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HOMICÍDIO
HOMICÍDIO QUALIFICADO
MEIO PARTICULARMENTE PERIGOSO
ESPECIAL CENSURABILIDADE DO AGENTE
ATENUAÇÃO ESPECIAL DA PENA
MEDIDA DA PENA
Sumário
A utilização de um meio particularmente perigoso não envolve necessariamente a qualificação do crime de homicídio, por tal circunstância não ser de preenchimento automático, antes é necessário que releve a especial censurabilidade ou perversidade do agente para ter lugar o agravamento do crime. Provado que o arguido, em reacção pronta à atitude da vítima que acabara de agredir a companheira daquele com um pontapé e na discussão que se seguiu, utilizou uma foice roçadoira que tinha mais à mão, com ela desferindo uma violenta pancada na cabeça da vítima, é de afastar a qualificação do crime pois, a despeito da natural perigosidade desse instrumento, que não traduz aliás uma perigosidade muito superior à normal dos meios usados para matar, não se releva a especial censurabilidade ou perversidade exigida pelo n.1 do artigo 132 do Código Penal. Provado que a agressão da vítima à companheira do arguido, que lhe provocou uma equimose que determinou doença por 12 dias, não produziu no arguido um estado emotivo de excitação, cólera ou dor, que lhe tivessem alterado as suas condições e capacidades de determinação - todos eles viviam em economia comum, em clima permanente de tensão e de conflito, com discussões diárias - sendo evidente a desproporção entre a gravidade da ofensa corporal à companheira do arguido e a violência da reacção deste, há que concluir não se verificarem os pressupostos necessários à atenuação especial da pena. Considerando que o arguido agiu com dolo directo, parcialmente embriagado, que era irmão da vítima que se encontrava completamente embriagado, que actuou com superioridade em razão do crime, estando a vitima desprevenida, a confissão parcial, a rudeza do seu carácter e o seu bom comportamento, afigura-se ajustada a pena de 12 anos de prisão pelo crime do artigo 131 do Código Penal.
Texto Integral
Acordam na Relação do Porto:
Na comarca de ......, o Mº Pº deduziu acusação, em processo comum e tribunal colectivo, do arguido JOÃO......, com os sinais dos autos, imputando-lhe a autoria material de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artº 131º e 132º, nº 1 e 2, al. d), g) e i), do C.Penal.
O arguido contestou, invocando o merecimento dos autos e tudo o mais que, em seu benefício, viesse a resultar da discussão da causa.
E, realizado o julgamento, foi oportunamente proferido acórdão que, julgando a acusação procedente, condenou o arguido, como autor material de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artº 131º e 132º, nº 1 e 2, al. g), citados, na pena de 16 (dezasseis) anos de prisão.
Inconformado, o arguido interpôs o presente recurso, que dirigiu ao STJ, tendo encerrado a sua motivação nos termos seguintes:
1. Foi o arguido condenado pela prática de homicídio qualificado. Porém, o circunstancialismo em que o crime ocorreu não permite concluir pela especial censurabilidade ou perversidade prevista no n° 1 do artº 132º do C.Penal.
2. Aliás, no acórdão recorrido ficou provado que o circunstancialismo
em que o crime ocorrera não permite concluir que o arguido tenha agido por motivo fútil nem com frieza de ânimo.
3. O uso da foice roçadoira resultou de gesto irreflectido, praticado num momento de emoção relevante provocada pela conduta da vítima e por este objecto estar ali mesmo à mão, no local da ocorrência dos factos,
4. Circunstâncias essas às quais tem de se juntar o facto do arguido ser uma pessoa com limitações nas suas capacidades volitivas e mentais, quer pelas carências de instrução, quer pela quantidade de álcool que já havia ingerido naquele momento.
5. Ao considerar tal circunstancialismo impeditivo da qualificação do homicídio em relação a umas alíneas do n° 2 do artº 132º e não já de outras, o douto acórdão recorrido é, em si mesmo, contraditório, violador do disposto no n° 1 e 2, al. g), do artº 132º do C.Penal e, por consequência, do disposto no artº 131º desse diploma legal.
6. Fazendo funcionar, incorrectamente, a al. g) do nº 2 do artº 132º de forma automática, enfermando, assim, de contradição insanável entre a sua fundamentação e a decisão, incorrendo no âmbito do disposto na al. b) do nº 2 do artº 410º do C.P.Penal.
7. Deve o arguido ser condenado apenas pela prática do homicídio p. p. no artº 131º do C.Penal, com atenuação especial da pena em virtude da sua conduta ter resultado da provocação injusta por parte da vítima ao agredir a companheira do arguido e ao tentar impedir a confecção do jantar deste - artº 72º, n° 2, al. b) -, ou, se assim se não entender, com uma pena muito próxima do limite mínimo, atendendo ao referenciado circunstancialismo em que os factos ocorreram, bastante redutor da culpa do arguido, à relevante confissão do arguido e ao seu bom comportamento anterior e posterior aos factos.
8. Ao decidir de forma diferente, incorreu o acórdão recorrido na previsão do artº 410º, nº 2, al. c), do C.P.Penal, por erro notório na apreciação da prova.
Na resposta, o Exmº Procurador da República sustenta a falta de razão do recorrente e conclui pela confirmação da decisão impugnada.
Remetido o processo ao STJ, aí foi proferido acórdão (fls. 336 a 338), julgando competente esta Relação, no entendimento de que o recurso não visa exclusivamente o reexame da matéria de direito.
Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto, em douto parecer, revela-se concordante com a tese recursória na parte em que se questiona a integração da conduta do arguido na figura do homicídio qualificado, pelo que se pronuncia pela sua condenação pelo crime de homicídio simples, com redução da pena para valores próximos do termo médio da respectiva pena abstracta.
Notificado nos termos e para os fins previstos no nº 2 do artº 417º do C.P.Penal, o arguido não respondeu.
Assim, cumpridos os vistos e realizada a audiência, cabe decidir.
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O Tribunal Colectivo houve como provada esta matéria de facto:
1. Antes de estar preso, o arguido vivia, em economia comum, com a sua companheira, Margarida......, e com os seus irmãos, David...... e António......, na localidade de......, freguesia de ......, comarca de .......
2. Aí, ocupavam duas pequenas e modestas casas de habitação, herdadas pelo arguido e seus irmãos por morte dos pais, situadas muito perto uma da outra. Numa delas, dormiam o arguido, a sua companheira e o António e na outra, apenas com um quarto e uma cozinha, dormia o David.
3. Era nesta última casa que todos eles tomavam as suas refeições, as quais eram aí confeccionadas pela Margarida, única mulher deste agregado familiar.
4. No entanto, existia um permanente clima de tensão e de conflito entre o arguido e os referidos seus irmãos, havendo discussões diárias entre eles, devido ao facto de o David e o António não trabalharem e de não contribuírem para as despesas domésticas, que eram suportadas apenas pelo arguido, com o seu magro salário de 2000$00 por dia, auferido como trabalhador por conta de outrem, numa pedreira.
5. Acresce que, quer o David, quer o António, gastavam em vinho a totalidade da pensão por invalidez que cada um deles recebia da Segurança Social Portuguesa.
6. No dia 10 de Setembro de 1999, cerca das 23 horas, o arguido dirigiu-se à mencionada casa onde pernoitava o David, a fim de aí jantar, como era habitual, e deparou com o seu irmão António...., surdo-mudo desde tenra idade, e a referida Margarida na cozinha dessa habitação.
7. Apercebeu-se, então, que o António desferiu um pontapé na perna esquerda da Margarida, atingindo-a no terço médio da face antero-interna e provocando-lhe, como consequência directa e necessária da agressão, uma equimose de forma triangular com cerca de 4 cm de base por 5 cm de altura que lhe determinou doença pelo período de 12 (doze) dias, todos com incapacidade para o trabalho.
8. Em face disto, o arguido logo acorreu em auxílio da sua companheira e começou a discutir com o seu irmão António, o qual se preparou para retirar o redutor da botija de gás que estava ligada ao fogão, onde a Margarida preparava o jantar.
9. Foi então que o arguido pegou na foice roçadoira, constituída por uma lâmina em aço com 30 cm de comprimento e por um cabo em madeira medindo 1,05 metros, que se encontrava guardada num canto daquela cozinha, junto à lareira, segurou-a pelo cabo com ambas as mãos e, aproveitando a circunstância de o António..... estar de costas para si, ergueu essa foice e com ela desferiu uma violenta pancada na cabeça deste seu irmão, atingindo-o na região parieto-occipital, com a parte afïada da lâmina da mesma.
10. Acto contínuo, o António tombou no soalho da cozinha, onde ficou de bruços, perto do fogão, sem dar mais sinais de vida.
11. Em resultado de tão forte pancada, o António sofreu três fracturas, de forma linear, de bordos infiltrados de sangue, duas delas localizadas na região occipito-parietal esquerda e a outra na região parietal esquerda, iniciando-se estas duas na primeira, a qual media vinte e três centímetros de comprimento, com laceração e infiltração sanguínea da dura-máter parieto-occipital, hemorragia sub-aracnoideia occipital e parietal esquerda e, ainda, laceração do parénquima encefálico, nos lobos parietal e occipital, à esquerda, com focos de contusão na vizinhança, lesões estas que foram causa directa e necessária da sua morte, ocorrida pouco tempo depois.
12. O corpo da vítima foi encontrado pelo seu irmão David, no chão da dita cozinha, pelas 23,30 horas desse dia 10, e foi ele que logo telefonou para os bombeiros de ......, os quais acabaram por transportar aquele corpo ao Centro de Saúde dessa vila, onde deu entrada já cadáver, pois o médico de serviço limitou-se a verificar o óbito, pela uma hora e dez minutos do dia seguinte.
13. Ainda antes de a vítima ser transportada para Castro Daire, o arguido dirigiu-se ao estabelecimento de café da testemunha Lucinda......, que dista da casa dele cerca de 200 metros, pediu uma cerveja e foi bebê-la para a rua, sem dizer uma palavra acerca do ocorrido.
14. O arguido agiu de vontade livre e consciente, com o propósito de tirar a vida ao seu irmão António....., o que conseguiu, bem sabendo que a sua conduta o fazia incorrer em responsabilidade criminal.
15. O seu irmão António encontrava-se completamente embriagado e, por isso, diminuído nas suas faculdades mentais, pois apresentava uma taxa de álcool no sangue (TAS) de 3, 80 g/l.
16. Por sua vez, o arguido apresentou uma taxa de álcool no sangue de 1,95 g/l, o que lhe diminuiu ligeiramente as suas capacidades mentais, mas sem que tivesse procurado esse seu estado.
17. Confessou ter desferido a pancada com a foice roçadoira e ter atingido o António na cabeça.
18. Agiu com a finalidade de castigar o António, por este ter agredido a sua companheira e se propor desligar o gás.
19. Antes de preso, exercia a actividade de carregador numa empresa de extracção de areia e vivia com a sua companheira e os seus dois referidos irmãos. Tinha hábitos alcoólicos e limitações cognitivas, já que apenas frequentou a 1ª classe, não sabendo ler nem escrever.
20. No seu certificado de registo criminal, consta uma condenação em pena de multa pela prática de um crime de injúrias em 12/9/95, por sentença de 19/12/96.
21. Apesar disso, tem mantido bom comportamento, sendo estimado pela maioria das pessoas que com ele convivem.
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Consignou-se seguidamente não se terem provado quaisquer outros factos, designadamente que:
- A Margarida fugiu para a outra casa, deixando o arguido e o António a discutir;
- Após ter desferido a pancada, o arguido abandonou o local e foi para a outra sua casa, onde se meteu na cama.
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Não tendo sido documentada a prova que, na audiência, foi oralmente produzida, esta Relação apenas conhece de direito, o que não obsta, porém, à possibilidade de fundamentação do recurso nalgum dos vícios aludidos nos nº 2 e 3 do artº 410º C.P.Penal, os do nº 2, aliás, de conhecimento oficioso (artº 428º deste Código e Ac. nº 7/95, do STJ, de 19/10/95, D.R., de 28/12/95).
Ora, se bem que, na motivação do seu recurso, o recorrente enquadre os dois pontos da sua discordância nos vícios de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão e de erro notório na apreciação da prova, prevenidos, respectivamente, nas al. b) e c) do nº 2 daquele artº 410º, certo é que um relance basta para se concluir que não se trata aqui de qualquer um desses vícios, que, como se sabe, respeitam à matéria de facto.
Trata-se, apenas, de divergência na aplicação do direito à matéria de facto apurada, mais precisamente se se deve considerar que a matéria de facto apurada e que o recorrente não questiona integra o crime de homicídio qualificado, como se decidiu no acórdão recorrido, ou se deve ser havido como homicídio simples, como sustenta o recorrente; e, em complemento, se a pena imposta nesse acórdão é adequada ou se, como quer o recorrente, ela devia ter sido especialmente atenuada ou, pelo menos, reduzida para valores próximos do seu limite mínimo.
Puras questões de direito, pois.
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Isto posto e dado que, por nossa parte, também não vislumbramos qualquer vício da matéria de facto, matéria que, assim, se considera fixada, passa-se à apreciação das questões que no recurso se levantam.
O arguido vinha acusado pelo Mº Pº da autoria material de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artº 131º e 132º, nº 1 e 2, al. d), g) e i), do C.Penal, na consideração de que cometera o crime “por motivo fútil”, “utilizando meio particularmente perigoso” e “com frieza de ânimo” (cit. alíneas do nº 2 do artº 132º, na actual redacção do preceito, conferida pela Lei nº 65/98, de 2 de Setembro).
Porém, na decisão final, apenas subsistiu a circunstância qualificativa da al. g), ou seja, a utilização de meio particularmente perigoso na prática do crime, tendo, pois, caído as demais circunstâncias qualificativas.
E, como já se disse acima, a questão que se coloca no recurso consiste precisamente em saber se mesmo essa qualificativa se verifica.
Vejamos, pois.
Sob a epígrafe “Homicídio qualificado”, o artº 132º do C.Penal, no seu nº 1, estabelece que, “se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de 12 a 25 anos”.
E o nº 2 do mesmo preceito prossegue, dizendo que “é susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente: a) ...; ...; l) ...”.
Deste modo, o homicídio qualificado, forma agravada do homicídio simples, define-se, em termos genéricos, pela verificação de circunstâncias - quaisquer circunstâncias - que revelem aquela especial censurabilidade ou perversidade na produção do evento morte, seguindo-se, no nº 2, pela denominada técnica dos exemplos-padrão, a enumeração de circunstâncias específicas que podem revelar a especial censurabilidade ou perversidade que importa o agravamento do crime.
Enumeração que, assim, não apenas é meramente exemplificativa, como o revela a utilização da expressão “entre outras”, como ainda, por outro lado, as várias circunstâncias aí apontadas não são de preenchimento automático, ou seja, a despeito de se verificar uma situação formalmente enquadrável numa dessas circunstâncias, daí não se segue necessariamente a qualificação do crime, exigindo-se que tal circunstância tenha aquele alcance, isto é, que, em concreto, sustente esse juízo de especial censurabilidade ou perversidade do agente na prática do crime.
Na palavra de Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, I, 26, “..., a qualificação deriva da verificação de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula geral extensiva e descrito com recurso a conceitos indeterminados: a “especial censurabilidade ou perversidade” do agente referida no nº 1; verificação indiciada por circunstâncias ou elementos uns relativos ao facto, outros ao autor, exemplarmente elencados no nº 2. Elementos estes assim, por um lado, cuja verificação não implica sem mais a realização do tipo de culpa e a consequente qualificação; e cuja não verificação, por outro lado, não impede que se verifiquem outros elementos substancialmente análogos (não deve recear-se o uso da palavra “análogos”!) aos descritos e que integrem o tipo de culpa qualificador”.
Feitas estas breves considerações, vejamos agora se, no caso, poderá considerar-se verificada a circunstância da particular perigosidade do meio utilizado pelo arguido na prática do crime.
No elenco daquele nº 2, considera-se, na al. g), a circunstância de o agente “praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum”.
Subjacente a este tríplice desdobramento da circunstância está, ainda no dizer do mesmo Autor, Ob. cit., 36, a “ideia da particular perigosidade do meio empregado (seja directamente para a vítima, seja indirectamente para outros bens jurídicos protegidos) e da consequente maior dificuldade de defesa em que se coloca a vítima”.
E, na concretização desse entendimento em relação à utilização de meio particularmente perigoso, considera-se aí (Ob. cit., 37) que consiste em “servir-se para matar de um instrumento, de um método ou de um processo que dificultem significativamente a defesa da vítima e que (não se traduzindo na prática de crime comum) criem ou sejam susceptíveis de criar perigo de lesão de outros bens jurídicos importantes”.
No entanto, logo adiante, depois de se lembrar que a menção inútil ou desnecessária de circunstâncias contraria o próprio sistema dos exemplos-padrão, prossegue, dizendo:
“... deve sobretudo ponderar-se que a generalidade dos meios usados para matar são perigosos e mesmo muito perigosos. Exigindo a lei que eles sejam particularmente perigosos, há que concluir duas coisas: ser desde logo necessário que o meio revele uma perigosidade muito superior à normal nos meios usados para matar (não cabem no exemplo-padrão e na sua estrutura valorativa revólveres, pistolas, facas ou vulgares instrumentos contundentes); em segundo lugar, ser indispensável determinar, com particular exigência e severidade, se da natureza do meio utilizado - e não de quaisquer outras circunstâncias acompanhantes - resulta já uma especial censurabilidade ou perversidade do agente. Sob pena, de outra forma - aqui sim! -, de se poder subverter o inteiro método de qualificação legal e de se incorrer no erro político-criminal grosseiro de arvorar o homicídio qualificado em forma-regra do homicídio doloso”.
Mas, sendo necessário para a verificação da qualificativa que, por via do meio utilizado, porque particularmente perigoso, se possa formular um juízo de especial censurabilidade ou perversidade do agente, naturalmente que, então, se não pode, de todo, prescindir da ligação subjectiva entre o agente e esse meio por si utilizado, ou, por outras palavras, como se disse no voto de vencido do Ac. do STJ, de 13/12/2000, CJ/STJ, VIII, 3º, 241, “... a perigosidade da arma usada não se afere apenas pelo instrumento em si, mas também pelas circunstâncias e contexto em que dela se faz uso”.
Na linha do exposto, pensa-se que o instrumento aqui utilizado pelo arguido não deve ser havido como meio particularmente perigoso.
É facto que uma foice roçadoira tem elevada capacidade vulnerante, sendo, inegavelmente, um meio altamente perigoso, sobremodo se manejada com violência e mão certeira, como aqui sucedeu.
Mas, por certo, não diferirá demasiado de muitos outros instrumentos, designadamente alfaias agrícolas (sacholas, machados, etc.), de utilização comum nos meios rurais; tal como igualmente terão elevada capacidade vulnerante as armas de fogo, mormente quando disparadas a distâncias curtas que levam à quase-certeza do resultado letal, ou as armas brancas que, pelas suas dimensões e/ou perícia do utilizador, tornem reduzidas as possibilidades de se não seguir esse efeito letal.
No caso, sucedeu apenas que o arguido, em reacção pronta à atitude da vítima que acabara de agredir a companheira daquele e na discussão que se seguiu, se limitou a utilizar o instrumento de agressão - a foice roçadoira - que tinha mais à mão; como utilizaria outro qualquer que aí se encontrasse.
Ora, se, nas concretas condições em que ocorreram os factos que aqui se apreciam, em lugar da foice roçadoira, o arguido tivesse ali ao seu alcance uma arma de fogo e com ela consumasse o homicídio, por certo que se não entenderia que havia utilizado um meio particularmente perigoso e por tal se qualificaria o crime. E o facto é que, numa tal hipótese, nem as possibilidades de defesa da vítima seriam maiores, nem as probabilidades de se produzir o efeito letal seriam mais reduzidas, nem, por fim, se lograria descortinar na atitude e processo mental do agente qualquer diferença que apontasse para uma maior censurabilidade ou perversidade num caso que noutro.
Por outras palavras: pensa-se que, a despeito da natural perigosidade daquele instrumento, a sua utilização pelo arguido se não poderá valorar de molde a concluir pela qualificação do crime: nem, como se disse, se tratará de um meio “particulamente perigoso”, entendida a expressão como traduzindo uma perigosidade muito superior à normal dos meios usados para matar, nem, por outro lado, dadas as específicas circunstâncias em que essa utilização aconteceu, se pode considerar que ela revela a especial censurabilidade ou perversidade exigida pelo nº 1 do artº 132º citado.
Não se verifica, pois, a apontada circunstância qualificativa, pelo que ao arguido mais não pode ser imputado que o crime de homicídio “simples”, p. e p. pelo artº 131º do C.Penal.
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Assim sendo, há que determinar agora a medida da pena que por tal crime lhe deve ser imposta.
Conforme acima se disse, o recorrente pugna, em primeira linha, pela especial atenuação da pena, nos termos do artº 72º, nº 2, al. b), do C.Penal, sustentando que a sua conduta foi determinada por provocação injusta da própria vítima, ao agredir a companheira do arguido e ao pretender retirar o redutor da botija de gás e, deste modo, impedir a confecção do jantar.
Porém, com o devido respeito, não parece que lhe assista razão.
Conforme o nº 1 deste preceito, a atenuação especial da pena tem lugar, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando ocorrerem circunstâncias - que podem ser anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele -, “que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena”.
E, a título meramente exemplificativo, o nº 2 prossegue, apontando diversas circunstâncias a que deve ser atribuído esse efeito atenuativo, entre elas a de “ter sido a conduta do agente determinada ... por provocação injusta ou ofensa imerecida” (da própria vítima).
Da leitura do preceito e como, de resto, acentuou o Autor do Projecto (Cfr., Actas das Sessões da Comissão Revisora, Ed. da AAFDL, II, 132), o efeito atenuante especial “... vem de elas - as circunstâncias atenuantes especiais - terem como efeito diminuir essencialmente a ilicitude e a culpa” (não havia então qualquer referência à diminuição da necessidade da pena, só introduzida com a revisão de 1995).
E, mais adiante, na justificação da enumeração exemplificativa que se entendeu conveniente ali efectuar, esclarece que só quem não lesse o preceito todo “poderia ficar com a ideia de que as situações nele contidas valem objectivamente, sem necessitarem de produzir o efeito requerido: diminuir essencialmente a ilicitude e a culpa ...”.
Assim e como ideia que importa reter: para que, nos termos do artº 72º (anterior artº 73º) do C.Penal revisto, uma dada circunstância, incluindo qualquer das que, exemplificativamente, são enumeradas naquele nº 2, tenha esse valor atenuativo, é necessário que ela seja de molde a fazer diminuir acentuadamente a ilicitude do facto, a culpa do agente ou, agora também, a necessidade da pena. Não se demonstrando essa diminuição da ilicitude, da culpa ou da necessidade da pena, mais se não poderá configurar que uma eventual atenuação de carácter geral.
Reportando-se à provocação nos crimes de homicídio e de ofensas corporais, o artº 370º do velho Código Penal de 1886 considerava que o facto injusto de outrem que a configurava se teria de traduzir por “pancadas ou outras violências graves para com as pessoas”, pancadas e violências que, como pacificamente se entendia, haviam de ter a virtualidade de criar no provocado um estado de ira, dor, excitação ou cólera, de modo a alterar-lhe as suas condições normais de determinação e sob cuja influência agira, sendo ainda certo que também se entendia ser necessária a existência de uma certa proporcionalidade entre o facto injusto do provocador e a reacção do provocado (cfr., por todos, Maia Gonçalves, Código Penal Português, 1977, 3ª ed., em anotação ao artº 370º, aí se citando doutrina e jurisprudência abundante).
Não é diferente o fundamento que, no Código actual, justifica a força atenuativa da provocação injusta, circunstância que, reportada à culpa, vai, de igual modo, buscar a sua razão àquele estado de ira, dor, excitação ou cólera que, influindo nas normais condições de determinação do agente, o tenha impelido à prática do acto que se lhe censura.
Impressivamente, debruçando-se sobre a questão, o Ac. do STJ, de 13/11/91, BMJ, 411º, 231, refere, na linha da doutrina que, já perante o citado artº 370º do Código Penal de 1886, merecia geral acolhimento, que, para a verificação dessa circunstância, necessária se torna a presença conjunta dos seguintes pressupostos:
“1. Um facto injusto do provocador, consistente em pancadas ou outras violências graves contra as pessoas;
2. Um estado emotivo de excitação, cólera, dor que altere as condições normais de determinação, maxima iracunda, imensus dolo;
3. Que esse estado de dor, excitação ou exaltação seja consequência normal e ininterrupta do facto provocador injusto;
4. Que o estado de ira, dor ou exaltação provocado pelo facto injusto tenha sido o motor da facto criminoso perpetrado pelo provocado; e
5. A proporcionalidade entre o acto provocador e a reacção do provocado”.
Passando ao caso presente e confrontando a matéria de facto provada, logo se vê que nela se não traduzem os elementos apontados.
A despeito da conduta do arguido ter sido precedida de uma agressão, com um pontapé, da vítima à companheira daquele e que lhe provocou uma equimose que lhe determinou doença por 12 dias, certo é que se não mostra que tal facto tenha produzido no arguido aquele estado emotivo de excitação, cólera ou dor, em consequência do que as suas condições e capacidades de determinação se tivessem alterado em termos tais que o levassem à prática do acto criminoso.
Ao invés, mostra a matéria de facto que entre o arguido e os seus dois irmãos, vivendo todos em economia comum, existia um clima permanente de tensão e de conflito, com discussões diárias; e que o incidente que nesse dia ocorreu - agressão à companheira do arguido, discussão entre este e a vítima e a tentativa desta de retirar o redutor da botija de gás - não extravasou o que, afinal, era a “normalidade” naquele agregado familiar.
A tudo acresce a clara desproporção entre a gravidade desse incidente - pese embora a ofensa corporal à companheira do arguido - e a violência da reacção do arguido e consequências resultantes.
Assim e sem necessidade de outras considerações, entende-se que não estão reunidos os pressupostos necessários para concluir que à circunstância aludida se atribua a força atenuativa especial que o arguido reclama, apenas cabendo valorá-la como mera circunstância atenuante geral.
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Assente este facto, passa-se, então, à determinação da medida da pena a impor ao arguido pelo crime de homicídio, p. e p. pelo artº 131º do C.Penal, que para ele comina, em abstracto, a pena de 8 a 16 anos de prisão.
Afastada que ficou a possibilidade de atenuação especial, pretende o recorrente, como se viu, que a pena seja fixada em valor muito próximo do mínimo legal.
Consoante o artº 71º do C.Penal, a medida da pena é determinada em função da culpa do agente e das exigências de prevenção e atendendo ainda a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, relevem a favor ou contra o arguido, nomeadamente as aludidas no nº 2 desse preceito.
Nestes moldes, a pena concreta há-de ter na culpa do arguido o seu último limite que não poderá ultrapassar e, por outro lado, não deverá ficar aquém do necessário para satisfação dessas exigências de prevenção, sendo dentro dessas fronteiras que, tendo em conta ainda as demais circunstâncias favoráveis e desfavoráveis ao arguido, se terá de encontrar a pena tida como adequada e justa.
Pois bem:
O arguido agiu com dolo directo, a modalidade mais intensa do dolo, sendo, pois, elevado o seu grau de culpa.
E, quanto às necessidades de prevenção, se é facto que, em sede de prevenção especial, se não descortinam particulares exigências, pois que, a despeito da rudeza de carácter e hábitos alcoólicos do arguido, com uma personalidade algo boçal, não se descobrem razões ponderosas para recear eventuais recidivas, já as exigências de prevenção geral são elevadas, atenta a objectiva gravidade do crime e a necessidade de defesa da sociedade perante este tipo de criminalidade, mormente na área da comarca onde os factos ocorreram, onde, como se assevera no acórdão recorrido, o número de crimes desta natureza é significativo.
No mais, pensando-se embora que não será aqui invocável o elevado grau de ilicitude do facto, por isso que, no homicídio, ele já é considerado no próprio tipo de crime (ne bis in idem), no entanto, não pode deixar de se atentar: na manifesta superioridade do arguido em razão da arma utilizada, aliás, como já se viu, de forte capacidade vulnerante, a que acresce ainda a forma inusitada, imprevista e extremamente violenta como actuou, quando a vítima estava desprevenida, de costas para si e completamente embriagada, não lhe dando assim qualquer possibilidade de defesa; também no parentesco tão chegado entre o arguido e a vítima (irmãos), o que, devendo ter influído positivamente no espírito daquele e obstado ao crime, acentua o juízo de censura de que é passível pela conduta que adoptou.
Contrapondo-se a estas circunstâncias que o desfavorecem, depõem a favor do arguido, desde logo, o circunstancialismo que precedeu aquela sua conduta, nomeadamente a agressão da vítima à companheira do arguido e a discussão que se seguiu, e também a embriaguez parcial e não procurada, que lhe diminuía parcialmente as suas capacidades mentais, aliás, já em si mesmas com limitações, circunstâncias que seguramente lhe reduziram a sua capacidade de determinação e de correcta avaliação do desvalor dos seus actos; ainda, a confissão parcial, a rudeza do seu carácter e o seu bom comportamento, se bem que não sobrelevando o da generalidade das pessoas do seu meio.
Na ponderação deste conjunto de factores, afigura-se ajustado fixar em 12 (doze) anos de prisão a pena a impor ao arguido.
Nesta medida, o recurso merece parcial provimento.
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Em conformidade com o exposto, acorda-se em conceder provimento parcial ao recurso e, assim, condenar agora o arguido João......, pela autoria material de um crime de homicídio, p. e p. pelo artº 131º do C.Penal, na pena de 12 (doze) anos de prisão, confirmando-se, no mais, o douto acórdão recorrido.
Sem prejuízo do apoio judiciário concedido, vai o recorrente ainda condenado nas custas do recurso, com 5 Ucs de taxa de justiça, fixando-se em 22.500$00 os honorários do douto defensor do arguido, nomeado na 1ª instância, pela intervenção nesta fase de recurso, sendo devidos honorários nos termos do nº 6 da Portª nº 1200-C/2000, de 20 de Dezembro, ao douto defensor nomeado em audiência.
Porto, 18 de Abril de 2001-05-30
José Henriques Marques Salgueiro
António Joaquim da Costa Mortágua
Francisco Augusto Soares de Matos Manso