DESPACHO
ESGOTAMENTO DO PODER JURISDICIONAL
RETIFICAÇÃO
Sumário

I - Não configura erro material a admissão de uma parte como testemunha, na convicção de que a pessoa arrolada não é parte.
II - Mostrando-se esgotado o poder jurisdicional, o despacho em que é dado sem efeito o despacho antecedente, é inexistente.

Texto Integral

Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Guimarães:
I - Relatório

J… veio deduzir oposição à execução que lhe move o Banco…, SA.

Por despacho de fls 66 destes autos de recurso em separado, datado de 13.11.2013, foi admitido o aditamento ao rol de testemunhas efectuado pelo Banco exequente, de C… ..

Por requerimento de fls 68 veio o executado J… referir que a pessoa indicada é co-executada, pelo que não pode depor na qualidade de testemunha.

Na sequência do requerimento de fls 68, o Mmo Juiz a quo proferiu o seguinte despacho:

“De facto, assiste razão ao executado.

Com efeito, o Banco Exequente veio requerer, a fls. 163, o aditamento da por si referida como sendo testemunha C… , a qual foi admitido.

Porém, constata-se agora, que tal "testemunha", afinal é uma co-executada; logo, a mesma encontra-se impedida de depor como testemunha, pelo que não se admite o seu depoimento como testemunha por legalmente impossível, nos termos do art. 496º do N.C.P.C., e assim fica sem efeito o despacho de fls. 165, 2ª parte.

Face ao exposto, notifique o Executado para, em 10 dias, vir esclarecer se mantém interesse na inquirição das testemunhas ora indicadas a fls. 167; e em caso afirmativo, terá de lançar mão do competente preceito legal. “

Não se conformando com o referido despacho veio o exequente interpor o presente recurso, tendo formulado as seguintes conclusões:

.1. O despacho recorrido deu sem efeito o despacho de fls 165-2º parte que admitia o aditamento da testemunha C… ao rol de testemunhas apresentado pelo exequente.

.2. Por simples requerimento apresentado nos autos, o Opoente, em 19 de Novembro de 2013, veio alegar que a testemunha aditada pelo Exequente era parte no processo de Oposição à Execução e como tal estava impedida de depor como testemunha.

.3. Na sequência desse requerimento, o Tribunal proferiu despacho, em 9 de Dezembro de 2013 em que dava sem efeito o despacho de fls 165, 2ª e, consequentemente, não admitiu o depoimento da testemunha C… aditada pelo Exequente.

.4. O meio próprio para o Opoente reagir ao despacho de fls 165 seria a apresentação de recurso de apelação, uma vez que a decisão de admissão ou não do depoimento da testemunha C… não se inclui em qualquer das situações elencadas quer no nº 1 do artº 667º do CPC quer no artº 669º do mesmo diploma legal.

.5. Assim sendo, proferido o despacho de fls 165 esgotou-se o poder jurisdicional do Juiz, conforme disposto no artº 666º nº 1 do CPC, aplicável por força do nº 3 do mesmo artigo, não sendo por isso admissível o despacho de não admissão do depoimento de C… proferido em 06 de Dezembro de 2013 deverá ser considerado inválido e inexistente, conforme decidido pelo Acórdão invocado.

.6. A executada não deduziu oposição à execução é estranha ao próprio processo de Oposição, pelo que não pode no mesmo ser reputada como parte opoente e, portanto, como comparte de quem efectivamente deduziu essa oposição.

.7. Perante a letra do artº 553º nº 3, não é admissível a prestação do seu depoimento como depoimento de (com)parte.

.8. O despacho recorrido violou assim o disposto no nº 1 do artº 666º do CPC e, bem assim, caso assim não se entenda, o disposto nos artigos 553º nº 3 e 512º A do mesmo diploma legal.

A parte contrária não contra-alegou.

II – Objecto do recurso

Considerando que:

. o objecto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações dos recorrentes, estando vedado a este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso; e,

. os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu acto, em princípio delimitado pelo conteúdo do acto recorrido,

As questões a decidir são as seguintes:

. se depois de ter admitido a co-executada a prestar depoimento como testemunha, o Mmo. Juiz a quo poderia dar sem efeito o seu despacho;

. e podendo-o fazer, se o co-executado que não deduziu oposição, pode depôr como testemunha.

III – Fundamentação

A situação factual é a supra descrita.

A questão será apreciada à luz dos preceitos do Novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei 41/2013, por força do disposto no artº 5º nº 1º do diploma que o aprovou, tendo o despacho recorrido sido já proferido após a sua entrada em vigor[1].

Nos termos do nº 1 do artº 613º do CPC proferida a sentença fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa. E de acordo com o estatuído no nº3 do mesmo preceito legal, o disposto nos números anteriores aplica-se com as necessárias adaptações aos despachos.

Por força do disposto no mencionado artigo, vedado está ao juiz dar sem efeito um despacho anteriormente proferido, ainda que o faça antes do decurso do prazo concedido às partes para recorrer. A parte afectada com a decisão, se não concordar com a mesma poderá requerer a reforma da decisão, verificados os pressupostos previstos nas alíneas a) e b) do nº 2 do artº 616º do CPC, desde que a decisão não admita recurso. Cabendo recurso da decisão, atento o valor da causa, como ocorre no caso, poderia o recorrente suscitar a reforma no âmbito do recurso interposto da decisão, competindo ao juiz no próprio despacho em que se pronuncia sobre a admissibilidade do recurso, apreciar o pedido de reforma (artº 617/nº1).

No caso o apelado não interpôs recurso do despacho que admitiu a prestação do depoimento de parte da co-executada. Veio, outrossim, mediante requerimento de 19.11.2013, pronunciar-se no sentido de que a co-executada não podia depor como testemunha e requerer por sua vez também um aditamento ao rol de testemunhas. Não utilizou assim o meio ao seu alcance – a interposição de recurso - para alterar a decisão.

Como escreve Amâncio Ferreira, «editada a sentença (ou o despacho ou o acórdão) fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do Juiz quanto à matéria da causa (artº 666º, nº 1). Não pode consequentemente o Juiz, por sua iniciativa, alterar a sentença depois de proferida, quer na parte da decisão, quer na parte dos fundamentos que a suportam. Mesmo que após a sua prolação, no imediato ou algum tempo depois, adquira a convicção de que errou ou se torne para ele evidente que a decisão desrespeitou o quadro legal vigente, não a pode já emendar. A decisão torna-se intangível para o seu autor»(2).

O esgotamento do poder jurisdicional tem por base a necessidade de assegurar a estabilidade das decisões dos tribunais, mas não é absoluto, sofrendo de algumas limitações, previstas na lei que admite a correcção de certos defeitos da sentença, como a reforma e, em certos casos, a rectificação da sentença por erros materiais. Ao Tribunal apenas é permitida a rectificação de erros materiais, ainda que a decisão tenha transitado em julgado, nos casos previstos no nº 1 do artº 614º do CPC: omissão dos nomes das partes, omissão quanto a custas ou algum dos elementos previstos no nº 6 do artº 607º, ou contiver erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexactidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto. A rectificação, em caso de recurso terá que ter lugar antes de ele subir (nº 2 do artº 614º do CPC).

No caso, não tendo sido interposto recurso, no qual fosse requerida a reforma da sentença, a alteração da decisão apenas podia ter lugar nas situações previstas no artº 614º do CPC.

E poder-se-á considerar que ocorreu um erro material, pelo que o Mmo Juiz poderia alterar a decisão, rectificando-a?

O Mmo Juiz no despacho recorrido refere só ter constatado nesse momento que a pessoa indicada como testemunha era co-executada.

Como salienta Alberto dos Reis “o erro material dá-se quando o juiz escreveu coisa diversa do que queria escrever, quando o teor do despacho não coincide com o que o juiz tinha em mente exarar, quando em suma a vontade declarada diverge da vontade real. O juiz queria escrever “absolvo” e por lapso, inconsideração, distracção, escreveu precisamente o contrário: condeno.

O erro de julgamento é espécie completamente diferente. O juiz disse o que queria dizer; mas decidiu mal, decidiu contra lei expressa ou contra os factos apurados. Está errado o julgamento. Ainda que o juiz logo a seguir, se convença de que errou, não pode socorrer-se do artº 667º para emendar o erro”.

Por sua vez Liebman(3) ensina que “erro material é o erro na expressão, não no pensamento; somente a leitura da sentença deve tornar evidente que o juiz ao manifestar o seu pensamento, usou nomes, palavras ou algarismos diversos daqueles que deveria ter usado para exprimir fiel e correctamente as ideias que tinha em mente…Por outras palavras o erro material é o que fica a dever-se a uma desatenção ou a um engano ocorrido na operação de redacção do acto”.

Também a lei civil prevê a rectificação de erros de cálculo ou de escrita, revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita (artº 249º do CC).

Não se põe em causa o afirmado pelo Mmo Juiz a quo no despacho recorrido de que só nessa altura se apercebeu que a pessoa indicada no aditamento ao rol de testemunhas era co-executada (o que é perfeitamente admissível, pois que no requerimento a pedir o aditamento não é feita qualquer referência a essa qualidade, e é indicada a morada da testemunha, sem fazer qualquer referência a que se encontrava já identificada na execução). No entanto, tal erro não se reconduz a erro material. O Mmo Juiz escreveu o que pretendia escrever.

Ainda que assim não se entendesse, a decisão de 13.11.2013 não podia ser rectificada, por não ser manifesta a ocorrência desse erro, como exige a lei para permitir a rectificação. A exigência de ser apenas rectificável a inexactidão manifesta, é a mesma que está na base do esgotamento, em regra, do poder jurisdicional após a prolação de uma decisão: a estabilidade e a certeza jurídica.

O despacho recorrido, ao revogar o despacho anterior, estando esgotado o poder jurisdicional do julgador, está assim ferido de inexistência jurídica(4).

Assim, impõe-se a revogação do despacho recorrido, mantendo-se o despacho que admitiu o depoimento como testemunha da co-executada, que não é parte na oposição, ficando prejudicada a segunda questão suscitada. Não deixará, contudo, de referir-se que se considerarmos a acção de oposição à execução, na senda do defendido por Lebre de Freitas como uma acção estruturalmente autónoma, cujo corolário é a possibilidade das partes não serem as mesmas num e noutro processo, sendo o co-executado que não deduziu oposição terceiro relativamente ao processo de execução, não sendo abrangido pela eficácia do caso julgado que nele se forme[5] … A acção executiva depois da reforma da reforma, 5ª edição, reimpressão, Coimbra Editora, p.196., ter-se-á que admitir a prestação de depoimento na qualidade de testemunha do co-executado que não deduz oposição. Efectivamente o que caracteriza a posição da testemunha é precisamente a sua qualidade de terceiro face a uma concreta relação processual.

Sempre se dirá, contudo, que, independentemente da qualidade em que a executada for ouvida, o Tribunal não deixará de ter presente, ao valorar a prova, o seu eventual interesse no desfecho da oposição.

Sumário:

. Não configura erro material a admissão de uma parte como testemunha, na convicção de que a pessoa arrolada não é parte.

. Mostrando-se esgotado o poder jurisdicional, o despacho em que é dado sem efeito o despacho antecedente, é inexistente.

IV – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal em julgar procedente a apelação, revogando a decisão recorrida, declarando a inexistência da decisão recorrida na parte em que dá sem efeito a decisão proferida em 13.11.2013, que assim se mantém.

Custas pelo apelado.

Guimarães, 22 de Maio de 2014

Helena Melo

Heitor Gonçalves

Amílcar Andrade

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[1] Porque os preceitos do Código do Processo Civil a considerar para a apreciação do presente recurso, na redacção anterior à da Lei 41/2013, são assaz semelhantes aos introduzidos pela L 41/2013, a decisão seria a mesma se fosse apreciada à luz da redacção anterior.

[2] Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 9ª Edição, Almedina, 2009, p. 47.

[3] Citado por Amâncio Ferreira, obra citada, p. 50.

[4] Cfr. se defende no Ac. do STJ de 06.05.2010, proferido no proc. 4670/2000, acessível em www.dgsi.pt e José Lebre de Freitas e outros, Código de Processo Civil Anotado, volume 2º, Coimbra Editora, 2001, anotação ao artº 666º. No sentido da nulidade absoluta e não da inexistência, porque apesar de se ter esgotado o poder jurisdicional do Tribunal quanto à matéria da causa, a decisão foi proferida por órgão investido de poder jurisdicional, Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil, Anotado”, Vol. 5 (Reimpressão, 1981), pág. 113 e segs.

[5] A acção executiva depois da reforma da reforma, 5ª edição, reimpressão, Coimbra Editora, p.196.