Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
Sumário
1- Na desconsideração da personalidade jurídica há um desrespeito pelo princípio da separação entre a pessoa colectiva e os seus membros ou, dito de outro modo, desconsiderar significa derrogar o princípio da separação entre a pessoa colectiva e aqueles que por detrás dela actuam. 2- Existe assim, na desconsideração, um atingimento da pessoa jurídica diferente da visada. Será directa, se se ultrapassar a sociedade para atingir os sócios e indirecta (ou invertida) se partindo-se dos sócios, se atingir a sociedade.
Texto Integral
Acordam nesta Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães
I – RELATÓRIO V…, A…, J…, M… e D…, intentaram a presente acção declarativa, com processo ordinário, contra … Lda. e M…, pedindo que:
a) se declare que o processo n.º 633/05.9TCGMR, que correu termos pela 2.ª Vara de Competência Mista de Guimarães, resulta de conluio das ora rés e que, como consequência desse conluio ou concertação das rés, se obteve a sentença proferida em 12 de Outubro de 2005, que transitou em julgado, que reconhece um direito inexistente, pelo que tal sentença resulta de simulação processual, com prejuízo para os aqui autores;
ou, subsidiariamente
b) se levante a personalidade jurídica colectiva da 1.ª ré, a qual foi desviada da rota que o ordenamento jurídico lhe traçou para perseguir objectivos meramente pessoais da sua sócia maioritária, aqui 2.ª ré, totalmente alheios ao melhor interesse da sociedade e cujo único propósito foi prejudicar os legítimos interesses dos autores, imputando-se tal conduta única e exclusivamente à 2.ª ré e, por via disso, ambos as rés condenados a reconhecer que os “contratos de sublocagem” celebrados com os aqui autores configuram verdadeiros arrendamentos celebrados entre estes e a 2.ª ré; e
c) a condenação das rés a solidariamente pagarem multa e indemnização aos autores, face à intensa má fé e ao dolo com que actuaram e litigaram, fazendo do simulado processo n.º 633/05.9TCGMR, que correu termos pela 2.ª Vara de Competência Mista de Guimarães, um uso manifestamente reprovável e anormal, tudo para tentarem conseguir enganar e prejudicar os autores, e o próprio Tribunal, em montante não inferior a € 5.000 para cada um.
Alegaram, para tanto, que:
- em 1967, M…, marido da 2.ª ré, entretanto falecido, e sócio fundador da 1.ª ré, com 82% do seu capital social, celebrou com esta um contrato de arrendamento comercial, tendo por objecto o prédio urbano aludido no art.º 7.º da petição inicial, no âmbito do qual a 1.ª ré ficou autorizada a sublocar o dito prédio, pelos preços e condições que entendesse por mais convenientes;
- fazendo uso desta cláusula, em 1988/11/01, a 1.ª ré celebrou com o 1.º autor, V…, um contrato designado por sublocação, através do qual cedeu a este o uso, utilização e fruição de uma parte do referido prédio urbano, mediante o pagamento de uma retribuição mensal de Esc. 186.340$00;
- idêntico contrato celebrou a 1.ª ré com J…, que no rés-do-chão e cave do mesmo prédio urbano instalou um estabelecimento comercial de diversão nocturna, denominado “boite”. Em 1995/10/12, o dito J…o trespassou o referido estabelecimento, incluindo o direito ao arrendamento, ao 2.º autor, que passou a pagar a retribuição mensal à 1.ª ré, actualmente cifrada em 228,26 €;
- contrato similar foi celebrado entre a 1.ª ré e a sociedade comercial “C…, Lda.”, tendo por objecto uma parte do rés-do-chão do aludido prédio urbano. Todavia, por força da posterior dissolução da sociedade, passou a posição de inquilino a ser ocupada pelo seu sócio-gerente, o aqui 3.º autor, que como tal se tem vindo a comportar, assim sendo reconhecido pelas rés;
- contratos idênticos aos anteriormente mencionados foram celebrados em 1985/03/01 entre a 1.ª ré e o 4.º autor, que actualmente paga àquela a retribuição mensal de € 126,64; e em 1976/10/01, entre a 1.ª ré e o 5.º autor, que paga actualmente a retribuição de € 15,76 mensais;
- por via de uma partilha subsequente à separação judicial de bens que a 2.ª ré e o seu marido, M…, requereram em 1974 e cuja sentença homologatória foi proferida em 1974/04/13 pelo 2.º Juízo de Direito do Tribunal Judicial de Guimarães, e de uma aquisição por arrematação decorrente da venda judicial de bens da massa falida de uma outra empresa, a 2.ª ré ingressou na posição de dona e legítima proprietária do imóvel aludido no art.º 7.º da petição inicial e tornou-se sócia maioritária da sociedade 1.ª ré, com 61% do seu capital social;
- em 30 de Maio de 2005, a 2.ª ré intentou contra a 1.ª ré uma acção de despejo, que correu termos pela 2.ª Vara Mista de Guimarães, sob o n.º 633/05.9TCGMR, pela qual pela qual pedia a resolução do contrato de arrendamento aludido celebrado entre o falecido M… e a 1.ª ré, invocando para tanto a falta de pagamento das rendas vencidas desde 1999 por parte desta. Apesar de ter sido devidamente citada, a 1.ª ré não contestou, levando a que fossem considerados confessados os factos articulados pela 2.ª ré, vindo a ser decretada a resolução do falado contrato;
- subsequentemente, a 1.ª ré comunicou aos autores que, devido a tal sentença, deveriam proceder à entrega dos respectivos locados à 2.ª ré, o que estes recusaram.
- a referida acção não passou de uma simulação processual, não tendo subjacente qualquer litígio, tendo sido arquitectada entre a 1.ª e a 2.ª rés com vista a possibilitar a esta última obter a resolução do contrato de arrendamento e o subsequente despejo do imóvel por parte dos autores, livre e devoluto de pessoas e bens, forçando-os assim a abandoná-lo injustificadamente.
- a 1.ª ré foi usada pela sua sócia maioritária, a 2.ª ré, contra o melhor interesse da sociedade, para encobrir a denúncia de um contrato de arrendamento comercial que, de outro modo, lhe seria bastante mais custosa e onerosa.
Contestou apenas a 2.ª ré que, além de impugnar, no geral, a factualidade alegada na petição inicial, deduziu reconvenção, pedindo a condenação dos autores/reconvindos a:
- reconhecê-la como legítima proprietária do prédio onde se encontram os espaços referidos na petição inicial;
- reconhecerem a ilicitude da ocupação de cada um desses espaços por parte dos autores;
- desocuparem e a restituírem à ré/reconvinte os espaços respectivamente ocupados por cada um dos autores;
- absterem-se, de futuro, de praticar qualquer acto que viole ou perturbe o seu invocado direito de propriedade;
- pagar – o 1.º autor – a quantia de € 51.508,60, acrescida de juros de mora à taxa legal, contados desde a notificação da reconvenção até efectivo pagamento, a título de indemnização pela ocupação ilícita do espaço referido na petição inicial, à razão do valor correspondente a duas rendas mensais, por analogia com o disposto no art.º 1045.º, n.º 2, do Código Civil, contada desde Janeiro de 2006, e ainda o montante de € 5.150,86, por cada mês que decorra desde Outubro de 2006 até ao mês da desocupação do referido espaço
- pagar – o 2.º autor – a quantia de € 4.565,20, acrescida de juros de mora à taxa legal, contados desde a notificação da reconvenção até efectivo pagamento, a título de indemnização pela ocupação ilícita do espaço referido na petição inicial, à razão do valor correspondente a duas rendas mensais, por analogia com o disposto no art.º 1045.º, n.º 2, do Código Civil, contada desde Janeiro de 2006, e ainda o montante de € 456,52 € por cada mês que decorra desde Outubro de 2006 até ao mês da desocupação do referido espaço;
- pagar – o 3.º autor – a quantia de 7.002,20 €, acrescida de juros de mora à taxa legal, contados desde a notificação da reconvenção até efectivo pagamento, a título de indemnização pela ocupação ilícita do espaço referido na petição inicial, à razão do valor correspondente a duas rendas mensais, por analogia com o disposto no art.º 1045.º, n.º 2, do Código Civil, contada desde Janeiro de 2006, e ainda o montante de € 700,22, por cada mês que decorra desde Outubro de 2006 até ao mês da desocupação do referido espaço;
- pagar – o 4.º autor – a quantia de € 2.532,80 €, acrescida de juros de mora à taxa legal, contados desde a notificação da reconvenção até efectivo pagamento, a título de indemnização pela ocupação ilícita do espaço referido na petição inicial, à razão do valor correspondente a duas rendas mensais, por analogia com o disposto no art.º 1045.º, n.º 2, do Código Civil, contada desde Janeiro de 2006, e ainda o montante de € 253,28, por cada mês que decorra desde Outubro de 2006 até ao mês da desocupação do referido espaço; e
- pagar – o 5.º A. – a quantia de € 315,20, acrescida de juros de mora à taxa legal, contados desde a notificação da reconvenção até efectivo pagamento, a título de indemnização pela ocupação ilícita do espaço referido na petição inicial, à razão do valor correspondente a duas rendas mensais, por analogia com o disposto no art.º 1045.º, n.º 2, do Código Civil, contada desde Janeiro de 2006, e ainda o montante de € 31,52, por cada mês que decorra desde Outubro de 2006 até ao mês da desocupação do referido espaço.
Os autores replicaram, tendo, além do mais, ampliado o pedido, em termos subsidiários, pretendendo a condenação das rés no pagamento dos prejuízos que decorrerem da desocupação dos espaços por si ocupados, nos termos do art.º 45.º do R.A.U., em virtude de facto culposo da 1.ª ré.
Indeferida a requerida ampliação, foi elaborado despacho saneador tabelar, com subsequente enunciação da matéria de facto tida por assente e organização da pertinente base instrutória, sem reclamação.
Tendo entretanto falecido a 2.ª ré, foram habilitados como sucessores os seus filhos, J…, A… e M… .
Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento e, no início da sessão realizada em 05.11.2008, foi proferido despacho a reparar o agravo da decisão que havia indeferido a ampliação do pedido feita pelos autores, admitindo-se tal ampliação e aditando-se à base instrutória três artigos (fls. 679 a 681).
Posteriormente, ainda no decurso do julgamento, que se prolongou por várias sessões, os réus habilitados como sucessores da falecida 2.ª ré, atravessaram o processo com um requerimento a pedir que se julgasse verificada a falta de personalidade judiciária da 1.ª ré (E…, Lda.), em virtude do registo da dissolução, encerramento da liquidação e cancelamento da respectiva matrícula, com a sua consequente absolvição da instância.
Os autores opuseram-se à procedência dessa excepção.
No início da sessão de julgamento do dia 3 de Março de 2009 (cfr. fls. 1042 e ss.), foi proferido despacho a determinar a substituição processual da 1.ª ré, pelos sócios J…, A… e M…, do qual agravaram os sucessores habilitados da 2ª ré.
Concluído o julgamento, respondeu-se à matéria de facto controvertida nos termos constantes do despacho de fls. 1267 a 1277, sem reclamações.
Por fim foi proferida a sentença, com o seguinte dispositivo:
«Por todo o previamente exposto, o Tribunal julga parcialmente procedentes, por provadas, as presentes acção e reconvenção e, em consequência, decide:
A) Declarar que o processo n.º 633/05.9TCGMR, que correu termos pela 2.ª Vara de Competência Mista de Guimarães, resulta de conluio das originais RR. “E…, LDA.” e M… e que, como consequência desse conluio ou concertação delas RR., se obteve a sentença proferida em 12 de Outubro de 2005, que transitou em julgado, pelo que tal sentença resulta de simulação processual, com prejuízo para os AA., V…, A…, J…, M… e D… ;
B) Absolver os RR. J…, A… e M… de todo o restante peticionado pelos AA., V…, A…, J…, M… e D… ;
C) Condenar os AA./Reconvindos, V…, A…, J…, M… e D…, a reconhecerem a Herança aberta por óbito de M… como proprietária do prédio urbano inscrito na matriz urbana da freguesia de Urgeses sob o art.º 568 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Guimarães sob os n.ºs 52.449 e 52.547 – aludido em 5) dos factos provados;
D) Absolver os AA/Reconvindos V…, A…, J…, M… e D…, de todo o restante peticionado pelos RR./Reconvintes, J…, A… e M…, habilitados como sucessores de M… ;
E) Condenar os AA. e os RR. no pagamento das custas do processo, na proporção de 12,5% para os primeiros e 87,5% para os últimos.»
Inconformados com o decidido, recorreram os réus/habilitados, tendo esta Relação, por acórdão de 10.10.2013, a fls. 1478 a 154, decidido o seguinte:
«a) julgar o recurso de agravo procedente e, consequentemente, dando-lhe provimento, revogam a decisão recorrida e a absolvem a ré E… Lda. da instância; b) anular a sentença proferida nos autos, nos termos do art. 712º, nº 4, do CPC, devendo a repetição do julgamento abranger os artigos da base instrutória cujas respostas foram consideradas obscuras, podendo ainda o tribunal ampliar o julgamento de modo a apreciar outros pontos da matéria de facto, com o fim exclusivo de evitar contradições na decisão.»
Este Tribunal da Relação, embora tenha anulado a sentença, conheceu parcialmente do recurso de apelação, acrescentando na resposta ao artigo 4º da base instrutória o valor da renda (228,26), manteve as respostas aos artigos 5º e 7º, respondeu “não provado” ao artigo 8º e considerou obscuras as respostas aos artigos 10º e 11º.
Baixados os autos à 1ª instância, foi determinada a ampliação do julgamento à factualidade constante dos artigos 12º a 18º da base instrutória, passando assim o julgamento a abranger a materialidade contida nos artigos 10º a 18º.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença ao abrigo do novo CPC com o seguinte dispositivo:
«Por todo o previamente exposto, o Tribunal julga parcialmente procedentes, por provadas, as presentes acção e reconvenção e, em consequência, decide: A) Declarar que o processo n.º 633/05.9TCGMR, que correu termos pela 2.ª Vara de Competência Mista de Guimarães, resulta de conluio das originais RR. “E…, LDA.” e M… e que, como consequência desse conluio ou concertação delas RR., se obteve a sentença proferida em 12 de Outubro de 2005, que transitou em julgado, pelo que tal sentença resulta de simulação processual, com prejuízo para os AA., V…, A… (actualmente representado pelos seus habilitados M…, M…, M… e H… – cfr. fls. 1334), J…, M… e D…; B) Absolver os RR. J…, A… e M… de todo o restante peticionado pelos AA., V…, A… (actualmente representado pelos seus habilitados M…, M…, M… e H… – cfr. fls. 1334), J…, M… e D…; C) Condenar os AA./Reconvindos, V…, A… (actualmente representado pelos seus habilitados M…, M…, M… e H… – cfr. fls. 1334), J…, M… e D…, a reconhecerem a Herança aberta por óbito de M… como proprietária do prédio urbano inscrito na matriz urbana da freguesia de Urgeses sob o art.º 568 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Guimarães sob os n.ºs 52.449 e 52.547 – aludido em 5) dos factos provados; D) Absolver os AA/Reconvindos V…, A… (actualmente representado pelos seus habilitados M…, M…, M… e H… – cfr. fls. 1334), J…, M… e D…, de todo o restante peticionado pelos RR./Reconvintes, J…, A… e M…, habilitados como sucessores de M…; E) Condenar os AA. e os RR. no pagamento das custas do processo, na proporção de 12,5% para os primeiros e 87,5% para os últimos, sem prejuízo do decidido no apenso B – fls. 64 - no que respeita às custas devidas pelos intervenientes na transacção ali homologada na parte relativa a custas.»
Inconformados, os réus/habilitados apelaram do assim decidido, rematando as suas alegações com a seguinte síntese conclusiva (transcrição):
(…)
Não foram apresentadas contra-alegações.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II - ÂMBITO DO RECURSO
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), consubstancia-se em saber:
- se a decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto deve ser alterada;
- se a acção deve ser julgada totalmente improcedente por os factos dados como provados não permitirem a conclusão de que a acção n.º 633/05.9TCGMR, que correu termos na 2.ª Vara de Competência Mista de Guimarães, resultou de conluio entre a extinta “E… Lda.” e a falecida ré com o intuito de prejudicar os autores;
- se o pedido reconvencional deve proceder parcialmente.
III - FUNDAMENTAÇÃO A) OS FACTOS
Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos[1]:
(…)
Da impugnação da matéria de facto
(…)
MATÉRIA DE FACTO FINALMENTE FIXADA POR ESTA RELAÇÃO
Uma vez alterada por esta Relação a decisão sobre a matéria de facto proferida em 1ª instância, no que tange aos artigos da base instrutória acima referidos, os factos finalmente julgados provados são os seguintes[21]:
1) Em 27 de Abril de 1966, M… era casado com a R. M… [al. a)].
2) A R. “E…, Lda.”- sob o tipo de sociedade anónima e com a firma “E…, S.A.R.L.” – foi constituída por M…, J…, J…, A…, G…, J…, A…, M…, C… e N…, por escritura, outorgada em 27 de Abril de 1966, no Primeiro Cartório da Secretaria Notarial deste concelho e cidade de Guimarães [al. b)].
3) …Com o capital social, realizado em dinheiro, de quinhentos mil escudos, representado por quinhentas acções nominativas de mil escudos cada, pertencendo quatrocentas e dez ao dito M… e dez a cada um dos demais sócios constituintes [al. c)].
4) …Tendo por objecto a indústria e comércio de fios e tecidos têxteis, com possibilidade de dedicar-se a outro ramo de actividade, e sede provisória e principal estabelecimento na Avenida D. João IV, desta cidade de Guimarães [al. d)].
5) Em 10 de Fevereiro de 1967, M… adquiriu o direito de propriedade sobre o prédio a que correspondem os números de polícia 388, 424 e 496 da Avenida D. Afonso Henriques, da freguesia de Urgeses, desta cidade de Guimarães, composto por duas moradas de casas, sendo uma de cave, sub-cave, rés-do-chão, primeiro e segundo andar e outra de rés-do-chão e em parte de andar, inscrito na respectiva matriz predial sob os art.ºs 568 e 483 e descrito, à data, na Conservatória do Registo Predial de Guimarães sob o n.º 27.843, actualmente descrito sob os números 52-448 e 52.547 [al. e)].
6) Mediante escritura pública, outorgada em 26 de Dezembro de 1967, no Primeiro Cartório Notarial de Guimarães, M… celebrou com a R. “E…, Lda.” Contrato intitulado “Contrato de Arrendamento Comercial” [al. f)].
7) …Através do qual lhe atribuiu o uso, utilização e fruição do aludido prédio urbano referido em 5) [al. g)].
8) O clausulado do sobredito contrato previa que a sua vigência se iniciasse em 1 de Outubro de 1967 e tivesse a duração de um ano prorrogável por iguais e sucessivos períodos de tempo [al. h)].
9) Esse contrato, nos termos nele estipulados no seu artigo segundo, prorrogou-se por períodos sucessivos de um ano [al. i)].
10) No mesmo contrato foi ainda consignado que a empresa R. poderia “sublocar” o prédio, no todo ou em parte, pelos preços e condições que entendesse por mais convenientes [al. j)].
11) No dia 12 de Outubro de 2005, foi decretada a resolução desse contrato referido em 6), 7), 8), 9) e 10), por sentença proferida e transitada em julgado, no processo n.º 633/05.9TCGMR, que correu termos pela 2.ªVara deste Tribunal, nos termos e fundamentos constantes do documento junto a fls. 104 a 107 [al. l)].
12) Em 1 de Novembro de 1988, a “E…, Lda.” celebrou com o 1.º A. V… um contrato epigrafado sob o nome “Contrato de Sublocação”, cuja cópia se encontra junta a fls. 75 e 76 [al. m)].
13) …Através do qual cedeu ao A. V… o uso, utilização e fruição de um salão amplo, com cerca de 1.000 m2 de área, situado no prédio urbano inscrito na respectiva matriz sob o n.º 568 da freguesia de Urgeses, mediante o pagamento da retribuição mensal de 186.340$00, no primeiro dia útil a que respeitasse e na sede da R. ou no domicílio de quem legalmente a representasse [al. n)].
14) Nesse contrato ficou expressamente estipulado que, naquele local, o A. V… levaria a cabo a exploração de um bingo [al. o)].
15) …Além de que todas as obras e benfeitorias que o A. V… levasse a efeito no visado “salão” ficariam pertença do prédio, findo o visado contrato, sem direito a indemnização de qualquer sorte, reembolso ou direito de retenção, ainda que passíveis de serem removidas sem detrimento do prédio [al. p)].
16) Foi ainda consignada a obrigação de o A. V… de, findo o contrato celebrado, entregar a parte “sublocada” à R. em perfeito estado de conservação [al. q)].
17) Desde então, o A. V… vem exercendo no referido “salão” a sua actividade, sem interrupções ou quaisquer outras vicissitudes, facto que, aliás, é do conhecimento geral na cidade de Guimarães [al. r)].
18) A retribuição mensal referida em 13) no ano de 2005 foi de 2.189,11 € + 386,31 €, num total de 2.575,43 € (BI).
19) O V… veio depositando mensalmente, desde Janeiro de 2006 até Agosto de 2008, rendas no valor de 2.189,11 € (1º).
20) …Que sempre foram pagas (3º).
21) No dia 20 de Janeiro de 1982, a R. “E…, Lda.” e A… celebraram, no Cartório Notarial de Fafe, a escritura de sublocação cuja certidão se encontra junta a fls. 187 a 191 [al. s)].
22) …Na qual a R. “E…, Lda.”, na qualidade de arrendatária, declarou sublocar uma divisão na cave e uma pequena divisão no rés-do-chão daquele prédio, inscrito na matriz sob o art.º 568, àquele A… [al. t)].
23) …Pelo período contratual dessa sublocação de três anos, com início reportado a 1 de Novembro de 1981 e renovação por períodos de tempo de igual duração [al. u)].
24) …E destinando-se aquelas divisões sublocadas ao exercício da actividade de café, bar, snack-bar, dancing e/ou boite, por parte desse A… [al. v)].
25) …Que nesse contrato, na qualidade de sublocatário, declarou, além do mais, aceitar a sublocação [al. x)].
26) E naquelas divisões sublocadas instalou um estabelecimento comercial de “boite” [al. z)].
27) Em 29 de Abril de 1994, no Primeiro Cartório Notarial deste concelho, o referido A… celebrou com o J… a escritura cuja cópia se encontra junta a fls. 193 a 195 [al. a’)].
28) …Na qual, pelo preço de 15.000.000$00, declarou trespassar aquele seu estabelecimento de “boite” ao referido J… [al. b’)].
29) …Que com o A. A…, em 12 de Outubro de 1995 e naquele Primeiro Cartório Notarial, celebrou a escritura cuja cópia se encontra junta a fls. 197 a 199 [al. c’)].
30) …Na qual, pelo preço de quinze milhões de escudos, declarou trespassar o estabelecimento comercial de “boite” ao A. A…, incluindo o direito ao respectivo subarrendamento [al. d’)].
31) O A. A… vem efectuando depósitos mensais da totalidade da renda, no montante de € 228,26 cada um, na Caixa Geral de Depósitos desde Janeiro de 2006, por motivo de recusa de recebimento por parte da “E…, Lda.” (4º - vd. acórdão).
32) A quantia referida em 31) corresponde à devida no mês de Dezembro de 2005 (5º).
33) Em 30 de Abril de 1990, a “E…, Lda.” celebrou com a “C…, Lda.” um contrato escrito denominado “Contrato de Sublocação”, cuja cópia se encontra junta a fls. 83 e verso [al. e’)].
34) Por via desse documento, a “E…, Lda.” cedeu à “C…, Lda.” o uso, utilização e fruição de “uma dependência com área de 410 m2 no rés-do-chão do prédio inscrito na matriz sob o n.º 483 da freguesia de Urgeses”, mediante o pagamento da retribuição mensal de 35.000$00, no primeiro dia útil a que respeitasse e na sede da R. [al. f’)].
35) Ficou expressamente estipulado que, naquele local, a “C…, Lda.” levaria a cabo a actividade de indústria de marcenaria [al. g’)].
36) Ficou consignado que todas as obras e benfeitorias que a “C…, Lda.” levasse a efeito na apontada “dependência” ficariam pertença da mesma, expirado o visado contrato, sem direito a indemnização de qualquer sorte, reembolso ou direito de retenção [al. h’)].
37) Por escritura pública, outorgada em 23 de Janeiro de 2004, no Segundo Cartório Notarial de Guimarães, foi dissolvida a “C…, Lda.” [al. i’)].
38) Em Dezembro de 2005, foi ainda a “C…” quem procedeu ao pagamento da renda, no valor, então, de 350,11 € (6º).
39) J…, sócio-gerente da sociedade “C…” antes da respectiva dissolução, continuou a efectuar depósitos de rendas entre Janeiro de 2006 e Setembro de 2008 (7º).
40) Retribuição que já pagava em 2005 (8º - vd. acórdão).
45) Em 1 de Março de 1985, a “E…, Lda.” celebrou com o A. M… um contrato denominado “Contrato de Sublocação”, cuja cópia se encontra a fls. 94 e verso [al. j’)].
46) Através do visado documento, a “E…,Lda.” cedeu ao A. M… o uso, utilização e fruição de “uma dependência com área de 196 m2, no prédio inscrito na matriz sob o artigo 483, mediante o pagamento da retribuição anual de 96.000$00, a pagar em duodécimos de 8.000$00, no primeiro dia útil do mês a que respeitasse e na sede da R.” [al. m’)].
47) Ficou expressamente consignado que, naquele local, o A. M… levaria a cabo a indústria de pintura [al. n’)].
48) Além de que todas as obras que viesse a realizar no local não seriam consideradas benfeitorias e ficariam a pertencer ao mesmo, sem direito a indemnização alguma e sem que pudesse exercer direito de retenção [al. o’)].
49) Desde então, vem o A. M… exercendo, na referida “dependência”, a sua actividade de pintura, sem interrupções ou quaisquer outras vicissitudes [al. p’)].
50) …Desfrutando do gozo do locado e pagando a retribuição mensal, integral e atempadamente, há mais de 20 anos [al. q’)].
51) Foi a quantia de 126,64 € mensais que veio a ser depositada entre Janeiro de 2006 e Setembro de 2008 (19º).
52) A quantia referida em 51) corresponde à devida no mês de Dezembro de 2005 (20º).
53) A situação referida em 50. é de conhecimento de todos os autores e da E…, Lda. (21º).
54) Em 1 de Outubro de 1976, a “E…, Lda.” celebrou com o A. D… um contrato designado “Contrato de Arrendamento”, cuja cópia se encontra a fls. 96 e verso [al. r’)].
55) …Por intermédio do qual a R. “E…, Lda.” cedeu ao A. D… o uso, utilização e fruição de “um local composto por duas divisões (antiga serralharia), situado na Avenida D. Afonso Henriques, desta cidade e fazendo parte do artigo 483, mediante o pagamento da retribuição anual de 6.000$00, a pagar em duodécimos de 500$00, no primeiro dia útil do mês a que respeitasse e na sede da R. ou de quem a representasse [al. s’)].
56) Ficou expressamente consignado que aquele local se destinava à indústria de carpintaria [al. t’)].
57) Além de que todas as obras que o A. viesse a realizar no local não teriam a natureza de benfeitorias e ficariam a pertencer ao mesmo, sem direito a indemnização alguma e sem que pudesse exercer direito de retenção [al. u’)].
58) Desde então, vem o A. exercendo, no aludido local, a sua actividade profissional, sem interrupções ou quaisquer outras vicissitudes [al. v’)].
59) …Desfrutando do gozo do locado e pagando integral e pontualmente as retribuições mensais a que está adstrito há quase 30 anos [al. x’)].
60) Foi a quantia de 15,76 € mensais que veio a ser depositada entre Janeiro de 2006 e Maio de 2006, entre Agosto de 2006 e Setembro de 2008 (22º).
61) A quantia referida em 60) corresponde à devida no mês de Dezembro de 2005 (BI).
62) A situação referida em 59) é conhecida dos AA. e da E…, Lda. (23º).
63) Os sobreditos “contratos de sublocação” e “contrato de arrendamento” foram celebrados entre os AA. e a R. “E…, Lda.” (24º).
64) Em data não concretamente apurada, mas anterior a Maio de 1974, M… era dono do prédio e em Dezembro de 1967 já o detinha em termos que lhe permitiram dá-lo de arrendamento (26º).
65) A R. M… era casada com M… (27º).
66) Em 1990/07/27, a R. M… era sócia maioritária da “E…, Lda.” (28º).
67) A partir de 2008/05/28, a R. M… detinha 61% do capital social da “E…, Lda.” (29º).
68) A R./Reconvinte M… é dona e legítima proprietária do prédio urbano inscrito na matriz urbana da freguesia de Urgeses, sob o artigo 568, descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial do concelho de Guimarães sob o n.º 52.449 [al. z’)].
69) …E do prédio urbano inscrito na matriz urbana da freguesia de Urgeses, sob o artigo 493, descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial do concelho de Guimarães sob o n.º 52.547 [al. a’’)].
70) A R. M… ingressou na posição referida em 68) e 69) por via de uma partilha subsequente à separação judicial de bens que a R. M… e o marido requereram, em 1974, e cuja sentença homologatória, proferida pelo então 2.º Juízo de Direito do Tribunal Judicial de Guimarães, data de 13 de Abril do mesmo ano; e de uma aquisição por arrematação decorrente da venda judicial de bens da massa falida de uma outra empresa [al. b’’)].
71) Os AA. foram confrontados com cartas registadas, com aviso de recepção, datadas de 19 de Dezembro de 2005, emitidas pela empresa R., no seu próprio timbrado, que se encontram juntas a fls. 100 a 103, com o seguinte conteúdo: “Por sentença, proferida pela 2.ª Vara Mista do tribunal judicial de Guimarães, foi declarado resolvido o contrato de arrendamento dos prédios, inscritos na matriz urbana da freguesia de Urgeses, desta cidade, sob os artigos 568 e 483 dos quais éramos arrendatários e com base no qual celebramos com V. Exas. o contrato de subarrendamento, que tem por objecto Varas de Competência Mista de Guimarães parte de um daqueles prédios e, bem assim, foi a nossa sociedade por aquela sentença condenada a entregar tais prédios, completamente livres e devolutos.
Por força dessa sentença ficou extinto aquele contrato de subarrendamento, que tínhamos celebrado com V. Exas. Assim, por causa do que precede, participamos a V. Exas. Pela presente:
1 – Que por falta de título, que legitime o recebimento de rendas, não receberemos o pagamento de mais nenhuma renda por parte de V. Exas., e
2 – Que V. Exas. deverão proceder à entrega, livre e devoluta, da parte do prédio, que ocupam para evitar o respectivo despejo por parte do Tribunal. Com os nossos melhores cumprimentos, subscrevemo-nos. (…)”[al. c’’)].
72) Correu termos pela 2.ª Vara Mista do Tribunal Judicial de Guimarães, autuada sob o n.º 633/05.9TCGMR, uma acção de despejo intentada pela R. M… contra a R. “E…, Lda.” [al. d’’)].
73) No dito petitório, a R. M… alegara que a R. “E…, Lda.” não havia pago as rendas vencidas, desde 1999 até à data daquele articulado (data de distribuição – 30 de Maio de 2005), pelo que estaria em débito o montante global de 48.184,08 €, motivo bastante para ser decretada a resolução do contrato de arrendamento celebrado entre as partes e, subsequentemente, ordenado o despejo da R. “E…, Lda.” [al. e’’)].
74) Citada regular e pessoalmente, a R. “E…, Lda.” não deduziu contestação, pelo que foram considerados integralmente confessados todos os factos articulados pela A., aqui R. M…, na sua petição inicial [al. f’’)].
75) E foi proferida a sentença referida em 11) e ordenado o despejo imediato do locado, além da condenação do pagamento das rendas vencidas e não pagas [al. g’’)].
77) Quase todas as pessoas da cidade sabiam que nas instalações da R. funcionava o bingo e um estabelecimento de diversão nocturna, e que muitas sabiam da existência de carpintarias e de uma oficina de pintura (31º).
78) A R. M… recusa receber o valor das retribuições devidas pela utilização das partes do prédio sublocadas aos AA. [al. h’’)].
79) Os AA. vêm efectuando os depósitos dos valores devidos pela utilização do prédio numa conta bancária aberta para o efeito num dos balcões da Caixa Geral de Depósitos, em Guimarães (32º).
80) O A. A… fez depósito, em 6 de Fevereiro de 2006, das quantias de 228,26 € e 228,26 € [al. i’’)].
81) Os AA., na sequência das cartas referidas em 71), não desocuparam as respectivas partes dos prédios [al. j’’)].
82) Com datas de 2 de Janeiro de 2006, os AA. Vi…, A…, M… e D… e a sociedade “C…, Lda.” enviaram à R./Reconvinte as cartas que se encontram juntas a fls. 200 a 210, acompanhadas de cheques para pagar os valores mensais que estavam a pagar à R. “E…, Lda.” [al. l’’)].
83) Por cartas registadas, com aviso de recepção, que em 20 de Janeiro de 2006, a R./Reconvinte enviou a cada um dos AA. e sociedade referidos em 82), que cada um deles recebeu, a R./Reconvinte participou-lhes que não aceitava os dizeres daquelas cartas e devolveu-lhes os respectivos cheques [al. m’’)].
84) No dia 15 de Dezembro de 2003, na Secretaria Notarial da Póvoa do Varzim, a R. M… outorgou procuração a favor dos seus filhos J…, A… e M…, mediante o qual lhes conferiu plenos poderes para “com livre e geral administração civil e como melhor entenderem, regerem e gerirem todos e quaisquer bens móveis e imóveis e todos e quaisquer direitos, sejam de que natureza forem, nomeadamente quotas em sociedades comerciais, (…).” [al. n’’)].
87) Pelo menos desde 1980 que a R. “E…, Lda.” não se dedica ao exercício da indústria e comércio de fios e têxteis (35º).
88) Pelo menos desde meados dos anos oitenta que a actividade da “E…, Lda.” se limita à gestão do imóvel que tomou de arrendamento e que “sublocou” aos AA. (36º).
89) …Recebendo as correspondentes retribuições mensais pagas pelos AA., emitindo os competentes recibos de pagamento e procedendo às obras de conservação ordinárias no prédio (37º).
95) A R. “E…, Lda.” recebia dos AA., em Dezembro de 2005, e continuou a ser-lhe depositada mensalmente, daí em diante e pelo menos até Agosto de 2008, a título de rendas, a quantia de 2.909,88 € (45º).
96) Pelo menos desde a data referida em 88) que esse constitui o seu único ganho (46º).
97) A renda que mensalmente era devida à R. M… corresponde à quantia de 593,57€ (47º).
98) Os AA. exercem actividade comercial nos imóveis referidos em 13), 22), 34), 46) e 55) (53º).
99) As margens de lucro da actividade que desenvolvem estão relacionadas com a circunstância de os espaços referidos em 98) se encontrarem a 5 minutos do centro da cidade, diante do Centro Cultural de Vila Flor, a 100 metros da estação ferroviária e incluírem um estabelecimento de diversão nocturna, duas carpintarias e uma indústria de pintura (54º).
100) A deslocação das actividades desenvolvidas pelos AA. para outros locais acarretaria a diminuição da clientela e lucros (55º).
101) Por causa das ocupações referidas em 81), a R./Reconvinte está impedida de dispor das respectivas partes ocupadas do prédio como bem entender (48º).
102) E de delas tirar proveito (49º).
103) De as dar, directamente, de arrendamento (50º).
104) E de, directamente, receber os valores relativos às respectivas rendas (51º).
105) Caso a R. M… actualmente dispusesse para arrendamento dos espaços actualmente ocupados pelos AA. poderia obter rendas de valor superior àquele que os AA. vêm depositando (52º).
B) O DIREITO Da simulação processual.
Com a presente acção pretendem os autores obter a declaração de que a sentença proferida no processo n.º 633/05.9TCGMR, que correu termos pela 2ª Vara de Competência Mista de Guimarães, no qual a ré M… (2ª ré), entretanto falecida, demandou a ré E…, Lda. (1ª ré)[22], resulta de simulação processual, com prejuízo para os aqui demandantes.
Na 1ª instância, face à matéria de facto aí julgada provada, acolheu-se a tese dos autores e considerou-se fraudulento o processo judicial intentado pela 2.ª R. contra a 1.ª, pois o resultado do mesmo foi determinado exclusiva e propositadamente por aquela, sem oposição desta, vindo a traduzir-se numa sentença não conforme com a realidade.
Escreveu-se, a propósito, na sentença.
«É certo que não se apurou que a 1.ª R. tivesse pago à 2.ª R. as rendas vencidas entre 1999 e a data da propositura da acção, contrariamente ao afirmado nesta. Cremos, contudo, que tal circunstância não é de molde a excluir a fraude, desde logo por se ter demonstrado, repetimo-lo, que o litígio não tinha total correspondência com a realidade e que, por outro lado, o resultado do processo n.º 633/05.9TCGMR é imputável apenas a uma única das partes, tendo decorrido sem um verdadeiro contraditório, sem uma “estruturação dialéctica ou polémica” [Manual de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1993, 379]. A simulação do litígio decorre de ter sido a 2.ª R. a decidir pela 1.ª R. na aludida acção – mormente decidindo não contestar -, tendo em vista, com a procedência desta, extinguir as sublocações de que os AA. usufruíam sem sujeitar a sublocadora à responsabilidade pela cessação das mesmas. Porém, este desvio aos fins do processo civil resulta bem mais evidente se se proceder a uma radiografia da relação processual traçada no mencionado processo n.º 633/05.9TCGMR, designadamente apresentando-a na sua materialidade.»
A factualidade apurada nesta Relação não permite, porém, concluir pela existência de simulação processual, já que não lograram os autores provar, nomeadamente, que a acção de despejo intentada pela ré M… contra a ré E…, Lda. foi apenas e só um astucioso artifício para contornar os efeitos de uma denúncia ou revogação injustificada do contrato de arrendamento celebrado com esta última ré, e sobretudo os contratos de “sublocação” que lhe estavam associados.
Da desconsideração da personalidade jurídica da 1ª ré.
Para justificar a existência de simulação processual, lançou ainda a sentença recorrida mão da figura da desconsideração ou levantamento da personalidade jurídica, concluindo que a 2ª ré usou a «personalidade colectiva da 1.ª R., com o fito de servir interesses pessoais, contra o próprio interesse societário e tendo em vista causar um prejuízo a terceiros, in casu, os aqui AA.».
Esta questão prende-se também com o pedido subsidiário formulado pelos autores de levantamento da personalidade jurídica colectiva da 1ª ré.
Como é sabido, o ordenamento jurídico acolhe, a par das pessoas singulares, as pessoas colectivas. Comporta, assim, no seu seio, novos entes dotados de personalidade jurídica. Desta personalidade emerge a titularidade de direitos e obrigações autónomos e, inerentemente, além do mais, a distinção entre as pessoas singulares que são, ao mesmo tempo, membros da pessoa colectiva e esta. Os direitos e as obrigações duns não se confundem com os direitos e obrigações dos outros.
Ao longo do tempo, veio a constatar-se a existência de inúmeras situações em que o conceder àquela linha demarcadora um valor absoluto não seriam de admitir.
Progressivamente, doutrina e jurisprudência anglo-americanas e alemãs, foram construindo a figura – que julgamos ainda em evolução – da desconsideração da personalidade jurídica das pessoas colectivas ou, porque, de longe, reportada a maior parte das vezes a sociedades comerciais, a figura da desconsideraçãoda personalidade jurídicadas sociedadescomerciais[23].
Já Castro Mendes[24] escrevia que “não devemos antropomorfizar a pessoa colectiva a ponto de perdermos de vista que – ao contrário da pessoa singular, fim em si mesma – ela não é mais que um instrumento de realização de interesses humanos.
Inclusivamente, a personificação pode ser, ou passar a ser, instrumento de abuso; e deve neste caso ponderar quais os verdadeiros interesses humanos em causa. Esta atitude é o que os juristas anglo-saxónicos chamam romper o véu da pessoa colectiva”
Segundo Pedro Cordeiro[25], deve entender-se por desconsideração “o desrespeito pelo princípio da separação entre a pessoa colectiva e os seus membros ou, dito de outro modo, desconsiderar significa derrogar o princípio da separação entre a pessoa colectiva e aqueles que por detrás dela actuam”.
Existe assim, na desconsideração, um atingimento da pessoa jurídica diferente da visada. Será directa, se se ultrapassar a sociedade para atingir os sócios e indirecta (ou invertida) se partindo-se dos sócios, se atingir a sociedade[26].
Não se trata de pôr em crise o instituto da personalidade colectiva, importante factor de cooperação e de progresso dentro do Direito: apenas de cercear formas abusivas de actuação que ponham em risco a harmonia e a credibilidade do sistema[27].
E é com este objectivo que surge o levantamento da personalidade jurídica como “instituto de enquadramento”[28] que traduz uma delimitação negativa da personalidade colectiva por exigência do sistema.
É neste domínio do abuso da responsabilidade limitada que o instituto da desconsideração da personalidade adquire toda a sua dimensão.
Hoje, estão mais ou menos sistematizadas as condutas societárias reprováveis que, nessa vertente, podem conduzir à aplicação do referido instituto.
De entre elas, avultam: a confusão ou promiscuidade entre as esferas jurídicas da sociedade e dos sócios; a subcapitalização, originária ou superveniente, da sociedade, por insuficiência de recursos patrimoniais necessários para concretizar o objecto social e prosseguir a sua actividade; as relações de domínio grupal[29].
Também na vertente do abuso da personalidade se podem perfilar algumas situações em que a sociedade comercial é utilizada pelo(s) sócio(s) para contornar uma obrigação legal ou contratual que ele, individualmente assumiu, ou para encobrir um negócio contrário à lei, funcionando como interposta pessoa. Nessas hipóteses, desde que seja patente um comportamento abusivo e fraudulento por parte de determinado sócio, em prejuízo de terceiros, supera-se a capa da sociedade e passa a ver-se esse sócio, que responderá individualmente perante o lesado, após ser chamado a juízo[30].
Na desconsideração da personalidade jurídica é ainda necessário determinar se existe e com que potencialidade uma actuação em fraude à lei.
Esta verificar-se-á aquando da existência de um efeito prejudicial a terceiros[31].
A lei não contém referência expressa à figura da desconsideração da personalidade jurídica, mas a dimensão do princípio da boa fé - emergente, no essencial do que aqui nos importa, do artigo 762º, nº 2, conjugado com o artigo 334º, ambos do Código Civil - alcança-a[32].
A questão está assim em saber se, no caso concreto, se poderá concluir que a falecida ré M… utilizou a sociedade de que é sócia maioritária como instrumento da sua vontade e no seu interesse pessoal.
A resposta a esta questão só pode ser negativa, considerando que não lograram os autores provar que:
- a acção de despejo intentada pela ré M… contra a ré E…, Lda. foi apenas e só um astucioso artifício para contornar os efeitos de uma denúncia ou revogação injustificada do contrato de arrendamento celebrado com esta última ré, e sobretudo os contratos de “sublocação” que lhe estavam associados;
- a ré M… simulou o processo judicial para fazer extinguir a sublocação usufruída pelos autores, nem que se tenha servido da personalidade colectiva da ré E…, Lda.” para o prosseguir;
- as rés ficcionaram um litígio sem qualquer correspondência com a realidade, por não existir qualquer dissídio entre elas;
- a ré M… sabia que, em circunstância alguma, essa acção seria contestada pela ré E…, Lda..
Perante a ausência de tal prova, nada autoriza que chamemos para aqui a figura da desconsideração da personalidade jurídica das pessoas colectivas.
Da (ine)xistência de contrato de sublocação entre o autor J… e a 1ª ré.
A matéria de facto apurada nesta Relação não permite concluir pela existência de um contrato de sublocação entre a E…, Lda. e o autor J…, considerando tudo o que acima se disse em sede de apreciação da impugnação da matéria de facto feita pelos recorrentes.
Na verdade, não se provou que aquele autor, sócio gerente da sociedade “C…” antes da respectiva dissolução, venha desde o ano de 2005 desfrutando do gozo do locado e aí exercendo a sua actividade de carpinteiro (resposta negativa ao artigo 12º da base instrutória).
E, assim sendo, não podia a sentença recorrida ter decidido que quanto a este autor a sentença proferida no processo nº 633/05.9TCGMR tenha resultado de simulação processual com prejuízo para este autor.
Da reconvenção.
Com a improcedência do pedido principal e do pedido subsidiário formulado pelos autores, fácil é de ver que a solução a dar ao pedido reconvencional terá de ser diferente da encontrada na sentença recorrida.
Assim, estando provado que no processo n.º 633/05.9TCGMR, que correu termos pela 2.ªVara deste Tribunal, foi proferida sentença que decretou a resolução do contrato de arrendamento que a 1ª ré havia celebrado com o marido da falecida 2ª ré, e tendo a mesma transitada em julgado, operou-se a caducidade dos contratos de sublocação que a 1ª ré havia celebrado com os autores, nos termos previstos no art. 1051º, alínea c), do Código Civil e no art. 45º do RAU.
Resultou igualmente provado que os autores, desde Dezembro de 2005, sabem da prolação da referida sentença; que a ré/reconvinte se recusou a receber os montantes das retribuições que os autores pagavam à 1ª ré; que os autores não desocuparam as respectivas partes dos prédios; que a ré/reconvinte enviou aos autores, em 20 de Janeiro de 2006, cartas registadas com aviso de recepção que os mesmos receberam, devolvendo-lhes os cheques que os autores lhe enviaram (cfr. pontos 71, 78, 81, 82 e 83 do elenco dos factos provados supra).
Ficou ainda provado que os valores mensais que os autores V…, A…, M… e D… pagavam, em 2005, à 1ª ré, por força dos contratos de sublocação celebrados, eram, respectivamente, de € 2.575,43, € 228,26, € 126,64 e € 15,76, pelo que se impõe a sua condenação nestas quantias mensais desde Janeiro de 2006 até à desocupação e entrega das áreas ocupadas dos prédios, uma vez que não dispõem de título que legitime a sua ocupação (cfr. arts. 1305º, 1311º, 483º e seguintes e 562º e seguintes do Código Civil).
O mesmo se diga, aliás, relativamente ao autor/reconvindo J…, o qual também não dispõe de qualquer título que legitime a ocupação da parte do prédio em discussão, devendo o mesmo ser condenado a pagar aos herdeiros e habilitados sucessores da ré/reconvinte uma quantia mensal correspondente ao montante da última renda paga pela “Carvil” em Dezembro de 2005, no valor de € 350,11, desde Janeiro de 2006 até à desocupação do respectivo local.
Síntese conclusiva:
I – Na passagem do facto conhecido para a aquisição (ou para a prova) do facto desconhecido, têm de intervir juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinada facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido.
II - Por isso é que, na presunção, deve existir e ser “revelado um percurso intelectual, lógico, sem soluções de descontinuidade, e sem uma relação demasiado longínqua entre o facto conhecido e o facto adquirido.
III - A imposição da fundamentação da decisão de facto não impede que o tribunal motive em conjunto as respostas a mais do que um facto da base instrutória, quando os factos objecto da motivação se apresentem entre si ligados e sobre eles tenham incidido fundamentalmente os meios de prova, podendo a motivação conjunta ser até aconselhável.
IV - Constituindo o princípio do dispositivo uma das traves mestras do processo civil, na consagração que o juiz só deverá servir-se dos factos articulados pelas partes, verifica-se que tal regra mostra-se mitigada, tendo em vista, sobretudo, a prevalência do fundo sobre a forma, numa previsão de um poder mais interventor do juiz, privilegiando a realização da verdade material.
V - Na desconsideração da personalidade jurídica há um desrespeito pelo princípio da separação entre a pessoa colectiva e os seus membros ou, dito de outro modo, desconsiderar significa derrogar o princípio da separação entre a pessoa colectiva e aqueles que por detrás dela actuam.
VI - Existe assim, na desconsideração, um atingimento da pessoa jurídica diferente da visada. Será directa, se se ultrapassar a sociedade para atingir os sócios e indirecta (ou invertida) se partindo-se dos sócios, se atingir a sociedade.
IV – DECISÃO
Pelo exposto, na procedência da apelação, revoga-se a sentença recorrida, e, em consequência, na total improcedência da acção e na parcial procedência da reconvenção:
a) absolvem-se os réus J…, A… e M… dos pedidos formulados pelos autores;
b) condenam-se os autores/reconvindos a pagar aos réus/reconvintes, a título de indemnização pela ocupação que cada um faz dos espaços identificados nos autos:
- o autor V… a quantia de € 25.754,3 [2.575,43 x 10], acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a notificação da reconvenção até integral pagamento, e ainda no pagamento da quantia mensal de € 2.575,43 desde Novembro de 2006, inclusive, até à desocupação e entrega da área do prédio por si ocupada;
- os herdeiros habilitados de A… a quantia de € 2.282,6 [228,26 X 10], acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a notificação da reconvenção até integral pagamento, e ainda no pagamento da quantia mensal de € 228,26 desde Novembro de 2006, inclusive, até à desocupação e entrega da área do prédio por si ocupada;
- o autor M… a quantia de € 1.266,40 [126,64 x 10], acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a notificação da reconvenção até integral pagamento, e ainda no pagamento da quantia mensal de € 126,64 desde Novembro de 2006, inclusive, até à desocupação e entrega da área do prédio por si ocupada;
- o autor D… a quantia de € 157,6 [15,76 x 10], acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a notificação da reconvenção até integral pagamento, e ainda no pagamento da quantia mensal de € 15,76 desde Novembro de 2006, inclusive, até à desocupação e entrega da área do prédio por si ocupada;
- o autor J… a quantia de € 3.501,10 [350,11 x 10], acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a notificação da reconvenção até integral pagamento, e ainda no pagamento da quantia mensal de € 350,11 desde Janeiro de 2006, inclusive, até à desocupação e entrega da parte do prédio que ocupa.
c) mantém-se no mais a sentença recorrida.
Custas da acção a cargo dos autores e da reconvenção a cargo dos réus e autores, na proporção do decaimento (art. 527º, nº 1, do CPC).
Custas da apelação a cargo dos autores.
*
Guimarães, 9 de Outubro de 2014
Manuel Bargado
Helena Gomes de Melo
Heitor Gonçalves
______________________________________
(…)
[21] Mantém-se a sequência dos factos constantes da sentença com as alterações introduzidas e a eliminação dos pontos da matéria de facto julgados não provados.
[22] A qual, em razão da sua extinção, veio a ser absolvida da instância por falta de personalidade judiciária.
[23] Trata-se do “disregard of legal entity” ou “lifting the corporate veil”, do direito anglo-americano e do “Durchgriff” (penetração ou superação), da doutrina alemã.
[24] Teoria Geral do Direito Civil, ed. da AAFDL, I, 1995, p. 362.
[25] A Desconsideração da Personalidade Jurídica das Sociedades Comerciais, p. 19, citado no Ac. do STJ de 12.05.2011, proc. 280/07.0TBGVA.C1.S1, in www.dgsi.pt.
[26] Oliveira Ascensão, Lições de Direito Comercial, Lisboa 1986/87, I, p. 473.
[27] Menezes Cordeiro, em Anotação ao Acórdão do STJ de 09.01.2003, disponível in www.oa.pt.
[28] Menezes Cordeiro, idem.
[29] Ricardo Costa, Boletim da Ordem dos Advogados, nº 30, págs. 13 e 14 e Menezes Cordeiro, Manual do Direito das Sociedades, I, pág. 364, ambos os autores citados no Acórdão do STJ de 03.02.2009, proc. 08A3991, in www.dgsi.pt.
[30] Ac. do STJ de 03.02.2009 mencionado na nota anterior, citando Menezes Cordeiro, Manual …, p. 369.
[31] Ac. da RP de 24.01.2005, proc. 0411080, in www.dgsi.pt.
[32] Ac. do STJ de 12.05.2011, citado na nota 25.