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USUCAPIÃO
PESSOA COLECTIVA DE DIREITO PÚBLICO
DIREITO DE PROPRIEDADE
AQUISIÇÃO
Sumário
As pessoas colectivas de direito público administrativo podem adquirir o direito de propriedade por usucapião, praticando actos de posse susceptíveis de a ele conduzir, mas este modo de aquisição servirá apenas à constituição do domínio privado desses entes públicos, que não já à do seu domínio público.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
1. - A JUNTA DE FREGUESIA DE ............. instaurou acção declarativa, com processo ordinário, contra OLINDA ................ e marido, Manuel............ e António............ e mulher MARIA.............. pedindo que:
- se declare que o fontenário constituído por poço, bomba, pia e lavadouro, sito no lugar de ........., freguesia de .......... - ............, é de natureza pública; e,
- se condenem os RR. a demolir a parede marginal à estrada que passa pelo mesmo lugar que impede o acesso ao fontenário, a limpar as escadas de acesso da estrada ao fontenário, repondo-as no estado anterior e a proceder à limpeza da bica e tanque/lavadouro retirando a terra que lá colocaram.
-Fundamentando a sua pretensão, a A. alegou que em terreno dos RR. existe uma fonte onde, desde tempos imemoriais, se dirigem as pessoas que necessitam de água para gastos domésticos e para beber e está sob a administração da Junta, que ali explorou a sua água e tem feito obras e melhoramentos, tendo os demandados construído uma parede que impede o acesso à fonte e lavadouro, a cujo arrasamento procederam.
Os RR. contestaram, invocando a ilegitimidade do primeiro casal e impugnando a factualidade alegada pela A. relativamente às características e natureza da fonte.
A final, a acção foi julgada procedente quanto aos RR. António ........o e mulher, condenados nos pedidos, sendo os demandado Olinda e marido absolvidos.
Daí vem, pelos condenados António ............... e mulher, interposto este recurso, de apelação, em que se pede a revogação da sentença e a improcedência total da acção.
Para tanto, de relevante, levaram às conclusões da alegação:
- A propriedade da fonte e nascente controvertidas, tal qual vem alegado pela A., não tem por base qualquer negócio jurídico translativo de propriedade ou qualquer acto de expropriação, restando assim a apropriação pela autarquia a título de usucapião ( art.s 1389° e 1390° C. Civ.);
- A A. não alegou que os actos materiais praticados sobre o fontanário e a água que dele brota o foram na convicção do exercício do direito real de propriedade que se arroga, não demonstrou o elemento psicológico da posse (art. 1251 ° C. Civ . );
Assim, a A. não demonstrou a posse sobre aqueles bens e, consequentemente, a apropriação dos mesmos pelo decurso de certo lapso de tempo conducente à aquisição do direito real por aquisição;
- Não sendo, por isso, a fonte de natureza pública.
- Não deve aplicar-se ao caso a doutrina contida no Assento de 19/4/89, que, por tratar da dominialidade pública dos caminhos, apresenta solução jurídica para caso distinto do ora em apreço.
A Apelada respondeu sustentando, no essencial, a inaplicabilidade do regime do art. 1390°, que só diz respeito a águas particulares.
2. - Os factos.
Sem impugnação das partes, vem assente o seguinte elenco fáctico:
- Por escritura de 30/6/97, celebrada no 2° Cartório Notarial de ..........., os RR. Olinda ....... e marido Manuel ............. doaram ao R. António ................ uma parcela de terreno com a área de 1 000 m2, destacada do prédio misto sito no lugar de ........., freguesia de ........., parcela escrita na CRP de ............ sob o n.º..... - ............, com inscrição a favor do R António ............, sendo que toda a área do fontanário se encontra situada neste prédio;
- No ângulo norte/poente do prédio referido, muito perto da estrada municipal que aí passa no sentido nascente/poente, existe uma fonte;
- Os RR. António ................ e mulher construíram nesse prédio um muro que impede o acesso da estrada à fonte.
- Essa fonte tem mais de 100 anos, é conhecida por Fonte das ....... ou ........, consta como fonte pública do antiquíssimo cadastro organizado pela Junta de freguesia de ............. e está, desde tempos imemoriais sob a administração da Junta, que nela tem feito obras e melhoramentos, sendo constituída por reservatório com argolas em cimento e com uma bomba de ferro para extracção de água, uma pia e um tanque;
- A A. mandou implantar vários degraus para acesso à estrada da fonte, por esta se situar num nível inferior relativamente àquela;
- Era e é essa fonte que, desde tempos imemoriais, se dirigiam e dirigem as pessoas que necessitam de água para gastos domésticos e para beber bem como para lavar a roupa, sendo que as águas sobrantes saíam abandonadas em direcção ao sul por uma caleira em pedra e adquiriam a natureza de águas de particulares, vindo a ser por esses particulares construída uma represa ou poça em pedra;
- Os RR. António .......... e mulher procederam ao arrasamento do lavadouro, das escadas e da pia;
- Há cerca de 30 anos que alguns habitantes da freguesia de .......... fazem também uso público de uma outra fonte que em 1968 foi colocada no lugar de ........., junto à via pública, a cerca de 200 metros do prédio dos RR..
3. - Mérito do recurso.
3. 1. - Sustentam os Apelantes que a A. não logrou demonstrar que o fontanário e as águas que dele brotam foram por si apropriadas, na medida em que não alegou que os actos que praticou o foram «na firme convicção do exercício do direito real de propriedade que se arroga ("animus" - art. 1251° C. Civ.).
Assim, tal como a colocam os Recorrentes a questão a resolver consiste em saber se o reconhecimento da dominialidade pública deve fazer-se à luz das normas do C. Civil que regulam a usucapião e, em caso afirmativo, se concorrem os respectivos requisitos.
3. 2. - O art. 202°-2 C. Civ. declara fora do comércio jurídico as coisas que se encontram no domínio público.
Na verdade, a qualificação de uma coisa como pública retira-a do comércio jurídico privado, do mesmo passo que a coloca sob o domínio de uma pessoa de direito público para satisfação de determinadas necessidades colectivas.
As coisas públicas são, consequentemente, insusceptíveis de serem objecto de direitos privados.
A natureza pública das coisas há-de resultar da lei, sendo a utilidade pública que lhes é "inerente o verdadeiro fundamento da publicidade das coisas", utilidade a aferir por via de índices, dos quais "índice evidente cuja existência logo denota publicidade é o «uso directo e imediato do público», perante cuja presença "a lei permite que o intérprete considere públicas coisas não enumeradas categoricamente como tais por disposição legal." (MARCELLO CAETANO, "Manual de Direito Administrativo", 9ª ed., 864).
Assim, mesmo que não especificamente enumerada na lei, a dominialidade pública das coisas pode ser directamente reconhecida em razão da presença dos -índices de utilidade pública inerentes. É desta doutrina que, ao que se crê, arranca o Assento de 18/4/89 para definir os requisitos de dominialidade pública dos caminhos. .
3. 3. - No que respeita ao fontanário dos autos e suas águas, estão eles, classificados e, desde tempos imemoriais, afectos ao uso público.
A classificação, enquanto acto de declaração da coisa em dada classe de bens dominiais, deduz-se da inscrição da fonte no «antiquíssimo cadastro organizado pela Junta de Freguesia de ...........». A afectação traduz-se na utilização da fonte e águas para consumo das pessoas que dela necessitassem e para lavagem, sob a jurisdição da Junta de Freguesia que, fazendo obras, melhoramentos e administrando, tudo desde tempos que a memória dos vivos não alcança, manifestando, desta forma, "a intenção de consagração ao uso público" ( Ob. cit. , 899).
Nesta conformidade, e ao que interessa pôr em relevo, o animus cuja falta os Apelantes acusam consiste exactamente no conjunto de actos representativos das obras e melhoramentos efectuados pela Apelada (pessoa colectiva de direito público ), bem como na sua inscrição cadastral, actos e factos claramente reveladores da intenção de destinar o complexo do fontanário ao uso público. Assim perspectivadas as coisas, julga-se imperioso o reconhecimento da integração do fontanário e suas componentes no domínio público da Autora.
3. 4. - Não se trata, como do exposto resulta, da aplicação das regras civilísticas da usucapião como modo de aquisição do direito de propriedade, designadamente por aplicação do preceituado nos art.s 1390°, 1287° e 1251 ° e ss. C. Civ..
Não que às pessoas colectivas de direito público administrativo esteja vedada a aquisição do direito de propriedade por usucapião, praticando actos de posse susceptíveis de a ele conduzir, mas porque esse modo de aquisição serve apenas à constituição do domínio privado desses entes públicos, que não já à do seu domínio público (vd. DIAS MARQUES, " Prescrição Aquisitiva ", I, 136/7, cit. no Ac. STJ, de 21/11/00, in CJ, VIII-3°-128).
3. 5. - Acresce que, tendo excluído expressamente o Código Civil da respectiva regulamentação as águas públicas, com a inerente inaplicabilidade dos art.s 1389° e 1390° invocados pelos Recorrentes, para reger apenas sobre as particulares - art. 1385° -, o regime daquelas encontra-se, ainda hoje, na denominada Lei das Águas (Dec. n.º 5 787-IIII, de 10 de Maio de 1919).
No artigo 1° deste diploma consideram-se do domínio público as águas das fontes públicas e as dos poços e reservatórios construídos à custa do concelho e freguesias, colocando-se na administração da freguesia os reservatórios, fontes e poços construídos à sua custa- n.º 6° e parágrafo 1º.
Ora, tendo presente que todas as obras e melhoramentos efectuados na fonte - das que lograram provar-se - foram efectuadas pela Apelada Junta de Freguesia, então, também por esta via, com directo assento na lei, se deve concluir que estamos perante águas pertencentes a esta Entidade e submetidas à -sua administração (vd. VELOSO DE ALMEIDA, "Comentário à Lei de Águas", 14).
Resta deixar referido, a terminar, que as águas de fontes ou reservatórios destinados a uso público não podem, por qualquer forma, ser alteradas pelos particulares, que, quando assim ajam, ficam obrigados à reposição das coisas no estado anterior - art. 109° da Lei das Águas.
3.6. - Improcedem, deste modo, todas as conclusões dos Apelantes.
4. - Decisão.
Termos em que se decide:
- Julgar improcedente a apelação;
- Confirmar a douta sentença recorrida; e,
- Condenar os Apelantes nas custas.
Porto, 3 de Maio de 2001
António Alberto Moreira Alves Velho.
Camilo Moreira Camilo.
António Domingos Ribeiro Coelho da Rocha.