PENHORA
HERANÇA INDIVISA
Sumário

I - A penhora sobre o direito a bens indivisos só pode e deve ser registada quando a indivisão respeite a um único bem sobre o qual sejam registáveis direitos.
II - Daí que entre a penhora registada e o acto de alienação de um quinhão de uma herança de que faz parte apenas um imóvel, tem prioridade o que primeiro for registado.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

Nos Autos de execução ordinária nº ../00-1º Juízo do Tribunal Judicial de Sta Maria da Feira, em que são exequentes Joaquim... e Ana... e executados Américo... e Albertina... foi ordenada a penhora do direito e acção à herança ilíquida e indivisa dos executados, aberta por óbito de Leandro..., pai da executada Albertina, herança de que faz parte o prédio identificado no requerimento de fls.17.
Conforme resulta de fls. 25, Ermelinda..., co-titular da herança, veio informar no processo executivo que comprou o quinhão hereditário que a sua irmã, aqui executada, possuía na herança aberta por óbito de seu pai, consoante escritura pública de 22.02.00, de que juntou fotocópia e concluindo que a executada Albertina não é detentora de qualquer direito na referida herança.
Por sua vez, os exequentes no requerimento que apresentam para junção da certidão comprovativa do registo da penhora, pedem que nos termos do art. 819 do CC se declare ineficaz em relação aos exequentes o acto de alienação do prédio da herança sobre o qual recaiu a penhora do direito e acção dos executados, consubstanciado na partilha efectuada, na medida em que é posterior à penhora, como posterior é o respectivo registo, bem como se cumpra o art. 864 do CPC.
Na sequência dos aludidos requerimentos, o Tribunal “a quo” fez recair no processo o seguinte despacho:
“...Nos termos do artº 862/3 do CPC “Quando o direito seja contestado, a penhora substituirá ou cessará conforme a resolução do exequente e do executado, nos termos do artº 858”. Ora, prescreve este normativo que se ouvem o exequente, o executado e o devedor (no caso será o titular do direito penhorado).
Assim, constatando-se que não se deve cumprimento a tal disposição legal notifique o exequente e os executados do teor do requerimento de fls. 21, como dos documentos aí juntos. Caso o exequente mantenha o interesse na penhora será então, dado cumprimento ao diposto no citado art. 858 do CPC.
Não obstante o que acabamos de referir no que diz respeito ao requerimento de fls.31 que os exequentes apresentaram, importa referir que a penhora do direito a bens indivisos é uma modalidade especial da penhora do direito de crédito e que o direito a um quinhão em herança indivisa é coisa móvel, mesmo quando ela contenha imóveis (Cfr. AC RC de 22.4.97, in nhp//nmn. Dgsi, pt).
Pretende o exequente que o Tribunal declare a ineficácia do acto de alienação do prédio da herança, uma vez que o seu registo é posterior.
Sucede que, ao contrário do que alegam os exequentes, não ocorreu um acto de divisão mas sim a partilha dos bens da herança aberta por óbito de Leandro.... E foi esse acto de aquisição em virtude da partilha que foi registada posteriormente ao registo da penhora efectuada nos autos.
Sucede que a penhora do direito a uma herança ilíquida e indivisa não está sujeita a registo por se tratar de direito a parte indeterminada de bens, desconhecendo-se aqueles que virão a constituir a quota do executado (Ac RP de 2.3.2000, proc. N. 2000.3.288). Como tal não há lugar à regra da prevalência do acto que primeiramente é registado. Por outro lado, não havendo lugar à aplicação das regras de registo, temos que a alienação do quinhão hereditário da executada é anterior à data da penhora de tal quinhão, pelo que não há lugar à aplicação do referido artº 819 do C.Civil”.
Inconformados com a decisão dela agravaram os exequentes que nas suas alegações de recurso concluem do seguinte modo:
A- o legislador, nos n.º 2 e 3 do artigo 862º do C.Civil, refere-se a realidades jurídicas diferentes: os notificados podem fazer declarações acerca do direito penhorado e o devedor pode contestar o direito, sendo certo que declarações e contestação tem fins e titulares diferentes (co-titulares, de um lado, e devedor, do outro);
B- A declaração da co-titular da herança, feita nos autos, de que adquirira à executada o direito penhorado não constitui contestação do direito, nem ela, não detendo a qualidade de devedora, tinha legitimidade para contestar o direito penhorado, legitimidade que só a herança detinha, por deter posição equivalente à de devedor. Aliás, o Mº Juiz “a quo” decidiu não poder apreciar, e não apreciou, tal questão, esvaziando-a de qualquer relevância jurídica no seu despacho de folhas 25;
C- Como consequência, não há lugar à aplicação do disposto no artigo 858º do C.P.Civil, devendo a penhora considerar-se pura e simplesmente, realizada em toda a sua amplitude,
D- A penhora do direito à herança da executada é registável e foi registada; E- A transmissão do direito à herança da executada para outrém está obrigatoriamente sujeita a registo e, no caso “sub judice”, não foi registada;
F- No confronto de ambos os actos tem prevalência a penhora, porque registada, apesar da eventual autenticidade do acto dispositivo não registado;
G- O acto de disposição do direito penhorado, bem como a transmissão do bem da herança operada através da partilha são ineficazes para com os recorrentes.
H- A douta decisão recorrida faz incorrecta interpretação e aplicação do disposto nos artigos 5º, nº 1 e 4, 6º, nº 1, 7º do C.R.Predial, 862º, nº 2 e 3, 858º do C.P.Civil, 819º do Código Civil.
Os executados não apresentaram contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
Releva para a apreciação e decisão do presente recurso os factos e dinâmica processual acima referida.
São as seguintes as questões suscitadas pelos agravantes para apreciação e decisão deste Tribunal da Relação:
- Saber se o requerimento, de fls. 25, da co-titular da herança, Ermelinda..., a informar que, por escritura de 22.02.00, havia adquirido à sua irmã, aqui executada, o quinhão hereditário que esta possuía na herança aberta por óbito de seus pais se deve considerar como “declaração” ou “contestação”, para efeitos do nº 2º ou 3º do art. 862 do CPC.
- Saber se no caso em apreço, a penhora do direito e acção à herança ilíquida e indivisa da executada é ou não registável e, consequentemente, é aplicável o disposto no art. 819 do CC.
Quanto à 1ª questão:
Decidiu-se na primeira parte do despacho recorrido que face ao teor do requerimento da co-titular da herança a informar que tinha adquirido o quinhão hereditário de sua irmã, havia que aplicar o disposto no art. 858, “ex vi”, do nº 3º do art. 862, considerando-se, portanto, que se estava em presença de uma contestação do direito, a integrar no nº 3 do art. 862 do CPC.
Alegam os agravantes que uma coisa são as declarações a que se refere o nº 2º do art. 862 do CPC e outra bem diferente é a contestação do direito penhorado a que se refere o nº 3 do aludido preceito.
Segundo os agravantes, o legislador refere, por um lado, “declarações” dos notificados e, por outro, que o direito seja “contestado” e, ao fazê-lo, quis consagrar duas faculdades distintas e de diverso efeito atribuídas a sujeitos diferentes, que são a de os co-titulares declararem o que entenderem conveniente acerca do direito do executado (sua existência, amplitude, garantias, etc.), sem que isso importe contestação, e a de, quem nisso tiver interesse ou seja o devedor, deduzir oposição a tal direito, contestando-o expressamente. Ou seja, os co-titulares fazem declarações acerca do direito, o devedor contesta-o”.
Vejamos.
Dispõe o art. 862 do CPC que se a penhora tiver por objecto o direito a bens indivisos, a diligência consiste unicamente na notificação do facto ao administrador dos bens, se o houver, e aos contitulares, com expressa advertência de que o direito do executado fica à ordem do tribunal da execução (nº1º).
É lícito aos notificados fazer as declarações que entendam quanto ao direito do executado e ao modo de o tornar efectivo (nº 2º).
Quando o direito seja contestado, a penhora subsistirá ou cessará conforme a resolução do exequente e do executado, nos termos do art. 858 (nº 3º).
Da norma vinda de citar verifica-se resultar dela diferentes situações, sendo que, nesses os casos, os notificados poderão contestar a existência do direito penhorado ou fazer acerca dele outras declarações pertinentes, nomeadamente quanto ao modo de o tornar efectivo.
Se os notificados não fizerem nenhuma objecção à penhora, entender--se-à que reconhecem o direito do executado tal como, para essa penhora, tenha sido nomeado.
Segundo Lopes Cardoso, caso algum deles conteste esse direito, tem de observar-se o disposto no art. 858, isto é, o juiz deve convocar para o tribunal o contestante, o exequente e o executado e se na conferência o contestante persistir na sua negativa, o exequente dirá se mantém a penhora ou desiste dela. Se o exequente mantiver a penhora, o crédito passa a considerar-se litigioso e como tal será adjudicado ou transmitido (cf. Manual da Acção Executiva-484).
-Portanto, não é correcto fazer a distinção no sentido de que aos titulares apenas é possível fazer declarações acerca do direito e ao devedor apenas contestá-lo.
O que resulta do artigo em análise é que qualquer um dos notificados pode fazer declarações quanto ao direito do executado e ao modo de o tornar efectivo, bem como contestar o direito.
O Prof. Alberto dos Reis apresenta o seguinte exemplo como sendo de contestação (cf. Processo de Execução, II,222): se o exequente nomeia à penhora o direito a 1/3 dos bens e os notificados vierem dizer que ele apenas tem direito a ¼, há lugar ao cumprimento do art. 858 do CPC.
Também Lebre de Freitas (Acção Executiva-204) refere que “os notificados (sem fazer qualquer distinção) poderão contestar a existência do direito penhorado ou fazer acerca dele outras declarações pertinentes”.
E como se deve interpretar o requerimento da co-titular Ermelinda..., ao informar que, por escritura de 22.02.00, havia adquirido à sua irmã, aqui executada, o seu quinhão hereditário?
No despacho recorrido entendeu-se tratar de “contestação do direito”, enquanto os agravantes dizem tratar-se de uma “mera declaração”, a excluir o cumprimento do art. 858 do CPC.
Só que uma declaração pode envolver uma contestação dum direito.
No caso concreto, os exequentes dizem que a executada é titular do “direito e acção à herança ilíquida e indivisa” aberta por óbito do seu pai e, por isso, nomeiam tal direito à penhora. Mas, a co-titular Ermelinda, sua irmã, faz uma declaração no processo, contestando tal direito, alegando que comprou, em 22.02.00, o quinhão hereditário à sua irmã, aqui executada. Assim, ao titular do direito apresentado pelos exequentes, contrapõe a Ermelinda um outro titular do direito, isto é, apresenta ao Tribunal uma exposição da ocorrência do direito diversa da que os exequentes ofereceram. No fundo, existe uma oposição, quanto ao direito, entre os exequentes e um dos co-titulares notificados.
Afigura-se-nos, pois, que o requerimento da co-titular Ermelinda... ter-se-à de considerar como contestação do direito, havendo lugar à aplicação do disposto no art. 858 do CPC., como aliás foi decidido na 1ª instância.
Na segunda parte do seu despacho, o Tribunal “a quo” decidiu:
a) não haver lugar à aplicação das regras de registo e, assim sendo, a alienação do quinhão hereditário da executada anterior à data da penhora e seu registo, não se aplica o disposto no artigo 819 do Código Civil;
b) não funciona a regra da prevalência do acto primeiramente registado.
Consagra-se no art. 819 CC princípio da ineficácia em relação ao credor dos actos de disposição ou oneração dos bens penhorados, ressalvadas as regras do registo.
Dele resulta que o devedor pode livremente alienar ou onerar os bens penhorados. Neste caso, porém, a execução prossegue, como esses bens pertencessem ao executado.
Efectuada a penhora, terá esta de ser registada se incidir em quota de contitular de direito que dê lugar a registo (art. 863), mas não quinhão em universalidade de direito, ainda que nesta se contenham direitos que dêem lugar a registo (cf. Lebre de Freitas-Acção Executiva, 208).
Mas, existe uma corrente jurisprudencial e doutrinal no sentido de a penhora sobre o direito a bens indivisos só ser registável quando a indevisão respeite a um único bem sobre o qual sejam registáveis direitos. Se compreender vários bens, o registo não é necessário e nem sequer se pode fazer, por não se poder determinar senão depois da divisão, a qual ou quais bens respeita o direito (cf. Lopes Cardoso-op. cit., 486). Também é registável a penhora sobre bens indivisos quando à herança, que contenha bens imóveis, concorra apenas um único herdeiro. Nestes casos, a penhora do direito à herança ilíquida e indivisa, converte-se automaticamente em penhora sobre imóveis, obrigatoriamente sujeita a registo.
Afigura-se-nos mais correcta esta última corrente e cremos que terá sido esse o entendimento da Conservatória do Registo Predial, porquanto, conforme resulta da certidão de fls. 21-24, a penhora em causa encontra-se registada.
No caso dos autos, verifica-se que a herança de Leandro... contém apenas um único imóvel, sendo dele que será retirado ou composto o quinhão sucessório da executada, e convertendo-se a penhora do direito em penhora sobre o bem imóvel.
Ora, perfilhando-se como se perfilha a tese da obrigatoriedade do registo da penhora do direito e acção à herança ilíquida e indivisa de que é titular a executada, importa agora analisar a prioridade dos registos.
A penhora sobre a coisa faz com que ela fique afectada aos fins da execução e, por isso, subtraída à disponibilidade do executado. E do mesmo modo que ao titular de um direito real não poderia ser oposta uma alienação não registada depois de o ser o acto de constituição do direito real, também parece não ser oponível ao penhorante um acto de alienação registado após o registo da penhora (cf. Vaz Serra-RLJ-ano 103, pag. 162). Por isso, os actos sujeitos a registo ainda que anteriores em data à penhora, mas registados depois de registada esta, são ineficazes em relação à execução, porquanto o CRP, no seu art. 2º inclui a penhora ao lado dos demais actos sujeitos a registo, assim implicitamente a subordinando ao mesmo regime (art. 6).
A penhora de imóveis só produz efeitos em relação a terceiros desde a data do registo, bem como só produz efeitos em relação a terceiros, desde a data do registo, o acto de alienação de imóveis (arts. 838 nº 4º do CPC e arts. 2º nº 1º als. a) e o) e 5º).
Daí que entre a penhora e o acto de alienação tem prioridade o que primeiro for registado (art. 6º do CRP).
No caso dos autos, enquanto os exequentes registaram a penhora, a co-titular Ermelinda... não registou a aquisição do direito da executada, pelo que, no confronto entre a aquisição do direito e a penhora do direito, deve prevalecer esta.
No que respeita à transmissão operada pela partilha, verifica-se pela certidão de ónus e encargos junta aos autos, que a mesma se encontra registada, mas em data posterior ao da penhora.
Daí que também relativamente a ela, existindo como existe registo prévio da penhora, ter-se-á de aplicar também a regra da ineficácia no que respeita aos recorrentes, nos termos do art. 819 do CC.
Alegam os recorrentes que, diferentemente do que se defende no despacho recorrido, a partilha não é um acto de administração, mas antes um acto de disposição.
Como é sabido a questão da natureza e efeitos da partilha foi ao longo dos tempos objecto de acesa controvérsia (se com carácter declarativo, se constitutivo ou atributivo) que perdurou até actual Código Civil.
O Código Civil vigente veio consagrar o reflexo do carácter declarativo da partilha, ao proclamar no art. 2119 que “feita a partilha, cada um dos herdeiros é considerado, desde a abertura da herança, sucessor único dos bens que lhe forem atribuídos, sem prejuízo do disposto quanto a frutos”. Estabeleceu, pois, como no próprio preceito se acentua, a retroactividade da partilha e, em consequência com tal princípio, firmou as regras relativas à evicção (art. 2123º), à alienação da quota da herança (arts. 2124º, 2130º, 892º e 985º) e a sua oneração (art. 690º).
Sobre a natureza e efeitos da partilha veja-se, entre outros, Lopes Cardoso - Partilhas Judiciais –II-499-504 e Pereira Coelho -Dto das sucessões-1968-247 e sgts. e Pires de Lima e A.Varela –CC-vol. VI- anot. ao art. 2119.
Do exposto, é de concluir que o acto de disposição do direito penhorado, bem como a transmissão do bem da herança operada através da partilha são ineficazes para com aos recorrentes.
Assim sendo, procedem as conclusões das alegações dos recorrentes relativamente à 2ª parte do despacho recorrido.
Nos termos expostos, acorda-se em conceder parcial provimento ao recurso, revogando-se o despacho recorrido, quanto à 2ª parte, e, em sua substituição, consigna-se que o acto de disposição do direito penhorado, bem como a transmissão do bem da herança operada através da partilha são ineficazes relativamente aos recorrentes.
Mas, mantém-se a 1ª parte do despacho recorrido, onde se considera o requerimento da co-titular Ermelinda... como contestação do direito e se ordena o eventual cumprimento do art. 858 do CPC.
Custas a meias por agravantes e agravados, sendo que estes delas estão isentos, nos termos do art. 2 nº 1º, alínea o) do CCJ.
Porto, 19 de Novembro de 2001.
Narciso Marques Machado
Rui de Sousa Pinto Ferreira
Joaquim Matias de Carvalho Marques Pereira