SIGILO BANCÁRIO
SEGREDO PROFISSIONAL
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
EXCLUSÃO DA ILICITUDE
Sumário

Tornando-se necessárias à investigação de um processo por eventuais crimes de abuso de confiança e infidelidade, informações relacionadas com movimentos de contas bancárias e empréstimos e amortizações e declarações de rendimentos, justifica-se dispensar os respectivos bancos e repartições de finanças do cumprimento do dever de segredo profissional.
Com efeito, o interesse público da boa administração da justiça penal prevalece sobre os interesses privados tutelados pelo sigilo bancário e pelo sigilo fiscal.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na Relação do Porto:

A Exmª juiz de instrução do Tribunal Judicial de..... veio, ao abrigo do artº 135º, nº3 do C.P.P., suscitar a intervenção deste incidente originado pela escusa do Banco..... agência de....., em fornecer os extractos de movimentos de todas as contas bancárias, à ordem e a prazo, das sociedades "S.....", "C....., Lda" e "H....., Lda", bem como das contas em que seja titular o denunciado, entre 1993 e 1999, e das Repartições de Finanças de..... e ..... em fornecer as cópias das declarações de rendimentos apresentadas entre 1993 e 1999 por Luís....., Jone..... e Romina......
Foram ainda solicitadas informações bancárias sobre empréstimos e amortizações.
Efectivamente, nos autos de inquérito nº ../.. dos Serviços do Ministério Público da comarca de....., instaurados contra o arguido Luís....., nos quais se investigam factos susceptíveis de integrar crimes de abuso de confiança e de infidelidade p. e p pelos artºs 205º e 224º, do C. Penal, traduzidos na apropriação, em distintas datas, de quantias nos montantes de 100.000.000$00, 150.000.000$00 e 100.000.000$00, a referida instituição bancária e bem assim as aludidas Repartições de Finanças, não satisfizeram a determinação do Mº Pº para fornecimento dos referidos elementos.
O Banco..... agência de......, recusou-se a fornecer os pretendidos elementos por respeitarem a factos abrangidos pelo segredo bancário.
As Repartições de Finanças recusaram fornecer as cópias das declarações de rendimentos, invocando sigilo fiscal.
O Exmº Procurador Geral-Adjunto, nesta instância, emitiu parecer no sentido de que se encontram reunidos os requisitos legais da decretação da quebra do sigilo bancário e do segredo fiscal.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
Preceitua o artigo 78º, nº1 do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei nº 298/92, de 31 de Dezembro, e alterado pelos Decretos-Leis nº 246/95, de 14 de Setembro, nº 222/99, de 22 de Junho, nº 250/2000, de 13 de Outubro, e nº 285/2001, de 3 de Novembro, "que os membros dos órgãos de administração ou de fiscalização das instituições de crédito, os seus empregados, mandatários, comitidos e outras pessoas que lhes prestem serviços a título permanente ou ocasional não podem revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações desta com os seus clientes cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços", acrescentando o nº2 do mesmo preceito que "estão, designadamente, sujeitos a segredo os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias".
Por seu turno, o artº 79º, nº2, alíneas d) e e) do mesmo diploma legal, estabelece que os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo só podem ser revelados, para além de outras situações, nos termos previstos na lei penal e de processo penal ou quando exista outra disposição legal que expressamente limite o dever de segredo.
Preceitua, por sua vez, o art. 84º do mesmo RGICSF que a violação do dever de segredo é punível nos termos do Código Penal, remetendo para o Código Penal vigente, na revisão decorrente do DL nº 48/95, de 15 de Março, cujos artºs 195º e 196º prevêem e punem como crime, quer a violação de segredo profissional, quer o seu aproveitamento indevido.
São estes os normativos, que, hoje, regulam o "segredo bancário".
Da conjugação dos artºs 182º, nºs 1 e 2, e 135º do C.P.P., resulta que o Tribunal da Relação do Porto pode decidir da quebra do segredo bancário quando "esta se mostre justificada" face às normas e princípios aplicáveis da lei penal, nomeadamente face ao princípio da prevalência do interesse preponderante" (cfr.nº3 do artº 135º).
O segredo bancário é uma forma de segredo que se encontra juridico-penalmente tutelado no artº 195º do C. Penal.
Contudo, a ilicitude da conduta prevista naquele preceito pode ser excluída pela "ordem jurídica considerada na sua totalidade", em obediência ao "princípio de que o ordenamento jurídico deve ser encarado no seu conjunto, de modo que as normas de outras ramos que estabelecem a licitude de uma conduta têm reflexo no direito criminal", como refere Maia Gonçalves, no "C. P. Penal Português Anotado e Comentado, 14ª edição 2001, pág. 145, sendo um dos casos de exclusão de ilicitude quando o facto é praticado "no cumprimento de um dever imposto por lei ou por ordem legítima da autoridade" (cfr. artºs 31º, nºs 1 e 2, alínea c), do C. Penal, e, no caso de conflito de deveres, quando o facto "satisfizer dever ou ordem de valor igual ou superior ao do dever ou ordem que sacrificar" (artº 36º, nº 1 do C. Penal).
Assim nos termos das disposições conjugadas dos artºs 182º, nº2, e 135º, nº3 do C.P.P., e 31º, nºs 1 e 2, alínea c), e 36º, nº1, do C. Penal, a quebra do segredo impõe uma criteriosa ponderação dos valores em conflito, em ordem a determinar se a salvaguarda do segredo deve ou não ceder perante os outros interesses em jogo.
Estes são por um lado, o dever de sigilo, e, por outro, o dever de colaboração com a administração da justiça penal, passando a resolução do conflito pela avaliação da diferente natureza e relevância dos bens jurídicos tutelados por aqueles deveres, segundo um critério de proporcionalidade na restrição de direitos e interesses constitucionalmente protegidos, como impõe o nº2 do artº 18º da Constituição da República Portuguesa, tendo em atenção o caso concreto.
O dever de sigilo destina-se a proteger os direitos pessoais ao bom nome e reputação e à reserva da vida privada, consagrados no artº 26º da CRP, e o interesse privado da protecção das relações de confiança entre as instituições, neste caso financeiras e os respectivos clientes, e o dever de colaboração com a administração da justiça penal que visa satisfazer o interesse público do exercício do direito de punir, consagrado constitucionalmente nos artºs 29º, 32º e 205º.
Também a Lei Geral Tributária, actualizada pela Lei nº 15/2001, de 5 de Junho, impõe aos dirigentes, funcionários e agentes da administração tributária a obrigação de guardar sigilo sobre os dados recolhidos sobre a situação tributária dos contribuintes e os elementos de natureza pessoal que obtenham no procedimento, nomeadamente os decorrentes do sigilo profissional ou qualquer outro dever de segredo legalmente regulado - nº1 do artigo 64º.
E o nº1 do artigo 91º do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela citada Lei nº15/2001, de 5 de Junho, pune com prisão até um ano ou multa até 240 dias quem, sem Justa causa e sem consentimento de quem de direito, dolosamente revelar ou se aproveitar do conhecimento do segredo fiscal ou da situação contributiva perante a segurança social de que tenha conhecimento no exercício das suas funções ou por causa delas.
Todavia, nos termos do nº2, alínea b), do artigo 64º daquela Lei Geral Tributária, o dever de sigilo cessa em caso de colaboração com a Justiça nos termos do Código de Processo Civil e do Código de Processo Penal.
Perante este regime, são inteiramente transferíveis para esta sede as considerações atrás transcritas relativamente ao segredo bancário.
Ora considerando que os elementos pretendidos se destinam à investigação de um processo por eventuais crimes de abuso de confiança e infidelidade, é manifesta a necessidade daqueles elementos para o prosseguimento da instrução, e justifica-se o seu fornecimento face à evidente prevalência do interesse público da boa administração da justiça penal sobre os interesses privados tutelados pelo sigilo bancário e pelo sigilo fiscal.
Na verdade, a não serem facultados, em nome dos sigilos bancário e fiscal, os meios de prova pretendidos, o agente dos crimes que se investigam estaria a ser protegido directamente por aqueles sigilos.
Deste modo o interesse da investigação criminal e o próprio interesse privado do ofendido - o lesado - são preponderantes em relação aos visados pelos sigilos bancário e fiscal, pelo que se justifica a quebra destes, mediante o fornecimento dos elementos solicitados.
DECISÃO
Nesta conformidade, decide-se, nos termos do artº 135º, nº3 do C.P.P., dispensar o Banco....., agência de..... e as Repartições de Finanças de..... e ..... do cumprimento do dever de segredo profissional, determinando-se que aqueles forneçam os meios de prova pretendidos, no processo de inquérito nº ../...
Sem tributação.
Processado por computador e revisto pelo primeiro signatário (artº 94º, nº 2 do C.P.P.)
Porto, 9 de Janeiro de 2002
José Maria Tomé Branco
Heitor Pereira Carvalho Gonçalves
José Manuel Baião Papão
Joaquim Costa de Morais