.

(Ainda assim, considerando o sentido vulgar da palavra, só muito dificilmente se poderá considerar que um objeto de madeira com 63 cm de comprimento é um «bastão». Tendo o «bastão», como se referiu, a função de “arrimo”, “encosto”, “amparo”, “bengala para apoio”, um objeto tão curto apenas poderá ter tal utilidade para pessoas de estatura muito inferior ao normal)

Quais, então, os objetos enquadráveis no conceito usado na norma? São os objetos iguais, ou similares, aos «bastões», vulgarmente transportados à cintura pelos membros das forças policiais, para serem usados quando é necessário o uso da força para a manutenção da ordem.
A colocação da palavra no contexto da redação da norma aponta neste sentido. O termo «bastão» foi colocado junto de «bastão extensível» e de «bastão elétrico», todos instrumentos detidos pelas forças policiais com o único fim de serem usados quando é necessário empregar a força. São objetos a que o legislador não reconhece outra utilidade socialmente admissível, tendo vedado aos particulares a sua detenção, criminalizando a conduta.

Ora, o objeto detido pelo arguido não tem tais características. Pode, naturalmente, ser usado para perpetrar uma agressão, como qualquer pau de idênticas dimensões e dureza, mas pode, igualmente, ser um instrumento indispensável em brincadeiras de crianças – instrumentos em tudo similares ao em causa neste processo são vendidos em lojas especializadas em brinquedos de crianças, como “tacos” de basebol, integrados em “conjuntos de basebol”, juntamente com bolas e luvas próprias para a prática deste desporto.

Por isso, atentas as características objetivas do instrumento, igualmente não poderia ser formulado o juízo de que se trata de “engenho ou instrumento construído exclusivamente com o fim de ser utilizado como arma de agressão”, conforme se prevê noutro segmento da norma da al. d) do nº 1 do art. 86 da Lei 5/2006 de 23-2. Aliás, nunca foi defendido este enquadramento por qualquer dos sujeitos processuais.

Deve, pois, o arguido ser absolvido.

DECISÃO
Os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães absolvem o arguido Joaquim M....
Sem custas.