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OMISSÃO DE AUXÍLIO
ELEMENTOS ESSENCIAIS DO CRIME
Sumário
O crime de omissão de auxílio é cometido sempre que alguém omite o dever de solidariedade social de prestação de auxílio que se revele necessário ao afastamento de um perigo de ofensa da vida, da saúde, da integridade física ou da liberdade de outrem, numa situação de grave necessidade dessa prestação, resultante nomeadamente de desastre, acidente, calamidade pública ou situação de perigo comum.
Texto Integral
Acordam, em audiência, na 1ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto:
Nos autos de processo comum nº .../.., do -º Juízo do Tribunal Judicial de...., o arguido Ernesto....., com os demais sinais dos autos, foi submetido a julgamento, em processo comum e com intervenção do tribunal singular, sob a imputação da prática, em autoria material e em concurso real, de um crime de ofensa à integridade física por negligência e de um crime de omissão de auxílio qualificada, previstos e punidos, respectivamente, pelos artºs 148º, nº 1 e 200º, nº 1 e 2, ambos do CP.
A final, foi proferida sentença em que se decidiu:
- Absolver o arguido da prática do crime de omissão de auxílio qualificada, p. p. pelo artº 200º, nºs 1 e 2, do Código Penal, que lhe vinha imputado;
- Condenar o mesmo arguido, como autor material de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. p. pelo artº 148º, nº 1, do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de esc. 1.000$00 (mil escudos), perfazendo o montante global de 100.000$00 (cem mil escudos), a que corresponde a prisão subsidiária de 66 (sessenta e seis) dias, e, ainda, na pena acessória de proibição de veículos motorizados pelo período de 4 (quatro) meses:
- Por último, condenar o arguido no pagamento das custas do processo, sendo a taxa de justiça de 3 UCs, a procuradoria de 1 UC, os honorários da defensora oficiosa de 30.000$00 e ainda no pagamento do acréscimo de 1% da taxa de justiça aplicada.
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Inconformado, interpôs o Ministério Público o presente recurso, restrito à parte da sentença absolutória, findando a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:
1 - O crime de omissão de auxílio, do artº 200º, nºs 1 e 2 do Código Penal, é cometido sempre que alguém omite o dever de prestação do auxílio que se revele necessário ao afastamento de um perigo de ofensa à vida, da integridade física ou da liberdade de outrem, numa situação de grave necessidade dessa prestação, resultante, designadamente, de acidente de viação da responsabilidade do omitente;
2 - Viola os princípios da legalidade e tipicidade em direito penal, o entendimento segundo o qual, para a verificação daquele ilícito criminal, se exige a verificação de outros elementos constitutivos não previstos na norma incriminadora;
3 - Na douta sentença recorrida fez-se, salvo o devido respeito, uma incorrecta interpretação do disposto nos artºs 1º e 200º do Código Penal e 29º da Constituição da República Portuguesa.
4 - Pelo exposto, entende-se que, procedendo o presente recurso, deverá revogar-se a douta sentença na parte em que absolveu o arguido, condenando-se este também pelo crime de omissão de auxílio que lhe foi imputado.”
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O recurso foi admitido.
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Não houve resposta.
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Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
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Foi cumprido o disposto no artº 417º, nº 2 do CPP, não tendo sido apresentada resposta.
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Colhidos os vistos legais, e realizada a audiência de julgamento com observância do pertinente formalismo legal, cumpre decidir.
Foram considerados provados os seguintes factos:
“1 - No dia 30 de Abril de 1999, pelas 22 horas e 30 minutos, o arguido conduzia o veículo automóvel, ligeiro de passageiros, com a matrícula RA-..-.., pela Estrada Nacional nº 109, no sentido de marcha Estarreja-Aveiro, a determinada velocidade, que não foi possível apurar em concreto;
2 - Ao atingir o Km. 49,200, a parte frontal do veículo conduzido pelo arguido embateu em Sandro....., o qual se encontrava a atravessar a referida Estrada, da esquerda para a direita, atendendo ao sentido de marcha Estarreja-Aveiro;
3 - O embate aludido no ponto anterior verificou-se no interior da hemifaixa de rodagem direita, a cerca de 50 cm da berma direita da via, atendendo ao sentido de marcha Estarreja-Aveiro, e não foi precedido de qualquer travagem do veículo conduzido pelo arguido;
4 - O Sandro..... nasceu no dia 3 de Maio de 1993;
5 - O local referido no ponto 2. era visível a mais de 200 metros por quem circulasse no sentido de marcha do arguido, sendo certo que aí se encontram implantados candeeiros de iluminação pública;
6 - A faixa de rodagem, no local referido no ponto 2., tem uma largura de 6,10 m, encontrando-se marginada por edificações;
7 - No local e momento referidos nos pontos 1. e 2., a estrada estava húmida, mas não chovia;
8 - Em consequência do embate referido no ponto 2., o Sandro..... foi projectado para a berma, caindo no solo a cerca de 2/3 metros de distância;
9 - Em consequência do embate e projecção referidos nos pontos 2. e 8., o Sandro..... sofreu uma escoriação da região lombar e uma contusão renal direita, com acumulação de líquidos no espaço peri-renal, o que levou ao seu internamento até ao dia 11 de Maio de 1999, lesões estas que lhe determinaram um período de 144 dias de doença, sendo os 12 primeiros com afectação para o trabalho;
10 - O arguido, no momento referido nos pontos 1. e 2., não prestava atenção à condução do veículo que dirigia, nem ao estado da via e às pessoas que nela se encontravam e atravessavam;
11 - O arguido só se apercebeu da presença de Sandro..... quando o veículo que dirigia, nele embateu;
12 - Após o embate referido no ponto 2. o arguido deteve a marcha do veículo que conduzia, olhou pelo espelho retrovisor interior para a traseira deste, apercebendo-se que o Sandro..... se encontrava caído na berma direita;
13 - Após o referido no ponto anterior, o arguido retomou a marcha do veículo que conduzia, não procurando averiguar as consequências concretas do embate, tendo consciência de que havia embatido no Sandro....., de que este poderia necessitar de ajuda, e de que a sua integridade física poderia encontrar-se em perigo ou lesada, conformando-se com essa probabilidade;
14 - O arguido não prestou ajuda ao Sandro....., nem providenciou pela sua obtenção;
15 - O arguido é pessoa calma, mas enerva-se quando tem de enfrentar problemas, recorrendo ao auxílio da sua esposa;
16 - O arguido padece de epilepsia.
17 - Após o referido no ponto 13., o arguido dirigiu-se para a sua residência e informou a sua esposa do que havia sucedido;
18 - A esposa do arguido dirigiu-se aos Bombeiros, ao Hospital Visconde de Salreu e ao Hospital Distrital de Aveiro, por forma a informar-se do estado do Sandro.....;
19 - O arguido deslocou-se à GNR de Estarreja, dando notícia de que tinha sido ele a pessoa que havia embatido no Sandro.....;
20 - O arguido é casado, tendo uma filha a seu cargo;
21 - O arguido é serralheiro de profissão, trabalhando por conta de outrem, e auferindo a remuneração mensal de esc. 79.300$00;
22 - A esposa do arguido trabalha como auxiliar de acção educativa, auferindo rendimentos cuja grandeza não foi possível determinar em concreto;
23 - O arguido e sua esposa residem em habitação própria;
24 - O arguido completou o 4º ano de escolaridade;
25 - O arguido admitiu, em julgamento, grande parte da factualidade que lhe era imputada, de forma espontânea;
26 - O arguido não apresenta qualquer condenação penal.”
Foram considerados não provados os seguintes factos:
“1 - Que o tempo estivesse chuvoso;
2 - Que o Sandro..... tenha sofrido uma paragem cardíaca;
3 - Que o Sandro..... tenha estado em situação de perigo para a sua vida;
4 - Que o arguido seguisse a uma velocidade de cerca de 50 km/hora, de forma atenta e prudente;
5 - Que o arguido não tivesse visto o ofendido por estar escuro;
6 - Que o ofendido fugisse de uma menina;
7 - Que o arguido tenha abandonado o local para ir buscar auxílio;
8 - Que o arguido e sua esposa se tivessem deslocado de imediato ao local do acidente;
9 - Que o arguido se tenha dirigido aos Bombeiros, ao Hospital Visconde de Salreu e ao Hospital Distrital de Aveiro por forma a informar-se do estado do Sandro.....”
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Conforme decorre da análise das conclusões da motivação, com o presente recurso pretende-se apenas o reexame da matéria de direito (cfr. artºs 403º e 412º, nºs 1 e 2 e 428º, nº 1 do CPP).
Deste modo há que considerar definitivamente fixada a matéria de facto atrás descrita, a menos que ocorra qualquer dos vícios referidos nas diferentes alíneas do nº 2 do artº 410º do CPP.
Como se refere no Ac. do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19/10/95 (Processo nº 46580/3ª, DR, I Série, de 28 de Dezembro) é oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artº 410º, nº 2 do CPP, que, desde já se diz, não se verificam.
Assim sendo, há que analisar a única questão suscitada pelo ilustre recorrente e que consiste em saber se os factos provados integram, como defende, também a prática de um crime de omissão de auxílio p. p. pelo artº 200º, nºs 1 e 2 do CP, em concurso real com o crime de ofensa à integridade física por negligência p. p. pelo artº 148º, nº 1 do CP pelo qual o arguido foi condenado.
O tribunal “a quo” considerou que não, fundamentando, nos seguintes termos, tal posição:
“(...)
4. Desta forma, compulsando a matéria de facto provada, a conduta do arguido parece, numa primeira análise, integrar os elementos – objectivos e subjectivos – do tipo-de-ilícito plasmado no artº 200º, nº 2, do Código Penal, atrás descrito. Todavia, afigura-se-nos que tal conclusão, mais do que precipitada, é incorrecta.
Com efeito, o fundamento do dever especial ou potenciado de auxilio pressuposto no tipo qualificado do nº 2 do artº 200º, e logo da agravação da punição, reside na ingerência. Porém, tal ingerência não deve ser confundida com a ingerência fundamentadora de um dever de garante, pois caso se afirme que sobre o agente recai tal dever de garante, então não estaremos já perante uma omissão pura, mas sim perante uma eventual comissão por omissão – artº 10º, nº 2 do Código Penal.
Assim sendo, afigura-se-nos que quando o comportamento omissivo do agente se sucede a uma conduta lesiva prévia ilícita e negligente, o agente apenas cometerá o crime de auxílio (artº 200º, nº 2, do Código Penal) se o perigo que a sua actuação criou exceder o dano produzido. Por outras palavras, só se verificará um concurso real ou efectivo de infracções entre o crime de ofensa à integridade física por negligência e o crime de omissão de auxílio (ocorrendo este na sequência daquele) quando o perigo de lesão criado exceda a lesão efectivamente infligida pela conduta ofensiva (por exemplo, o agente produz uma lesão no corpo da vítima, colocando-a em situação de perigo para a vítima “...)
Ora, regressando ao caso em análise, importa salientar que não se demonstrou que o Sandro..... tenha estado numa situação de perigo que excedesse o dano físico que sofreu em consequência do atropelamento – aliás, nem esse perigo acrescido (perigo para a vida, ou perigo de agravamento do estado físico do ofendido) foi sequer alegado de forma concreta na acusação pública (...), ou investigado no decurso do inquérito. De facto, o único resultado investigado e apurado foram as lesões físicas produzidas no corpo do Sandro....., não se indiciando a verificação de um qualquer perigo que excedesse esse dano (o que não significa que o mesmo não tenha ocorrido – só que não é possível afirmá-lo em face da prova produzida).
(...)
Deste modo, e pelo exposto, julgamos que o arguido deverá ser punido somente pelo crime de ofensa à integridade física por negligência, impondo-se a sua absolvição da prática do crime de omissão de auxílio que lhe era imputada”.
Não podemos sufragar tal entendimento.
Senão vejamos...
Dispõe o artº 200º do CP:
“ 1- Quem, em caso de grave necessidade, nomeadamente provocada por desastre, acidente, calamidade pública ou situação de perigo comum, que ponha em perigo a vida, a integridade física ou a liberdade de outra pessoa, deixar de lhe prestar o auxílio necessário ao afastamento do perigo, seja por acção pessoal, seja promovendo o socorro, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.
2 - Se a situação referida no número anterior tiver sido criada por aquele que omite o auxílio devido, o omitente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.
3 - A omissão de auxílio não é punível quando se verificar grave risco para a vida ou integridade física do omitente ou quando, por outro motivo relevante, o auxílio não lhe for exigível”.
Pois bem.
Como sabido, o crime de omissão de auxílio previsto no artº 200º é um crime omissivo (o núcleo do tipo é a inactividade do agente, em contrariedade com o dever jurídico de fazer). Por outro lado, trata-se, ainda, de um crime omissivo próprio, porquanto de mera actividade, contrariamente ao que sucede com os crimes omissivos impróprios, também designados comissivos por omissão, que são crimes de resultado e aos quais se refere directamente o artº 10º do CP. Este último preceito impõe o dever de evitar um resultado, enquanto que o artº 200º impõe tão só o dever de auxiliar.
O fundamento legitimador do dever geral de auxílio, consagrado no artº 200º do CP, é a solidariedade humana que deve vincular todo e qualquer membro da sociedade, sendo que os bens protegidos por tal preceito, são a vida, a integridade física e a liberdade.
Temos, pois, que o crime de omissão de auxílio do artº 200º do CP é cometido sempre que alguém omite o dever de solidariedade social de prestação de auxílio que se revele necessário ao afastamento de um perigo de ofensa da vida, da saúde, da integridade física, ou da liberdade de outrem, numa situação de grave necessidade dessa prestação resultante, nomeadamente de desastre, acidente, calamidade pública, ou situação de perigo comum.
É que, como se escreve no Ac. do STJ de 5/12/96, in BMJ 462, págs. 178 e ss., cujo entendimento por inteiro sufragamos, “a expressão «grave necessidade» não respeita à gravidade das consequências do acidente, calamidade, etc., mas às condições anormais em que surge a violação dos bens eminentemente pessoais do ofendido, e o conceito de «afastamento do perigo» que se encontra na base do mencionado dever de solidariedade social engloba também, e necessariamente, as situações em que a violação de qualquer daqueles bens eminentemente pessoais de outrem já foi efectivada, mesmo que de forma irremediável, mas cuja extensão ou possíveis futuras consequências se não tornem perceptíveis a quem se depare com a situação em causa”.
Também no Ac. da Relação de Coimbra, de 18/10/2000, in CJ, Ano XXV, Tomo IV, pág. 58 e ss., se refere, a propósito de tal ilícito criminal: ” (...) Trata-se, pois, de um crime de omissão pura e de perigo, porquanto o seu elemento material se basta com a omissão ou falta de cumprimento do dever de prestação de auxílio, independentemente da verificação de qualquer resultado, isto é, quer os bens jurídicos ameaçados (vida, integridade física e liberdade) venham ou não a ser efectivamente atingidos ou venha ou não a ser agravada a situação de perigo que sobre eles impende por efeito da conduta omissiva”. –sublinhado nosso.
E continua o mesmo aresto :
"...para a verificação do dolo (eventual) basta que o agente, tendo tomado conhecimento da situação de perigo prevista na norma incriminadora, assuma conscientemente o comportamento omissivo nela previsto, aceitando, conformando-se ou mostrando-se indiferente perante a perigosidade ou situação perigosa, posto que seja capaz de realizar os actos que se revelem necessários ao afastamento do perigo, sendo irrelevante a finalidade que o agente quis prosseguir com a abstenção de socorro”.
Acresce, que o nº 2 do artº 200º do CP prevê um crime de omissão de auxílio qualificada pela circunstância da situação de perigo descrita no nº 1 ter sido criada pelo omitente do auxílio, não contendo, assim, esta norma incriminadora, qualquer outra exigência típica, designadamente aquela que é invocada pelo tribunal recorrido. Nas palavras de Taipa de Carvalho “ (...) está-se diante de um crime específico impróprio. É a circunstância da ingerência, ou seja, o facto de ter sido o próprio omitente a ter causado (anteriormente) a situação de perigo o que fundamenta um dever especial (potenciado) de auxílio e, consequentemente, a cominação de uma pena mais grave para a sua violação”- vide “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte Especial, Tomo I, pág. 851.
Ora, in casu, mostra-se firmado que o arguido, quando conduzia o veículo automóvel, ligeiro de passageiros, com a matrícula RA-..-.., pela Estrada Nacional nº 109, no sentido de marcha Estarreja-Aveiro, ao atingir o Km. 49,200, embateu, por não prestar atenção à condução do veículo que dirigia, nem ao estado da via e às pessoas que nela se encontravam e atravessavam, com a parte frontal do veículo em Sandro....., o qual se encontrava a atravessar a referida Estrada, da esquerda para a direita, atendendo ao sentido de marcha Estarreja-Aveiro, embate aquele que se verificou no interior da hemifaixa de rodagem direita, a cerca de 50 cm da berma direita da via, atendendo ao sentido de marcha Estarreja-Aveiro e, em consequência do qual, o Sandro..... foi projectado para a berma, caindo no solo a cerca de 2/3 metros de distância, sofrendo, em consequência, uma escoriação da região lombar e uma contusão renal direita, com acumulação de líquidos no espaço peri-renal, o que levou ao seu internamento até ao dia 11 de Maio de 1999, lesões estas que lhe determinaram um período de 144 dias de doença, sendo os 12 primeiros com afectação para o trabalho. Mais se encontra firmado, que arguido só se apercebeu da presença de Sandro..... quando o veículo que dirigia, nele embateu, sendo certo que após o embate, deteve a marcha do veículo que conduzia, olhou pelo espelho retrovisor interior para a traseira deste, apercebendo-se que o Sandro..... se encontrava caído na berma direita, após o que retomou a marcha do veículo que conduzia, não procurando averiguar as consequências concretas do embate, tendo consciência de que havia embatido no Sandro....., de que este poderia necessitar de ajuda, e de que a sua integridade física poderia encontrar-se em perigo ou lesada, conformando-se com essa probabilidade, sendo que não prestou ajuda ao Sandro....., nem providenciou pela sua obtenção.
Face a esta factualidade, dúvidas não restam de que o arguido se constituiu na autoria material do crime de omissão de auxilio na sua forma agravada, configurados que se mostram os seus elementos essenciais - acima delineados -, em concurso real com o crime de ofensas corporais por negligência p. p. pelo artº 148º, nº 1 do CP (artº 30º, nº 1 do CP) – cfr., neste sentido, Paula Ribeiro de Faria, in ob. cit., pág. 273, e Ac. do STJ, de 7/03/90, in BMJ 395; 237 e ss.
O crime de omissão de auxílio na sua forma agravada é punido, em abstracto, com pena de prisão até dois anos ou multa até 240 dias.
Ora, conforme dispõe o artº 70º do CP, “ se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada a suficiente as finalidades da punição”.
As finalidades da punição são, di-lo o artº 40º, nº 1, ainda do CP, a protecção de bens jurídicos (prevenção geral) e a reintegração do agente na sociedade (prevenção especial).
São, pois, como ensina o Prof. Figueiredo Dias “ finalidades exclusivamente preventivas, de prevenção especial e de prevenção geral, não finalidades de compensação da culpa, que justificam (e impõem) a preferência por uma pena alternativa”. E continua o mesmo Prof. “ bem se compreende que assim seja: sendo a função exercida pela culpa, em todo o processo de determinação da pena, a de limite inultrapassável do quantum daquela, ela nada tem a ver com a questão da escolha da espécie da pena” – cfr. “Direito Penal Português – As Consequências jurídicas do crime”, Aequitas, Editorial Notícias, págs. 331/332.
Sendo, assim, a culpa estranha à questão da escolha da espécie da pena, analisemos o caso à luz das necessidades da prevenção.
O crime de omissão de auxílio está longe de provocar insegurança geral.
Deste modo, a imposição da pena alternativa de multa ao autor de um tal tipo de crime não põe em causa a crença da comunidade na validade da norma violada nem os sentimentos de confiança dos cidadãos nas instituições jurídico-penais.
Por outro lado, o arguido é delinquente primário, encontra-se socialmente integrado, dispondo de um meio familiar e de uma ocupação estáveis. Daí que se entenda que não se verificam exigências de prevenção especial que imponham a aplicação de pena privativa da liberdade.
Deve, pois optar-se, no caso, pela pena de multa, em obediência ao falado artº 70º.
Feita a escolha da espécie da pena, há que achar a sua medida.
Nos termos do artigo 71º do CP, a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra aquele, enumerando-se aí exemplificadamente alguns desses factores.
Deve ter-se, porém, em conta que ” em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa” – artº 40º, nº 2 do CP.
Como ensina o Prof. Jorge Figueiredo Dias, in ob. cit., pág. 214: “ Culpa e prevenção são assim, os dois termos do binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo de medida da pena (em sentido estrito, ou de determinação concreta da pena...)” ou, como se escreveu em ac. do STJ de 23/10/96, “ De acordo com estes princípios, o limite da pena é o da culpa do agente. O limite abaixo do qual a pena não pode descer é o que resulta da aplicação dos princípios da prevenção geral, segundo os quais a pena deve neutralizar o efeito negativo do crime na comunidade e fortalecer o seu sentimento de justiça e de confiança na validada das normas violadas, além de constituir um elemento dissuasor. A medida da pena tem de corresponder às expectativas da comunidade. Daí para cima, a medida exacta da pena é a que resulta das regras de prevenção especial. É a medida necessária à reintegração do indivíduo na sociedade, causando-lhe só o mal necessário. Dirige-se ao próprio condenado para o afastar da delinquência e integrá-lo nos princípios dominantes da sociedade” – BMJ 460-410.
Por outro lado, visando a pena de multa punir pecuniariamente uma infracção criminal e cumprindo, como qualquer outra, as mencionadas finalidades de protecção de bens jurídicos e de reintegração do agente na sociedade, é manifesto que a mesma não pode deixar de consistir num sacrifício imposto ao condenado, tão severo quanto o necessário para que tais finalidades sejam atingidas.
Assim, tendo presentes as considerações expendidas, a moldura da multa que, em abstracto, se comina, o grau de ilicitude do facto, a gravidade das lesões corporais sofridas pelo carecido de auxílio, a intensidade do dolo (eventual), a ausência de pretérito criminal do arguido, a admissão, de forma expontânea, em julgamento, de grande parte da factualidade que lhe era imputada, e, finalmente, as exigências de prevenção geral e especial, tudo ponderado, considera-se ajustada a pena de 220 (duzentos e vinte) dias de multa à taxa diária de 1.000$00 (taxa esta já fixada na sentença recorrida relativamente ao crime de ofensa à integridade física por negligência p. p. pelo artº 148º, nº 1 do CP, igualmente praticado pelo arguido, e que se tem por adequada face aos critérios estabelecidos no artº 47º, nº 2 do mesmo código).
Tal pena de multa terá de ser cumulada juridicamente com a que já lhe foi aplicada na sentença recorrida pela prática do indicado crime de ofensa à integridade física por negligência p. p. pelo artº 148º, nº 1 do CP (cem dias de multa à taxa diária de mil escudos ).
Decisão:
Nestes termos, e em função do exposto, acordam os Juízes desta Relação, no provimento do recurso, revogar a sentença em causa na parte em que absolveu o arguido do crime de omissão de auxílio p. p. pelo artº 200º, nºs 1 e 2 do CP e, em consequência, condenam-no na pena parcelar de 220 (duzentos e vinte) dias de multa à taxa diária de 1.000$00 (mil escudos) pela prática do apontado crime de omissão de auxílio p. p. pelo artº 200º, nºs 1 e 2 do CP, e, em cúmulo, com a pena aplicada pelo crime de ofensa à integridade física por negligência p. p. pelo artº 148º, nº 1 do CP, de 100 (cem) dias de multa à taxa diária de 1.000$00 (mil escudos), condenam-no na pena única de 260 (duzentos e sessenta) dias de multa à taxa diária de 1.000$00 (mil escudos), fixando-se a prisão subsidiária em 173 (cento e setenta e três) dias.
Mantém-se, quanto ao mais, o doutamente decidido na sentença recorrida.
Sem tributação.
(Texto processado e revisto pela relatora)
Porto, 03 de Outubro de 2001
Nazaré de Jesus Lopes Miguel Saraiva
Joaquim Manuel Esteves Marques
António Manuel Clemente Lima