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ARMA BRANCA
ARMA PROIBIDA
Sumário
Uma faca de cozinha, com 12 cm de cabo e 20 de lâmina, sendo embora uma arma branca, é um objeto de uso comum, com aplicação definida, cuja detenção não é proibida, mesmo que a detenção ocorra na via pública, sem o detentor ter justificação para a sua posse.
Texto Integral
Acordam os juízes, em conferência, na Secção Criminal da Relação de Guimarães
I – RELATÓRIO
JOÃO G... veio interpor recurso da sentença que pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos artºs 2º, nº1, al. m), 3º, nº2, al. f), e 86º, nº1, al. d), da Lei 5/2006, de 23.02, o condenou na pena de 130 dias de multa, à taxa diária de €6,50, no total de €845,00.
O arguido expressa as seguintes “conclusões” Perante a sua extensão, dificilmente se podem considerar um “resumo das razões do pedido” – artº 412º, nº1, do CPP. :
A – Vem o presente recurso interposto da douta decisão que Condenou o arguido JOÃO G... pela prática, em autoria material, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86º, n.º 1, al. d) com referência ao disposto nos art.ºs 2º, n.º1, al. m) e 3º, n.º 2, al. f), todos da Lei n.º 5/2006, de 23/02, na pena de 130 (cento e trinta) dias de multa, à taxa diária de 6,50 (seis euros e cinquenta cêntimos), perfazendo a multa global de 845,00€ (seiscentos e cinquenta euros) e a que corresponderão, se for caso disso, 86 (oitenta e seis) dias de prisão subsidiária;
B - O tribunal à quo considerou provados a factualidade descrita em a) a f) da factualidade assente, que aqui se dá por integralmente reproduzida para os devidos e legais efeitos;
C – O tribunal à quo considerou inexistir factualidade não provada, com relevo para a decisão a proferir; E – Dos depoimentos que existem nos autos, a Mma. Juíz à quo atendeu, para a formação da convicção e consequente condenação do arguido, às declarações da testemunha Jorge V..., da testemunha Manuel F... e da testemunha Maria F... Cortez, cujos depoimentos se dão por integralmente reproduzidos para os devidos e legais efeitos; F – Não valorando, a Mma. Juíza a quo, as declarações do arguido quanto à alusão de os factos terem ocorrido no interior dos limites do seu prédio e ter justificado a detenção da faca; G – Existem duas versões contraditórias: a versão apresentada pela testemunha Manuel, até então arguido nos autos, tendo havido desistência de queixa quanto ao crime de ofensa à integridade física simples e a versão apresentada pelo arguido; H – A Mma. Juíza não formulou nenhum juízo de credibilidade sobre declarações do arguido, que relatou o desentendimento ocorrido entre ele e familiares do Sr. Manuel F... e que, perante uma invasão por parte do Sr. Manuel e restantes envolvidos, não hesitou em socorrer-se de uma faca de cozinha existente perto do local onde se encontrava, faca esta utilizada para a matança de animais de pequeno porte pela sua esposa, para se defender; I - O arguido nunca omitiu que havia pegado na faca e admitiu que a deixou cair em virtude de uma pancada que havia levado na cabeça; J - Assim sendo, ao ponderar o seu depoimento, era imperioso existir um especial cuidado na sua valoração por banda da Mma. Juíza a quo, que entendemos não ter existido; L – De igual modo não podemos, de todo descurar o facto de que o depoimento da testemunha Manuel F... não foi feito com isenção e sem interesse no resultado do processo, já que a este só interessaria a condenação do aqui recorrente; M – Pois, como se pode aferir da prova produzida em audiência de julgamento existem más relações de vizinhança entre o arguido, Sr. Manuel e sua família por diferendos de longa data; N - No que refere à subsunção da conduta que aqui se imputa ao arguido em sede de factualidade tida como provada e contrariamente ao que foi decidido na douta sentença sob recurso, entende o arguido que não se encontraram preenchidos os elementos constitutivos do crime de detenção de arma proibida, assente na posse de uma arma branca, p. e p. pelo art.º 86º, n.º1, d), da Lei n.º5/2006, de 23 de Fevereiro, pelo qual foi condenado; O – Nos termos do art. 2º n.º 1 m), da Lei n.º 5/2006, de 23/2, entende-se por “arma branca” todo o objeto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina ou outra superfície cortante, perfurante, ou corto-contundente, de comprimento igual ou superior a 10 cm e, independentemente das suas dimensões, as facas borboleta, as facas de abertura automática ou de ponta e mola, as facas de arremesso, os estiletes com lâmina ou haste e todos os objetos destinados a lançar lâminas, flechas ou virotões; P – E, de acordo com o estatuído no art.º 86º n.º 1 d), da referida Lei, estando em causa arma branca, apenas incorre no crime de detenção de arma proibida quem detiver, sem autorização ou fora das condições legais, “arma branca dissimulada sob a forma de outro objeto, faca de abertura automática, estilete, faca de borboleta, faca de arremesso, estrela de lançar, boxers, outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como instrumentos de agressão e o seu portador não justifique a sua posse”; Q – Nesta conformidade, facilmente se compreende que a imputação do crime depende da caracterização da arma branca em causa. E, não cabendo nas categorias expressamente elencadas mas tão-só “nas outras armas brancas”, a punição depende da alegação e prova cumulativa dos seguintes requisitos: a) Não tenha aplicação definida; b) Possa ser usada como arma de agressão; c) O seu portador não justifique a posse; R – Ora, as armas brancas só são passíveis de integrar a previsão supra referida se se revelar que não tem aplicação definida (art.º 86º n.º 1 d)), o que não é o caso, uma vez que estamos perante um faca de cozinha, por natureza afeta às lides domésticas; S – Se assim não se entender (e segundo o entendimento do Tribunal da Relação de Lisboa, no processo n.º 121/11.4SHLSB.L1-5, de 06/11/2012), não se poderá tão pouco questionar o não preenchimento deste requisito, uma vez que o arguido se encontrava na sua propriedade, no local onde se encontrava a faca em questão; T – A acusação omitiu a referência explícita à posse justificada pelo arguido; U – A Mma Juíza a quo não deu como provado o preenchimento do terceiro requisito, a falta de justificação da posse, inexistindo factualidade provada nesse sentido e não se pronunciou sobre esta questão, essencial para o preenchimento do tipo objetivo do ilícito. Não foram consideradas as suas declarações do arguido sobre esta questão; V – Questiona assim o arguido a validade formal da sentença, pois considera que na sua elaboração foram preteridas formalidades legais, impostas pelo art.º 86º n.º1 d), omissão que a pode tornar nula, nos termos do art. 379º, n.º 1, c); X – Concluiu-se que da acusação do tribunal a quo não consta e não são alegados nenhuns dos factos relativos aos elementos do tipo objetivo do crime de detenção de arma proibida e não descreve nenhuma conduta tipificadora do crime imputado ao arguido; Z – Nesta perspetiva, evidencia-se, pois, uma falha na matéria fáctica apurada que podia e devia ter sido colmatada visto que é essencial à definição e inserção da arma possuída em determinada categoria legal e, consequentemente, à imputação do crime. (Vide, Acórdão do TribunaldaRelação do Porto, Processo n.º 1752/11.8TAVFR.P1, de 04.07.2012, Acórdão do TribunaldaRelação do Porto, Processo n.º 581/10.0GDSTS.P1, de 27.06.2012 e Acórdão do TribunaldaRelação de Coimbra, Processo n.º 1229/08.9GBAGD.C1, de 30.06.2010); AA – A detenção de uma faca de cozinha pelo arguido não integra o crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86º, n.º 1 al. d) da Lei 5/2006, de 23/02, independentemente do cumprimento da lâmina ou da superfície cortante, pelo que deve o arguido ser absolvido; AB – E, por isso, não cometeu, assim, o recorrente o crime que lhe é imputado e pelo qual vem condenado; AC – De igual modo, o Tribunal a quo não deveria terdado como provado o ponto b) da sentença recorrida que o arguido ao prosseguir o seu comportamento, agiu de forma livre, deliberada e consciente, sabendo ser o mesmo proibido e punido por lei; AD - Pelo que, aodar como provado o ponto b) supra enunciado e transcritodasentença, face à prova produzida, que se encontra toda no processo, que impunha julgamento contrário, violou o Tribunal a quo o disposto no art.º 368.º n.º 2 CPP e 86.º n.º 1 al. d) Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro; AE – Podendo e devendo este Tribunal alterar tal decisão, ao abrigo e por força do disposto nos art.º 410.º n.º 2, 412.º n.º 3 e 4, 431.º CPP;
O Ministério Público respondeu, sufragando a posição adoptada na douta sentença sindicada.
Nesta instância, o Sr. Procurador-Geral Adjunto não aderiu àquela posição e emitiu parecer no sentido do total provimento do recurso e consequente absolvição do arguido.
II - FUNDAMENTOS
1. O OBJECTO DO RECURSO.
As razões da discordância do arguido prendem-se com:
1ª) a impugnação da matéria de facto;
2ª) o enquadramento jurídico.
2. A SENTENÇA RECORRIDA (transcrevendo-se, a seguir, nas partes que ora relevam). II. FUNDAMENTAÇÃO 1. DOS FACTOS A) FACTUALIDADE ASSENTE Produzida a prova e discutida a causa, resultou demonstrada, com relevância para a decisão a proferir, a seguinte factualidade:--- a) No dia 08.06.2012, na Rua A..., na freguesia de V..., área desta comarca, o arguido detinha em seu poder uma faca de cozinha, com 12 cm de cabo e 20 cm de lâmina.--- b) O arguido conhecia as características do objecto que mantinha em seu poder, estando ciente de que não o podia deter, nas condições em que o fez.--- c) Ao prosseguir o seu comportamento, agiu de forma livre, deliberada e consciente, sabendo ser o mesmo proibido e punido por lei.--- (factos relativos à personalidade e condições pessoais do arguido) d) Não são conhecidos ao arguido antecedentes criminais.--- e) O arguido exerce a actividade profissional de operário da construção civil, por conta da sociedade com a firma “MLL” e sede em F..., Braga, auferindo quantia mensal equivalente ao SMN.--- f) Reside na companhia da sua cônjuge, que exerce a actividade profissional de empregada de limpeza, pela qual é mensalmente remunerada em quantia equivalente ao SMN, em habitação própria que edificou pelos seus meios.--- (…) 2. DA ANÁLISE DOS FACTOS E DA APLICAÇÃO DO DIREITO A) ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL Encontra-se, nestes autos, o arguido acusado da prática, em autoria material, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artº 86º, nº 1, al. d) da L. nº 5/2006, de 23.02.- Vejamos, pois, o recorte típico do enunciado ilícito penal.--- Isto posto e como é sabido, a L. nº 5/2006, de 23.02 [sucessivamente alterada pelas L. nºs 59/2007, de 04.09, 17/2009, de 06.05, 26/2010, de 30.08 e 12/2011, de 27.04], revogou, entre outros, o Dec. L. nº 207-A/75 e as Leis nºs 22/97 e 98/2001, tendo estabelecido um regime unificado que abrange a totalidade das actividades de fabrico, montagem, reparação, importação, exportação, transferência, armazenamento, circulação, comércio, aquisição, cedência, detenção, manifesto, guarda, segurança, uso e porte de armas, seus componentes e munições, com excepção das situações expressamente previstas pelos nºs 2 e 3 do artº 1º - cfr. nº 1.--- Com relevo para o caso em sujeito, importa considerar que, nos termos do disposto no nº 1 do artº 2º do citado diploma legal, constitui arma branca todo o objecto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina ou de outra superfície cortante, perfurante ou corto-contundente, de comprimento igual ou superior a 10 cm e, independentemente das suas dimensões, as facas borboleta, as facas de abertura automática ou de ponta e mola, as facas de arremesso, os estiletes com lâmina ou haste e todos os objectos destinados a lançar lâminas, flechas ou virotões – cfr. al. m). --- A L. nº 5/2006, classifica as armas e as munições em geral, de acordo com o respectivo grau de perigosidade, sob as designações A, B, B 1, C, D, E, F e G.--- No que às armas brancas concerne e para além das enunciadas na al. e) do nº 2 do artº 3º, apenas integram a classe A as desprovidas de afectação definida ao exercício de quaisquer práticas venatórias, comerciais, agrícolas, industriais, florestais, domésticas ou desportivas, ou que pelo seu valor histórico ou artístico não sejam objecto de colecção – cfr. artº 3º, nº 2, al. f).--- A L. nº 5/2006, fornecendo, embora, o conceito de arma branca não tipifica como crime a simples detenção de tal instrumento.--- Na realidade, apenas as armas brancas que integrem a categoria A, nos termos supra recortados, constituem armas proibidas, ou seja, aquelas que, tendo a dimensão e características pressupostas, não tenham afectação definida ao exercício de quaisquer práticas venatórias, comerciais, agrícolas, industriais, florestais, domésticas ou desportivas, ou que pelo seu valor histórico ou artístico não sejam objecto de colecção.--- Importando definir o que constituem as armas brancas sem aplicação definida, consideramos que, ao referir-se a aplicação definida – ou à falta dela -, não quis o legislador reportar-se à utilidade ou funcionalidade abstracta que está ou pode estar associada a um determinado objecto. É que, senão todos, pelo menos uma esmagadora maioria dos objectos tem ou pode ter uma aplicação ou funcionalidade definida, pelo que bastaria encontrá-la, num grau mais ou menos ostensivo ou ténue, para que a detenção de qualquer objecto, e em qualquer circunstância, fosse legalmente possível. Exemplificando, teríamos, então, que a detenção de uma machada, que é um objecto com um fim social abstractamente definido – corte de madeiras -, na via pública, seria um comportamento subtraído a qualquer limitação ou controle, independentemente de o possuidor justificar ou não a respectiva detenção naquela concreta circunstância. Mas, a ser assim, então, mal se compreenderia, por um lado, que a lei incriminasse a livre detenção ou circulação de instrumentos com fundamento no perigo abstracto associado à sua aptidão para produzir agressões letais, e, em simultâneo, que, independentemente de tal perigo associado, tolerasse a detenção ou circulação, desde que, em potência, fosse possível atribuir a esse mesmo objecto uma qualquer possibilidade de uso definido.--- Não cremos que assim seja. Na realidade, consideramos que a falta de aplicação definida, como critério primeiro no recorte da definição legal de arma proibida, tem por pressuposto que se detenha objecto ou instrumento não empregue ou adstrito, directa ou indirectamente, nas condições em que a detenção concretamente se verifica, ao fim que, em abstracto, lhe está ou pode estar associado. Retomando ao exemplo de que acima nos socorremos, diríamos que a detenção de uma machada nas circunstâncias descritas – na via pública - está subtraída a uma concreta aplicação definida, dentro da aptidão própria e possível de tal instrumento, ou seja, o agente não a detém para proceder, naquele exacto momento, ao corte de madeira. Por essa razão, exige-se que o mesmo justifique a sua detenção. E, pese embora a ausência de aplicação definida naquele exacto momento, a detenção será justificada se o detentor, por exemplo, utilizando a machada como instrumento de trabalho, a transporta para o local onde desenvolve a sua actividade ou se dele regressa. Não justificando a detenção, teremos, na conjugação com a ausência de aplicação definida, uma situação de arma proibida.--- Este nosso entendimento é, aliás, o que vem pressuposto no artº 86º, nº 1, al. d), pois que aí apenas se incrimina, como acima se deixou já dito, a detenção de armas brancas sem aplicação definida que possam ser usadas como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse.--- As armas que pertencem à classe A, o que, como se disse, sucede, designadamente, com as armas brancas, são quase absolutamente proibidas e não passíveis, de todo, de licença ou de manifesto, nos termos previstos pelos artºs 12º e ss. e 72º e ss. – sem prejuízo da detenção especialmente autorizada nos termos e para os fins previstos pelo nº 2 do artº 4º -, sendo que a detenção das restantes, das classes B a G, pode ocorrer mediante o cumprimento das formalidades impostas.--- A matéria concernente à responsabilidade penal acha-se, no domínio do regime previsto pela L. nº 5/2006, contemplada nos artºs 86º a 96º.--- Nesse contexto, dispõe o artº 86º, nº 1, al. d) que comete o crime nele previsto e punível todo aquele que, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, importar, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação ou exportação, transferência ou exportação, usar ou trouxer consigo, designadamente, armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse.--- Isto posto e vertendo ao caso que nos ocupa, logrou demonstrar-se que, no dia 08.06.2012, na Rua A..., na freguesia de V..., área desta comarca, o arguido detinha em seu poder uma faca de cozinha, com 12 cm de cabo e 20 cm de lâmina.--- Demonstrou-se, igualmente, que o arguido conhecia as características do objecto que mantinha em seu poder, estando ciente de que não o podia deter, nas condições em que o fez.--- Finalmente, demonstrou-se que, ao prosseguir o seu comportamento, agiu de forma livre, deliberada e consciente.--- Em face da materialidade que se apurou e à luz de tudo quanto acima se expôs, dúvidas não subsistem de que o arguido preencheu, com o seu apurado comportamento, os elementos objectivos e subjectivo típicos – o último deles na modalidade de dolo directo, nos termos recortados pelo nº 1 do artº 14º do Cód. Penal - do crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artº 86º, nº 1, al. d), com referência ao disposto nos artºs 2º, nº 1, al. m) e 3º, nº 2, al. f), todos da L. nº 5/2006, de 23.02.--- Resta, finalmente, dizer que não se apurou qualquer circunstância passível de excluir a ilicitude dos factos ou a culpa do arguido.---
(…)
3. APRECIAÇÃO DO MÉRITO.
3.1. A impugnação de facto.
Sob o título “Da Matéria de Facto”, o Recorrente tece considerações à forma como o Tribunal a quo formou a sua convicção e convoca as suas próprias declarações e os depoimentos das testemunhas Jorge V..., Manuel F... e Maria F... (em partes que transcreve).
Em matéria de impugnação da decisão sobre matéria de facto e da respectiva modificabilidade pela Relação, exige-se:
- para além da especificação dos pontos de facto considerados incorrectamente julgados, que sejam indicados os concretos meios de prova constantes do processo ou da gravação realizada que imponham decisão sobre aqueles pontos impugnados diversa da recorrida (artº 412º, nºs 3, e 4, do CPP);
- e só se esses meios de prova determinarem e forçarem decisão diversa da proferida se pode concluir ter a 1ª Instância incorrido em erro de apreciação das provas legitimador da respectiva correcção pelo Tribunal Superior.
Por outro lado, o objecto do recurso não pode ser a liberdade de apreciação das provas (nos termos consentidos pelo artº 127º do CPP) nem compete ao tribunal de 2ª instância proceder a um novo julgamento.
Definida, com brevidade, a parametrização necessária (legal e comummente aceite na jurisprudência), cumpre aplicá-la ao caso concreto.
Não se descortina, em parte alguma da Motivação (ou das “conclusões”) quais são os concretos “pontos de facto” O Recorrente alude ao “ponto b) da sentença” mas em sede de “Matéria de direito” e como decorrência do entendimento que perfilha do não preenchimento do tipo criminal por que foi condenado; o que é coisa diversa e será a seguir apreciado. que o Recorrente considera “incorrectamente julgados” (dentre os elencados na sentença A impugnação da matéria de facto só pode ter por alvo o elenco dos factos descritos como “provados” e “não provados” e não quaisquer outros – v.g., ac. do STJ de 21/03/2012, relatado pelo Cons. Armindo Monteiro no proc. 130/10.0JAFAR.F1.S1, www.dgsi.pt.), o que evidencia o incumprimento do estatuído no artº 412º, nº3, al. a), do CPP e inviabiliza a reapreciação “ampla” da matéria de facto considerada assente pelo Tribunal a quo.
3.2. A subsunção jurídica
O Recorrente sustenta que “não se encontraram preenchidos os elementos constitutivos do crime de detenção de arma proibida, assente na posse de uma arma branca, p. e p. pelo art.º 86º, n.º1, d), da Lei n.º5/2006, de 23 de Fevereiro, pelo qual foi condenado”.
E tem razão, uma vez que está em causa uma “faca de cozinha, com 12 cm de cabo e 20 cm de lâmina”.
Saber se a detenção de uma faca de cozinha (ou outros objectos de uso comum e aplicação definida) integra o ilícito criminal p. e p. pela Lei 5/2006, de 23.02, não é questão nova; bem pelo contrário, já foi suficientemente debatida ao nível dos tribunais superiores e tem sido decidida de forma praticamente coincidente pelas Relações, como, aliás, o revelam os acórdãos citados pelo Sr. Procurador-Geral Adjunto No seu Parecer, a fls. 454-455; e também pelo Recorrente, a fls. 411..
Não há argumentário “novo” a propósito de tal matéria, pelo que nos limitamos a remeter para dois dos arestos publicados e que merecem a nossa total concordância.
Começamos pelo sumário do ac. da RE de 04/03/2008 Relatado pelo Desemb. Fernando Ribeiro Cardoso no proc. 169/08-1, www.dgsi.pt.:
“1. Ainda que o conceito de arma branca possa abranger múltiplos instrumentos, nem todos eles podem integrar-se no conceito de arma cuja aquisição, detenção, transporte ou uso é proibida e passível de integrar o crime em causa. Só é absolutamente proibida a aquisição, a cedência, a detenção, o uso e o porte por particulares das armas brancas que integrem a classe A. 2 - Para que a detenção ou porte de “outras armas brancas” a que alude a alin. d) do n.º1 do art. 86.º constitua crime, impõe o legislador que, cumulativamente, se verifiquem três requisitos: 1) Ausência de aplicação definida; 2) Capacidade para o uso como arma de agressão; 3) Falta de justificação para a posse. 3 - A expressão “sem aplicação definida”, usada na alin. d) do n.º1 do citado art. 86.º, não se restringe, com o devido respeito, aos “instrumentos”, abrangendo, por conseguinte, outras armas brancas (ali não elencadas) e os engenhos. Com efeito, o legislador inclui na classe A as armas brancas sem afectação ao exercício de quaisquer práticas venatórias, comerciais, agrícolas, industriais, florestais, domésticas ou desportivas (ou seja, as armas sem aplicação definida). E inclui também na classe A quaisquer engenhos ou instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão – cf. alin. f) e g) do n.º2 do art.3.º. São essas as outras armas brancas, engenhos ou instrumentos cuja aquisição, detenção, transporte ou uso se quis proibir. A ser assim, como pensamos que é, para que a detenção, uso e porte de outras armas brancas, para além das especificadas na alin. d) do n.º1 do citado art. 86.º constitua crime, impõe-se concomitantemente, o preenchimento, entre outros, dos referidos três requisitos. Não apenas um, ou dois, mas os três. 4 - Uma faca de cozinha tem uma aplicação definida (a afectação às lides domésticas) que não é a de meio de agressão contra pessoas mas que, subtraída ao contexto normal da sua utilização, pode ser utilizado como tal. Sendo indubitavelmente uma arma branca, porque tem uma lâmina com mais de 10 cm de comprimento, não é (pelo menos num quadro de mera detenção) uma arma branca proibida. 5 - O uso desviado das propriedades do objecto não pode servir como critério para o definir como arma proibida.”
Segue-se a explicação detalhada dos termos do problema, enunciada no ac. da RL de 06/11/2012 Relatado pelo Desemb. Neto Moura no proc. 121/11.4SHLSB.L1-5, www.dgsi.pt., do qual destacamos:
“O artigo 86.°, n.° 1, da Lei n.° 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.° 17/2009, de 6 de Maio, diz-nos que comete o crime de detenção de arma proibida quem, sem autorização, fora das condições legais, ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, importar, transferir, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação, transferência ou exportação, usar ou trouxer consigo alguma das armas ou algum dos instrumentos, engenhos, equipamentos, produtos ou substâncias elencados nas suas quatro alíneas. Para o caso, interessa-nos as armas e, especificamente, as armas brancas mencionadas na alínea d) do n.° 1 citado. Arma branca é todo o objecto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina ou outra superfície cortante, perfurante ou corto-contundente, de comprimento igual ou superior a 10 cm e, independentemente das suas dimensões, as facas borboleta, as facas de abertura automática ou de ponta e mola, as facas de arremesso, os estiletes com lâmina ou haste e todos os objectos destinados a lançar lâminas, flechas ou virotões (art.° 2°, n° 1, al. m, da Lei n.° 5/2006, de 23/2). Na classificação estabelecida no artigo 3.° do mesmo diploma legal, integram a classe A, juntamente com as armas brancas dissimuladas sob a forma de outro objecto e, ainda, as armas brancas sem afectação ao exercício de quaisquer práticas venatórias, comerciais, agrícolas, industriais, florestais, domésticas ou desportivas, ou que pelo seu valor histórico ou artístico não sejam objecto de colecção (alíneas d) e f) do n.° 2 daquele artigo). Daqui resulta que se podem agrupar sob a designação de armas brancas:
· os objectos ou instrumentos portáteis dotados de uma lâmina ou outra superfície cortante, perfurante ou corto-contundente, de comprimento igual ou superior a 10 cm;
· independentemente das suas dimensões, as facas borboleta, as facas de abertura automática ou de ponta e mola, as facas de arremesso, os estiletes com lâmina ou haste e todos os objectos destinados a lançar lâminas, flechas ou virotões;
· as dissimuladas sob a forma de outro objecto e
· os objectos ou instrumentos portáteis dotados de uma lâmina ou outra superfície cortante, perfurante ou corto-contundente, de comprimento igual ou superior a 10 cm, que não tenham uma afectação ao exercício de quaisquer práticas venatórias, comerciais, agrícolas, industriais, florestais, domésticas ou desportivas, ou que pelo seu valor histórico ou artístico não sejam objecto de colecção. Para o que aqui importa, foram considerados provados os seguintes factos: "No dia 09.08.2011, cerca das 16h:15, na sequência de uma denúncia, o arguido foi encontrado, na Rua ..., na posse de uma faca tipo cozinha, com lâmina afiada de ambos os lados, cabo de 12 cm e lâmina de 13 cm, no comprimento total de 25 cm, (…). O arguido sabia que detinha objectos na via pública sem aplicação definida naquele contexto de se encontrar na via pública. Conhecia perfeitamente o potencial lesivo de ambos os objectos a quis tê-los na sua posse. Sabia, também, que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal". Tendo uma lâmina de comprimento superior a 10 cm, a faca de cozinha de que o arguido era detentor constitui uma arma branca. (…) Mas o que agora importa sublinhar é que nem todas as armas brancas relevam para a tipificação como crime de detenção de arma proibida. Como decorre da descrição do tipo legal, para esse efeito, só relevam:
· as armas brancas dissimuladas sob a forma de outro objecto;
· independentemente das suas dimensões, as facas borboleta, as facas de abertura automática, as facas de arremesso e os estiletes;
· outras armas brancas. Foquemo-nos nestas últimas. Nos termos legais, é crime, entre outros actos já supra mencionados, a detenção de "outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse". Tem-se entendido (cfr. anotação de Artur Vargues, in "Comentário das Leis Penais Extravagantes", vol. 1, UCE, 242, Org. de Paulo Pinto de Albuquerque e José Branco, que cita em apoio os acórdãos do TRE, de 04.03.2008 e do TRG, de 09.02.2009, ambos disponíveis em www.dgsi.pt) que, para este efeito, as "outras armas brancas" têm de reunir, cumulativamente, os seguintes requisitos:
· não terem aplicação definida;
· terem aptidão para serem usadas como arma de agressão e
· que o seu portador não justifique a sua posse. No entanto, não é pacífico que a expressão "sem aplicação definida" se refira também às "outras armas brancas" e não apenas aos "instrumentos". Não é recente a polémica sobre as características que devem reunir as armas brancas para serem consideradas armas proibidas. Na vigência do, entretanto revogado, artigo 275.° do Código Penal revisto pelo Dec. Lei n.° 48/95, de 15 de Março (na formulação que lhe foi dada, sucessivamente, pelas Leis n.°s 65/98, de 2 de Setembro, e 98/2001, de 25 de Agosto), entendia-se que era para o artigo 3.° do Dec. Lei n.° 207-A/75, de 17 de Abril, que remetia o seu n.° 3 ao aludir a "arma proibida". Ora, o n.° 1, al. f) desse artigo 3.° deste último diploma legal considerava proibidas a detenção, uso e porte, entre outras, de "armas brancas ou de fogo com disfarce ou ainda outros instrumentos sem aplicação definida, que possam ser usados como arma letal ou de agressão, não justificando o portador a sua posse". A controvérsia centrava-se na questão de saber se as armas brancas, designadamente facas e navalhas, deveriam ter "disfarce" para serem consideradas "armas proibidas", ou se essa característica se referia, apenas, às armas de fogo. A orientação dominante na jurisprudência era no sentido de que também as armas brancas teriam de estar dotadas de disfarce para poderem ser consideradas armas proibidas, argumentando-se que o princípio da necessidade, constitucionalmente consagrado (art.° 18.0, n.° 2, da CRP) "...obriga, por um lado, a toda a descriminalização possível; proíbe, por outro lado, qualquer criminalização dispensável, o que vale por dizer que não impõe, em via de princípio, qualquer criminalização em função exclusiva de um certo bem jurídico; e sugere, ainda por outro lado, que só razões de prevenção, nomeadamente de prevenção geral de integração, podem justificar a aplicação de reacções criminais" (Figueiredo Dias, "Direito Penal Português — As Consequências Jurídicas do Crime", Editorial Notícias, 1993, pág. 86) e dirige-se tanto ao legislador como ao intérprete. A controvérsia jurisprudencial justificou a prolação do Acórdão n.° 4/2004 (DR, I-A, n.° 112, de 13 de Maio de 2004) que fixou a seguinte jurisprudência: "Para efeito do disposto no artigo 275.°, n.° 3 do Código Penal, uma navalha com 8,5 cm ou 9,5 cm de lâmina só poderá considerar-se arma branca proibida, nos termos do artigo 3.0, n.° 1, alínea j), do Decreto-Lei n.° 207-A/75, de 17 de Abril, se possuir disfarce e o portador não justificar a sua posse". O argumento decorrente do aludido princípio é recuperado pelo Tribunal da Relação de Évora (no já citado acórdão de 04.03.2008) para defender uma interpretação restritiva da alínea d) do n.° 1 do art.° 86.° da Lei n.° 5/2006, de 23/02, fazendo-se abranger pela expressão "sem aplicação definida" as "outras armas brancas". É este entendimento que tem prevalecido na jurisprudência e, ao nível da 2ª instância, pode mesmo considerar-se uniforme, como resulta dos já citados arestos e, ainda, dos acórdãos do TRC, de 01.02.2012, de 06.04.2011 e de 23.06.2010 e do TRP, de 12.09.2012 (todos disponíveis em www.dgsi.pt). Volvendo ao caso concreto, temos uma faca com um cabo de 12 cm e uma lâmina de 13 cm de comprimento que é, portanto, uma arma branca que pode ser usada como arma de agressão, mas, sendo uma faca de cozinha, é de aplicação definida e, por conseguinte, adoptando, como julgamos ser de adoptar, aquele entendimento, não pode considerar-se arma proibida para efeitos de punição, como crime, da sua detenção (não justificada pelo arguido/recorrente). Na sentença recorrida entendeu-se que o contexto em que o arguido era portador dos referidos objectos (recorde-se que ele seguia na via pública quando foi encontrado na posse da faca de cozinha e do machado) faz com que eles deixem de poder ser considerados de aplicação definida. Porém, tal entendimento é rejeitado pela citada jurisprudência. Diz-se, com efeito, no citado acórdão do Tribunal da Relação de Évora que "o uso desviado das propriedades do objecto não pode servir como critério para o definir como arma proibida" e no acórdão desta Relação, de 20.12.2011 pode ler--se: "O facto de serem desviadas do contexto em que se inserem ou da aplicação/afectação definida, desvio esse para outros fins quer lícitos quer ilícitos, não as transforma por si em armas brancas proibidas. Se assim não fosse, o legislador, que tão pormenorizado foi no catálogo e definições consignadas, tê-lo-ia dito. Ora, não deve o intérprete presumir do texto da lei penal mais do que o legislador quis expressar-se nem encontrar incriminações em aspectos que, porque duvidosamente legislados, por isso mesmo, na dúvida, não podem ser objecto de interpretações extensivas ou analógicas na formulação de tipos penais, sob pena de violação do princípio da legalidade quer em sentido formal (nullum crimen sine lege scripta) quer na vertente da determinabilidade (nullum crimen sine lege certa) quer, ainda, na vertente da proibição analógica (nullum crimen sine lege stricta), consagrado no art° 29° n° 1 da CRP e nos art°s 1°-1 e 2 e art° 2°- n°1 do CP". Na verdade, o entendimento manifestado na sentença recorrida redunda num alargamento da punibilidade a condutas que não representam qualquer perigo para o bem jurídico tutelado pela norma incriminadora em causa, em contradição com a natureza fragmentária e a função de ultima ratio do direito penal. Nesse entendimento, qualquer pessoa que saísse à rua com uma faca de cozinha de lâmina com um comprimento igual ou superior a 10 cm estaria a cometer um crime de detenção de arma proibida. Aquelas situações, vulgares em várias regiões do país, em que as pessoas são portadoras de foices, catanas, podoas, roçadoras, etc. fora do âmbito da actividade agrícola ou florestal em que são, normalmente, utilizadas, também seriam penalmente puníveis. Não foi, seguramente, isso que se pretendeu com a norma incriminadora do artigo 86.° da Lei n.° 5/2006, de 23 de Fevereiro.”
Consequentemente, não se pode considerar provado que “o arguido estava ciente de que não podia deter a faca, nas condições em que o fez, sabendo ser o seu comportamento proibido e punido por lei” (como consta das als. b) e c) da Factualidade dada por assente).
E há que concluir que a detenção pelo arguido de uma faca de cozinha com 12 cms de cabo e 20 de lâmina nas demais circunstâncias apuradas No dia 08.06.2012, na Rua do Assento… não integra o cometimento do crime p. e p. pelo artº 86º, nº1, al. d), da Lei 5/2006, de 23.02 (Regime Jurídico das Armas e Munições).
Não pode manter-se a subsunção dos factos ao direito levada a cabo pela Mmª Juiz a quo, impondo-se a absolvição do Recorrente. III - DECISÃO
1. Concede-se provimento ao recurso interposto e absolve-se o arguido JOÃO G... da prática do crime de detenção de arma proibida, assim se revogando a sentença recorrida.
2. Sem custas.