INQUÉRITO
INSTRUÇÃO CRIMINAL
DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA
CASO JULGADO FORMAL
REABERTURA DE INQUÉRITO
Sumário

A decisão instrutória de não pronúncia forma apenas caso julgado formal, nada impedindo que se extraia certidão do processo para que o Ministério Público prossiga com a reabertura de inquérito por terem surgido novos elementos de prova.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto.

I.
Neste processo nº .../... do Tribunal Judicial de Vila Nova de Famalicão, Carlos ..... e mulher, Maria Ester ....., queixaram-se em 12 de Novembro de 1998 contra Maria Arminda ..... . Após diligências de inquérito, o Ministério Público determinou o arquivamento dos autos, nos termos do artigo 277º, nº 2, do Código de Processo Penal. Os queixosos foram então admitidos a intervir como assistentes (fls. 69) e requereram a abertura da instrução que, findas as diligências requeridas e realizado debate instrutório, culminou com despacho de não pronúncia. Desse despacho interpuseram os assistentes recurso, mas esta Relação, por acórdão de 31 de Janeiro de 2001, negou-lhe provimento e manteve a decisão recorrida.
Foi no seguimento desse acórdão de 31 de Janeiro de 2001 que os assistentes, invocando o disposto no artigo 279º, nº 1, do Código de Processo Penal, requereram junto do Ministério Público a reabertura do inquérito, pedindo que fosse admitido e ordenado o depoimento da nova testemunha que identificaram, “dado esta ter conhecimento directo de factos que invalidam, pelo menos, alguns dos fundamentos que ditaram o arquivamento do inquérito”.
A Ex.ma Magistrada do Ministério Público por considerar que a decisão de não pronúncia não obsta à reabertura do inquérito, quando surjam factos novos ou elementos de prova, nos termos do disposto no artigo 287º do Código de Processo Penal promoveu o deferimento do requerido e que se extraia certidão de todo o processado, com vista à sua autuação como inquérito.
Sobre essa promoção foi lançado despacho de indeferimento, com o entendimento que quanto a estes factos, que já foram objecto de decisão judicial transitada em julgado, não pode haver nova investigação, por se verificar o caso julgado.
Desta decisão interpôs o Ministério Público recurso, que motivou, concluindo do seguinte modo:
a) De acordo com o disposto no artigo 276.° do Código de Processo Penal, a instrução tem como finalidade, a comprovação judicial da decisão de acusar ou arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
b) A decisão final proferida nesta fase, tendo como fundamento a carência de indícios suficientes no momento em que é proferida, uma vez transitada, significa que o caso não poderá ser apreciado em sede de julgamento.
c) O facto de no citado artigo 279.° do Código de Processo Penal se mencionar apenas a possibilidade de reabertura do "inquérito", não se trata de nenhuma opção deliberada do legislador no que respeita à impossibilidade de o mesmo ser reaberto quando se requereu a abertura da instrução e se decidiu pela não pronúncia.
d) O que quererá antes significar é que, reunidos outros indícios ou novos elementos de prova, os mesmos só poderão ser apreciados em sede de inquérito, a fase própria para "(...) investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher provas, em ordem à decisão sobre a acusação" (v.g. artigo 262.°, n.° 1, do Código de Processo Penal).
e) Por outro lado, no domínio do Direito Penal, onde estão em causa valores fundamentais da vida em sociedade, a certeza e a segurança de determinadas decisões — arquivamento do inquérito e decisão de não pronúncia —, não podem ser levadas longe demais, sob pena de se pôr em causa o interesse punitivo do Estado, cujos limites são os prazos de prescrição do procedimento criminal e o princípio ne bis in idem, como direito fundamental.
f) Nestes termos, a decisão recorrida fez uma errada interpretação e aplicação do disposto no artigo 279° do Código de Processo Penal., do artigo 29°, n° 5, da Constituição, e dos princípios gerais do processo penal.
Consequentemente, pede que se revogue a decisão recorrida, ordenando-se a sua substituição por outra que determine a passagem da certidão.
Nesta Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, em desenvolvido parecer, considera que o recurso merece provimento, devendo reabrir-se o inquérito, quando surjam elementos novos, probatórios, que ponham em causa o despacho de arquivamento (artigo 279º do Código de Processo Penal). Fundamentalmente, é de opinião que não sendo um juízo de mérito aquele que resulta da apreciação da prova, em sede de decisão instrutória, não se pode, com base nele, partir-se para uma decisão de mérito, nesta sede, que seja equivalente ao juízo jurisdicional em fase de julgamento. A natureza da função, num e noutro caso, são diversas. No primeiro visa-se acautelar o direito, liberdades e garantias na fase de inquérito e na instrução, no segundo visa-se apurar os factos e dizer o direito aos mesmos.
Deu-se cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal. Foram colhidos os vistos legais.
II.
Dispondo o artigo 279º, nº 1, do Código de Processo Penal, que esgotado o prazo a que se refere o artigo anterior, o inquérito só pode ser reaberto se surgirem novos elementos de prova que invalidem os fundamentos invocados pelo Ministério Público no despacho de arquivamento, põe-se, como objecto do presente recurso, a questão de saber se, proferido despacho de não pronúncia que se seguiu ao pedido de abertura da instrução formulado pelo assistente, após diligências de inquérito que não levaram à acusação, é de deferir requerimento do Ministério Público a solicitar a passagem de certidão de todo o processado para aquele fim, por entretanto ter havido indicação de uma nova testemunha com conhecimento directo de factos que, no dizer dos assistentes, “invalidam, pelo menos, alguns dos fundamentos que ditaram o arquivamento do inquérito”.
A decisão recorrida, partindo da consideração de que o caso julgado material constitui um pressuposto processual que contende com o princípio ne bis in idem e se repercute, desde logo, na própria noção de justiça e segurança, entende que ao contrário do despacho de arquivamento — que pode resultar da falta de indícios ou da inadmissibilidade legal do procedimento (artigo 277º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Penal) —, o despacho de não pronúncia impede a reabertura da instrução, não estando esta figura legalmente consagrada, ao contrário da reabertura do inquérito prevista no citado artigo 279º. Revestindo-se o despacho de não pronúncia dos efeitos do caso julgado, o disposto no artigo 279º do Código de Processo Penal não se poderá aplicar no caso concreto, por se referir à reabertura do inquérito.
III.
O Ministério Público tem a direcção da tarefa de investigação conducente à fundamentação da decisão de acusar ou de não acusar (artigo 262º e ss. do Código de Processo Penal). Findo o inquérito, procede, por despacho, ao arquivamento, nos casos do artigo 277º, nºs 1 e 2, ou deduz acusação, se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente (artigo 283º, nº 1, do mesmo código).
Por seu turno, os assistentes, nos termos do artigo 69.° do Código de Processo Penal, têm a posição de colaboradores do Ministério Público, subordinando a sua intervenção no processo à actividade daquela entidade, salvo nos casos excepcionais previstos na lei. Entre estes casos, em que o assistente actua sem subordinação ao Ministério Público, encontra-se o requerimento de abertura de instrução quando o Ministério Público, findo o inquérito, se abstém de acusar (artigo 287°, n° 1, alínea b), do Código de Processo Penal). Deste modo, no caso de acção penal por crime público, o assistente pode requerer a abertura da instrução se o Ministério Público não deduzir acusação, já que esta fase processual se destina a comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito (artigo 286°, n° 1, do Código de Processo Penal).
No Código de Processo Penal, a fase de instrução estrutura-se numa dupla finalidade: visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento. O seu carácter facultativo — hoc sensu, “disponível” — “adequa-se perfeitamente à natureza, que segundo a Constituição lhe cabe, de direito das pessoas e garantia do Processo Penal” (Figueiredo Dias, Para uma reforma global do processo penal português — da sua necessidade e de algumas orientações fundamentais, in Para uma nova justiça penal, 1983, p. 228). Há-de ser requerida pelo arguido ou pelo assistente, neste último caso quando se mostrem verificados certos pressupostos. É dirigida por um juiz de instrução assistido pelos órgãos de polícia criminal, sendo o seu conteúdo formado pelo conjunto dos actos de instrução que o juiz entenda dever levar a cabo (com as diligências de prova reduzidas a auto) e, obrigatoriamente, por um debate instrutório, este oral e contraditório. Encerrado o debate instrutório o juiz, no caso de terem sido recolhidos indícios suficientes sobre a verificação dos pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, profere despacho de pronúncia, sendo que, no caso contrário, haverá de emitir um julgado de não pronúncia (cf. os artigos 286° a 289° e 307° e 308° do Código de Processo Penal).
No caso em apreço, o Ministério Público, findo o inquérito, lavrou despacho de arquivamento, abstendo-se de acusar, nos termos do artigo 277º do Código de Processo Penal. Os assistentes reagiram e requereram a abertura da instrução, como lhes permite o citado artigo 287º, mas sem êxito: a decisão foi a de não pronunciar os arguidos e veio a ser confirmada por acórdão desta Relação.
Também nós cremos que não assiste razão à Meritíssima Juiz quando, na sequência de requerimento do Ministério Público, lhe nega a pretendida certidão de todo o processo para reabertura do inquérito, por haver notícia de uma nova testemunha com conhecimento directo de factos que invalidam, pelo menos, alguns dos fundamentos que ditaram o arquivamento do inquérito. O nó górdio da questão está em que a decisão de não pronúncia tem apenas efeitos de caso julgado formal: a não pronúncia, ainda quando ponha termo ao processo, não impedirá novo processo quando surgirem factos ou elementos de prova que transcendam os fundamentos da decisão anterior. E isto porque a suficiência de indícios é pressuposto tanto da acusação pública como da pronúncia: “se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes…, diz-se no artigo 283º, nº 1; se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes…, reza por seu turno o artigo 308, nº 1. O grau de indiciação requerido pelo despacho de pronúncia é assim idêntico ao da acusação pública, neste aspecto estão ambos ao mesmo nível. Recorramos, para evitar transvios, ao Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª ed, 2000, p. 184, 194 e 196, quando explica que, “concluída a instrução e verificada a falta deste pressuposto, o juiz profere despacho de não pronúncia por razões formais, não se pronunciando sobre o mérito.” De modo que “em todos os casos de não pronúncia, o tribunal não conhece do mérito da causa, mas simplesmente da não verificação dos pressupostos necessários para que o processo prossiga com a acusação deduzida e submetida à comprovação na fase da instrução; trata-se sempre, pois, de uma decisão de conteúdo estritamente processual.” “E porque se trata de decisão formal, a não pronúncia, ainda quando ponha termo ao processo, não impedirá novo processo quando surgirem factos ou elementos de prova que invalidem os fundamentos da decisão anterior.” É a consequência de a decisão de não pronúncia ter apenas efeitos de caso julgado formal. “Em processo penal, a não pronúncia, sendo decisão final, determina o arquivamento do processo, pelo que à possibilidade de instauração de novo processo no domínio do processo civil, quando tenha havido absolvição da instância, corresponde no âmbito do processo penal a reabertura do processo arquivado. Esta conclusão impõe-se por analogia com o que determinam os arts. 277º e 279º para o arquivamento e reabertura do inquérito.”
Mas há mais: na tese da decisão em recurso, a opção pelos efeitos do caso julgado material acaba por pôr no mesmo plano as absolvições decretadas em julgamento por falta de provas e os casos de não pronúncia com o fundamento em indiciação insuficiente. O paradoxo está em que no primeiro caso, em que de autêntico caso julgado material se trata, já se exigia um qualificado grau de indiciação como pressuposto da acusação e da remessa para julgamento.
A decisão de não pronúncia resultante de não se terem confirmado indícios da comissão de um crime não é, por conseguinte, uma decisão de mérito. Tudo isto nos compele a reconhecer, condenando a orientação contrária, que nada obstará a que se passe a certidão pretendida pelo Ministério Público para reabrir o inquérito.
A última nota é ainda uma simples constatação, para acentuar que a reabertura pretendida pelo Ministério Público se encontra sujeita a pressupostos — os do artigo 279º, cit. — cuja realidade, tanto quanto sabemos, ainda não se apurou: neste momento apenas há notícia de que uma nova testemunha tem conhecimento directo de factos que, na opinião dos assistentes, invalidam, pelo menos, alguns dos fundamentos que ditaram o arquivamento. Pelo que seria apressado concluir, desde já, que a simples passagem da certidão, ainda que para os indicados fins, por si só afronta o despacho de não pronúncia, quando se lhe confira a dimensão pretendida pela decisão agora sob recurso.
Nestes termos, acordam em dar provimento ao recurso e revogam o douto despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que atenda a pretensão do Ministério Público.
Não é devida tributação.
Porto, 16 de Janeiro de 2002
Manuel Cardoso Miguez Garcia
Pedro dos Santos Gonçalves Antunes
Arlindo Manuel Teixeira Pinto